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Um programa de pesquisas comparativas sobre o multilinguismo na produção científica do Cone Sul

A escrita acadêmica em inglês é uma operação complexa para pesquisadores socializados em outras línguas nativas porque não consiste simplesmente na aplicação de habilidades aprendidas na socialização primária ou estritamente dependentes de origem social e capital cultural herdado. A formação educacional, o pertencimento a equipes de pesquisa e redes internacionais, a posse de capital acadêmico e social, a obtenção de apoio de pesquisadores nativos que corrigem ou traduzem; tudo isso favorece o domínio desse conhecimento. O acúmulo desses recursos e a viabilidade de adquirir habilidades de escrita em inglês explicam a circulação desigual que ocorre entre acadêmicos de um mesmo país ou entre pesquisadores de países não hegemônicos, além de contribuir a compreender as assimetrias de gênero (Lillis e Curris, 2010Lillis, T. & Curry, M. J. (2010), Academic writing in a global context: The politics and practices of publishing in English. London, Routledge.; Chardenet, 2012Chardenet, Patrick. (2012), “Langues et savoirs: perceptions et réalités du capital linguistique dans la circulation des connaissances”. Coloquio Circulación Internacional del Conocimiento, Cinvestav-iiesu, México.; Beigel, 2017Beigel, F. (2017), “Científicos periféricos, entre Ariel y Calibán. Capital institucional y circuitos de consagración en Argentina”. Dados, 60 (3): 825-865.).

As políticas de admissão e promoção adotadas por instituições de fomento e universidades elegem como parâmetros principais rankings de periódicos internacionais ou o fator de impacto das revistas, favorecendo a centralização crescente do inglês e empurrando muitas disciplinas para o monolinguismo, sob o pressuposto de que esse idioma seria a “língua franca” da ciência (Ortiz, 2009Ortiz, R. (2009), La supremacía del inglés en las ciencias sociales. Buenos Aires, Siglo xxi.; Gerhards, 2014Gerhards, J. (2014), “Transnational linguistic capital: Explaining English proficiency in 27 European countries”. International Sociology, 29 (1): 56-74.). Disso resulta a desvalorização dos periódicos nacionais, que perdem apoio institucional e da comunidade científica e, em muitos casos, mudam seu idioma de publicação para o inglês. Os efeitos nocivos dessa tendência, que empobrece culturalmente a ciência e a afasta das necessidades locais, têm sido amplamente apontados por iniciativas internacionais como o Folec, Fórum Latino-Americano de Avaliação da Ciência (Folec, 2019), a Iniciativa Helsinski (Helsinski Initiative, 2019) e a Recomendação de Ciência Aberta da Unesco (Unesco, 2021UNESCO (2021), The Unesco science report. The race against time for smarter development. Disponível em https://www.unesco.org/reports/science/2021/en.
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).

Essa situação é flagrante em uma região como a América Latina, que possui infraestrutura própria de comunicação acadêmica e desenvolvimento científico impulsionado principalmente por recursos públicos. Por que, porém, seus pesquisadores preferem publicar seus artigos em inglês, em revistas indexadas em Scopus ou wos? Existe uma falha endógena que não nos permite resolver de uma vez por todas a visibilidade de nossas revistas e livros em nossas línguas? O que será da existência do português acadêmico se a transição das revistas para o inglês continuar a ser promovida? A segmentação linguística da circulação do conhecimento já foi documentada para o mundo árabe (Hanafi e Arvanitis, 2014Hanafi, S. & Arvanitis, R. (2014), “The marginalization of the Arab language in social science: Structural constraints and dependency by choice”. Current Sociology, 62 (5): 723-742.). Há uma relação de causalidade nesse estado de coisas, que pode ser resumida em uma espécie de alienação entre o potencial de produção de conhecimento, a infraestrutura pública disponível e o sistema de recompensas que nossas próprias instituições e países promovem. Por essa razão, a chave para a promoção do multilinguismo e da bibliodiversidade mantém-se nos sistemas de avaliação acadêmica que hoje estão globalmente sob escrutínio.

Contudo, as línguas que são deslocadas do circuito de publicação mainstream, ou seja, dos periódicos indexados na Scopus ou Web of Science, não desaparecem dos processos de produção e circulação do conhecimento (Engels et al., 2018Engels, T.; Starcic, A. & Sivertse, G. (2018), “Are book publications disappearing from scholarly communication in the social sciences and humanities?”. Aslib Journal of Information Management, 70 (6): 592-607.; Mounier e Dacos, 2010Mounier, P. & Dacos, Marin. (2010), L’édition électronique. Paris, La Découverte.; Curry e Lillis, 2022Curry, M. J. & Lillis, T. (2022), “Multilingualism in academic writing for publication: Putting English in its place”. Language Teaching, 1-14. https://doi.org/10.1017/ S0261444822000040.
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). O que de fato acontece é a depreciação do multilinguismo científico, depreciado pela hierarquia subjacente aos sistemas de avaliação dominantes já referidos. As limitações dos serviços de indexação latino-americanos para produzir indicadores de produção transversais, sem sobreposições, também operam nessa direção, pois as plataformas existentes não são conectadas entre si. Por isso, é necessário recorrer a outras abordagens empíricas para descobrir a diversidade dos circuitos de produção existentes. Especialmente na América Latina, há um espaço regional de comunicação científica muito dinâmico, incluindo milhares de revistas acadêmicas de qualidade, que oferecem oportunidades de divulgação em espanhol, em português e, cada vez mais, em formato multilíngue, como sugere o recente relatório do pkp (Khanna, Ball, Alperin e Willinsky, 2022Khanna, Saurabh; Ball, Jon; Alperin, Juan Pablo & Willinsky, John (2022), “Recalibrating the scope of scholarly publishing: A modest step in a vast decolonization process”. Scielo Preprints. https://doi.org/10.1590/ScieloPreprints.4729.
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).

Este dossiê oferece resultados de pesquisas que visam justamente a problematizar os circuitos da produção científica em espanhol e português, explorando a relevância do inglês na autopercepção dos pesquisadores e o peso atribuído às publicações nacionais por elites acadêmicas acostumadas a serem avaliadas por seus níveis de internacionalização. Os artigos apresentados são baseados em estudos realizados por uma equipe formada por pesquisadores de diferentes países do Cone Sul que trabalharam juntos em três projetos. De um lado, o Levantamento de Capacidades Linguísticas e Internacionalização (Ecapin), realizado em três populações de acadêmicos (Brasil, Chile e Argentina) e financiado pelo Programa Neies Mercosul (spu-Capes) Projeto 3/2015. Em seguida, o estudo comparativo entre cnpq e Conicet com base nos sistemas curriculares Lattes e Sigeva, financiado pela Universidade Dauphine-psl e pela Fundação L’Oréal. Por fim, o projeto Oliva, que desenvolveu uma base de dados de periódicos indexados no Scielo e Redalyc. Esses estudos também contaram com o apoio de dois fundos de pesquisa argentinos (Pict 2017-2647 e pip 2014-0157). Atualmente, a equipe continua a desenvolver novos estudos comparativos sobre multilinguismo no âmbito do Programa Prisa da Agência Universitária da Francofonia (2021-2023).

Os resultados da pesquisa trinacional Ecapin são apresentados em quatro artigos deste dossiê. “Capital linguístico e circulação internacional: um estudo comparativo entre Argentina, Brasil e Chile” (Beigel, Almeida e Piovani) apresenta a descrição geral da pesquisa, sua metodologia e principais resultados. Seu objeto foram as elites acadêmicas internacionalizadas dos três países, a princípio mais bem integradas ao sistema acadêmico mundial dominado pelo inglês. Formada por pesquisadores pressionados a publicar em revistas internacionais, surpreende a heterogeneidade observada em termos de formação pós-graduada no estrangeiro e a incidência desta, menos relevante do que se supunha, na incorporação de competências linguísticas para a escrita em inglês.

O artigo “Origem social, habilidades linguísticas e padrões de publicação científica na Argentina, Brasil e Chile” (Piovani, Almeida e Baranger) concentra-se na parte da pesquisa voltada à discussão das modalidades de aquisição de habilidades em inglês, precoce ou tardiamente no curso da vida, e seu desenvolvimento por motivos familiares ou exigências da profissão acadêmica. Os resultados alcançados sugerem que, independentemente do nível de competência linguística, a grande maioria dos pesquisadores da amostra publicou em inglês. No caso argentino, não há correlação clara entre origem social de pesquisadores e pesquisadoras e o fato de terem publicado pelo menos uma vez em inglês. Para brasileiros(as) e chilenos(as), a proporção dos(as) que publicaram pelo menos uma vez em inglês é um pouco maior entre os que vêm de famílias com capital escolar superior. E, de modo geral, verifica-se que a escrita acadêmica em inglês depende de estratégias distintas. Os mais proficientes publicam textos escritos de forma autônoma, sem envio para tradução ou revisão de um falante nativo de inglês ou de um colega com maior conhecimento do idioma. Mas a grande maioria reconhece a importância de participar de projetos e redes internacionais para contar com a colaboração de pesquisadores que contribuem decisivamente para viabilizar essas publicações.

O artigo de Gallardo “El capital idiomático en juego en el campo académico. Perfiles de adquisición, valoración y utilización del inglés por investigadores científicos argentinos” analisa mais detalhadamente a relação entre capital linguístico e pertencimento disciplinar, notando que entre as ciências sociais e humanas há agentes que declaram conhecer três línguas ou mais, enquanto nas exatas e biológicas a grande maioria concentra-se no inglês. Os primeiros, aliás, tendem a ter uma origem social mais “legítima” e um perfil cosmopolita que privilegia o capital idiomático. No entanto, são os que menos publicam em inglês e não o valorizam tanto como fator determinante para suas atividades acadêmicas. Assim, argumenta-se que a centralidade do inglês nas estratégias de circulação da Argentina parece ser muito mais influenciada pelos parâmetros vigentes de avaliação do que pela origem social e pelas habilidades adquiridas antes de entrar no campo.

O artigo de Beigel e Bringel “Circulación situada e idiomas de publicación de las élites académicas del Cono Sur” reflete sobre o posicionamento multiescalar de pesquisadores das três populações estudadas para “situar” suas faces global e local. O trabalho relaciona as conclusões observadas na pesquisa Ecapin com uma análise empírica de uma amostra de currículos completos de pesquisadores selecionados dessas mesmas populações. Esse levantamento sugere que, de modo geral, as trajetórias revelam significativa bibliodiversidade e multilinguismo, contendo uma parcela importante que publica em periódicos nacionais e no idioma nativo, em todas as áreas científicas. Além dessa constatação geral, verificam-se perfis diferenciados para cada país. No Chile há maior introjeção do inglês na estruturação de sua própria comunidade científica, enquanto na Argentina existe maior preocupação em valorizar o circuito latino-americano. O Brasil mostra uma orientação mais forte para a publicação dentro de suas fronteiras, mas isso não significa necessariamente que eles publicam majoritariamente em português.

Em conexão direta com esse problema, o artigo de Beigel e Digiampietri “La batalla de las lenguas en la publicación nacional” analisa dois sistemas nacionais de dados curriculares, Sigeva (Argentina) e Lattes (Brasil), fazendo uma comparação entre as publicações autorregistradas por pesquisadores do Conicet e do cnpq. Essa comparação permite verificar diferenças importantes entre as duas populações estudadas. Por um lado, os pesquisadores argentinos publicam muito pouco em seu país, mas mantêm um percentual de suas publicações em espanhol em todas as áreas. Possuem periódicos nacionais de qualidade, mas a cultura avaliativa do Conicet pressupõe que sem internacionalização não serão recompensados pela promoção na carreira acadêmica. A orientação para revistas e livros latino-americanos explica o peso do espanhol nas trajetórias estudadas. Por outro lado, os pesquisadores brasileiros publicam regularmente em periódicos de seu país, mas muitos deles são editados exclusivamente em inglês. Essa tendência de publicação nacional é forte não apenas nas ciências sociais e humanas, mas em todas as disciplinas, fenômeno explicado pelo peso significativo dos periódicos de ciências da saúde e ciências agrárias na coleção Scielo.

Por fim, o artigo de Salatino “Los circuitos lingüísticos de la publicación científica latinoamericana” privilegia a análise de periódicos, com dados coletados no âmbito do projeto Oliva, ou seja, uma base de 1.720 revistas indexadas no Scielo e Redalyc. Primeiramente, relaciona esse corpus de produção publicado em periódicos latino-americanos com o idioma de produção encontrado no Scopus e Web of Science, demonstrando a escassa representação de outros idiomas além do inglês nessas bases de dados mainstream. Em seguida, oferece uma visão geral dos periódicos latino-americanos a partir de uma classificação em quatro circuitos linguísticos: três orientados quase inteiramente pelo espanhol, português e inglês e um quarto totalmente multilíngue. De particular interesse nesse artigo são as evidências que ele fornece sobre o crescimento desse espaço multilíngue, composto por mais de mil periódicos que publicam em inglês, português e espanhol e, em muitos casos, em francês, alemão e italiano.

Gostaríamos ainda de destacar que, para favorecer o multilinguismo e as políticas de tradução que nosso circuito de comunicação exige, apresentamos este dossiê em dois idiomas, espanhol e inglês, além desta introdução também em português. Agradecemos imensamente à revista Tempo Social por acolher esta proposta e pelos esforços editoriais que a edição multilíngue demanda.

Referências Bibliográficas

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  • Curry, M. J. & Lillis, T. (2022), “Multilingualism in academic writing for publication: Putting English in its place”. Language Teaching, 1-14. https://doi.org/10.1017/ S0261444822000040.
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    » https://www.unesco.org/reports/science/2021/en

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    05 Nov 2022
  • Aceito
    15 Nov 2022
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