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A geração dos anos de 1960: o peso de uma herança

The 60's generation: the weight of an inheritance

Resumos

O artigo propõe analisar o peso desmedido da herança da geração dos anos de 1960 sobre a geração de jovens de hoje. Procura destacar a historicidade dos movimentos dessa década, seja do ponto de vista de sua linhagem e filiação, seja de sua não-homogeneidade, com o objetivo de compreender o processo que construiu, ao longo do tempo, o mito dos anos de 1960 e a figuração identitária de sua geração, diluindo a complexidade, a heterogeneidade, os conflitos, as heranças e a contextualização histórica dos movimentos. A identificação das gerações posteriores com o mito da geração dos anos de 1960, que tem se manifestado episodicamente, indica um aprisionamento das gerações mais jovens pela imagem de uma identidade heróica da geração anterior, indicativo da ausência de um movimento de separação entre as gerações, e portanto da produção de uma diferença geracional, e das dificuldades de recebimento da herança, isto é, da possibilidade do encontro de uma filiação.

Geração dos anos de 1960; Experiência de revolta; Movimentos políticos e contraculturais; Transmissão da herança; Filiação


The article aims at analyzing the excessive weight of the inheritance of the 60's generation over youth today. It focuses on the historicity of the movements of that decade, be it from the point of view of its affiliations, or of its non-homogeneity, with the objective of understanding the process that built the myth of the 1960's, over the years, and of the identity figuration of its generation, diluting the complexity, the heterogeneity, the conflicts, the inheritances and the historical contextualization of the movements. The identification of the later generations with the myth of the generation of the 60's, that has become manifest episodically, indicates the imprisonment of the younger generations by the image of a heroic identity of the previous generation. This points to an absence of a movement to separate the generations, and thus, of the production of a generational difference, and of the difficulties of receiving the inheritance, i.e., of the possibility of the making of a new affiliations.

60's generation; Experience and revolt; Political movements and counterculture; Inheritance transmissions; Affiliations


ESTUDOS

A geração dos anos de 1960: o peso de uma herança

The 60's generation: the weight of an inheritance

Irene Cardoso

RESUMO

O artigo propõe analisar o peso desmedido da herança da geração dos anos de 1960 sobre a geração de jovens de hoje. Procura destacar a historicidade dos movimentos dessa década, seja do ponto de vista de sua linhagem e filiação, seja de sua não-homogeneidade, com o objetivo de compreender o processo que construiu, ao longo do tempo, o mito dos anos de 1960 e a figuração identitária de sua geração, diluindo a complexidade, a heterogeneidade, os conflitos, as heranças e a contextualização histórica dos movimentos. A identificação das gerações posteriores com o mito da geração dos anos de 1960, que tem se manifestado episodicamente, indica um aprisionamento das gerações mais jovens pela imagem de uma identidade heróica da geração anterior, indicativo da ausência de um movimento de separação entre as gerações, e portanto da produção de uma diferença geracional, e das dificuldades de recebimento da herança, isto é, da possibilidade do encontro de uma filiação.

Palavras-chave: Geração dos anos de 1960; Experiência de revolta; Movimentos políticos e contraculturais; Transmissão da herança; Filiação.

ABSTRACT

The article aims at analyzing the excessive weight of the inheritance of the 60's generation over youth today. It focuses on the historicity of the movements of that decade, be it from the point of view of its affiliations, or of its non-homogeneity, with the objective of understanding the process that built the myth of the 1960's, over the years, and of the identity figuration of its generation, diluting the complexity, the heterogeneity, the conflicts, the inheritances and the historical contextualization of the movements. The identification of the later generations with the myth of the generation of the 60's, that has become manifest episodically, indicates the imprisonment of the younger generations by the image of a heroic identity of the previous generation. This points to an absence of a movement to separate the generations, and thus, of the production of a generational difference, and of the difficulties of receiving the inheritance, i.e., of the possibility of the making of a new affiliations.

Keywords: 60's generation; Experience and revolt; Political movements and counterculture; Inheritance transmissions; Affiliations.

Os escritos sobre a geração de jovens dos anos de 1960 têm se caracterizado, desde então, por apontar a profunda mutação cultural produzida pelos diversos movimentos daquele momento, ao mesmo tempo em que acentuam os efeitos dessas mudanças sobre as gerações seguintes. Essas gerações seriam herdeiras das mudanças advindas com os movimentos sociais daqueles anos, que prosseguem, em parte, nos anos de 1970: as transformações da imagem da mulher, com o feminismo; a liberação sexual; as modificações na estrutura da família; a entronização do modo jovem de ser como estilo de vida; a flexibilização das hierarquias e da autoridade; a construção de novas relações entre o adulto e o jovem e o adulto e a criança; a criação de um novo imaginário da fraternidade; a introdução do "novo" na política; a emergência das questões ecológicas como se fossem também políticas, para ficar com algumas das referências mais destacadas.

As mudanças decorrentes do movimento histórico de uma geração - de amplitude internacional, mas com características particulares nos seus diversos contextos -, ao se congelar em uma unidade imaginária, "geração anos 60" ou "geração 68", preservam o que seria seu menor denominador comum, ao mesmo tempo em que perdem sua historicidade. Esse processo constrói a identidade heróica de uma geração, cujo peso para as gerações posteriores tem sido considerável, senão desmedido1 1 . Essa questão aqui abordada resulta de uma percepção relativa a greves recentes do movimento estudantil, nas quais a geração atual de estudantes, em certos momentos, via-se realizando um "novo 68", tendo sido assim reconhecida, em algumas situações, por figuras da geração anterior, contemporânea aos acontecimentos de 1968. .

Os movimentos dos anos de 1960, seja na sua expressão mais propriamente política, seja na contracultural, ou mesmo nos modos em que combinaram essas expressividades, tiveram como traço característico a transgressão de padrões de valores estabelecidos. Transgressão não no sentido de uma pura negatividade, ou de uma negação absoluta dos limites estabelecidos, mas de um movimento que os atravessa afirmando novos limites. Em outros termos, um movimento que é de negação de valores estabelecidos mas que na sua face positiva se lança no risco da afirmação de novos valores.

Pode-se dizer que os movimentos políticos, especialmente os do ano de 1968 ou que a ele estiveram referidos como antecedentes ou desdobramentos, caracterizados pela simultaneidade de suas manifestações em diversos países do mundo - nos do capitalismo central, na América do Norte e na Europa, e nos da periferia desse sistema, na América Latina, na África do Norte, na Ásia, incluindo alguns países do Leste Europeu, sob a experiência do "socialismo real" -, transgrediram as formas tradicionais de ação política que caracterizavam a esquerda até então. Os jovens contestadores que realizaram esses movimentos negavam as práticas e as concepções dos partidos tradicionais da esquerda. Ou eram dissidentes desses partidos, formando novas organizações políticas, ou participavam do grande contingente de massa que realizava as manifestações de protesto, recusando qualquer vinculação partidária e posicionando-se de fato fora da esfera de poder de qualquer organização. A experiência desses jovens, nesse momento histórico, teve a marca do que se pode chamar de "cultura-revolta". Essa noção é aqui utilizada a partir de sua construção em Julia Kristeva (2000), central em seu livro, no qual, para pensar a atualidade política, diagnostica o que chama de "impasse da revolta" que a caracterizaria. Para realizar essa análise, lança mão da psicanálise (Freud) e de textos literários (Aragon, Sartre, Barthes), referências fundamentais do século XX. Kristeva considera a "necessidade de retomar a noção de revolta" para realizar a análise sobre o momento atual. Tomando como referências históricas da atualidade as "democracias pós-industriais e pós-comunistas", aponta o "vazio de poder", a "ausência de projeto", sinais da "nova ordem mundial" que aparece como uma ordem "normalizadora e falsificável", o que justificaria sua interrogação sobre a possibilidade ou não da revolta. Resumindo, e certamente perdendo os passos da análise fina que Kristeva realiza, estaríamos atualmente "entre dois impasses: fracasso das ideologias revoltadas, por um lado, enxurrada da cultura-mercadoria, por outro". Após o diagnóstico desse fracasso, Kristeva reafirma a necessidade de retomar a questão da revolta, apontando, a partir de Freud, o que a psicanálise nos diria: "a felicidade só existe ao preço de uma revolta. Nenhum de nós se satisfaz sem enfrentar um obstáculo, uma proibição, uma autoridade, uma lei que nos permita nos avaliar, autônomos e livres" (Idem, pp. 19-23).

Um escrito de Marcuse, de 1976, em que ele refletia sobre os acontecimentos de 1968, expressa esse caráter ao mesmo tempo de negação do existente e de suas práticas políticas, incluindo as da esquerda tradicional, e de afirmação de algo novo por meio de também novas formas de luta. Ele afirma que

[...] a originalidade do movimento [foi] ter produzido uma nova definição de revolução [grifos do autor], colocando-a em relação com novas possibilidades de liberdade, novas potencialidades do desenvolvimento socialista, ao mesmo tempo produzidas e bloqueadas pelo capitalismo avançado. Novas dimensões abriram-se assim para a transformação da sociedade [grifo meu]. De agora em diante, essa transformação não pode ser apenas uma subversão econômica e política, isto é, o estabelecimento de um outro modo de produção e de novas instituições; trata-se antes de tudo de subverter o sistema dominante de necessidades e suas possibilidades de satisfação (Marcuse apud Garcia, 1999, p. 16)2 2 . Essa passagem, relativa à idéia de transformação da sociedade, é elucidativa da aceitação na obra de Marcuse das heranças de Marx e de Freud, deslocadas e reinterpretadas. O trecho citado por Garcia está em Actuels, de Marcuse, de 1976 (Paris, Galilée, p. 14). .

As grandes manifestações de massa contra a guerra do Vietnã, as lutas contra a discriminação racial e as manifestações estudantis, nos Estados Unidos, o "maio de 68" na França, os movimentos estudantis que irromperam em diversos países do mundo e a Primavera de Praga foram interpretados como expressão de uma "rebelião mundial", pela sua extensão, pela aproximação dos ideais, pelas práticas políticas semelhantes e pela participação em massa de jovens. Rompendo com as práticas políticas tradicionais, essas manifestações propunham uma "nova definição de revolução", mantendo o nome herdado da tradição porém redefinindo seu significado e sua prática. Pode-se dizer, sem entrar na discussão conceitual que envolve a noção de revolução na tradição moderna e nas novas formas de expressão assumidas pelos movimentos sociais dos anos de 1960, que estava ocorrendo, naquele momento, uma "experiência de revolta", como movimento de questionamento da concepção e das práticas das experiências históricas da tradição revolucionária moderna.

Essa experiência de revolta estava na base das problematizações construídas pelo pensamento (na filosofia e nas ciências humanas)3 3 . De Certeau (1982, p. 50) aponta na "ciência histórica" uma inflexão, importante nos anos de 1960, no que se refere às relações necessárias com outras disciplinas, que a partir daí, mas em momentos diversos, pode ser percebida como também tendo ocorrido nas ciências humanas e sociais: "a pesquisa não se põe mais, apenas, em busca das compreensões que tiveram êxito. Retorna aos objetos que não compreende mais". Constrói uma "cientificidade ampliada que se confronta com as zonas que abandona como seu resíduo ou reverso ininteligível", o que conduz à construção de novos objetos e novas abordagens. , presente nas formas de expressão artística e nas ações de caráter propriamente político. Como questionamento e transgressão dos limites estabelecidos, a experiência de revolta instaurava um movimento que visava a pôr em xeque fundamentalmente o poder instituído, a partir da contestação de suas práticas (na qual esteve presente o recurso da violência, que convivia com ideais pacifistas), mas sobretudo dos valores que sustentavam o funcionamento do "sistema". Os temas desses movimentos sociais formavam o espectro das grandes questões do século XX. Algumas dessas questões não eram propriamente novas: provinham do abalo político, cultural e ético provocado pela Segunda Guerra Mundial. Herança da geração que viveu a guerra, esses temas foram retomados e reinterpretados a partir de experiências políticas do pós-guerra e dos anos de 1950: a revolução socialista chinesa, a guerra da Coréia, a guerra da Argélia, as lutas de libertação contra os colonialismos em vários lugares, a "descoberta" do totalitarismo sob o socialismo, a partir dos fatos que vieram à luz sobre o stalinismo, e, no final dos anos de 1950, início da década seguinte, as lutas de libertação na América Latina, em especial a experiência de Cuba e da guerrilha.

Essa apropriação que não significou mera repetição, mas recontextualizações, deslocamentos, redefinições, interpretações, novas questões. Por que a guerra? Por que as guerras? Por que o extermínio? Por que a tortura? Por que o racismo? Por que o totalitarismo, o autoritarismo e as ditaduras? Por que a violência? Há uma violência legítima? O que é o socialismo real? O que é o socialismo? O que é a revolução? O que é autoridade? O que é dominação? O que é liberdade?

A experiência da revolta constitui-se nesse momento histórico dos anos de 1960 como movimento de negação e de abertura. Atravessar os limites estabelecidos era negar o poder que faz a guerra, que extermina populações, que tortura, que produz o racismo e o sustenta, que se transfigura em terror de Estado sob o capitalismo, mas também sob o socialismo real. Negar o poder que é violência, que petrifica as instituições. Como movimento, era também projeção de um dado futuro (um novo horizonte, novos limites), que não se fixava em uma recusa, mas projetava ideais de liberdade. Movimento nomeado de diversos modos, que indicavam concepções teóricas e práticas não homogêneas e mesmo conflitantes, as lutas de libertação, as lutas antiautoritárias, as lutas "revolucionárias" da geração dos anos de 1960 tinham em comum o questionamento da situação presente e o objetivo de uma transformação social.

Essas lutas, embora não homogêneas nos seus discursos e nas suas práticas, foram contemporâneas nesse contexto histórico e tiveram em comum o fato de se constituir em experiências de revolta e visar a uma transformação social. As lutas de libertação tiveram tanto o caráter de lutas nacionalistas como socialistas. As lutas revolucionárias eram propostas a partir do espectro ampliado da noção de revolução: desde a forma clássica das revoluções socialistas do século XX até os novos sentidos atribuídos à revolução, como novas possibilidades de liberdade e novas potencialidades de desenvolvimento e realização do socialismo, que emergem a partir da crítica às experiências do socialismo real. O que as distingue das assim chamadas lutas antiautoritárias é fundamentalmente o modo de conceber o poder e, conseqüentemente, as formas de luta. As lutas de libertação e as lutas revolucionárias visam à tomada do poder e o concebem como o lugar da dominação e da repressão. As lutas antiautoritárias (e seus desdobramentos nos anos de 1970) foram assim nomeadas por Michel Foucault a partir de uma concepção precisa do poder como "relação de poder". Diversamente dos enfoques que definiam o poder pelo aspecto da repressão, o que ele propunha era analisar as relações de poder por meio do antagonismo de suas estratégias, o que é exemplificado pelas oposições que se teriam desenvolvido naqueles anos: "oposição ao poder dos homens sobre as mulheres, dos pais sobre os filhos, do psiquiatra sobre o doente mental, da medicina sobre a população, da administração sobre os modos de vida das pessoas". Essas lutas eram "transversais", não limitadas a um país; eram "imediatas", contestavam o poder mais próximo e não esperavam soluções dos problemas no futuro ("isto é, liberações, revoluções, fim da luta de classe"), "lutas anárquicas"; lutas contra o "governo da individualização" e a afirmação do "direito de ser diferente"; "lutas contra os privilégios do saber"; lutas que giram em torno da pergunta "Quem somos nós?". Essa análise está presente no texto "O sujeito e o poder", de Foucault, de 1982 (cf. Foucault, 1995, pp. 234-235).

As experiências de revolta também tiveram como ideal "mudar a vida"4 4 . Essa noção, presente nos anos de 1960 como reinterpretação a partir desse contexto histórico, é tomada de uma tradição, a do movimento do surrealismo, que procurava conciliar o "transformar o mundo" de Marx com o "mudar a vida" de Rimbaud. Releituras e reinterpretações de uma tradição herdada, realizadas pelos movimentos dos anos de 1960 sobre o surrealismo da década de 1920, e pelo surrealismo sobre Rimbaud (século XIX). Cf. para essa discussão sobre o caráter de revolta do surrealismo, o livro de Camus, O homem revoltado (1997, pp. 115-123). , tema característico dessa década, presente sobretudo, mas não exclusivamente, nos movimentos contraculturais. Expor os grandes traços dos movimentos de jovens dos anos de 1960 envolve o risco de torná-los uma geração caricaturada. O objetivo aqui é chamar a atenção para esse risco, quando essa geração passa a ser tratada pelos seus "herdeiros" como uma categoria vazia, sem historicidade. Sem condições de desenvolver detalhadamente análises sobre esses movimentos nos diversos países em que irromperam, sobre os movimentos de natureza mais propriamente política e sobre os contraculturais, pode-se, no entanto, alertar para o fato de que eles não foram homogêneos, apesar de apresentar questões comuns e ter um perfil jovem. A contracultura aconteceu como movimento preponderantemente nos Estados Unidos, embora traços dela tenham estado presentes em outros países. Os movimentos de caráter mais político também tiveram traços contraculturais, assim como os movimentos contraculturais, que, embora rejeitassem fortemente as maneiras de fazer política de seus jovens contemporâneos, também se viam fazendo política a seu modo. Assim, "mudar a vida" condensa uma diversidade de significados e esteve presente como ideal em vários lugares, tanto nas práticas cotidianas como nos ideais sociais, políticos, culturais e éticos alternativos aos existentes.

Os movimentos contraculturais, que irromperam com força nos Estados Unidos, direcionaram suas formas de expressão para a política, as artes (na poesia, na música, no cinema, nas artes plásticas), a educação, as relações intersubjetivas (na família, no amor, no sexo, na comunidade) e para o cotidiano como contestação aos efeitos produzidos pela sociedade industrial avançada, pela "tecnocracia"5 5 . Indicativo da combinação entre as expressões contraculturais e as mais propriamente políticas é o trecho do manifesto afixado à entrada principal da Sorbonne, em maio de 1968, do qual restou como mais conhecida a frase final, como lema de 1968: "A revolução que está começando questionará não só a sociedade capitalista como também a sociedade industrial. A sociedade de consumo tem de morrer de morte violenta. A sociedade da alienação tem de desaparecer da História. Estamos vivendo um mundo novo e original. A imaginação está tomando o poder" (Roszak, 1972, p. 33). . Na sua forma "organizacional" mais desenvolvida, caracterizada pelos processos de racionalização em grande escala, pela eficiência, pela modernização, pelo planejamento, a sociedade norte-americana (a que melhor realizou esse modelo), instaurando a era da "engenharia social", ampliava a administração para além do núcleo econômico-industrial. O modo de vida, o lazer, a educação, a política, a cultura como um todo tornavam-se administráveis e administrados6 6 . Esse tipo de análise, com algumas diferenças, foi desenvolvido em 1968 e 1969 por Roszak (1972), Birnbaum (1968) e Lefebvre (1968), e já vinha sendo construída por Marcuse (1967), em 1964. Escritas no momento em que aconteciam os movimentos, essas análises têm o caráter de textos analíticos, de referências para o pensamento e as ações contraculturais naquele contexto histórico, constituindo-se, ao mesmo tempo, em verdadeiros documentos da época. Os livros Eros e civilização, de Marcuse, de 1955, e Vida contra morte, de Norman Brown, de 1959, que abordavam preponderantemente a questão da subjetividade por meio de uma leitura da psicanálise, também foram referências importantes para o movimento contracultural (cf. Marcuse, 1968; Brown, 1972). .

Talvez se possa dizer que o conflito de gerações sob a contracultura tenha sido mais acentuado. A ruptura com a geração anterior teria sido mais radical, especialmente no que se refere às experiências com as drogas psicodélicas, ao misticismo oriental e às vivências em comunidade, experiências que, embora remontem a tradições anteriores, ao estarem articuladas em movimentos coletivos de contestação a certo modo de vida, com produções na literatura, na música e nas artes plásticas, podem ser consideradas uma invenção dos anos de 1960. Essa geração empreendeu a busca de novas formas de sensibilidade que se tornaram radicalmente críticas em relação às da geração de seus pais, que era considerada aprisionada a uma rotina conformista. Birnbaum constrói uma reflexão sobre essa questão que vale a pena ser incorporada:

[...] a geração oriunda da elite da sociedade industrial e de sua intelligentsia técnica negou tanto a legitimidade quanto a eficácia dos métodos de ensino que seguiu. Passou do descontentamento e da desobediência para a revolta. Fazendo isso, não hesitou em estender sua campanha contra as instituições políticas centrais da sociedade. Podemos notar de passagem que ela freqüentemente indicou, pelo estilo das relações interpessoais que adotou, por seu comportamento e sua maneira de vestir, o seu desprezo para com as convenções seguidas por seus pais. Resumindo, aqueles a quem a sociedade industrial oferecia perspectivas de futuro assegurado voltaram-lhe as costas e procuraram avançar para o desconhecido: para uma hipotética comunidade de justiça, de razão e de alegria (1968, p. 195).

Afirmar que uma experiência de revolta marcou essa geração e que seu traço foi a transgressão dos valores estabelecidos não significa que essa experiência tenha sido generalizada, nem inteiramente originária nos anos de 1960. A noção de traço, entendida na acepção de uma marca distintiva, permite, a partir da identificação de sua presença ou ausência, explicitar momentos em que a geração dos anos de 1960 poderia ser caracterizada como uma experiência de revolta, assim como outros em que essa experiência estaria ausente. A possibilidade dessa percepção é importante na medida em que permite questionar o mito que foi sendo construído sobre essa geração, quando sua imagem se congela na forma de uma unidade imaginária.

A experiência de revolta tal como está sendo pensada é, antes de tudo, um movimento de questionamento de limites estabelecidos, negando, reinterpretando e projetando valores. Nesses termos, pode ser considerada um movimento de "desidentificação permanente", de revolta contra as identidades, e de afirmação de outros limites (valores). A revolta não se confundiria nem com a negação absoluta (a revolta absoluta), como já foi dito, o que levaria a uma abolição de limites a partir de uma "liberdade ilimitada do desejo" (de um "gozo pleno"), nem propriamente com a revolução que, ao pautar-se pelas ideologias do consentimento unânime, trairia suas origens revoltadas. A experiência de revolta não pode estar desprovida, ainda, de memória, que permitiria a criação de uma tensão permanente, necessária ao exame dos acontecimentos na história, entre o que seria revolta e o que seria "traição da revolta" - a petrificação de um consenso ou a inexistência de qualquer referência à lei, a algum limite, ambas situações que podem estar na raiz das sociedades autoritárias e mesmo totalitárias. Há uma passagem do livro de Camus (1997) que resume bem essa questão:

O predomínio absoluto da lei não é a liberdade, mas também não o é a disponibilidade absoluta. Todos os possíveis somados não dão a liberdade, mas o impossível é escravidão. O próprio caos também é uma servidão. Só há liberdade em um mundo onde o que é possível e o que não o é se acham simultaneamente definidos. Sem lei não há liberdade" (p. 92)7 7 . Essa construção sobre o significado da experiência da revolta foi realizada a partir de Kristeva (2000) - em especial o capítulo "Sartre, ou 'Temos razão de nos revoltar'" - e de Camus (1997). .

Como já foi apontado, há traços na geração dos anos de 1960 que podem ser considerados herdados da geração que viveu a experiência da Segunda Guerra Mundial e do pós-guerra. Questões construídas no registro daqueles contextos históricos, mas que foram retomadas e reinterpretadas na atualidade dos acontecimentos da década de 1960, o que significa dizer que a experiência de revolta dessa geração tem uma história e uma memória. Considerar essa geração como herdeira de traços de experiências de revolta da geração anterior significa apresentá-la na perspectiva de uma linhagem e, portanto, de uma filiação. Como em toda herança, algo se impõe à geração seguinte - ideais, modos de pensar, visões de mundo - e é recebido antes mesmo de ser escolhido, o que constituiria seu aspecto de passividade. No entanto, a herança não se restringe a essa característica: outra, talvez mais importante, é a da escolha daquilo que é recebido. Essa escolha é o movimento que parte de uma decisão de reafirmar a herança, não apenas aceitá-la, mas "relançá-la de outra maneira", reinterpretá-la, criticá-la, deslocá-la, transformá-la. Diante dessa dupla injunção pode-se falar, então, na possibilidade de uma filiação.

Filiação não é a mesma coisa que repetição e, portanto, não é nem uma fatalidade, nem uma incorporação cega de referências da geração anterior; aquilo que pode ser considerado uma continuidade entre gerações supõe sempre uma separação. Os aspectos de continuidade (que não é a reprodução do mesmo), de diferença e, no limite, de negação (que não é absoluta, mesmo quando aparenta ser) resultam daquela dupla injunção acima referida, constituindo-se nos movimentos que conferem historicidade às gerações. Embora possa parecer mais evidente considerar os movimentos de separação de uma geração em relação à precedente a partir do ângulo do que é negado, continuidade também implica separação, ou não se poderia falar em diferença geracional. Para que possa haver elementos de continuidade na herança e se possa identificar uma filiação possível, é preciso que sejam realizados os movimentos de separação entre as gerações, condição mesma para definir o que seja ela8 8 . Essa discussão sobre a noção de geração foi proposta e está desenvolvida no meu texto "A questão da geração", ainda não publicado. Para a construção dessa discussão foi valiosa a leitura do diálogo entre Derrida e Roudinesco, "Escolher sua herança" (2004). .

Afirmar, então, que a geração dos anos de 1960 foi marcada pelo traço de uma experiência de revolta e que essa experiência herdou outros tantos traços de uma tradição anterior não pode levar ao entendimento de que teria havido uma repetição. O que houve, do ponto de vista de uma continuidade, constituiu-se em leituras e releituras dessa tradição, reinterpretações, críticas, deslocamentos, nos termos em que se definiu o movimento da herança, em que está pressuposta uma separação.

Os movimentos dos anos de 1960 foram marcados por uma característica que pode ser considerada inédita em relação à geração precedente: sua irrupção quase simultânea no plano internacional. Embora guardassem as especificidades de suas realizações singulares, tiveram, sem dúvida, os traços de uma contestação do poder nas suas diversas manifestações. Atentando para as referências mais significativas, sem esgotá-las, pode-se dizer que a contestação visava desde ao poder de Estado, em especial sua manifestação militar na guerra do Vietnã, passando pelo poder universitário em inúmeras universidades do mundo, até a suas manifestações em vários âmbitos da cultura e da subjetividade: o poder médico sobre o doente, o poder psiquiátrico sobre o doente mental, o poder masculino sobre as mulheres, o poder paterno sobre os filhos, o poder dos adultos sobre os jovens, o poder da moral tradicional sobre os costumes e os comportamentos. Vários desses movimentos, que mobilizaram temáticas que guardavam uma proximidade maior ou menor com suas tradições de revolta, ainda que tivessem uma dimensão internacional, não foram, de modo algum, homogêneos. Atravessados por divisões e disputas de caráter político e ideológico, não se constituíram como movimentos identitários. Essas divisões e disputas em certos casos significaram orientações dos movimentos ou de parte deles, que não tinham propriamente um conteúdo de revolta, mas expressavam reivindicações direcionadas a uma maior inclusão na sociedade. Os movimentos estudantis, mesmo os de maio de 1968, manifestaram esse tipo de divisão: desde a posição radical de negação da universidade burguesa até posições de modernização da universidade que visavam a uma maior inclusão dos egressos, em um momento em que já era visível a situação de "perda de valor da escola" e de incapacidade de absorção pelo mercado de trabalho de uma qualificação em massa (cf. Rossanda, 1971; Morin, 1968; Touraine, 1968)9 9 . Sem poder tratar dessa questão em outras manifestações, é preciso ao menos fazer referência ao movimento operário, que no "maio de 1968" apresentou esse tipo de divisão, e aos movimentos da contracultura, que, pela sua quase imediata absorção pelo "sistema", revelaram com força o aspecto de adaptação. .

Destacar a historicidade desses movimentos, seja do ponto de vista de sua linhagem e filiação, seja da não-homogeneidade de suas realizações, é importante para acentuar, em contraposição, o processo de construção dos mitos dos anos de 1960, que se inicia já em 1968-1969. Esse processo de depurar os movimentos de sua história, construindo identidades onde antes havia concepções heterogêneas e conflitantes, construindo o mito até o limite mesmo da produção de verdadeiras caricaturas, é resultado da lenta assimilação, das apropriações e da normalização a que as idéias e as práticas daqueles movimentos estiveram sujeitas nos anos que se seguiram. Quando se produz o mito, com o congelamento de uma imagem identitária, o que se estanca é o movimento da história e da memória (a historicidade dos movimentos), anulando a perspectiva de uma referência histórica maior que vá além dos estreitos limites da década, assim como os aspectos de heterogeneidade e conflito que caracterizaram aqueles movimentos.

Ao retomar textos publicados em 1968-1969, foi possível identificar a preocupação, já naquele momento, com a assimilação dos ideais e das práticas dos movimentos contraculturais, percebida como parte de um processo de apropriação por parte das campanhas publicitárias em escala mundial. Esse processo é visto como uma depuração ou "ofuscação" do caráter de contestação da contracultura, quando a "rebeldia jovem" se torna "espetáculo divertido para a sociedade opulenta" e se confirma a "debilidade de seu relacionamento cultural com os desprivilegiados". Aponta-se nesse momento o caráter de exotismo que estaria sendo cada vez mais atribuído à contracultura e o risco de sua redução a um "conjunto pitoresco de símbolos, gestos, maneiras de vestir e slogans, aceitos sem maior exame". É interessante notar, ainda, a percepção naquele momento, e hoje tão mais evidente, de que a contracultura "terminará como um estilo temporário, continuamente deixado para a nova geração de adolescentes: um começo promissor que jamais vai adiante". Essa destinação seria o resultado da situação a que estaria exposta a cultura da juventude já nesse momento: a "atmosfera de novidade que a envolveria e que lhe daria o caráter de moda passageira" (Roszak, 1972, pp. 79-81)10 10 . O livro de Roszak foi publicado nos Estados Unidos em 1968-1969, com o título The making of a counter culture. . Vale destacar a percepção de Marcuse, manifestada em junho de 1968, a respeito da dimensão midiática que seu pensamento e seus escritos adquirem: "Estou muito preocupado com isso. [...] Ao mesmo tempo, porém, trata-se de uma bela constatação de minha filosofia de que nesta sociedade tudo pode ser assimilado, tudo pode ser digerido" (Marcuse, apud Roszak, 1972, p. 80)11 11 . A citação original encontra-se no artigo de Marcuse, "Varieties of humanism", Center Magazine (Center for the Study of Democratic Institutions, Santa Barbara, junho de 1968, p. 14). .

O processo das diversas formas de apropriações políticas e ideológicas produziu uma assimilação dos aspectos mais digeríveis pela ordem social, alguns de modo mais imediato, como os indicados acima, outros de modo mais lento, nos anos posteriores. Nos resultados desse processo predominaram os aspectos provenientes dos movimentos contraculturais, especialmente os relativos à esfera dos comportamentos, com destaque para o que foi assimilado como liberação sexual. Os aspectos de caráter político ficaram relativamente mais apagados, em virtude da crise dos valores socialistas e do colapso da idéia de revolução (nas suas diversas versões), já nos anos de 1970, mas sobretudo a partir do início da década de 1990 (cf. Cardoso, 2001; Mantega, 1979). O movimento feminista, por exemplo, como parte dos movimentos de 1968, é expressivo de uma não-homogeneidade interna, de retomada de uma tradição de lutas reivindicativas pela emancipação feminina, com destaque para a das sufragistas inglesas em 1919, que adquire uma dimensão internacional com forte expressão nos Estados Unidos, na França e na Alemanha, espalhando-se para outros países a partir dos anos de 1970. Como movimento, trouxe para a pauta cultural questões relativas à sexualidade feminina, ao direito de aborto, ao direito à escolha da contracepção, aos papéis institucionalizados no interior da família de esposa e mãe, assim como outras relativas ao mundo do trabalho. Marcado por intensas divergências quanto à orientação política, desde o início (as apropriações políticas e ideológicas), o movimento feminista constituiu-se em um dos casos expressivos do processo de assimilação que foi lentamente depurando os aspectos de contestação e sobretudo obscurecendo o caráter de movimento cultural, até ficar reduzido a algumas conquistas usufruídas hoje normalmente pelas novas gerações (sem dúvida importantes), mas sem que elas possam ter a dimensão histórica desses comportamentos como resultados de amplos movimentos de natureza política e cultural (cf. Haug, 1999).

Esse processo foi construindo, ao longo do tempo, o mito dos anos de 1960 e de sua geração, diluindo a complexidade, a heterogeneidade, os conflitos, as heranças e a contextualização histórica dos movimentos. A construção do mito obscurece os traços das experiências de revolta e transforma em identidade o que foi pluralidade e movimento de desidentificação. Desse modo, é construída a figuração identitária da geração dos anos de 1960 ("a geração 68"), a caricatura, cujos traçados expressam a simplificação do que veio sendo assimilado e normalizado.

A identificação com o mito tem se manifestado episodicamente, em alguns momentos com maior visibilidade, permitindo a percepção de um aprisionamento das gerações mais jovens pela imagem da geração anterior. O que aprisiona, ou, mais precisamente, o que captura, é a imagem de uma identidade heróica cujo peso é desmedido para as gerações posteriores. Esse aprisionamento é indicativo da ausência de um movimento de separação entre as gerações, o que leva a pensar, no limite, que esse processo explicita as dificuldades de recebimento de uma herança, nos termos em que ela foi definida anteriormente, enquanto possibilidade de ser relançada de outra maneira, de ser interpretada. Essa dificuldade é a mesma que a geração mais jovem enfrenta ao colocar-se uma posição de herdeira, apesar de ela se ver, sobretudo nas situações de caráter político, como portadora do "espírito de 68", realizando um "novo 68", e algumas vezes encontrando reforço dessa posição nos "remanescentes" da geração anterior. Ao adotar essa postura, os jovens da geração atual oscilam entre os pólos do que seria uma mesma posição: ou se vêem como representantes autorizados daquela experiência, ou medem suas atuações pelo que julgam ser os parâmetros de 1968, diante do que se sentem desvalorizados. Ao confundir herança com repetição e identificar-se com os traços simplificados da caricatura, essa geração, presa ao mito, recebe não a herança, mas o fardo da geração anterior.

No registro dos costumes e dos comportamentos, a identificação com a imagem congelada das liberações de 1968 produz a crença imaginária de sua efetividade. Entre as possíveis referências, talvez a mais recorrente delas seja a da liberação sexual, em que as posições parecem oscilar entre o "tudo já foi realizado, resta usufruir" (o que pode ser encarado como a constrição à liberação total) e a percepção do caráter de exotismo dos movimentos dos anos de 1960, em seu lado alegremente pitoresco.

Outra característica importante da geração dos anos de 1960 para a compreensão do seu peso desmedido para as gerações seguintes é o traço da onipotência, manifestado especialmente em 1968. Esse traço, já apontado por outros autores (cf. Trigo, 1997), esteve presente em alguns dos lemas de 1968 que não podem ser desconsiderados, a despeito de terem sido, de modo quase generalizado e de maneira unívoca, lidos e interpretados no registro da utopia do movimento como a "grande recusa" que instaurava a "imaginação no poder". Alguns desses lemas foram bastante expressivos dessa posição: "peçamos o impossível" (o mais explícito deles), "é proibido proibir", "gozar sem entraves", "tutto e subito"12 12 . Esses lemas foram citados em Matos (1981) e em Trigo (1997). Trigo refere-se à experiência da geração de jovens dos anos de 1960 em São Paulo como marcada pelo "imediatismo onipotente" e pela ausência de "aprendizado da postergação". Ver ainda, para o registro de outros lemas, Barbey (1998). , e não se restringiram ao maio de 1968 na França, mas deram o tom da contestação aos movimentos onde quer que eles tenham irrompido, e apesar de suas particularidades.

Esse traço de onipotência presente nesses movimentos, que pode ser interpretado, no registro antes aqui exposto, como expressão de uma "revolta absoluta" ("negação absoluta"), é indicativo das perspectivas de abolição de limites, a partir do que se imaginava uma "liberdade ilimitada do desejo": a imaginação (ilimitada do desejo) no poder. A possibilidade desse tipo de leitura, realizada mais facilmente hoje, de um "gozo pleno" imaginário como traço de onipotência, presente nos movimentos, permite a compreensão da dimensão heróica atribuída à geração dos anos de 1960, cujo peso torna-se excessivo para as gerações seguintes. Parece ter havido um deslocamento, no qual onipotência passa a significar heroísmo.

A partir dessa possibilidade de leitura, poder-se-ia avançar a hipótese de que aquilo que o registro do "impossível" não pôde realizar (e nem poderia) teria ficado para a geração seguinte como um ideal a ser concretizado13 13 . Uma idéia semelhante relativa à relação entre as gerações, embora referida à questão das toxicomanias, está presente em Melman (1992). Há também uma referência próxima a essa no artigo "A juventude como sintoma da cultura", no qual, referindo-se aos adolescentes de hoje, Maria Rita Kehl constata a "angústia diante da demanda de gozar ilimitadamente, em nome dos sonhos de seus pais", como se esses adolescentes tivessem "herdado a obrigação de realizar os sonhos [dos pais], bem além do que a nossa geração foi capaz de realizar" (2004, pp. 99 e 107). , ideal que se impõe como uma espécie de "resto" do que a geração dos anos de 1960 não pôde realizar porque imaginado no registro do impossível. Nesse sentido, o fardo da herança que recai sobre a geração mais jovem parece sobretudo advir da imagem heróica (onipotente) da geração anterior.

A dificuldade de percepção do peso desmedido da herança dos anos de 1960 pelas gerações mais jovens não impede que esse peso se imponha sobre elas sob a forma de uma captura. Essa dificuldade evidencia o fato de que a herança é pesada porque não foi transformada. Parece ter havido um impedimento (possivelmente decorrente da identificação com o mito e seu traço de onipotência) de atribuir historicidade aos movimentos daqueles anos, condição que criaria as possibilidades de interpretação da herança e dos modos diversos de nela inserir-se. A possibilidade de receber e escolher a herança, de estabelecer continuidades e diferenças, de relançá-la de outros modos implica o movimento de separação das gerações, de produção de uma diferença geracional - condição de uma filiação possível.

Texto recebido e aprovado em 26/9/2005,

Irene Cardoso é professora livre-docente do Programa de Pós-graduação em Sociologia da FFLCH-USP. E-mail: icardoso@usp.br.

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  • 1
    . Essa questão aqui abordada resulta de uma percepção relativa a greves recentes do movimento estudantil, nas quais a geração atual de estudantes, em certos momentos, via-se realizando um "novo 68", tendo sido assim reconhecida, em algumas situações, por figuras da geração anterior, contemporânea aos acontecimentos de 1968.
  • 2
    . Essa passagem, relativa à idéia de
    transformação da sociedade, é elucidativa da aceitação na obra de Marcuse das heranças de Marx e de Freud, deslocadas e reinterpretadas. O trecho citado por Garcia está em
    Actuels, de Marcuse, de 1976 (Paris, Galilée, p. 14).
  • 3
    . De Certeau (1982, p. 50) aponta na "ciência histórica" uma inflexão, importante nos anos de 1960, no que se refere às relações necessárias com outras disciplinas, que a partir daí, mas em momentos diversos, pode ser percebida como também tendo ocorrido nas ciências humanas e sociais: "a pesquisa não se põe mais, apenas, em busca das compreensões que tiveram êxito. Retorna aos objetos que não compreende mais". Constrói uma "cientificidade ampliada que se confronta com as zonas que abandona como seu resíduo ou reverso ininteligível", o que conduz à construção de novos objetos e novas abordagens.
  • 4
    . Essa noção, presente nos anos de 1960 como reinterpretação a partir desse contexto histórico, é tomada de uma tradição, a do movimento do surrealismo, que procurava conciliar o "transformar o mundo" de Marx com o "mudar a vida" de Rimbaud. Releituras e reinterpretações de uma tradição herdada, realizadas pelos movimentos dos anos de 1960 sobre o surrealismo da década de 1920, e pelo surrealismo sobre Rimbaud (século XIX). Cf. para essa discussão sobre o caráter de revolta do surrealismo, o livro de Camus,
    O homem revoltado (1997, pp. 115-123).
  • 5
    . Indicativo da combinação entre as expressões contraculturais e as mais propriamente políticas é o trecho do manifesto afixado à entrada principal da Sorbonne, em maio de 1968, do qual restou como mais conhecida a frase final, como lema de 1968: "A revolução que está começando questionará não só a sociedade capitalista como também a sociedade industrial. A sociedade de consumo tem de morrer de morte violenta. A sociedade da alienação tem de desaparecer da História. Estamos vivendo um mundo novo e original. A imaginação está tomando o poder" (Roszak, 1972, p. 33).
  • 6
    . Esse tipo de análise, com algumas diferenças, foi desenvolvido em 1968 e 1969 por Roszak (1972), Birnbaum (1968) e Lefebvre (1968), e já vinha sendo construída por Marcuse (1967), em 1964. Escritas no momento em que aconteciam os movimentos, essas análises têm o caráter de textos analíticos, de referências para o pensamento e as ações contraculturais naquele contexto histórico, constituindo-se, ao mesmo tempo, em verdadeiros documentos da época. Os livros
    Eros e civilização, de Marcuse, de 1955, e
    Vida contra morte, de Norman Brown, de 1959, que abordavam preponderantemente a questão da subjetividade por meio de uma leitura da psicanálise, também foram referências importantes para o movimento contracultural (cf. Marcuse, 1968; Brown, 1972).
  • 7
    . Essa construção sobre o significado da experiência da revolta foi realizada a partir de Kristeva (2000) - em especial o capítulo "Sartre, ou 'Temos razão de nos revoltar'" - e de Camus (1997).
  • 8
    . Essa discussão sobre a noção de geração foi proposta e está desenvolvida no meu texto "A questão da geração", ainda não publicado. Para a construção dessa discussão foi valiosa a leitura do diálogo entre Derrida e Roudinesco, "Escolher sua herança" (2004).
  • 9
    . Sem poder tratar dessa questão em outras manifestações, é preciso ao menos fazer referência ao movimento operário, que no "maio de 1968" apresentou esse tipo de divisão, e aos movimentos da contracultura, que, pela sua quase imediata absorção pelo "sistema", revelaram com força o aspecto de adaptação.
  • 10
    . O livro de Roszak foi publicado nos Estados Unidos em 1968-1969, com o título
    The making of a counter culture.
  • 11
    . A citação original encontra-se no artigo de Marcuse, "Varieties of humanism",
    Center Magazine (Center for the Study of Democratic Institutions, Santa Barbara, junho de 1968, p. 14).
  • 12
    . Esses lemas foram citados em Matos (1981) e em Trigo (1997). Trigo refere-se à experiência da geração de jovens dos anos de 1960 em São Paulo como marcada pelo "imediatismo onipotente" e pela ausência de "aprendizado da postergação". Ver ainda, para o registro de outros lemas, Barbey (1998).
  • 13
    . Uma idéia semelhante relativa à relação entre as gerações, embora referida à questão das toxicomanias, está presente em Melman (1992). Há também uma referência próxima a essa no artigo "A juventude como sintoma da cultura", no qual, referindo-se aos adolescentes de hoje, Maria Rita Kehl constata a "angústia diante da demanda de gozar ilimitadamente, em nome dos sonhos de seus pais", como se esses adolescentes tivessem "herdado a obrigação de realizar os sonhos [dos pais], bem além do que a nossa geração foi capaz de realizar" (2004, pp. 99 e 107).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Jan 2006
    • Data do Fascículo
      Nov 2005

    Histórico

    • Aceito
      26 Set 2005
    • Recebido
      26 Set 2005
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