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Contra o povo Soberania, nação e democracia no percurso teórico-prático de Carl Schmitt

Against the people: sovereignty, nation and democracy in Carl Schmitt’s political-intellectual trajectory

Resumo

Neste artigo, destacamos os estreitos elos ideológicos entre as noções de soberania, estado de exceção e totalitarismo na trajetória político-intelectual de Carl Schmitt, os quais descartam qualquer perspectiva de soberania popular. Adotamos uma posição teórico-metodológica inspirada em Nicos Poulantzas, e nossa principal hipótese é que a apropriação seletiva de noções trabalhadas por Schmitt bloqueia o conhecimento científico e reforça a confusão ideológica entre as classes populares.

Palavras-chave:
Soberania; Estado de exceção; Totalitarismo; Democracia; Carl Schmitt

Abstract

In this article, we highlight the narrow ideological links between notions of sovereignty, state of exception and totalitarianism in Carl Schmitt’s political-intellectual trajectory, which rule out any perspective of popular sovereignty. We adopt a theoretical-methodological position inspired by Nicos Poulantzas, and our main hypothesis is that the selective appropriation of notions worked by Schmitt blocks the scientific knowledge and reinforces the ideological confusion among the popular classes.

Keywords:
Sovereignty; State of exception; Totalitarianism; Democracy; Carl Schmitt

A primeira grande onda do neoliberalismo e o colapso do bloco liderado pela União Soviética contribuíram para que surgissem às mancheias, sob o signo ideológico da chamada globalização, torrentes de textos um tanto apocalípticos. Foram tempos do “fim”: do território, do Estado-nação e, obviamente, da soberania.

Durou pouco. E a forte retomada dos estudos acerca da soberania foi acompanhada de uma expressão que voltaria a fazer fortuna em diversas áreas das Ciências Humanas, “estado de exceção”. Esta nucleia, desde a passagem de milênio, o debate sobre a crise da democracia popularizado a partir dos atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos1 1 . A esse respeito, a obra de maior impacto junto ao público cultivado é a de Agamben (2004). Cite-se também o livro de Negri e Hardt (2001), que, além de suas qualidades intrínsecas, publicado originalmente em 2000, é considerado premonitório em relação a esses atentados. . Por outro lado, hibernaram os provectos estudos sobre totalitarismo, não apenas em razão dos alardeados “colapsos” dos Estados, como da descoberta de que houvera fissuras e contradições no interior das formações sociais que, durante a Guerra Fria, tinham sido alvos preferenciais daquela desqualificação.

“Estado de exceção” oscila entre a referência ao núcleo essencial da relação política - neste caso, situado fora do universo da norma jurídica, à qual garante condição de existência - e um desvio em relação ao Estado democrático de direito. Essa ambiguidade fundamental possibilita que a noção seja apropriada tanto em um sentido positivo como negativo ou mesmo, aparentemente, desprovido de juízo de valor. E tanto à direita como à esquerda.

“Totalitarismo” possui conotação mais pesada. Dirigia-se a tentativas autoproclamadas de revoluções socialistas e agora é disparado contra distintos enfrentamentos mais ou menos diretos da hegemonia dos Estados Unidos. Mas, diferentemente do ocorrido no entreguerras, quando o fascismo e, por um período bem menor, o nazismo se proclamavam totalitários, nenhuma outra força política relevante reivindica para si esta qualificação.

O que nos deixa um problema teórico-político importante.

Carl Schmitt, que assentou “estado de exceção” como um conceito nuclear de sua teoria política - e jurídica - também, a partir de um momento crucial, o da ascensão do nazismo, se apropriou positivamente da noção de totalitarismo. Mesmo sem considerar que essa fosse a única possibilidade que se apresentava ao percurso schmittiano, não nos parece que o desdobramento tenha sido fortuito, especialmente se levarmos em conta a trajetória intelectual e a inserção do autor na formação social alemã do entreguerras. Sem qualquer automatismo, sugerimos que posições teóricas fundamentais do autor se revelaram adequadas ao conservadorismo - e mesmo ao fascismo. Em contrapartida, no que se refere às perspectivas de lutas populares, apresentam sérios problemas que merecem maior atenção ao adentrarmos o século xxi.

Na abordagem desse tema, examinaremos algumas das formulações schmittianas acerca de soberania, democracia e nação. Democracia porque está em jogo a questão do poder político; e nação porque a soberania a que se refere Schmitt corresponde, inclusive no plano ideológico, às formações sociais dominadas pelo modo de produção capitalista, o que passa pelo exame de alguns conceitos nucleares, como os de exceção e de político. Em seguida nos voltaremos brevemente para as relações entre alguns aspectos da produção teórica e a atuação política de Schmitt durante a conturbada República de Weimar e, na crise final desta, a ascensão do nazismo. Essas questões têm sido abordadas no Brasil predominantemente por estudiosos nas áreas de Teoria Jurídica e Filosofia e, em ambas, se produzem importantes reflexões. A frequência tem sido menor nas Ciências Sociais, área em que esperamos que este artigo contribua para estimular a discussão. Esta, como veremos, faz muita falta nos debates mais amplos sobre as perspectivas das lutas pela democracia no Brasil, o que aumenta o risco de grandes impasses teórico-ideológicos.

Soberania, democracia e nação: desencontros na primeira metade do século xx

“Estado de exceção” adquiriu status de conceito fundamental a partir de 1922, com o lançamento de Teologia política, de Carl Schmitt. Este, ao centrar a atenção no conceito de soberania, recorreu, especialmente, aos esforços encetados por Jean Bodin, que teria feito progressos ao passar de um conceito tautológico - soberania: “a potência absoluta e perpétua de uma República” (Bodin, 1993, p. 11) - para a detecção das “verdadeiras marcas da soberania”: fazer as leis, decidir sobre a guerra ou a paz, nomear os principais funcionários, julgar em última instância, dom da graça (Bodin, 1993, pp. 151-178)2 2 . Nossa abordagem das relações entre Carl Schmitt e Jean Bodin é fortemente tributária de reflexões apresentadas por Balibar (2013), inclusive do seminário que este ministrou na Université de Nanterre durante o inverno de 2000. . Para Schmitt, o trabalho estava quase pronto.

Faltava ir além de um procedimento descritivo e produzir o fecho conceitual. Schmitt observa que Bodin, pensador da ordem, sempre se refere a uma exceção. É o que ele, Schmitt, pretende fazer aflorar quando apresenta uma de suas formulações mais célebres: “É soberano quem decide sobre o estado de exceção” (1985, p. 5).

É provável que o caráter sintético da definição tenha contribuído para ocultar dois anacronismos em sentidos opostos, os quais incidirão sobre o núcleo de uma problemática fundamental para as teorizações de Schmitt: a dos nexos entre nação, soberania e política, esta concebida em torno da relação amigo-inimigo (Schmitt, 2007a, p. 26). O primeiro anacronismo consiste em pinçar um aspecto da ideologia da soberania típica do feudalismo de crise - no qual se constituiu o Estado absolutista - e transpô-lo para as formações sociais dominadas pelo modo de produção capitalista: a hiperbolização do poder do monarca sobre os súditos, sem levar em conta, como observa Balibar (2013Balibar, Etienne. (2013), “Prolègomènes à la souverainetè”. In: Nous, citoyens d’Europe? Les fronteires, l’État, le peuple. Paris, La Découverte, n.p, e-book.), a relação sistêmica - e não somente enumerativa - que Bodin atribuiu às marcas da soberania. O anacronismo em sentido inverso consiste em articular ao absolutismo um tipo de comunidade - a nacional - que se remete ao capitalismo (Schmitt, 1985, p. 17).

Nos dois casos, a inversão histórica é facilitada pela desatenção para com as determinações estruturais dos modos de produção feudal (na fase absolutista) e capitalista. No feudalismo, inclusive em seu período de crise, quando ocorre uma unidade entre trabalhadores diretos e os meios de produção (a “posse”), “a relação de propriedade tem de aparecer, ao mesmo tempo, como relação direta de dominação e servidão, e, portanto, o produtor direto como alguém não livre” (Marx, 1986Marx, Karl. (1986), O capital. Livro iii, tomo 2. São Paulo, Nova Cultural., p. 281). Ele se insere “em uma relação de dependência que pode variar “gradativamente”, desde a “servidão com trabalho pessoal até a obrigação tributária” (Marx, 1986, p. 281). À relação de domínio e servidão correspondia o monopólio “das tarefas de Estado pela classe proprietária dos meios de produção” (Saes, 1998Saes, Décio. (1998), “O conceito de Estado burguês”. In: Estado e democracia: ensaios teóricos. 3 ed. Campinas, ifch/Unicamp, pp. 15-50., pp. 40-41), descartando-se, também neste âmbito, a possibilidade de os produtores diretos serem interpelados como indivíduos livres e iguais; e, portanto, que fossem membros de uma comunidade soberana. Já as estruturas do modo de produção capitalista produzem as condições para o processo de constituição - com toda a carga ideológica que ele contém - de uma comunidade de cidadãos livres, iguais e competitivos, proprietários e não proprietários dos meios de produção. Comunidade cuja soberania se expressa, nos planos interno e externo, no Estado nacional (Poulantzas, 1968Poulantzas, Nicos. (1968), Pouvoir politique et classes sociales. Paris, Maspero., pp. 202-203; Almeida, 2014Almeida, Lúcio Flávio de. (2014), Ideologia nacional e nacionalismo. 2 ed. São Paulo, Educ., pp. 50-65). Isso não se aplica aos tempos de Bodin.

Se o próprio conceito de soberania, tal como Schmitt decalcou da ideologia do absolutismo, já faz problema, este se complica ainda mais quando se trata do conceito de político.

Em suma, o problema básico das formulações de Schmitt consiste em privilegiar a continuidade, desconsiderando as múltiplas determinações estruturais de dois tipos de soberania radicalmente distintos. Um segundo problema é, nos marcos do primeiro, se restringir à ideologia da soberania articulada ao Estado absolutista.

Com esse processo de abstração duplamente frágil, perde-se de vista a extraordinária mudança que ocorre na ideologia da soberania correspondente ao modo de produção capitalista (P. Anderson, 1985Anderson, Perry. (1985), Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo, Brasiliense., p. 28). A célebre assertiva de que “a ordem jurídica, como qualquer outra ordem, repousa em uma decisão e não em uma norma” (Schmitt, 1985Schmitt, Carl. (1985), Political theology: four chapters on the concept of sovereignty. Cambridge, mit Press., p. 10; grifos meus) incorre em um voluntarismo que descarta, de saída, qualquer tentativa de estudo científico das estruturas e das relações sociais.

Em correspondência com a separação entre a classe proprietária dos meios de produção e o pessoal do Estado, o detentor da soberania se constitui como um ente muito maior e qualitativamente distinto: uma comunidade de cidadãos livres e iguais, constitutiva do povo-nação. Como observou Benedict Anderson (2008Anderson, Benedict. (2008), Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo, Companhia das Letras.), ocorre uma passagem entre dois tipos de “comunidades imaginadas”: do reino dinástico para a comunidade nacional. Esta última, no âmbito ideológico, longe de submetida à vontade de um soberano individual, supõe, a nosso ver, a mencionada tripla determinação estrutural: a plena separação entre os produtores diretos e os meios de produção; o processo de constituição desses produtores diretos como indivíduos dotados de vontade jurídica, iguais e competitivos, aptos para contratarem a venda de suas forças de trabalho aos proprietários dos meios de produção; e o já referido processo de constituição deles como membros de uma comunidade dotada de soberania que se materializa no Estado nacional.

Essas coordenadas estruturais restringem o âmbito da intervenção de “um soberano” ou mesmo da classe (ou fração de classe) que será, ao fim e ao cabo, a beneficiária fundamental da “decisão”. Schmitt, ao contrário de Bodin, se preocupou fundamentalmente com sociedades capitalistas. No plano mais imediato, durante a República de Weimar (desfecho da crise incluso), em uma formação social repleta de questões complicadíssimas relativas ao próprio processo de transição para o capitalismo, à passagem deste para o estágio imperialista e à forma de Estado, bem como ao regime político.

Se as revoluções burguesas possuem algo em comum é a frágil participação da burguesia, a “ausência de capacidade política”, até em razão de sua precária constituição como classe, a qual, para se plenificar, depende da existência do Estado burguês3 3 . Precisamente, o principal desfecho desta revolução. . Daí, por mais paradoxal que pareça, as imensas dificuldades da burguesia para “protagonizar” as revoluções burguesas (Poulantzas, 1968Poulantzas, Nicos. (1968), Pouvoir politique et classes sociales. Paris, Maspero., p. 197; grifos dele). O caráter burguês da transição e, portanto, o processo de constituição de um novo tipo de soberania devem-se ao processo de formação de um tipo de Estado correspondente ao novo modo de produção dominante. E este Estado, ao interpelar o conjunto dos agentes da produção como cidadãos, opera objetivamente, já em razão de sua própria estrutura, no sentido de evitar que os produtores diretos se organizem como classe distinta e antagônica à burguesia. O aparelho por excelência da contrarrevolução - o Estado - se apresenta como de todo o povo e, desta forma, representante da comunidade nacional.

Em suma, se a dominação de classe no feudalismo de crise requeria a fortemente ideologizada soberania do príncipe, à dominação burguesa corresponde a ideologia de que o soberano é o povo-nação. Caso não se leve em conta essa diferença, ou se mistifica a soberania do “Príncipe” ou a da “comunidade de cidadãos”, ocultando-se, em um caso como no outro, as estruturas de dominação e, no interior de cada uma delas - e perpassadas por elas -, as diferentes articulações estruturais que abrem espaço para os processos de constituição de certas correlações de forças. Estas, por sua vez, determinam as políticas de Estado, alterações nas formas de Estado e regimes políticos e, quando deixam de operar, abrem espaço para - se houver forças organizadas à altura das possibilidades, porém jamais oniscientes e isentas de contradições - processos revolucionários.

Certas formulações nucleares da noção de soberania concebida por Schmitt, cuja imensa cultura está fora de questão, são cintilantes e, ao mesmo tempo, ideológicas. Cintilantes, por exemplo, ao condensarem as “verdadeiras marcas da soberania”, sinalizadas por Bodin, em um esforço de produção conceitual: “[…] é quem decide sobre o estado de exceção” (Schmitt, 1985, p. 5). Ideológicas porque ocultam o caráter de organizador da dominação burguesa adquirido por certo tipo de Estado que se apresenta como expressão da soberania da comunidade nacional. E Schmitt insiste em universalizar a figura de um soberano que age tão à vontade como aquele - o absolutista - que se imaginava atuar irrestritamente em um universo que, como já vimos, era bem mais restrito e simplificado. O autor descarta o complexo processo que articula as determinações estruturais burguesas constitutivas do próprio povo-nação4 4 . Como observa Balibar (2013, n. p.), Schmitt se debate com “o fato de que o Estado pode ser personalizado como um sujeito, enquanto o povo não o pode”. E o próprio Balibar sugere que essa dissimetria ocorre porque “a própria noção de povo implica uma multiplicidade (mesmo uma conflitualidade) que resiste à unificação absoluta (inclusive, talvez, por meios totalitários)” (2013, n. p.). Recorremos a vários textos publicados em meios digitais, que, com frequência, não trazem numeração de páginas. Nesses casos, utilizaremos a abreviação “n. p.” para indicar um excerto não paginado. . Tentativas cintilantes e ideológicas porque o superpoliticismo alude a uma importante característica do Estado burguês. Para desgosto dos (neo)liberais, o estágio monopolista do capitalismo se caracteriza pela forte presença da dimensão política no processo de reprodução ampliada deste modo de produção, o que, aliás, intensifica as quebras da “ordem jurídica”.

Os múltiplos processos de brilho e refração guardam estreitos vínculos com o conceito de político formulado por Schmitt:

Toda antítese religiosa, moral, econômica, étnica ou de qualquer outro tipo transforma-se em antítese política se ela for suficientemente forte para agrupar os seres humanos efetivamente em amigo e inimigo (1985, p. 37).

Aqui, um aparente paradoxo.

O autor, intelectual arguto, ao chegar, por meio de uma abstração indevida, ao ponto que lhe interessava politicamente, rondou uma abordagem das relações entre classes sociais e poder político que supera grande parte das formulações presas a uma visão economicista, inclusive no interior do marxismo. Para Schmitt,

[…] também uma classe, no sentido marxista do termo, deixa de ser algo puramente econômico e se torna um fator político quando atinge esse ponto decisivo, por exemplo, quando os marxistas se aproximam seriamente da luta de classes e tratam a classe adversária como um inimigo real e o combatem, seja na forma de uma luta de Estado contra Estado, seja em uma guerra civil dentro de um Estado (Schmitt, 1985Schmitt, Carl. (1985), Political theology: four chapters on the concept of sovereignty. Cambridge, mit Press., p. 37).

Um entusiasta do autor alemão, Julien Freund, censurou os que criticam o privilégio conferido por Schmitt aos aspectos externos das políticas estatais5 5 . Ao partir de sua definição de política como relação amigo-inimigo, Schmitt considera que um povo se constitui pela negação de outro. Nesse sentido, é impensável um mundo sem nações, sem nacionalismos e sem o potencial de guerras. . E contra-atacou reprovando, especialmente nos pluralistas, a ênfase nos distintos interesses existentes no interior de uma comunidade nacional. Motivo: Schmitt procura mostrar que essa ênfase contribui para o risco da guerra civil ao despertar a relação amigo-inimigo - o elemento definidor da política - que o Estado moderno, desde Bodin e Hobbes, conseguiu superar dentro da comunidade. Conseguiu

[…] domar no interior de suas fronteiras a relação amigo-inimigo, sem jamais tê-la suprimido. […] Porque o critério de amigo-inimigo permanece latente no Estado, a política interna guarda um caráter polêmico, inclusive a noção de classe, de ditadura, de república, de democracia etc. (Freund, 1992Freund, Julien. (1992), “Préface”. In: Schmitt, Carl (org.). La notion de politique/Théorie du partisan. Paris, Flammarion, pp. 7-38., pp. 24-25).

A seu modo, Schmitt detecta uma íntima relação entre o sucesso do Estado em soldar a unidade nacional e, por outro lado, a neutralização das lutas proletárias. Neste início de século xxi, marcado pela negligência para com as relações entre as classes sociais, destaque-se, em primeiro lugar, a verdadeira obsessão de Schmitt com o risco de que o proletariado se constituísse como classe, ou seja, como uma força revolucionária; e, em segundo, a visceral, se bem que não imune a atualizações, convicção de que a comunidade nacional é o agrupamento por excelência dos “amigos”6 6 . Borón e González questionam, com razão, se este “estado homogêneo” concebido por Schmitt “está liberado de todo tipo de conflitos” (2006, p. 169). Em outros termos, “não há novos enfrentamentos que surgem do campo dos amigos, produto das contradições estruturais da ordem social capitalista” (2006, p. 169). . Como veremos mais abaixo, essa posição abre espaço para perigosas tentativas homogeneizadoras.

O que Schmitt não podia explicitar era a indissociabilidade estrutural - a qual não exclui outros vínculos (Almeida, 2012Almeida, Lúcio Flávio de. (2012), “Nacionalitarismo, anti-imperialismo e democracia: um desafio teórico-prático que se repõe para o marxismo no século xxi”. Lutas Sociais, São Paulo, 28: 114-129.) - entre a ideologia da soberania do Estado burguês e a dominação capitalista de classe. A figura do soberano, decantada do absolutismo e transposta para as formações sociais capitalistas, opera, na obra de Schmitt, como uma transfiguração ideológica da repressão às tendências do proletariado a se constituir como classe.

Terá sido Carl Schmitt um ideólogo do totalitarismo?

Façamos uma rápida mudança de cenário.

Da “vontade totalitária e feroz” ao “totalitarismo”

Assim que surgiu, logo após a Primeira Guerra Mundial, o adjetivo “totalitário” foi adotado por círculos liberais e católicos para se referirem ao fascismo, mas logo este incorporou o neologismo como uma autorreferência positiva e passível de teorizações (Traverso, 2001Traverso, Enzo. (2001), El totalitarismo: história crítica de um debate. Buenos Aires, Editorial Universidad de Buenos Aires., pp. 29-46).

O marco inicial foi o famoso “Discurso a Augusto”, pronunciado por Mussolini, em 22 de junho de 1925, no iv Congresso Nacional do Partido Fascista. Segundo o Duce:

Nós levamos a luta para um campo tão claro que agora temos de estar de um lado ou de outro. Não só isso, mas esse objetivo que é definido como nossa vontade totalitária e feroz será perseguido com uma ferocidade ainda maior […]. Queremos, definitivamente, fascistizar a Nação, de modo que no dia de amanhã ser italiano equivalha […] a ser fascista. (Mussolini, 1956Mussolini, Benito. (1956), “Intransigenza assoluta”. In: Opera omnia. Firenzi, La Fenice, vol. xxi, pp. 357-364., p. 362).

Giovanni Gentile, o filósofo oficial do regime, utilizou o termo em 1928Gentile, Giovanni. (1928), “The philosophic basis of fascism”. Foreign Affairs, 6 (2): 290-304. Disponível em https://www.foreignaffairs.com/articles/italy/1928-01-01/philosophic-basis-fascism, consultado em 15/03/2018.
https://www.foreignaffairs.com/articles/...
, ao publicar um artigo na prestigiosa Foreign Affairs. Inspirado em Hegel, combateu o liberalismo, cuja fantasiosa liberdade individual se opõe ao Estado. Afirmou que, ao se definir fascismo, “o primeiro ponto a ser apreendido é o abrangente, ou, como dizem os fascistas, o escopo ‘totalitário’ de sua doutrina7 7 . Deixamos o exame do recurso à noção de “totalitarismo” feito por Gramsci para um artigo já em preparação sobre marxistas e totalitarismo no período que se estende dos anos 1920 ao imediato pós-Segunda Guerra Mundial. , que se preocupa não apenas com a organização política e a tendência política, mas com toda a vontade e pensamento e sentimento da nação” (Gentile, 1928, n. p.).

Gentile aproximou fascismo de nacionalismo, mas com uma distinção fundamental. O nacionalismo toma a nação como um dado, um fato natural que se impõe à vontade do indivíduo. E para o fascismo, a nação “é uma criação da mente”, sempre em processo. O mesmo ocorre com o Estado, que deixa de ser concebido como algo que vem de cima, mas se constrói juntamente com a nação. Estado e nação, profundamente imbricados, eram a condição e o resultado da democracia.

Para o fascismo, a nação nem é preexistente, nem está acima do povo, o que implicaria um Estado também aristocrático. Ao contrário, “o Estado fascista […] é um estado do povo como tal, o estado democrático por excelência” (Gentile, 1928Gentile, Giovanni. (1928), “The philosophic basis of fascism”. Foreign Affairs, 6 (2): 290-304. Disponível em https://www.foreignaffairs.com/articles/italy/1928-01-01/philosophic-basis-fascism, consultado em 15/03/2018.
https://www.foreignaffairs.com/articles/...
, n. p.). Ele resolve “o paradoxo da liberdade e da autoridade”, cujos vínculos o liberalismo destroçou. Este Estado detém “autoridade absoluta”, que jamais pode ser barganhada em qualquer aspecto com “outros princípios morais ou religiosos que interfiram na consciência individual” (1928, n. p.). Mas, em contrapartida, “o Estado só se torna realidade na consciência dos indivíduos” (Gentile, 1928, n. p.).

Em 1932, o ideólogo e o Duce publicaram um verbete sobre o fascismo na Enciclopedia Italiana. Embora o texto apareça com a autoria apenas de Mussolini, a primeira parte, “A ideia fundamental do Fascismo”, foi realmente escrita por Gentile8 8 . Na edição que utilizamos, pp. 117-124. , que retoma sua abordagem, em tons hegelianos, das relações entre fascismo e liberalismo. Enquanto este “negava o Estado no interesse do indivíduo, […] o fascismo reafirma o Estado como a verdadeira realidade do indivíduo” (Mussolini, 1961, p. 119). Afirma a liberdade “do homem real”, descartando o “fantoche abstrato no qual pensava o liberalismo individualista” (Idem). Para Gentile, não se tratava de negar a liberdade, mas de considerar “a única liberdade que possa ser algo sério, a liberdade do Estado e do indivíduo no Estado” (Idem). Daí a sentença icônica para o regime: “Tudo está no Estado e nada de humano ou espiritual existe, e muito menos tem valor, fora do Estado” (Idem). E concluiu: “Neste sentido, o fascismo é totalitário e o Estado fascista, síntese e unidade de cada valor, interpreta, desenvolve e potencializa toda a vida do povo” (Idem).

Por sua vez, Mussolini afirmou que “um partido que governa totalitariamente uma nação é um fato novo na história” (1961, p. 128). Após despachar o liberalismo, a democracia e o socialismo para o século xix, considerou factível que o século xx fosse “o século da autoridade, um século de direita, um século fascista”. O anterior foi “o século do indivíduo” e este, o xx, “o século coletivo e, portanto, o século do Estado” (Mussolini, 1932, n. p.).

Dos Seis livros da República à República de Weimar

Ao longo dos anos 1920, Carl Schmitt nutriu crescente admiração pelo fascismo e, mais criativamente, seguiu em paralelo com algumas formulações apresentadas por Gentile. Foi o que ocorreu, por exemplo, com uma posição, no mínimo, perigosamente confusa acerca das relações entre nação, soberania e democracia.

Apenas mencionamos, por exemplo, suas reflexões em Parlamentarismo e democracia9 9 . A edição de 1926 foi acrescida, a título de prefácio, de um comentário de Carl Schmitt sobre considerações que o texto original recebeu. , em que empreende um grande esforço para detectar os valores que legitimam determinados sistemas políticos. Foi o caso do sistema parlamentar, apoiado no século xix, segundo o autor, pela publicidade e a discussão (Schmitt, 1988Schmitt, Carl. (1988), Parlamentarisme et démocratie. Paris, Seuil., p. 45). Mas, na sequência, as limitações de ambas foram escancaradas pelo ingresso das massas na política, o que se mostrou desastroso para o liberalismo. E, mais ainda, para a democracia liberal, pois, com a miríade de grupos fechados que negociam as decisões políticas à revelia das massas, a democracia se revela um devaneio, assim como o Parlamento - e, com ele, a publicidade e a discussão - se reduz a “uma formalidade vazia” (1988, p. 64).

Schmitt enfatiza, nesse texto, “a definição de democracia como uma identidade de governantes e governados” (1988, p. 111), identidade que, como observa Pasquino (1988Pasquino, Pasquale. (1988), “Préface”. In: Schmitt, Carl & Strauss, Leo. Parlamentarisme et démocratie. Paris, Éditions du Seuil, pp. 7-20., p. 18), é pensada “como identificação - o que se opõe à ideia ingênua de identidade material - mas também como homogeneidade”, cuja substância “consistiria na homogeneidade nacional” de um agrupamento político que o Estado nucleia.

Em sua busca do verdadeiro sentido de democracia, Schmitt encontra um ponto de ancoragem em O contrato social, de Rousseau, obra “híbrida” de que seria preciso, segundo o autor alemão, extirpar o viés liberal contido na própria noção de contrato e resguardar a ideia-chave, homogeneidade, da qual “se extrai a identidade democrática de governantes e governados” (Schmitt, 1988, p. 112). Em torno dessa ideia, Schmitt desenvolve a sombria argumentação de que o mundo se divide atualmente em Estados, na maioria “Estados nacionais homogêneos” que procuram, no interior de si mesmos, “realizar uma democracia, sobre a base de uma homogeneidade nacional, mas, quanto ao restante, se abstêm de tratar todos os homens como cidadãos iguais em direitos” (1988, p. 108). Nos termos de Schmitt, em “toda verdadeira democracia […] somente o que é semelhante recebe um tratamento semelhante e também - consequência inevitável - o não semelhante não recebe um tratamento semelhante”. Portanto, “um ingrediente necessário da democracia é, para começar, a homogeneidade; e em seguida, se preciso for, “marginalizar ou excluir o heterogêneo” (1988, pp. 105-106).

O descarte do liberalismo não era grande novidade. Mas, ao negligenciar a tese rousseauísta da soberania popular, Schmitt produz uma despolitização da sociedade, o que, aliás, esvazia o potencial revolucionário da obra de Rousseau. Para nos limitarmos ao Contrato social10 10 . Texto privilegiado por Schmitt. , rompe os elos do corpo político entre “o Estado, corpo passivo” e “o soberano quando ativo”, além da “potência quando comparado a seus semelhantes” (Rousseau, 1943, p. 93). É como se o processo intelectual de Schmitt mimetizasse a tese rousseauísta do contínuo esforço do governo contra a soberania (Idem, p. 321). Para Rousseau, “importa menos dividir o poder do que vigiá-lo”, o que requer que “os cidadãos permaneçam vigilantes e conservem o controle sobre o governo” (Derrathé, 2009Derrathé, Robert. (2009), Rousseau e a ciência política de seu tempo. São Paulo, Barcarolla; Discurso Editorial., p. 523). O que importa é destacar, com Derrathé, o dinamismo do polo político popular na obra de Rousseau. Também recorremos, por nossa conta e risco, à tese de Marramao (1995Marramao, Giacomo. (1995), “Pouvoir et puissance: à propos de Carl Schmitt”. In: Herrera, Carlos (org.), Le Droit, le Politique: autour de Max Weber, Hans Kelsen, Carl Schmitt. Paris, L’Harmattan, pp. 69-82., p. 81), para quem Schmitt opera “um curto-circuito violento entre o tema da decisão […] e o tema da Ordem”, o que desemboca na “abrupta reabsorção do tema do político no do Estado”.

Esse bloqueio à análise das relações políticas internas a uma formação social, com a eliminação de toda “diferença”, condição da soldagem, pelo Estado, da comunidade nacional, obscurece qualquer perspectiva de soberania popular e, mais ainda, de transformação social de caráter socialista. Nesse sentido, Pasquino (1988Pasquino, Pasquale. (1988), “Préface”. In: Schmitt, Carl & Strauss, Leo. Parlamentarisme et démocratie. Paris, Éditions du Seuil, pp. 7-20., p. 18) considera que essas teses sobre identidade/identificação e democracia ignoraram que, desde 1848, a principal ameaça sofrida pelos Estados-nações europeus originou-se de conflitos de classes internos a eles. O resultado teórico-ideológico da raspagem do político no âmbito interno legitimava a repressão a um estático “não homogêneo”.

Acertando os ponteiros: Estado total, Estado totalitário

Carl Schmitt apresentou a noção de “Estado total” em um de seus livros mais célebres, especialmente porque expressava o envolvimento cada vez maior desse autor com a polarização político-ideológica que se intensificava na formação social alemã a partir da crise de 1929. Trata-se de O guardião da Constituição (Schmitt, 1931b), cujo título, dois anos antes, fora atribuído a um ensaio e estava presente na denominação de um capítulo de livro (Schmitt, 1929a, 1929b). Totale Staat expressava forte influência do fascismo italiano, no sentido de “Estado totalitário” (Faye, 2009Faye, Jean-Pierre. (2009), Introdução às linguagens totalitárias: teoria e transformação do relato. São Paulo, Perspectiva., p. 68, passim). E, para quem, longe de um incidente qualquer, se tornava importante intelectual orgânico no processo de ascensão do nazismo, a ode ao guardião da Constituição e a defesa do “Estado total” confluíam. Daí a incorporação do primeiro dos dois artigos acerca deste segundo tema (Schmitt, 1931a) ao livro sobre o primeiro (Schmitt, 1931b).

Congruente com seu engajamento em favor da atribuição de poderes excepcionais ao Reichspräsident11 11 . No caso, Hindenburg. , Schmitt teorizava que, ao inverso do ocorrido no século xix sob a égide do liberalismo, no xx “a sociedade se organiza(va) para se tornar ela própria Estado”. O que abria espaço para um arrazoado inabalável:

Se a sociedade se organiza para se tornar, ela mesma, Estado, se Estado e sociedade devem ser fundamentalmente idênticos, todos os problemas sociais e econômicos tornam-se, então, problemas diretamente estatais e então se torna impossível distinguir setores objetivos de natureza política e estatal e setores sociais que escapariam à política. (Schmitt, 1988Schmitt, Carl. (1988), Parlamentarisme et démocratie. Paris, Seuil., pp. 151-170).

Convenhamos que, em meio a uma profunda crise do capitalismo, à lembrança da recentíssima insurreição espartaquista, à revolução bolchevique em curso, à persistência do movimento comunista e, literalmente do outro lado, à ascensão de forte nacionalismo de direita e extrema-direita, a ideologia do totalitarismo era música para os dominantes.

Tampouco Schmitt estava sozinho no embate jurídico-político vitorioso em favor do golpe na Prússia (20 de julho de 1932)12 12 . A decisão do Tribunal de Leipzig, favorável à destituição, pelo Reichspräsident, do governo da Prússia, o mais importante estado (Land) da Alemanha, foi tomada em 25 de outubro de 1932. Vita (2015) fez um ótimo estudo a respeito. , passo fundamental para a ascensão do nazismo e, com este, a “indistinção” entre Estado e sociedade. Boa parte dos membros da cúpula do Judiciário, até porque socializada durante o Segundo Império, era conservadora e, pior, contrária à própria República de Weimar (Vita, 2015Vita, Leticia (org.). (2015), Prussia contra el Reich ante el Tribunal Estatal: La sentencia que enfrento a Hermann Heller, Carl Schmith y Hans Kelsen em Weimar. Bogotá, Universidad Externado de Colombia, n. p., e-book., n. p.), sendo amplamente conquistada pelo nazismo (Poulantzas, 1978Poulantzas, Nicos. (1978), Fascismo e ditadura. São Paulo, Martins Fontes., p. 371). Com a transição de regime, ocorreram poucas mudanças neste ramo do aparelho estatal, apesar do endurecimento ainda maior das leis contra os alvos preferenciais da direita (McElligott, 1999McElligott, Anthony. (1999), “Dangerous communities and conservative authority: the judiciary, Nazis and rough people, 1932-1933”. In: Kirk, Tim & McElligott, Antony (orgs.). Opposing fascism: community, authority and resistance in Europe. Cambridge, University Press, n.p., e-book., n. p.).

Um mês após o golpe na Prússia ser chancelado pelo tribunal de Leipzig, Schmitt deu uma famosa conferência, em 23 de dezembro de 1932, intitulada “Uma política sadia para um Estado forte”. O evento ocorreu na Associação do Longo Nome13 13 . Mensagens da Associação para a Defesa dos Interesses Comuns da Economia da Renânia e Vestfália. , importante aparelho ideológico da grande burguesia industrial alemã14 14 . Com o título Die Wendung zum totalen Staat. Nela são retomadas formulações que apareceram na segunda edição, publicada em 1931, dois anos após a primeira, de O guardião da Constituição (Schmitt, 2007b, pp. 107-133). Para a leitura deste e do próximo artigo, ambos publicados originalmente na Europäische Revue (1931, pp. 241-250, e 1933, pp. 65-70), recorremos à edição estadunidense publicada na coletânea Four articles, 1931-1938 do autor alemão, organizada por Draghici (1999). . Em novo artigo escrito no final de 1932 e - tempos frenéticos - publicado em fevereiro de 1933, retomou o tema do Estado total. Expressou grande desgosto para com o Estado alemão, um “Estado total quantitativo”, volumoso mas sem “intensidade e energia política” (Schmitt, 1999b, p. 22) diante do “assalto dos partidos e grupos de interesses organizados” (Schmitt, 1999b, p. 19). E manifestou sua admiração pelo Estado fascista, mencionando-o em italiano: “Stato totalitario” (Schmitt, 1999b, p. 21). A este “pertencem exclusivamente os novos meios de poder” que, incrementados, o tornam capaz de impedir “o desenvolvimento de quaisquer forças hostis ao Estado, que obstruam o Estado, que perturbem sua vida interna” (1999b, p. 21). Em suma, tal Estado é perfeitamente capaz de “distinguir o amigo do inimigo” (1999b, p. 22). Deu o recado: Estado (total qualitativo) ou revolução.

A energia irradiou-se em frenéticas reuniões dos que Marx e Engels (2007Marx, Karl & Engels, Friedrich. (2007), “Feuerbach e História: rascunhos e anotações”. In: A ideologia alemã. São Paulo, Boitempo, pp. 29-81., p. 48) chamavam de “membros ativos” da classe dominante. Estreitaram-se os nexos entre texto e contexto, poder político e intelectual orgânico. Até para, em nome de um interesse nacional cada vez mais racializado (possibilidade inscrita nas teorizações schmittianas sobre democracia), apresentar o golpismo (não apenas a nomeação de Hitler) como revolução. As forças operárias e populares foram dizimadas, e se romperam entraves à acumulação de capital.

Questões para o presente

Atividade de pesquisa não rima com inquisições ou estigmas. Até porque não é incomum produções teórico-ideológicas serem apropriadas criativamente por intelectuais engajados tanto à direita como à esquerda. Basta mencionarmos, por exemplo, os casos de Maquiavel, Rousseau e Max Weber. No que se refere a Carl Schmitt, dada a sua trajetória político-intelectual (em nome da ordem, conservador, entusiasta do fascismo, racista, nazista), não custa tentar, mas é provável que a apropriação seja muito mais difícil.

“Totalitarismo”, independentemente de sua fecundidade teórica (aliás, escassa), não foi incompatível com um corpus discursivo centrado numa aporética concepção de soberania/estado de exceção, em especial a partir das conotações que adquiriu ao ser articulada a formulações sobre política, democracia e nacionalismo.

Mas a ambiguidade pode levar ao impasse teórico, em especial quando se fala em estado de exceção permanente. Pois o próprio pressuposto da ordem jurídico-política corre o risco de se diluir numa pletora de “decisões soberanas”, o que enevoa a distinção entre estas e aquele, reforçando, cada vez mais, a perspectiva de um futuro marcado pelo permanente arbítrio e irracionalidade a serviço das relações de exploração e dominação. Mesmo quando o estado de exceção é apresentado como o oposto ao Estado Democrático de Direito, ao qual se atribui valoração positiva, a confusão teórico-ideológica permanece, pois no mesmo movimento se oculta sua determinação estrutural de classe. Neste sentido, esse Estado Democrático de Direito, ao ficar circunscrito aos parâmetros de uma ordem instituída a partir de uma decisão que está fora dela, corre o risco de ocultar o lugar estrutural das mencionadas relações de opressão e dominação.

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  • 1
    . A esse respeito, a obra de maior impacto junto ao público cultivado é a de Agamben (2004Agamben, Giorgio. (2004), Estado de exceção. São Paulo, Boitempo.). Cite-se também o livro de Negri e Hardt (2001Negri, Antonio & Hardt, Michael. (2001), Império. Rio de Janeiro, Record.), que, além de suas qualidades intrínsecas, publicado originalmente em 2000, é considerado premonitório em relação a esses atentados.
  • 2
    . Nossa abordagem das relações entre Carl Schmitt e Jean Bodin é fortemente tributária de reflexões apresentadas por Balibar (2013Balibar, Etienne. (2013), “Prolègomènes à la souverainetè”. In: Nous, citoyens d’Europe? Les fronteires, l’État, le peuple. Paris, La Découverte, n.p, e-book.), inclusive do seminário que este ministrou na Université de Nanterre durante o inverno de 2000.
  • 3
    . Precisamente, o principal desfecho desta revolução.
  • 4
    . Como observa Balibar (2013Balibar, Etienne. (2013), “Prolègomènes à la souverainetè”. In: Nous, citoyens d’Europe? Les fronteires, l’État, le peuple. Paris, La Découverte, n.p, e-book., n. p.), Schmitt se debate com “o fato de que o Estado pode ser personalizado como um sujeito, enquanto o povo não o pode”. E o próprio Balibar sugere que essa dissimetria ocorre porque “a própria noção de povo implica uma multiplicidade (mesmo uma conflitualidade) que resiste à unificação absoluta (inclusive, talvez, por meios totalitários)” (2013, n. p.). Recorremos a vários textos publicados em meios digitais, que, com frequência, não trazem numeração de páginas. Nesses casos, utilizaremos a abreviação “n. p.” para indicar um excerto não paginado.
  • 5
    . Ao partir de sua definição de política como relação amigo-inimigo, Schmitt considera que um povo se constitui pela negação de outro. Nesse sentido, é impensável um mundo sem nações, sem nacionalismos e sem o potencial de guerras.
  • 6
    . Borón e González questionam, com razão, se este “estado homogêneo” concebido por Schmitt “está liberado de todo tipo de conflitos” (2006, p. 169). Em outros termos, “não há novos enfrentamentos que surgem do campo dos amigos, produto das contradições estruturais da ordem social capitalista” (2006, p. 169).
  • 7
    . Deixamos o exame do recurso à noção de “totalitarismo” feito por Gramsci para um artigo já em preparação sobre marxistas e totalitarismo no período que se estende dos anos 1920 ao imediato pós-Segunda Guerra Mundial.
  • 8
    . Na edição que utilizamos, pp. 117-124.
  • 9
    . A edição de 1926 foi acrescida, a título de prefácio, de um comentário de Carl Schmitt sobre considerações que o texto original recebeu.
  • 10
    . Texto privilegiado por Schmitt.
  • 11
    . No caso, Hindenburg.
  • 12
    . A decisão do Tribunal de Leipzig, favorável à destituição, pelo Reichspräsident, do governo da Prússia, o mais importante estado (Land) da Alemanha, foi tomada em 25 de outubro de 1932. Vita (2015Vita, Leticia (org.). (2015), Prussia contra el Reich ante el Tribunal Estatal: La sentencia que enfrento a Hermann Heller, Carl Schmith y Hans Kelsen em Weimar. Bogotá, Universidad Externado de Colombia, n. p., e-book.) fez um ótimo estudo a respeito.
  • 13
    . Mensagens da Associação para a Defesa dos Interesses Comuns da Economia da Renânia e Vestfália.
  • 14
    . Com o título Die Wendung zum totalen Staat. Nela são retomadas formulações que apareceram na segunda edição, publicada em 1931, dois anos após a primeira, de O guardião da Constituição (Schmitt, 2007bSchmitt, Carl. (2007b), O guardião da Constituição. Belo Horizonte, Del Rey., pp. 107-133). Para a leitura deste e do próximo artigo, ambos publicados originalmente na Europäische Revue (1931, pp. 241-250, e 1933, pp. 65-70), recorremos à edição estadunidense publicada na coletânea Four articles, 1931-1938 do autor alemão, organizada por Draghici (1999Draghici, Simona. (1999), “Preface”. In: Schmitt, Carl (org.). Four articles, 1931-1938. Washington-dc, Plutarch Press, pp. vi-xvi.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    12 Maio 2020
  • Aceito
    16 Set 2020
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