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Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no Brasil

RESENHAS

Enio Passiani, Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no Brasil. Bauru, Edusc, 2003, 276 pp.

Flávio Moura

Professor de Teoria do Jornalismo na Facamp e editor da revista Novos Estudos, do Cebrap.

Comemorações do aniversário de São Paulo e minisséries globais à parte, o momento é de revisão das idéias estabelecidas sobre o modernismo. Desde o final dos anos de 1990, vêm sendo publicados diversos trabalhos que tratam de atenuar o caráter transformador do movimento e compreendê-lo a partir de um ponto de vista mais distanciado que o dos críticos responsáveis pela supervalorização de seu legado. Trabalhos como o de Tadeu Chiarelli, Annateresa Fabris e Sergio Miceli, entre os de vários outros autores, têm se ocupado de identificar os elementos conservadores que lhe serviram de base, de relativizar algumas de suas conquistas estéticas, de entendê-lo mais como continuidade do que como ruptura e de desmontar seus pressupostos à luz do projeto de liderança empreendido por seus artistas de maior destaque e pelos críticos mais ligados a eles.

Em boa medida, Na trilha do Jeca, trabalho de mestrado do sociólogo Enio Passiani publicado no fim de 2003, pode ser aproximado a essa linhagem. A proposta é entender, a partir do exame da obra de Monteiro Lobato e de sua atuação editorial, como ele passou a ocupar posição hegemônica no campo literário brasileiro nas duas primeiras décadas do século XX — e como sua perda de influência nos anos seguintes se liga à ascensão do grupo modernista. "Os modernistas fizeram de Lobato o símbolo maior de um passado que devia ser enterado; portanto, matá-lo (e junto com ele toda uma geração de escritores) significava declarar finalmente a vitória modernista", afirma Passiani nas primeiras páginas de seu livro.

A morte simbólica de Lobato a que o autor se refere, decretada por Mário de Andrade em 1926 num artigo publicado no jornal carioca A Manhã, é um dos episódios de que se vale para mostrar como o embate direto com os líderes do modernismo contribuiu para que ele fosse excluído do grupo e, como tal, impedido de colher os frutos simbólicos que essa associação poderia trazer. A partir de uma análise sociológica desse processo, Passiani procura elucidar os motivos que levaram a crítica ortodoxa a enxergar Lobato como contista medíocre e autor regionalista de pouco calibre, ainda que pudesse considerá-lo um grande autor infantil. Ao mesmo tempo, trata de reconstituir a posição social do pré-modernismo no bojo da história cultural do país, visto que a própria acepção de "pré-modernismo" não pode ser entendida fora do contexto da luta simbólica empreendida no interior do campo literário.

O livro divide-se em quatro capítulos. No primeiro, "As peças do quebra-cabeça", o autor busca demonstrar como o confronto travado contra os modernistas se deu mais em razão das semelhanças que das diferenças existentes entre os dois lados. Preocupado em desvelar um Brasil "real", para além das idealizações românticas, defensor de uma literatura engajada nos problemas do país, de uma linguagem literária coloquial e direta, pródiga em neologismos, inserida numa pesquisa estética séria, Lobato se teria ocupado de um projeto literário em muitos aspectos semelhante ao de autores modernistas, que por isso viam nele um obstáculo à possibilidade de se instituírem como os renovadores por excelência da arte brasileira. "Os modernistas se auto-representavam como uma ruptura radical em relação ao passado literário nacional e a presença de Lobato, sua obra, denunciava que não havia uma ruptura drástica, mas, ao contrário, uma certa continuidade no processo histórico de formação de nossa literatura", lembra o autor.

Adiante nesse primeiro capítulo, o maior do livro, Passiani faz rápida leitura da obra de críticos ligados ao movimento, entre eles Sérgio Buarque de Holanda, Mário da Silva Britto e Antonio Candido, e empenha-se em mostrar como foram aos poucos construindo um discurso que instituía o modernismo como o momento supremo de ruptura com o passado. O corolário dessa construção teria sido a própria definição do momento literário que sucede o realismo-naturalismo e antecede a Semana de Arte Moderna de 1922 como "pré-modernismo", rótulo sugestivo de que nesse período estava em jogo apenas uma preparação para os movimentos da geração seguinte. "Ao contrário do que a pena modernista mostra", escreve o autor, "o período anterior também constitui um momento de ruptura com os moldes poéticos preconizados pela estética art noveau, e representou a primeira tentativa de se conhecer o país a fundo por meio de uma nova linguagem: a narrativa literária, pela primeira vez na história da literatura brasileira, se mostrou explicitamente como uma ferramenta para o conhecimento das condições 'reais' do país".

No capítulo seguinte, "Na trilha do Jeca", Passiani refaz a trajetória de Lobato e os caminhos que percorreu para penetrar no ambiente intelectual da época, do ingresso na Faculdade de Direito do Largo São Francisco aos primeiros artigos em O Estado de S. Paulo, veículo fundamental para a divulgação de seu nome no país. "O artista e seu projeto criador" e "Crise à vista" são os capítulos que fecham a argumentação. O primeiro deles, único a trazer análise de texto propriamente dita, apresenta uma leitura de Urupês e de Cidades mortas, os mais importantes entre os primeiros livros de Lobato, contrapondo-os à atividade do escritor como editor, crucial para entender sua inserção no campo literário. O último capítulo aponta como, a partir de 1925, com a falência de sua casa editora, o fracasso de seu romance O presidente negro, publicado no ano seguinte, e a ascensão do modernismo, sua influência no campo intelectual se reduz drasticamente.

Torna-se mais simples entender essa montagem argumentativa se levarmos em consideração que a principal referência teórica do autor é Pierre Bourdieu. Mais especificamente, a noção de campo formulada pelo sociólogo francês. De modo simplificado ao extremo, é possível entendê-la como um sistema inclusivo de relações e posições predeterminadas que abrangem, à maneira dos postos disponíveis no mercado de trabalho, classes de agentes providos de propriedades de um tipo determinado. A cada uma dessas posições estariam associadas tomadas de posição estéticas ou ideológicas. Dessa maneira, a tentativa de traçar o modo como as categorias em questão puderam ter acesso a essas posições, como faz Passiani nesse trabalho, é o ponto de partida para uma análise que pretenda dar conta do problema. Essa abordagem envolve ao menos três aspectos fundamentais: em primeiro lugar, a posição do artista na estrutura da classe dirigente; em segundo, a concorrência interna em busca de legitimidade cultural; e, em terceiro, as disposições socialmente constituídas do agente. Segundo a formulação de Bourdieu, a essas disposições corresponde a idéia de habitus, entendida como princípio gerador e unificador do conjunto de práticas e ideologias características de um grupo determinado.

A familiaridade de Passiani com o conceito e a preocupação em delineá-lo em seus menores matizes é perceptível ao longo de todo o trabalho. Veja-se, por exemplo, a relação de Lobato com a Academia Brasileira de Letras. Em 1919, por sugestão de amigos, o escritor começa a aventar a hipótese de candidatar-se à ABL. De início, contudo, mostra-se refratário à idéia, alegando que não tinha "feitio acadêmico". Nesse ponto, Passiani demonstra em pormenores como era possível sustentar essa afirmação. Na época, Lobato era o autor de maior destaque no campo literário brasileiro, capaz de instituir ele próprio critérios de legitimação intelectual a partir dos autores que escolhia para publicar por sua editora. Adepto de uma escrita que se queria próxima da linguagem popular, e portanto incompatível com as "gramatiquices" dos acadêmicos, Lobato tinha cacife para tirar proveito da opção de posar de independente no campo. A partir de 1925, contudo, quando sua editora vai à falência, os escritores modernistas assumem a dianteira e seus livros deixam de emplacar, o escritor tenta uma vaga na Academia, o que se mostra uma maneira de recuperar parte dos bens simbólicos perdidos e garantir sua sobrevivência no campo.

A equação que se propõe para o problema é engenhosa: como esnobara a academia nos anos anteriores e não foi eleito para o posto, o escritor acaba enveredando para a literatura infantil. Praticamente o inventor do gênero no país e ainda hoje sem rival à altura, Lobato teria visto nessa prática um modo de explorar um nicho ainda virgem, a partir do qual poderia reconstruir a carreira e granjear prestígio como criador. Apresentado com as devidas ressalvas — a escolha não seria uma estratégia consciente do escritor, mas um tipo de intuição decorrente do habitus literário internalizado a partir da experiência no campo —, esse tipo de formulação exemplifica a boa mão do sociólogo para associar as tomadas de posição às disputas que se travam no interior do campo. É nessa mesma chave que se pode ler a associação entre a posição social do escritor, herdeiro de uma família de fazendeiros decadentes do vale do Paraíba, e o espaço de que dispunha no jornal O Estado de S. Paulo, gerido por uma família que defendia interesses semelhantes. Ou a relação entre o discurso feito por Ruy Barbosa em 1919, em que o jurista baiano elogiava Urupês, e o sucesso comercial estrondoso obtido pelo livro, de resto beneficiado pelo fato de Lobato ter sido seu próprio editor.

Alguns desajustes, no entanto, ficam visíveis na caracterização da "força revolucionária" da obra lobatiana. No terceiro capítulo, em que procura dar base a essa visão a partir da leitura dos textos, por vezes Passiani recorre a qualificações do tipo "linguagem exata", "texto enxuto", "texto que leva o leitor à reflexão", as quais sugerem certo desequilíbrio entre a visada sociológica e a literária, além de uma defesa talvez exacerbada de seu objeto de análise. Essa mesma defesa aparece nos trechos em que analisa o confronto entre Lobato e Anita Malfatti, deflagrado pelo conhecido artigo "Paranóia ou mistificação?", de 1917. Com base no trabalho de Tadeu Chiarelli, Passiani lembra que Lobato não era um crítico amador, mas um dos mais talhados analistas de artes plásticas de sua época, e que a reação dos modernistas a esse artigo só adquiriu grande proporção em razão da importância que atribuíam ao criador do Jeca Tatu. Mas não discute, por exemplo, o possível preconceito contra os imigrantes que poderia animar a invectiva de Lobato, hipótese que Sergio Miceli levanta em seu Nacional estrangeiro e que, num estudo detalhado e bem fundamentado como o de Passiani, mereceria atenção pormenorizada.

Note-se, ainda, que a publicação do livro do sociólogo envolve um paradoxo curioso: o trabalho ganhou o prêmio de melhor dissertação de mestrado no concurso CNPq-Anpocs de 2002. O selo da premiação é impresso de modo ostensivo na capa do livro, assim como, no prefácio, são reiteradas as referências ao trabalho de fôlego do jovem sociólogo, que "anuncia um projeto de vida intelectual de envergadura" e "ultrapassa as expectativas firmadas". É como se, no limite, a chancela da instância de consagração representasse ao mesmo tempo uma recomendação e uma ressalva. Como se estivéssemos diante de um trabalho excepcional para o início de carreira, e não simplesmente de uma ótima pesquisa.

Feitas as contas, é disso que se trata: de um livro de primeira linha, mais uma fonte da qual não poderão fugir os estudiosos de Lobato e do modernismo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2004
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