Resumo
Ao longo da vida os indivíduos se envolvem num processo permanente de (re)construir laços (familiares, comunitários, profissionais, de cidadania) que lhes assegurem a proteção frente a riscos e o reconhecimento de sua própria existência e identidade. Embora, em cada sociedade, as várias modalidades de laço se façam presentes, há sempre um tipo preeminente, cujos valores e princípios influem sobre os demais, regulando-os e assentando as bases para uma economia moral particular, para um “regime de vinculação”. Neste artigo trataremos o tema a partir do caso brasileiro. Usaremos a comparação para identificar suas singularidades. Inicialmente compararemos os dados para o Brasil com aqueles produzidos em estudo anterior sobre uma amostra de dezesseis países europeus. Em seguida, analisaremos suas heterogeneidades internas, observando mudanças no tempo e entre regiões do país.
Palavras-chave: Vínculos sociais; Desigualdades; Comparação; Brasil
Abstract
Throughout their lives, individuals engage in a permanent process of (re)building ties (family, community, professionals, citizenship) that ensure protection from the risks and recognition of their own existence and identity. Although in each society, the various types of ties are present, there is always a preeminent one, whose values and principles influence the others, regulating them and laying the foundations for a particular moral economy, for an “attachment regime”. In this article we will approach the subject from the Brazilian case. We will analyze its peculiar regime by means of comparisons. We will initially compare Brazilian data with those gathered in a previous study on a sample of sixteen European countries. Then, we will explore its internal heterogeneities, comparing changes on time and between Brazilian regions.
Keywords: Social bonds; Inequalities; Comparisons; Brazil
1. A construção da abordagem: laços sociais e regimes de vínculos
A sociologia, desde o seu nascedouro, tem explorado, sob as mais diferentes formas e caminhos interpretativos, uma ideia que está na raiz da sua razão de ser como domínio de conhecimento sistemático: a de que o indivíduo não pode viver sem estabelecer vínculos (Durkheim, [1893] 2007). São vínculos que lhe asseguram, a um só tempo, a proteção frente aos riscos do cotidiano e o reconhecimento à sua própria existência e identidade. A proteção remete ao conjunto dos suportes que o indivíduo pode mobilizar, vale dizer os recursos com os quais ele conta, sejam eles de origem familiar, comunitária, profissional ou advindos da ação governamental, a qual se mostrou central, por exemplo, na organização dos chamados “estados de bem-estar” (Esping-Andersen, 1990). Já o reconhecimento remete às formas da interação social que revelam ao indivíduo o quanto ele importa, o quão valorizado ele é, o quanto ele conta para os outros que lhe são significativos (Honneth, [1992] 2003). Vinculando-se, o indivíduo assegura para si proteção e reconhecimento. Ademais, como os vínculos são variáveis em sua duração e sujeitos a instabilidade, tensões e contradições, há um movimento constante de voltar a se vincular, em seguida a cada ruptura. Tudo isso faz da vida individual um permanente vincular-se.
Mas o que significa o vínculo em uma sociedade de indivíduos autônomos ou que se pensam enquanto tal, como são as sociedades contemporâneas? Dizendo-o de outro modo, se o imperativo da vinculação parece estar colocado a todo ser humano, os modos pelos quais os vínculos se estabelecem diferem no curso do tempo, mas, e principalmente, conforme as sociedades. Entender as formas variáveis que assumem os processos de vinculação entre os indivíduos e as instituições da vida social é, nesse sentido, inquirir como, sobre esse solo comum, se expressam importantes diversidades que especificam as sociedades no mundo contemporâneo.
Paugam ([2008] 2018) desenvolveu um argumento cujo vigor interpretativo exploraremos neste artigo. Para ele, o vínculo entre indivíduo e sociedade é tecido por uma pluralidade de laços (“liens”), que não apenas se estabelecem em escalas variáveis, como estão normativamente interseccionados. Cada tipo de laço contempla simultaneamente a dimensão da proteção (vale dizer, com que ou com quem se conta para confrontar os riscos) e a dimensão do reconhecimento (vale dizer, para quem se conta, ou se importa, enquanto pessoa). Assim, o vínculo indivíduo-sociedade pode estar assentado em relações de parentesco, tecidas na família - fazendo prevalecer o que o autor denominou como um “laço de filiação”; mas pode ser também produzido por um tipo de laço que se faz através de outros, estranhos tornados próximos - que o autor chamou “laço de participação eletiva”; pode, ainda, resultar da inserção individual em circuitos profissionais - denotando a força do “laço de participação orgânica”; ou por um “laço de cidadania”, no qual se revelam a extensão e o vigor dos elos entre o indivíduo e a ordem social mais ampla, haja vista estar assentado na crença em direitos e na confiança em instituições.
O conceito de vínculo social (“attachement social”) captura o processo de intersecção normativa desses quatro tipos de laço. Tal entrelaçamento, antes de mais nada, ocorre ao nível individual, por meio do processo de socialização. É, por isso mesmo, necessariamente desigual na medida em que a intensidade desses vários tipos de laço social varia de um indivíduo a outro, dependendo das condições particulares de sua socialização. Mas a pluralidade e o entrecruzamento desses laços também se redefinem no tempo, na medida em que os indivíduos internalizam normas (e moralidades) no seu constante (re)fazer de vínculos (Paugam, 2019a). Assim, sabemos que a marca do laço de filiação, central na infância, pode enfraquecer-se em função da trajetória de cada indivíduo, vale dizer, do vínculo que este tece com outros grupos sociais na idade adulta. Temos aqui um outro argumento vigoroso nutrido pela sociologia desde o seu nascedouro. Com efeito, para Emile Durkheim, por exemplo, a vinculação a grupos constituía uma das fontes da moral e, nesse sentido, uma das condições para a integração social (Durkheim, [1983] 2007, [1925] 2012, [1950] 2015). Não sem razão a Sociologia contemporânea tem insistido sobre a pluralidade dessa herança transmitida; uma herança que não é somente econômica, mas também cultural, no sentido dos saberes e hábitos cotidianos, e da qual resultam predisposições mais ou menos duráveis, que estruturarão as práticas e representações individuais (Bourdieu, 2009; Lahire, 1998).
Mas a imbricação dos laços sociais também tem lugar ao nível da sociedade mais ampla. Assim, em cada sociedade varia a importância relativa dos tipos de laço; e como cada uma os hierarquiza, a seu modo, é sempre possível - e este é um dos desafios da análise - identificar o laço ali preeminente. Assim, por exemplo, o papel desempenhado pela solidariedade familiar e pelas expectativas coletivas que se lhe associam, varia de uma sociedade para outra. As formas de sociabilidade que resultam do laço de participação eletiva ou do laço de participação orgânica são numerosas e igualmente dependentes dos modos de vida. Do mesmo modo, a importância atribuída ao princípio da cidadania como fundante da proteção e do reconhecimento tampouco é a mesma em todos os países.
Em suma, poder-se-ia dizer que esse entrecruzamento de diferentes tipos de elos, a diferentes escalas, se expressa numa economia moral dos laços sociais. Dela resultam modalidades de regulação da vida social - ou “regimes de vínculo” (Paugam, 2018 e 2019b), capazes de produzir a coerência normativa necessária a que os indivíduos e os grupos construam a vida em sociedade. Esta, sublinhe-se, se faz em contextos em que também operam diferenças, desigualdades e conflitos, ou seja, há sempre, e simultaneamente, processos que os apartam.
Nesse sentido, o passo mais interessante nesse arcabouço teórico consiste em transitar de um plano analítico que focaliza o vínculo dos indivíduos a grupos - ou seja, de uma tipologia dos laços sociais -, para um outro plano que focaliza as modalidades de regulação normativa dos laços na sociedade, de maneira a identificar regimes de vínculo (Paugam, 2018). Assim, embora em cada sociedade todos os tipos de laço se façam presentes, tecendo os elos entre indivíduos e grupos, em cada uma delas haveria sempre um laço preeminente, cujos valores e princípios influiriam sobre os demais, regulando-os e sentando as bases para uma economia moral particular. Paugam propõe a existência de quatro tipos de regimes de vínculo: o “familialista” (regulado pelo laço de filiação e fundado sobre a moral doméstica), o “voluntarista” (regulado pelo laço de participação eletiva e fundado sobre a moral associativa), o “organicista” (regulado pelo laço de participação orgânica e fundado na moral profissional) e o “universalista” (regulado pelo laço de cidadania e fundado na moral cívica).
Essa tipologia está longe de ser um modo estático, determinista e com laivos evolucionistas voltado a, pura e simplesmente, classificar as diferentes sociedades. Ao contrário, ela se pretende uma construção ideal-típica, que permita deslindar os fatores que conduzem uma dada sociedade a estar mais ou menos próxima, em um dado momento de sua história, de tal ou qual tipo, facultando compreender dinâmicas de mudança. Comparar, por isso mesmo, é a sua ferramenta metodológica mais profícua: seja para contrastar sociedades em um dado momento de tempo (ao modo de Paugam, Beycan e Suter, 2020), seja para observar, numa mesma sociedade, as suas transformações no curso do tempo. Entretanto, se o âmbito nacional parece inescapável nesse tipo de raciocínio comparativo, ele não é exclusivo, na medida em que também importam as variações internas, regionais ou locais, observáveis em um dado país.
Neste artigo procuraremos ilustrar o valor heurístico da abordagem teórica até aqui apresentada, por meio de um exercício de reflexão que tomará o caso brasileiro como foco. Como passo preliminar, na segunda e subsequente seção, apresentaremos o modo como foram construídos os indicadores para os diferentes tipos de laços sociais. A terceira seção tratará da especificidade do caso brasileiro; para tal, vamos identificar o regime de vínculo ali preeminente, refletindo sobre o que constitui a sua tessitura específica por meio do recurso à comparação entre os achados para este país e aqueles produzidos em estudo anterior, realizado para uma amostra de dezesseis países europeus (Paugam, Beycan e Suter, 2020). Na quarta seção, a comparação será retomada sob outro prisma: trataremos das heterogeneidades internas ao caso brasileiro; mobilizaremos os mesmos indicadores, mas agora voltando-os para flagrar diferenças em outras escalas, a saber, suas transformações no tempo, entre contextos sociais mais e menos inclusivos, e no espaço, entre regiões do país.
Uma seção final alinhará conclusões em dois planos. Em primeiro lugar, vamos sustentar que a análise de um caso longe de ser um mero exercício de classificar um país, etiquetando-o conforme um certo regime de vínculo, impõe um esforço para enriquecer os achados, conferindo-lhes densidade histórica. Ao conciliar sincronia e diacronia, uma nova indagação emergiu: como e por que refletir sobre os elos que mantêm uma sociedade de pé, minimamente integrada, justamente a partir de um caso, como o do Brasil, que chama a atenção pela aceleração recente de uma desigualdade social longeva, pela fratura crescente da coesão e pela polarização política? Como segunda conclusão, de natureza metodológica, sustentaremos que a análise de um caso se enriquece com a multiplicação de estratégias comparativas, associando comparações internacionais e intranacionais, e fazendo variar as escalas de tempo e de espaço.
2. A construção dos indicadores: operacionalizando uma tipologia do laço social
Para tornar possível a inclusão do caso brasileiro na comparação internacional, a análise empírica partiu da construção de indicadores quantitativos já testados por Paugam, Beycan e Suter (2020) para a comparação entre dezesseis países da Europa. Bem sabemos que indicadores são uma aproximação, imposta pela necessidade de verificação empírica; por isso mesmo, não raro deixam a desejar com respeito às definições conceituais que pretendem traduzir. Ademais, quando tomamos o partido metodológico que valoriza a comparação, mais arriscada se torna a empreitada, já que com frequência nos faltam fontes compatíveis para bem cotejar. Por isso mesmo, e como primeiro passo, foram detalhadas as dimensões básicas que os indicadores deveriam recobrir. Assim, o Quadro 1 sistematiza o que caracteriza cada tipo de laço no que concerne às formas de proteção e de reconhecimento que mobiliza.
Tendo essas dimensões em mente, foram construídos indicadores comparáveis entre países, de modo a recobrir cada um dos tipos de laço. Assim, o laço de filiação (ou de parentesco) foi definido a partir de quatro indicadores: (i) proporção de jovens adultos de 25 a 34 anos que residem com os pais; (ii) proporção de jovens adultos desocupados de 25 a 34 anos que residem com os pais; (iii) proporção de pessoas de 75 anos ou mais vivendo com pelo menos um dos filhos; e (iv) proporção de pessoas de 75 anos ou mais vivendo em domicílios com mais de dois moradores2. Esses quatro indicadores correspondem a diferentes maneiras de expressar-se o laço de parentesco enquanto um vínculo de solidariedade intergeracional que se exerce a partir da coabitação, tanto protegendo os mais jovens (indicadores 1 e 2), como os mais idosos (indicadores 3 e 4).
O laço de participação eletiva foi representado por dois indicadores: a proporção de pessoas que são membros de uma associação humanitária e a proporção de pessoas que realizaram doação de caridade em dinheiro no último mês. Ambos expressam a solidariedade ativa para com pessoas em dificuldade, exercida por meio do voluntariado e da filantropia, na forma de um vínculo eletivo, de tipo impessoal e voluntarista. Embora esse tipo de solidariedade não se oponha, em princípio, à que se expressa através das iniciativas do estado na área da proteção social, ele deixa entrever o pouco crédito conferido às mesmas.
O laço de participação orgânica foi traduzido em um único indicador: o percentual de trabalhadores cobertos por acordos de convenção coletiva, ponderados pelo peso da informalidade. Esse indicador traduz a proteção associada ao status de empregado regular e, portanto, das garantias de que dispõem os trabalhadores assalariados em relação a seu futuro. Esse tipo de garantia é a base do que foi chamado pela literatura sociológica de “sociedade salarial” (Castel, 1995).
Por fim, o laço de cidadania foi expresso por dois indicadores: o grau de confiança interpessoal e o grau de confiança no sistema judiciário. Eles se assentam nos supostos de que (i) se as pessoas confiam umas nas outras, é porque elas não sentem seus direitos ameaçados; e (ii) se confiam nas instituições do sistema judicial, é porque acreditam poder ser tratadas como cidadãs, com direitos iguais perante a justiça.
O Quadro 2 apresenta, para cada tipo de laço, os seus indicadores, seguidos das definições operacionais que lhes são correspondentes e das respectivas fontes de dados; estas últimas são apresentadas em separado para o caso do Brasil (coluna “Fontes Brasil”), e para os países europeus mobilizados na comparação (Coluna “Fontes países da Europa”).
Finalmente, cada país foi colocado numa escala normalizada e contínua, com valores para cada um dos indicadores. O quociente abaixo tornou possível comparar os países com respeito à força de cada tipo de laço:
(% observado para o país) - (% menor observado na série)
(% máximo observado na série) - (% mínimo observado na série)
Quando necessário, foram criados índices sintéticos para cada tipo de laço, de modo a reunir numa única medida de prevalência a força documentada pelos vários indicadores.
3. A singularidade do caso do Brasil: uma comparação com países europeus
Uma primeira estratégia para identificarmos o regime de vínculos que caracterizaria o caso brasileiro foi confrontar os nossos achados com aqueles obtidos por Paugam, Beycan e Suter (2020) em estudo sobre dezesseis países da Europa. Para tal, e conforme se apresentou na seção anterior (Quadro 2), produzimos para o Brasil os mesmos indicadores usados para os quatro tipos de laço social no caso do estudo comparativo intraeuropeu. Ademais, as definições operacionais puderam ser construídas de modo bastante aproximado, facultando, assim, boas condições para a comparação.
Mas qual o intuito de uma tal comparação? Acreditamos que a singularidade do regime de vínculos no caso brasileiro poderia ser mais facilmente evidenciada se o contrastássemos com realidades em que o sistema de emprego no pós-guerra havia, mesmo se em medida variável, consolidado uma norma salarial e institucionalizado a proteção ao desemprego (Salais, Baverez e Reynaud, 1986; Castel, 1995), uma e outra crescentemente postas em risco (Paugam, 1991; Demazière, Guimarães, Hirata e Sugita, 2013). Nesse sentido, a experiência dos chamados “estados de bem-estar” e dos seus institutos de proteção social, mesmo se sob diferentes “regimes de welfare” (Esping-Andersen, 1990; Gallie e Paugam, 2000), consagrara uma norma moral que associava proteção a direitos da cidadania.
Uma norma da qual pareciam distanciar-se os países do chamado “Sul Global”, dentre os quais se destacava o Brasil. Não sem razão, e significativamente, Ülrich Beck (2000) cunhou a noção (quase um libelo) de “brasilianização do Ocidente” para dar conta das desconcertantes mudanças no trabalho que testemunhava. Retrocessos que, a seu ver, apontavam para o risco de generalizar-se, nos mercados europeus de trabalho, uma espécie de “multiatividade nômade”, até então característica da mão de obra feminina e/ou de países do Sul. Embora não caiba aqui discutir a pertinência da metáfora (ver Guimarães, 2007), não deixa de ser interessante que precisamente o caso do Brasil tenha sido acionado para inspirar um ideal-tipo. Mais ainda, o caso em questão foi tomado por Beck (2000) como a figuração de um destino inaceitável face ao alcance civilizatório das relações de solidariedade construídas na Europa. Nesse texto, a comparação inverte o sentido da trilha de análise: tomamos ideal-tipos construídos a partir de países europeus para refletir sobre a singularidade do caso brasileiro.
Com efeito, no Brasil, os sistemas de emprego e proteção social se assentaram sobre outros fundamentos morais e distintos princípios de equidade, desafiados que foram pela pobreza extrema, pela informalidade dominante nas relações de emprego e pelas desigualdades que disso resultavam (Oliveira, 1972; Santos, 1979; Draibe, 1989; Draibe e Riesco, 2007; Cardoso, 2010). Se a integração através do mercado era precária e frágil, a proteção era, até muito recentemente, um privilégio dos formalmente integrados pela via dos contratos de trabalho (Guimarães e Paugam, 2016).
Ao mesmo tempo, o projeto de desenvolvimento nacional liderado pelo Estado e sob a égide do corporativismo colocou a comunhão de interesses fundada no discurso populista e integrador acima dos interesses privados, esses excluídos e deslegitimados na formação da comunidade política. Assim fazendo, acabou por fortalecer, como bem salientou Reis (1995), o vínculo vertical e autoritário entre Estado e sociedade civil, minando as fontes de integração social assentadas no pluralismo e na diversidade. Os mecanismos de integração combinariam características do que Banfield (1958) identificou como “familismo amoral”, no qual a solidariedade social não ultrapassaria os limites do núcleo familiar, com vínculos que se formam diretamente entre Estado e indivíduos, visto que a igualdade de status garantida pela cidadania social não decorreria da representação de interesses privados (Reis, 1995).
Entretanto, mudanças recentes alteraram alguns traços estruturais que são significativos para a nossa análise. Por um lado, uma nova dinâmica demográfica impactou as condições de inclusão pela via do trabalho: reduziu-se a fecundidade de modo notável, deslocaram-se as mulheres para o mercado de trabalho, ampliou-se significativamente a longevidade da população; em quatro décadas o Brasil se aproximou rapidamente da configuração característica dos países do chamado “Norte” (Oliveira, Vieira e Santos, 2015; Guimarães, Brito e Barone, 2016). Por outro lado, consolida-se no país um regime democrático no qual a representação de interesses privados se legitima como norma de igualdade entre cidadãos, fazendo ampliar o escopo da proteção social enquanto direito e não mais, exclusivamente, enquanto privilégio.
Essas tendências afetaram a tessitura dos princípios de regulação dos vínculos entre indivíduos e sociedade, dando novos contornos à sua economia moral. Comparar nos permitirá, assim, refletir sobre as variadas condições estruturais de possibilidade (ou seja, de transformação e/ou consolidação) de tipos de laço e de regimes de vínculo. Os achados são apresentados em seguida.
3.1 Laço de filiação
Em sua análise sobre países europeus, Paugam, Beycan e Suter (2020) haviam observado que, qualquer que fosse o indicador adotado para o laço de filiação, existia uma clara e sistemática distinção, apartando os casos em dois grupos. De um lado, aquele formado pelos países mediterrâneos (Grécia, Itália e Espanha), aos quais se somavam os da Europa do Leste (Hungria, Eslovênia, Polônia); de outro, o dos demais países da Europa Ocidental e do Norte. O primeiro, mais familialista; o segundo, mais individualista.
Laço de filiação: Brasil na comparação internacional. Dendograma para o conjunto de Indicadores (LF 1 a LF4)
Com efeito, isso se reitera ao observarmos o Gráfico 1, que inclui o Brasil nessa comparação. Nele apresentamos os achados de uma análise de clusters em que foram simultaneamente utilizados os quatro indicadores do laço de filiação3. O resultado evidencia a dissimilaridade que aparta os dois grupos. O Brasil, como seria de esperar, é parte do grupo “Mediterrâneo/Leste”, no qual se revela de maneira mais forte o vigor do vínculo social através da família.
Mas o Brasil apresenta uma singularidade que transparece quando analisamos separadamente os indicadores da força do laço de filiação. O país combina duas tendências distintas quanto à solidariedade intergeracional. No que tange aos mais idosos, os seus vínculos às famílias são inquestionavelmente fortes. Já no que se refere aos jovens, chama atenção que o país ocupe uma posição quase fronteiriça com respeito ao grupo de nações europeias em que o relevo das relações de família é menos pronunciado.
No painel de Gráficos 2 tomamos os dois indicadores que medem a força da solidariedade familiar quando se trata de assegurar a proteção aos jovens, mesmo àqueles jovens que já alcançam idades nas quais seria de esperar que o processo de autonomização de status houvesse se completado. Esses indicadores são: o percentual de jovens de 25 a 34 anos que permanecem na casa dos pais e o percentual de jovens desocupados (com a mesma idade) vivendo com os pais.
Laço de filiação: a força do vínculo dos jovens à sua família de origem. Brasil na comparação internacional (Indicadores LF1 e LF2)
Vê-se que o Brasil apresenta, como seria esperado, maior proximidade com respeito aos regimes familialistas. Entretanto, o painel de Gráficos 2 mostra o país a meio caminho entre o elevado familialismo grego ou italiano, num extremo, e o acentuado individualismo finlandês ou dinamarquês, noutro. Esses dois extremos - saída tardia da casa paterna versus independência temporã - expressam tendências na formação de unidades domésticas que têm chamado a atenção de demógrafos, sociólogos e antropólogos (Cherlin, Scabini e Rossi, 1997; Aassve, Billari, Mazzuco e Ongaro, 2001; Cook e Furstenberg, 2002; Billari, 2004; Newman, 2009). De acordo com essa literatura, uma estadia prolongada na casa da família dos pais parece ser mais recorrente em países com estados de bem-estar social frágeis, onde são altos os custos de moradia e nos quais esses “jovens adultos” se deparam com um mercado de trabalho cada vez mais adverso.
O Brasil se aproxima do padrão familialista tanto pela natureza do seu regime de proteção, quanto pelos desincentivos decorrentes dos custos de moradia. Entretanto, a experiência vivida pelos brasileiros durante os dez anos que antecederam o ano de 2015, retratada no painel de Gráficos 2, contribuiu para apartá-lo dos casos extremos de familialismo ali documentados. Desse modo, e na contracorrente do que se passava naqueles países, no Brasil a redução da desigualdade social e a expansão dos níveis de vida, frutos da expansão do mercado de trabalho, da política de valorização do salário mínimo e da ampliação dos mecanismos de transferência de renda, ampliaram as chances de que os jovens constituíssem família em domicílios autônomos, nutrindo um movimento de maior autonomização de status.
Evidências nesse sentido são recorrentes nos achados tanto dos estudos sociológicos sobre trajetórias juvenis no mercado de trabalho, como das análises demográficas sobre as mudanças nos padrões de família. Assim, à luz de survey realizado junto a jovens brasileiros em 2013, estudos mostraram que as trajetórias dos jovens adultos apontavam que se completara a sua integração ao mercado de trabalho, mesmo se o padrão encontrado entre jovens negros os diferenciasse dos brancos pelo mais elevado risco de desemprego a que estavam sujeitos (Guimarães, Brito e Marteleto, 2018 e Guimarães, Brito e Comin, 2020). Não sem razão, nesse período marcado pela expansão das oportunidades ocupacionais e por políticas de proteção ao desemprego e de transferência de renda aos mais pobres, o movimento em direção a constituir uma família própria se revelou significativo (Guimarães, Brito e Marteleto, 2018). Essa tendência é corroborada pelos demógrafos que documentaram a redução do tamanho das unidades domésticas, a redução da importância das famílias extensas e o crescimento dos domicílios unifamiliares e dos monoparentais (Oliveira, Vieira e Santos, 2015). Essa convergência de fatores nutriu um contra fluxo que apartou o Brasil dos casos extremos de dependência juvenil em face da proteção da família de origem.
Curiosamente, outro é o resultado quando se observa o comportamento dos indicadores que medem a força da solidariedade familiar quando a mesma se volta para proteger os seus idosos (75 anos e mais). Nesse caso, como mostra o painel de Gráficos 3, a localização do Brasil é perfeitamente consistente com o que se esperaria de um regime familialista extremo. O país fica atrás apenas da Polônia e da Espanha quando se observa o percentual de pessoas com 75 anos e mais vivendo com pelo menos um dos filhos (Indicador 3); e é, de longe, o país que apresenta o maior número de idosos vivendo em domicílios com mais de duas pessoas (Indicador 4)4.
Laço de filiação: a força do vínculo familiar entre os idosos. Brasil na comparação internacional (Indicadores LF3 e LF4)
Como explicar os possíveis mecanismos que produziram a tendência (diversa) que encontramos com respeito à força do laço de filiação dos idosos em face ao achado para os mais jovens? Em primeiro lugar, convém ter em mente que a força do laço familiar entre os mais idosos está longe de ser um mero imperativo biológico do curso de vida, ou seja, da inescapável dependência funcional que se instala com o avanço da idade. Explorando as especificidades do caso brasileiro, vemos que essa força se constrói por meio de um processo complexo e multifacetado, o qual nos ajuda a pensar os elos entre vinculação e desigualdades. Senão, vejamos. O modo como foram erigidos, no Brasil, os (recentes) institutos de proteção aos idosos está assentado no princípio longevo de que é à família que, em primeira instância, cabe protegê-los; nem o mercado, nem mesmo o Estado são entendidos como responsáveis primeiros, quando é de proteção a idosos que se trata. Espera-se que ambos entrem em cena apenas ali onde a proteção familiar venha a claudicar. Mais ainda, a norma jurídica constante do Estatuto do Idoso, que ecoa a Constituição de 1988, traduz um juízo moral amplamente partilhado. É certo que isso é tanto mais verdadeiro quanto mais elevada a dependência funcional dos mesmos e quanto mais pobres as suas famílias e, assim, incapazes de recorrer ao mercado de instituições privadas de longa permanência para acolhimento de seus idosos, mas igualmente confrontadas à escassez de alternativas de instituições públicas (Camarano, Kanso e Fernandes, 2016; Debert, Guimarães e Hirata, 2020).
Todavia, essa maior solidariedade intergeracional com respeito aos idosos é, no Brasil, uma via de mão dupla: algumas das políticas de proteção social postas em prática a partir dos anos 2000, notadamente a universalização da aposentadoria rural e o programa de transferência de renda na forma de um beneficio de proteção continuada (BPC) concedido a idosos em famílias pobres, os transformaram em protagonistas de primeira grandeza no provimento de meios financeiros para a sobrevivência de quem os acolhe. Isso foi destacado não apenas por estudiosos do envelhecimento sob condições de fortes desigualdades (Debert, Guimarães e Hirata, 2020), mas pelos analistas que se debruçaram sobre o experimento de inclusão vivido pelo Brasil entre 2005 e 2015 (Kerstenetzky, 2017).
Em suma, nossa análise, longe de ser uma aplicação mecânica de uma tipologia encerrada em si mesma, fez sobressair, pelo recurso à contrastação, uma importante singularidade brasileira no que concerne à força do laço de filiação - aquele que se mostrará, como veremos em seguida, o mais preeminente para definirmos o regime de vínculo vigente no país. Tal singularidade possui estreita associação ao padrão de desigualdades e às políticas encetadas nos anos 2000 para mitigá-las. Assim, em que pese o Brasil se alinhar entre os países nos quais é vigorosa a força do laço familiar, a gestão dos elos intergeracionais diferenciava o padrão de laço quando os indicadores concerniam a idosos (marcadamente familialista) e quando concerniam a jovens (mais acercado ao padrão individualista). Tal resultado, sem sombra de dúvidas, reflete a notável desigualdade que marca a sociedade brasileira, e que a distância, nesse sentido, de todos os países analisados por Paugam, Beycam e Suter (2020). Uma hipótese interessante a explorar - e o faremos adiante - é se a crise econômica, a retração do mercado de trabalho e o subfinanciamento das políticas sociais, tendências vivenciadas pelos brasileiros a partir de 2015, terão deixado marca na tessitura desse tipo de vínculo, passível de ser documentada com os dados para 2018 que mobilizaremos na terceira seção.
3.2 Laço de Participação Eletiva
Diferentemente do laço de filiação, a força do laço de participação eletiva revelou padrões menos claros de hierarquização entre os países europeus analisados por Paugam, Beycan e Suter (2020). Ainda assim, foi possível notar que a propensão à doação voluntária e à participação em associações humanitárias tendia a variar no mesmo sentido em quase todos os países.
Quando incluímos o Brasil na comparação, vemos que ali essa convergência não se verifica; e nisso o país se assemelha à Holanda, caso igualmente discrepante, embora os dois países expressem tendências inversas. Nesta, a participação em associações é muito baixa vis-à-vis os níveis de doação, que se mostraram extremamente altos. Já no Brasil ocorre o contrário: o país de certo modo se destaca pela propensão ao associativismo, ultrapassando a França ou a Finlândia; entretanto, a proporção dos que fizeram doação filantrópica no período analisado é virtualmente nula entre os brasileiros. Isso faz com que o país seja, de longe, aquele onde a força do laço voluntarista, ao menos se medida por esse último indicador, pode ser considerada inexistente, e o mesmo parece ser privado de qualquer papel integrador na sociedade brasileira. (painel de Gráficos 4).
Entretanto, a extrema exiguidade dos valores observados para o caso do Brasil nos obriga a refletir um pouco mais, antes de simplesmente descartar, por irrelevante, esse tipo de laço5. A literatura no campo secunda o nosso achado, apontando a frágil relevância das doações e da filantropia entre os brasileiros. Dados do World Giving Index, reportados por Silva (2016, p. 46), evidenciaram que, no Brasil, não apenas o volume de doações (como proporção do PIB) se mostra muito reduzido6, mas a posição relativa do país na hierarquia internacional (medida pelo mesmo indicador) tendeu a cair de forma vertiginosa e sistemática, fazendo-o passar da 76ª posição em 2009, para a 85ª em 2011, e daí para a 91ª em 2013, atingindo o 105º posto em 2015.
Também a literatura sobre o tema da solidariedade das elites brasileiras com respeito aos mais pobres, que estaria na raiz da sua propensão à doação filantrópica, tem chamado atenção para a existência de uma fronteira moral entre elas e o seu mundo exterior. Tal como documentado por Paugam, Cousin, Georgetti e Naudel (2017) em estudo comparativo realizado em São Paulo, Nova Deli e Paris, tal fronteira moral levaria os mais ricos a experimentarem um sentimento de repulsa física no contato com os pobres, sentimento por eles mobilizado para justificar sua superioridade social, bem assim para neutralizar a compaixão pelos mais desfavorecidos - três dimensões que confluem para o que os autores denominaram como “o tríptico da discriminação”7. Ainda no que concerne às elites, Reis (2004) já chamara atenção para o mesmo discurso, que neutraliza a compaixão pelos mais pobres. Ele apareceria numa outra evidência, também capturada pela autora: quando refletem sobre as suas ações filantrópicas, as elites se veem preenchendo uma lacuna da ação pública, fazendo aquilo que o Estado não faz, mas deveria. A solidariedade que poderia parecer manifesta na forma da doação revela-se, assim, uma espécie de conduta fora de lugar.
Entretanto, não seria demais pensar que o altruísmo e o dom podem perpassar as relações interindividuais tecidas na base da hierarquia social, entre próximos, nas comunidades assentadas nas afinidades de natureza social, cultural, religiosa, ou mesmo na similitude de origem étnica, nacional ou regional. Com efeito, esse tipo de laço aparece na vida comunitária sem que assuma a forma monetária ou da doação filantrópica, baseando-se em relações de reciprocidade, que também garantem proteção e provêm reconhecimento.
Por certo seria impraticável quantificá-lo numa medida comparativa internacional. Isso não impede, entretanto, que a ele se aluda, até pela força com que achados nessa direção surgem nas etnografias e/ou nas reflexões sobre dados etnográficos produzidas na academia brasileira (Silva, 2017; Vieira, 2017; Araujo, 2019; Moreno, 2019; Guimarães e Vieira, 2020). Em realidades em que a pobreza grassa e a ação pública escasseia, a prevalência das formas de solidariedade horizontal, que se estabelece entre próximos, acende a luz amarela que instiga nosso interesse sobre mais uma singularidade do Brasil, evidenciada pelo recurso à comparação.
Por um lado, ao contrastar países, vimos o quão irrelevante se mostrou, entre os brasileiros, o laço de participação eletiva, ao menos se concebido como um vínculo impessoal, no qual a doação se endereça “à sociedade”, àqueles a quem desconheço. E com efeito, é isso o que pretende capturar o indicador quando busca medir a forma de doação que vem impregnada de um caráter hierárquico, oriunda dos melhor posicionados socialmente (ou dos ricos, se se quiser) e dirigida àqueles em dificuldade (os mais pobres). Esse laço aponta para um vínculo marcado por um elo voluntarista, mas impessoal.
Entretanto, os achados empíricos antes aludidos apontam para a possibilidade de um outro tipo de vínculo eletivo, pessoalizado/personalizado, que se tece sobretudo na base da pirâmide social, entre iguais. Mais ainda, esses achados sugerem a sua relevância no caso brasileiro. Longe de expressar o vínculo eletivo, impessoal e voluntarista, nessa forma de tessitura de elos estaria em jogo a reprodução de um vínculo assentado na lógica comunitária, do reconhecimento para com o próximo. Assim, muito embora fosse um vínculo integrador, teria antes um caráter coercitivo, justamente porque se tece entre semelhantes ou iguais, diante da frágil integração eletiva entre diferentes na hierarquia social.
Em suma, o fundamento da economia moral que se erige nos países europeus possibilita entrever a força do laço de participação eletiva, expresso num elo de tipo impessoal e voluntário entre os diferentes na hierarquia social. Já no caso brasileiro, ele carece de relevo, e sobressai outra modalidade, cuja natureza escapa ao modo de operacionalização utilizado, porque resulta de uma economia moral assentada em outra configuração de valores e, por consequência, em modos diversos de exercício da solidariedade8.
3.3 Laço de participação orgânica
A preeminência da participação orgânica é esperada em realidades em que o laço entre o indivíduo e o grupo resulta da proteção oferecida pelo estatuto de empregado e, portanto, das garantias de que dispõem os trabalhadores assalariados em relação a seu futuro. O indicador de participação orgânica foi, por isso mesmo, buscado na proporção dos trabalhadores cobertos por convenções coletivas que fixam direitos e regras de proteção a esse estatuto, e posteriormente ponderado pelo tamanho do emprego informal. O Gráfico 5 apresenta os resultados para os países europeus analisados por Paugam, Beycan e Suter (2020), em meio aos quais incluímos o Brasil9.
O Brasil, quando incluído na comparação, forma com o pequeno grupo de seis países em que a incidência do laço de participação orgânica não ultrapassa 25%. Metade desses países, três deles, tem em comum o passado comunista, pelo que as convenções coletivas não possuem o mesmo significado que nas economias capitalistas (Paugam, Beycan e Suter, 2020). A outra metade é formada por países onde a estruturação do mercado de trabalho, assentada no forte e longevo peso das relações informais, reduz, na média, o peso das convenções coletivas para o total de trabalhadores. Tal é o caso do Brasil e da Grécia. A esses países se soma a Inglaterra, onde a flexibilização da proteção trabalhista, desencadeada a partir da década de 1980, pode ser considerada o principal fator para o baixo valor encontrado. Para lançar mão da metáfora de Beck (2000), essa segunda metade contempla o Brasil e os europeus “brasilianizados”.
No Brasil, mesmo considerando que o período de referência do dado apresentado coincide com um momento de expansão dos empregos formais, a taxa ponderada de cobertura das convenções não atinge um quarto dos trabalhadores. Isso resulta da combinação entre a natureza da estrutura sindical e o tipo de estrutura produtiva e ocupacional que se consolidaram no país. Por um lado, a legislação trabalhista e sindical sempre privilegiou os setores mais organizados do mercado de trabalho (especialmente urbano), a ponto de ter sido, durante muito tempo, o fundamento da própria cidadania no país (Santos, 1979). Por outro, dada a heterogeneidade desse mercado de trabalho urbano, além de não se haver generalizado a norma assalariada, reduziu-se a potencialidade da cobertura sindical devido à formação de um grande e desestruturado setor de serviços urbanos, constituído por ocupações com reduzido poder de barganha coletiva, concentradas em empresas de menor porte, com elevado grau de informalidade, alta rotatividade, e onde sindicatos costumam estar menos institucionalizados (Cardoso, 2010).
Não por acaso, essas ocupações foram o celeiro a partir do qual se arregimentaram aqueles em busca da ampliação de direitos pela via da regulamentação ocupacional. Este era um curso de ação coletiva alternativo à lógica do conflito e da negociação, as quais desembocavam em convenções coletivas tal como normatizado pela Consolidação da Legislação do Trabalho/clt. Nessa estratégia de contorno - a do controle sobre o exercício profissional -, buscava-se, por meio de regulamentação específica, conseguir algo semelhante ao que as categorias mais fortes do ponto de vista sindical mostraram-se capazes de obter por meio de negociação coletiva (Prates, 2018).
Assim, e por um lado, é fato que a reduzida abrangência da cobertura por convenção coletiva no Brasil opera no sentido de diminuir o peso da solidariedade horizontal fundada no laço corporativo e na divisão social do trabalho. Entretanto, fica evidente mais uma singularidade na tessitura do laço à brasileira. Em uma contra tendência que escapa à capacidade de captura do nosso indicador, ganha força um outro tipo de solidariedade, que se estrutura hierarquicamente e que vincula ao Estado ocupações pouco organizadas coletivamente. Essa forma alternativa de laço de participação orgânica é de notável eficácia, na medida em que garante, através de lei específica, um conjunto de direitos e prerrogativas, mais difíceis inclusive de serem logrados por meio da negociação coletiva. Além disso, é uma legislação que não precisa ser atualizada periodicamente e independe, a priori, da longevidade e do grau de coesão sindical.
Em suma, a baixa força do laço orgânico, que se revela na curta cobertura do lençol da convenção coletiva, é parcialmente compensada por uma forma singular de acesso a direitos e à proteção pela via da relação direta entre corporações e Estado: o instituto da regulamentação ocupacional e profissional.
3.4 Laço de Cidadania
O laço de cidadania expressa a confiança das pessoas umas nas outras (indicador LC1) e destas em relação ao Estado (indicador LC 2). As duas medidas podem ser vistas, respectivamente, como a expressão das dimensões horizontal e vertical do argumento durkheimiano sobre as bases não contratuais do contrato.
O painel de Gráficos 6 mostra que existe uma tendência à convergência entre os dois indicadores: os países mais bem posicionados em relação à confiança interpessoal são também aqueles em que há maior confiança no sistema de justiça. Mas existem, contudo, notáveis exceções, e o Brasil é, certamente, a maior delas. O país se destaca pela baixíssima tendência à confiança interpessoal, embora esteja razoavelmente bem posicionado quando se trata de confiança no sistema judiciário.
Tal dissonância fica ainda mais clara no Gráfico 7, que mostra, para os diversos países, a relação entre os dois indicadores, medida pela razão entre eles (confiança na justiça/confiança interpessoal). Quanto mais próximo de 1, maior a convergência. Valores superiores a 1 sugerem que predomina a confiança na justiça, e inferiores a 1, o contrário; ou seja, quanto mais distante de 1, menos os dois indicadores representam, empiricamente, a mesma dimensão do laço de cidadania. O Brasil aparece, no gráfico, como um indiscutível outlier.
Ora, a crença nas pessoas sem a confiança no sistema de justiça significa que a força do vínculo de cidadania é mais horizontal do que vertical. Se o contrário ocorre, quer dizer que o vínculo de cidadania se erige a partir da autoridade ou, em sentido weberiano, assentado antes na dominação racional-legal do que propriamente na coesão do tecido social e no sentimento de pertencimento ao mesmo grupo, na acepção durkheimiana do termo. Este parece ser o caso do Brasil. A confiança interpessoal é quase nula (irrisórios 7,1%), ao passo que a confiança no judiciário é de mais de 50,0%.
4. Brasil, Brasis? Diversidades no tempo e no espaço
Vimos até aqui que, embora em cada um dos países selecionados todos os tipos de laços se fizessem presentes, vinculando os indivíduos a grupos, em cada um deles um laço mostrava-se preeminente, a sinalizar que dele provinham as bases para uma economia moral que singularizava cada uma dessas sociedades. No caso brasileiro, o laço de filiação cumpria essa função, sendo especialmente relevante no que concernia a elos intergeracionais envolvendo a proteção aos idosos.
Entretanto, isso não nos deve induzir a descrições simplistas, porque reducionistas. A primazia de um vínculo pode se (re)constituir no tempo e se exprimir de maneiras diversas no plano intranacional, revelando tensões, conflitos e contradições que são cruciais para se entender a especificidade de uma sociedade. Disso trataremos doravante, ainda à luz do caso brasileiro.
A novidade é que vamos conjugar a análise inter-regional com a comparação entre dois momentos de tempo, 2012 e 2018. São momentos especialmente significativos para o Brasil. No primeiro, 2012, a economia crescia, o mercado de trabalho estava ativado, os empregos formais em expansão, e um leque importante de políticas de transferência de renda e de proteção social estava em ação. Já em 2018, o país vivia um momento de aprofundamento da crise na geração de oportunidades de trabalho (deflagrada em 2015), cresciam a informalidade e as formas não protegidas de emprego, estancaram-se os investimentos em programas sociais, vivendo-se a regressão nas políticas de proteção e no financiamento dos sistemas públicos de educação e saúde.
Ora, uma vez deslocado o foco da comparação do plano internacional para o plano intranacional, e observando dois momentos contrapostos no que concerne à estruturação das oportunidades de inclusão e proteção social, que impactos podemos observar sobre a dinâmica dos vínculos sociais?
4.1 Laço de filiação, o laço regulador
Tal como visto na seção anterior, quando comparado ao grupo dos países europeus, o Brasil se destacava pela preeminência do laço de filiação. Por isso mesmo, o primeiro resultado que chama atenção quando perscrutamos possíveis mudanças por efeito das alterações de conjuntura, é a pouca significação das diferenças observadas entre 2012 e 2018 (Tabela 1). Isso sugere que, pelo menos de um modo geral, o regime de vínculos é resiliente frente às transformações de curto prazo na estrutura da economia e no mercado de trabalho.
Um possível caminho explicativo para tal resultado é a hipótese de que o regime de vínculos não pode ser reduzido às configurações do estado de bem-estar social como resultado de um “default familialista”, mas que deriva de um poder normativo com raízes antropológicas mais profundas (Paugam Beycan e Suter, 2020). O Brasil é um caso que permite avançar na avaliação dessa hipótese devido às suas fortes diferenças regionais.
De um modo geral, dever-se-ia esperar que a força do laço de filiação fosse maior no Norte e Nordeste, por serem regiões menos desenvolvidas economicamente, onde o processo de modernização do Estado e o da cidadania são mais permeados pelo personalismo e onde é mais forte a herança sociocultural mediterrânea/portuguesa. Ao contrário, a região Sul deveria apresentar uma configuração menos familialista e mais individualista, devido ao maior desenvolvimento econômico e à maior presença da imigração europeia, especialmente alemã, país onde a força do elo através das relações de parentesco se mostra menor, como vimos. As regiões Sudeste e Centro-Oeste estariam entre os dois extremos.
A Tabela 2 mostra a variação na força dos indicadores de solidariedade intergeracional no que se refere aos mais jovens (média dos indicadores LF1/LF2) e aos mais idosos (média dos indicadores LF3/LF4), segundo região e renda, separadamente, para o ano de 2018. Os resultados mostram que a variação é muito mais forte a depender da renda do que da região. Os valores dos indicadores do laço de filiação concernente aos jovens (LF1 E LF2) são diretamente relacionados com o crescimento da renda, ao passo que o contrário ocorre com os valores dos indicadores que medem o laço com respeito aos idosos (LF3 E LF4). Isso significa que a solidariedade intergeracional que provê suporte aos jovens é mais pronunciada entre as famílias mais ricas. De outro lado, é entre as famílias mais pobres que observamos em maior intensidade o laço que une os mais velhos ao seu grupo de parentesco.
De modo a avançar no entendimento dessas diferenças, realizamos uma análise multivariada para identificar os principais fatores que afetam a solidariedade intergeracional10. Por meio dessa análise, observamos quais são as variáveis que explicam em maior medida o fato de a família se encontrar ou não acolhendo jovens desocupados (LF2) ou idosos (LF4)11. O método permite identificar diferentes níveis de importância das seguintes variáveis independentes, em combinações distintas.
A lógica que orienta a análise é a de que, se as variáveis relativas à região e/ou à localização do domicílio (urbano/rural) se mostrarem importantes independentemente das demais, há indicação suficiente de que o regime de vínculo seja condicionado pelas características regionais e não pelas demais variáveis. De outro lado, se estas forem mais relevantes e sobrepuserem qualquer distinção relacionada com a região e a localização do domicílio, é possível dizer que o regime de vínculos deriva mais de características socioeconômicas, da situação em relação ao mercado de trabalho ou ao sistema escolar (frequenta escola, para os jovens em LF2) e, por fim, da cobertura do sistema de proteção social (no caso dos idosos de LF4). Importante destacar que essas situações não são excludentes e que elas podem interagir de diferentes formas12.
O primeiro resultado revela que a renda é o principal fator que afeta a probabilidade de a família se encontrar em situação de acolhida de jovem desempregado (LF2). Entre as famílias do primeiro quintil de renda, em apenas 37,5% o filho desocupado mora com os pais. Entre as famílias do segundo, terceiro, quarto e quinto quintis, esses valores são de 55,7%, 53,0%, 60,9% e 71,4% respectivamente. O segundo passo da análise permite observar que, dentro de cada um desses grupos de renda, o que mais afeta a probabilidade de pertencer ao grupo dos que acolhem um jovem desempregado (LF2) é, à exceção dos mais pobres, o sexo. Em todos os casos, a chance é sempre maior para homens do que para mulheres. Entre os mais pobres, contudo, o principal fator de diferenciação é a escolaridade, de modo que os valores crescem conforme o grau de realização educacional (26,7% para os com Ensino Fundamental Incompleto, 31,8% para os com Ensino Fundamental completo, 41,2% para os com Ensino Médio Completo, e 60,5% para os com Ensino Superior Completo).
Esse resultado mostra que, no Brasil, os fatores que diferenciam a intensidade da solidariedade intergeracional dirigida aos mais jovens (e mensurada por LF2) são quase que exclusivamente socioeconômicos ou relacionados com os papéis de gênero. A região ou o local de moradia (urbano/rural) aparecem como fatores residuais. De um modo geral, pode-se dizer que o suporte familiar depende da capacidade da família para sustentar os jovens desocupados. Isso se evidencia nos percentuais, muito maiores entre as famílias mais abastadas e especialmente para os homens.
Já no que concerne à solidariedade familiar que permite a acolhida de idosos (LF4), a tendência assume sentido inverso. Como já havíamos observado antes, a solidariedade intergeracional, nesse caso, decresce com a renda das famílias. Os resultados, contudo, indicam que o sentido da solidariedade é diferente do originalmente sugerido, ou seja, o indicador mensura principalmente a capacidade dos próprios idosos em prover sustento a seus familiares em dificuldade socioeconômica. A principal variável explicativa, nesse caso, foi se existe no domicílio alguém, que não o idoso, em situação de inatividade ou desocupação econômica. O resultado mostra que, para os domicílios que cumprem essa condição, em 66,2% dos casos, há um idoso presente através do qual a solidariedade intergeracional se exercita (ou seja, se encontram no grupo de LF4). Já para os domicílios que não cumprem essa condição, esse valor é de apenas 19,4% dos casos. Isso confirma o que havia sido formulado na seção anterior sobre o protagonismo dos idosos brasileiros no que concerne à sobrevivência em domicílios sujeitos a condições de elevada pobreza.
Ademais, em ambos os casos, o principal diferenciador de segundo nível é a renda. Para os mais pobres (quintil 1), nada menos do que 98,6% dos domicílios em que há uma pessoa desocupada ou inativa (que não o idoso) se encontram em situação de LF4, ou seja, têm a presença de um idoso. Esse percentual é de 55,9% entre os mais ricos. Já entre os que não possuem pessoas desocupadas e inativas, o percentual é de 77,6% entre os mais pobres e de 18,0% entre os mais ricos.
Uma análise mais detalhada, contudo, revela uma interessante modalidade pela qual renda, políticas sociais e fatores regionais se combinam. Chegamos a tal resultado ao repetirmos a análise de decisão hierárquica de forma separada para cada um dos grupos de renda e desconsiderando a presença de pessoa desocupada ou inativa na família. O resultado mostra que a força da solidariedade intergeracional entre os mais pobres (quintil 1) depende principalmente de se o idoso recebe ou não benefício de aposentadoria, ao passo que a variável regional é mais importante para as famílias dos estratos médio e superior.
Em suma, entre os mais pobres, o fator mais importante é o acesso às políticas de proteção social que, ao proverem seguridade social para os mais velhos, estimulam a solidariedade intergeracional em relação aos mais jovens. Para as famílias de renda intermediária e mais alta, por outro lado, há uma maior tendência a que a solidariedade intergeracional esteja associada a traços regionais nos quais se enraízam os regimes de vínculos, não mensurados pelos outros determinantes.
4.2 Os laços integradores
No que tange à força do laço de participação eletiva, existe uma diferença considerável entre as regiões e em relação à condição socioeconômica13. A propensão ao voluntarismo mostrou-se consideravelmente mais pronunciada no Sul e no Sudeste e entre as pessoas de melhor condição socioeconômica. Entretanto, eximimo-nos de avançar no detalhamento da análise desse tipo de laço, dada a notável insignificância numérica dos registros, já tratada na seção anterior.
As diferenças regionais no que se refere à força do laço de participação orgânica são dignas de nota, e refletem as diferenças de formalização nos mercados de trabalho entre as regiões brasileiras (Gráfico 8). Assim, a maior formalização do trabalho nas regiões Sul e Sudeste, em oposição às regiões Norte e Nordeste, acaba por transparecer nos valores assumidos pelo indicador para essas regiões. Nas primeiras, a proteção e o reconhecimento que decorrem de direitos associados ao estatuto no mercado de trabalho podem marcar, de maneira mais nítida, o modo como se estabelece o vínculo entre indivíduo e sociedade.
A força dos indicadores do laço de participação orgânica segundo regiões. Brasil 2012-2018
Contudo, o crescimento da informalidade e das formas mais flexíveis de contrato entre 2012 e 2018 se expressa apenas marginalmente nas tendências da extensão do laço de participação orgânica. Isso pode resultar (como esclarecido anteriormente) de que o cálculo não incorpora a variação da cobertura dos acordos coletivos. Mas talvez esteja expressando o fato de que as diferenças inter-regionais nas taxas de formalização tenham se mantido praticamente constantes, apesar da queda na média. Apenas em duas regiões a taxa de formalização quase não se alterou no período, no Sul (onde taxas tenderam a ser sempre mais altas) e no Nordeste (onde ganhos de formalização foram especialmente significativos sob o crescimento da década de 2000).
Ou seja, tudo leva a crer que o traço do vínculo orgânico reflete a estrutura do mercado de trabalho - e especialmente a sua capacidade de formalização - em cada região. Com efeito, a formalização e a carteira de trabalho sempre tiveram importância e simbolismo, organizando tanto o vínculo entre os indivíduos - que se reconhecem enquanto trabalhadores formais a partir de um grupo de referência (Guimarães, 2011) - como entre indivíduos (cidadãos) e o Estado (Santos, 1979). Nesse caso, trata-se mais de um tipo de integração - parcial, é bem verdade - que decorre do modo como a atividade econômica propicia a incorporação dos trabalhadores através da inserção no mercado formal.
Já o laço de cidadania mensurado por indicadores de confiança interpessoal (LC1) e de confiança no sistema judiciário (LC2) mostra que o período 2012-2018 foi marcado por um declínio da confiança nas pessoas, mas também uma contração da confiança nas instituições de justiça, embora com intensidade distinta. Por um lado, a confiança interpessoal (LC1) já era muito baixa em 2012, quando observada a média do país (4,8%), e cai sensivelmente no período, para 4,1%. Em relação à confiança no Judiciário (LC2), a queda é ainda mais pronunciada. De 43% em 2012 para 34% em 2018.
Não encontramos diferenças significativas entre a intensidade dos indicadores e posição socioeconômica. Entretanto, algumas diferenças regionais sobressaíram. No Sul, a confiança interpessoal se mostrava sensivelmente mais elevada no início do período, alcançando 10,1%, mais que o dobro da média nacional. Em 2018, as diferenças se reduzem e se tornam insignificantes14.
Em relação à confiança no Judiciário (LC2), as diferenças entre as regiões são também relevantes, conquanto mais no começo da série do que no final. A queda foi mais pronunciada exatamente nas duas regiões que se colocam nos extremos opostos em relação à maioria das características que organizam a dinâmica socioeconômica e a desigualdade regional no Brasil: o Sul e Nordeste. Ao mesmo tempo, ambas as regiões, que tinham a maior confiança no início da série, são hoje as que apresentam os menores valores. No Sudeste, houve uma pequena variação e, em 2018, o Centro-Oeste e o Norte são as regiões onde há mais confiança no sistema judiciário.
Historicamente, a percepção positiva do poder judiciário no Brasil se associa ao combate à corrupção e à violência (FGV, 2019). Não deixa de ser interessante observar, nesse caso, como a queda geral da confiança no judiciário se combina exatamente com o período em que se observou seu vertiginoso crescimento de exposição pública e midiática devido às recentes operações de combate à corrupção no país. Se em primeira instância seria de se esperar que o judiciário viesse a ter a sua popularidade alavancada, deu-se exatamente o contrário, talvez em virtude do modo como passou a ser visto como ator político num crescente processo de judicialização da política (Rodrigues e Arantes, 2020).
Independentemente dos motivos que levam à queda da confiança, contudo, coloca-se em evidência a própria volatilidade do indicador e - por que não? - do vínculo que através dele se expressa. Num país em que a cidadania é tida como eternamente inacabada e estratificada, não é de se surpreender que, mesmo com os limites de mensuração, a força do vínculo (horizontal ou vertical) que reflete o sentimento de vinculação à comunidade política esteja reiteradamente sujeita a conjunturas. Nesse caso, a instabilidade do vínculo é tão importante quanto sua reduzida amplitude e extensão para a organização do tecido social.
Pensando conclusivamente...
Conforme observado por Paugam, Beycan e Suter (2020), os quatro regimes de vínculo se organizam em torno da intensidade do laço de filiação, que é inversamente proporcional à força dos laços de participação eletiva, orgânica e de cidadania. Estes últimos, por conseguinte, são positivamente relacionados. Assim, a distinção básica oporia dois regimes principais: um deles assentado no vigor dos vínculos familiares intergeracionais (LF); e outro fundado, em diferentes graus, nos vínculos impessoais do associativismo privado (LPE), da divisão do trabalho (LPO) e da comunidade política (LC).
Mas os autores documentaram também uma clivagem entre os regimes familialistas, que decorreria principalmente da proximidade com que os países se encontravam em face dos regimes universalista e organicista. Tal argumento se mostrou bastante instrumental para entendermos a especificidade do caso brasileiro. O Brasil, à semelhança de Grécia e Polônia, apresenta sinais de um regime que carece de vínculos de confiança interpessoais, no que se diferencia de outros países com regime familialista igualmente predominante (Itália, Espanha e Eslovênia). Como interpretá-lo?
Antes de mais nada, nem de longe se almejaria, com toda essa análise tão nuançada, produzir formas biunívocas de associação entre países e tipo. Ao contrário, é perfeitamente possível que alguns países não possam ser facilmente identificados com qualquer dos tipos. Em circunstâncias como esta, longe de se excluir o caso aparentemente desviante ou de se criar um tipo adicional que o incorpore, o desafio que se impõe é o de investigar por que a sua configuração no que concerne ao regime de vínculo é diversa, em que radica a sua específica complexidade. Vale dizer, há que buscar na construção histórica da sua dinâmica socioeconômica específica os elementos explicativos para a geometria variável que marca essa forma particular de interseção entre tipos de laço. Este é o exercício que nos propusemos a empreender, partindo do exemplo do Brasil e confrontando-o com os países europeus. O Brasil constitui um verdadeiro desafio metodológico devido ao seu tamanho e à diversidade de suas regiões, que, por razões geográficas e históricas, são contrastadas, não só em termos de desenvolvimento econômico, mas também em termos de tradições e cultura, tanto quanto de normas socioculturais.
Ademais, a hipótese de que, no Brasil (e na América Latina, de um modo geral), a cidadania se construiu em vários momentos históricos sob o domínio do autoritarismo e que até hoje é vista, de certa maneira, como uma sorte de privilégio, é uma via possível de interpretação. Nesses países, a manutenção da ordem social no momento da construção nacional e da autoridade pública esteve ligada a uma forte tradição autoritária (Reis, 1995) e, não por acaso, a própria cidadania social se expandiu em momentos históricos marcados por regimes ditatoriais com forte restrição de direitos civis e políticos (Santos, 1979; Carvalho, 1981).
Nesse sentido, a análise de um caso, como o brasileiro, longe de ser um mero exercício de classificar um dado país, etiquetando-o conforme um certo regime de vínculo, demandou um esforço no sentido de enriquecer os achados, conferindo-lhes densidade histórica. Ao conciliar sincronia e diacronia, um novo desafio emergiu, o de refletir sobre os elos que mantêm uma sociedade de pé, minimamente integrada, justamente a partir de um caso, como o do Brasil, que chama a atenção pela aceleração recente da desigualdade social, pela fratura crescente da coesão e pela polarização política.
Ademais, a análise se enriqueceu com a multiplicação de estratégias comparativas. No caso deste texto, procuramos associar às comparações internacionais outras tantas, intranacionais, em que fizemos variar as escalas de tempo e de espaço. Assim, a comparação no tempo mostra que, no caso do Brasil, enquanto o laço de filiação se mostra persistente em sua preeminência, revelando um vigor que é resiliente mesmo diante de importantes mudanças de contexto, o laço de cidadania se revela especialmente instável. Ou seja, poder-se-ia dizer que se trata de um regime de vínculo assentado de maneira estável num familialismo15, o qual se nutre até mesmo das poucas iniciativas de proteção dirigidas aos mais pobres16. Esse regime, entretanto, revela-se muito instável quando se trata de lidar com as tensões que marcam a relação entre sociedade civil e estado, no âmbito da organização da comunidade política.
Isso confirma o nosso ponto de partida de que a noção de regimes de vínculo pode ser uma ferramenta fértil para delinear não apenas os modos pelos quais os indivíduos fazem a sociedade, tecendo os elos que os vinculam, mas também como a diversidade de tal tessitura diferencia países, contextos, permitindo entrever avenidas pelas quais mudanças e persistências se estabelecem.
Mas, e a fortiori, a complexidade do regime de vínculo também se revela quando tomamos em conta as diferenças intranacionais - e a abordagem teórica usada se mostrou frutífera também para tal. Assim sendo, procuramos verificar a importância explicativa das variáveis relativas à região e/ou à localização do domicílio (urbano/rural) vis-à-vis àquelas outras que se referem a características socioeconômicas que dizem da relação dos indivíduos com o mercado de trabalho, com a proteção social, dentre outras. Novamente a complexidade ficou patente na medida em que o regime de vínculos, longe de derivar de uma ou outra característica, refletia situações em que diferentes formas de determinação poderiam interagir.
Entre os mais pobres, o fator mais importante para explicar a força do laço de filiação, e seu efeito regulador, era o acesso às políticas de proteção social as quais, ao proverem seguridade social para os mais velhos, criavam as condições de possibilidade para a solidariedade intergeracional em relação aos mais jovens. Já entre as famílias de renda intermediária e mais alta, a solidariedade intergeracional mostrava-se mais associada a traços regionais, em que se enraizava o regime de vínculos, o qual parecia, nesses grupos, menos propenso a explicar-se por outros determinantes.
Assim, ali onde os limites da cidadania enquanto laços entre iguais ainda se fazem prementes, o familialismo assume outras características. Visto até então como resultado de uma lacuna deixada por uma cidadania política e civil que deveria integrar organicamente indivíduo e sociedade no fazer da comunidade política, ele parece ser agora nutrido, em alguma medida, pela própria proteção social que se assenta numa cidadania social que se expandiu.
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1
Agradecemos a leitura atenta e as sugestões dos/das pareceristas ad hoc da revista Tempo Social.
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2
No caso brasileiro, convém sublinhar que, nos domicílios, apenas 2,9% dos moradores são classificados como não parentes (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), 2018). Assim sendo, estamos tratando de pessoas que formam, em sua esmagadora maioria, parte de um mesmo grupo familiar, muito embora, ao nomear-se o indicador, a isso não se faça referência explícita.
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3
A análise de clusters reuniu em aglomerados (ou clusters) os dados para todos os países concernentes aos quatro indicadores do vigor do laço de filiação. O resultado é uma medida da proximidade (ou similaridade) entre os casos, separando-os segundo suas distâncias (ou dissimilaridades). O método hierárquico aqui utilizado cria grupos cada vez maiores, organizando-os em árvores hierárquicas segundo a distância (ou dissimilaridade) entre eles. O dendograma reproduzido no Gráfico 1 sumariza o padrão de agrupamento.
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4
Quando aludimos, no indicador 4, ao peso dos idosos vivendo em domicílios com mais de duas pessoas, convém recordar o que foi referido anteriormente: conforme a Pnad 2018, de todos os moradores nos domicílios incluídos no indicador 4, apenas 2,9% são “não parentes”; ou seja, 97% das pessoas neles residentes mantêm relações de família. Assim, e tal como os três outros indicadores, LF4 também mede a força da solidariedade intrafamiliar, no caso protagonizada pelos idosos.
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5
Com efeito, no que diz respeito às doações, por exemplo, os índices brasileiros atingem apenas 1,0% dos seus habitantes. A Grécia, o segundo país com menor taxa de doações, apresenta um índice cinco vezes mais elevado (de 5,6%).
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6
Em 2009, por exemplo, os brasileiros doaram o equivalente a 0,3% do PIB, o que colocava o país abaixo da média latino-americana (de 0,4%), e muito aquém do líder, Estados Unidos, que arrecadaram 2,1% do seu PIB no mesmo ano.
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7
“É realmente difícil falar de complementaridade entre os indivíduos de uma sociedade e pensar em termos de coesão social quando a fronteira moral entre os ricos e os pobres se alimenta de uma vontade de cisão baseada no espectro da sujeira e da contaminação, e se baseia em uma retórica de justificação da pobreza e da desigualdade” (Paugam, 2019b, p. 228).
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8
Aqui haveria uma hipótese interessante a explorar, qual seja, num contexto de urgências sociais como o que hoje vive a sociedade brasileira, em que se interseccionam múltiplas crises (econômica, sanitária, política), é possível observar algum tipo de redefinição na força e modalidade desse tipo de laço? A emergência de uma pandemia terá sido capaz de alterar o padrão brasileiro de doação voluntária, seja aquela fundada numa economia moral que a faz impessoal e hierárquica, seja a que se assenta em outra economia moral que expressa o compromisso horizontal entre próximos porque similares? Chama atenção a intensidade com que a mídia tem veiculado o engajamento filantrópico das elites. Mas é igualmente notável o protagonismo das redes de solidariedade e voluntariado entre os mais vulneráveis que, sentindo-se abandonados pela proteção pública, chamam a si próprios o compromisso em prol da sobrevivência. Serão essas tendências que vieram para ficar?
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9
Não existe dado oficial para o percentual de trabalhadores cobertos por acordos coletivos no Brasil. Para o cálculo do indicador tivemos que combinar (i) dados do “Sistema Mediador”, do (atualmente extinto) Ministério do Trabalho, que reporta as convenções coletivas do país, e (ii) Relatórios do Dieese - Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos, nos quais há informação sobre o percentual de Sindicatos que possuem algum acordo coletivo cadastrado no “Mediador”, conforme a modalidade de Sindicato. O resultado foi ponderado pelo tamanho do emprego informal, conforme estatísticas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Como resultado obtivemos que, no Brasil, 61,7% do total de trabalhadores formais e 33,2% para o total de ocupados estavam cobertos por acordos coletivos. Maiores detalhes metodológicos podem ser solicitados aos autores.
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10
Usamos o método de decisão hierárquica (decision tree) que informa de modo exploratório a relação entre uma variável dependente e variáveis independentes selecionadas. As variáveis são organizadas em tabelas de dupla entrada em que a força da associação das variáveis é identificada a partir de teste qui-quadrado, escolhendo-se aquela que apresentar a maior força de associação. Os dados são agrupados de acordo com a variável escolhida e repete-se a análise sucessivamente, até que seja elaborada uma árvore que diferencia qual variável é mais importante em cada etapa.
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11
Optamos por reduzir a análise à LF2, que permite capturar a dimensão do amparo aos jovens desocupados e inativos, e à LF4, mais propícia que LF3 a apreender a solidariedade intergeracional.
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Por questões de espaço, os resultados não estão sendo apresentados em sua totalidade. Dados suplementares podem ser solicitados diretamente aos autores.
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13
Nesse caso, trata-se da condição socioeconômica tal como percebida (e declarada) pelo sujeito. Como o Latinobarómetro não possui informações sobre a renda efetivamente percebida, para medir a posição socioeconômica utilizamos a variável de “classe subjetiva”, ou seja, a identificação da situação de classe, tal como subjetivamente feita pelo entrevistado.
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O próprio valor do teste qui-quadrado não aponta diferença estatisticamente significante entre as regiões em 2018, ao passo que era significante a 99.9% em 2012.
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15
Tão estável que mesmo a Constituição Brasileira de 1988, significativamente chamada “Constituição-cidadã”, consagra no caput do seu art. 226 que: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” - e nisso o Brasil se aproxima de muitos outros países latino-americanos.
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16
A literatura tem sido insistente em evidenciar como uma concepção familialista perpassa a política social inclusiva dos anos 2000, mesmo quando se pretendeu assegurar direitos de cidadania. Tal concepção deixou as suas marcas em iniciativas como as do Programa Bolsa Família ou do Programa Minha Casa Minha Vida (ver, por exemplo, Lavinas, Cobo e Veiga, 2012).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Jan 2021 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2020
Histórico
-
Recebido
31 Ago 2020 -
Aceito
04 Out 2020