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Rossi Sebag e Jean-Pierre Durand. La sociologie filmique: théories et pratiques. Paris, cnrs, 2020. 255 pp.

Sebag, Rossi; Durand, Jean-Pierre. La sociologie filmique: théories et pratiques. Paris: cnrs, 2020. 255 pp

A percepção de mundo suscitada pelas imagens em movimento ante o espectador é algo debatido desde os primórdios da disseminação dos cinematógrafos. Desse modo, a representação da realidade presente nos filmes é permeada por indagações acerca da constituição dessas obras de arte. Concebido como uma construção, o cinema é objeto de estudo na sociologia, destacando-se os esforços de Jacob-Peter Mayer (Sociology of film: studies and documents, 1946Mayer, Jacob-Peter. (1946), Sociology of film: studies and documents. Londres, Faber and Faber.), Ian Jarvie (Towards a sociology of the cinema, 1998Jarvie, Ian Charles. (1998), Towards a sociology of the cinema. Londres, Routledge.) e Pierre Sorlin (Sociologie du cinema, 2015Sorlin, Pierre. (2015), Sociologie du cinéma. Paris, Klincksieck.). No entanto, temas como a recepção, as instituições ou a análise interna das obras cinematográficas são abordados com diferentes medidas por esses autores. Ao abrir o escopo sobre a relação entre cinema e sociedade para outras áreas das Ciências Humanas, observam-se as reflexões de outros tantos pensadores, como por exemplo Walter Benjamin (1997Benjamin, Walter. (1997), L’œuvre d’art à l’époque de reproductibilité technique. Paris, Éditions Carré.), Merleau-Ponty (2011Merleau-Ponty, Maurice. (2011), Le visible et l’invisible. Paris, Gallimard.), Edgar Morin (2018Morin, Edgar. (2018), Le cinéma: un art de la complexité. Paris, Nouveau Monde Éditions.), Bill Nichols (2017Nichols, Bill. (2017), Introduction to documentary. Indiana, Indiana University Press.) e Siegfried Kracauer (2010Kracauer, Siegfried. (2010), Théorie du film. Rédemption de la réalité matérielle. Paris, Flammarion.). Assim, produção, realização e distribuição audiovisual ganham distintos contornos no decorrer da história do pensamento social.

Pois é nesse contexto que o livro de Joyce Sebag e Jean-Pierre Durand intitulado La sociologie filmique é lançado no final de 2020 pelo Centre National de la Recherche Scientifique (cnrs). Os autores buscam estabelecer um diálogo sobre as possibilidades de se praticar a sociologia pelo cinema - indo além de um estudo focado no campo cinematográfico (recepção, análise interna de filmes e instituições) ou sua instrumentalização para obtenção de dados. O surgimento deste novo fazer sociológico seria ancorado pelas teorias da sociologia associadas ao conjunto de técnicas cinematográficas necessárias para a elaboração de um documentário realizado pelo “sociólogo-cineasta”. Nesse sentido, os autores propõem uma ruptura das barreiras que separam os saberes da sociologia e do cinema diante de uma sociedade em que o audiovisual possui papel cada vez mais preponderante.

Os questionamentos envolvendo a constituição do que poderia ser chamado de sociologia fílmica perpassam os cinco capítulos do livro. A reflexão acerca do desempenho das imagens no mundo contemporâneo é realizada pelos autores há anos, com destaque à publicação Métiers du graphisme, lançada em 2011. Outra atividade fundamental para compreender o desenvolvimento da hibridação da sociologia e do cinema é a fundação, por ambos, em 1996, do Dees (Diplôme d’Études Supérieures Spéciallisées) Image et Société na Universidade d’Évry. Sebag e Durand partem então de uma análise em que questionam um arcabouço de metodologias arraigadas na tradição da sociologia, de tal forma que o pensar pela imagem ocupa um espaço fundamental na sensibilização dos grupos sociais.

Para os autores, a prática do sociólogo-cineasta proporciona uma reintegração do sensível no campo da disciplina por meio da realização de uma produção audiovisual. Para isso, como relatado na introdução do livro, a sociologia fílmica produz os conhecimentos “a partir do registro de imagens e sons [...], durante a decupagem [...] e enfim durante a montagem que os justapõe para criar sentido e visões inéditas” (p. 19, tradução nossa). Portanto, o questionamento da dimensão epistemológica do visível e do invisível diante do mundo sensível observado pelo pesquisador abarca três momentos que constituem a sociologia fílmica como um campo específico: o primeiro seria a filmagem e o registro dos fatos sociais por meio da observação direta; depois, a montagem que busca descobrir os elementos não vistos durante as filmagens; e, por fim, a exibição e a distribuição do documentário sociológico.

No percurso dos capítulos, a obra inicia com uma discussão envolvendo a sociologia fílmica e sua relação com o texto, de modo que o audiovisual irrompe como uma possibilidade de mostrar aquilo que facilmente “escapa” da escrita textual. Para tal, são citados alguns exemplos de como as relações de dominação e resistência ao trabalho são representadas pelos filmes. Por fim, as experiências do curso Image et société são colocadas de maneira a ilustrar os possíveis rumos estabelecidos por esse campo, mediante as convergências entre os sociólogos e os profissionais do cinema. O livro percorre a trajetória, no segundo capítulo, das imagens nas Ciências Sociais, desde a utilização das fotografias pelos etnólogos, passando pelo cinema documentário, até chegar à gênese da sociologia fílmica. O terceiro capítulo estende a discussão sobre a hibridação entre cinema e sociologia, ao debater o valor sociológico nas imagens e filmes por meio de um pensamento visual que permeia a sociedade. Nesse trecho, destaca-se como o documentário, visto como resultado de um processo, se coloca diante desse jogo de produção de sentido das imagens. O capítulo seguinte trata da questão da aproximação e distanciamento do sociólogo documentarista frente ao campo de pesquisa, observando as especificidades de uma abordagem que leva em consideração o audiovisual. No quinto e último capítulo são mostrados os percalços produzidos pelo “efeito do real” provocado pelas imagens em movimento. Sem deixar de lado os cuidados de uma entrevista filmada, o livro finaliza com a passagem desde Pierre Naville - um dos precursores da utilização das imagens nas Ciências Sociais - até as especificidades em representar as relações de dominação por meio do que seria a representação do “invisível do social”.

As discussões no livro se expandem a um arcabouço teórico-metodológico que resulta nas orientações de uma tese em sociologia fílmica composta por um documentário sociológico (trinta a sessenta minutos), acompanhado de uma reflexão escrita sobre o filme e sua inserção na própria disciplina. Para a efetivação de tal proposta, recorre-se a uma imersão sobre o uso da câmera como instrumento da observação participante (Malinowski, Bateson, Margaret Mead e Marcel Griaule) e sua difusão na primeira metade do século xx. Da fotografia documentária de Dorothea Lange, destaca-se o modo como a realidade social é retratada com uma sensibilidade particular. Passando pelo construtivismo soviético (Rodtchenko e Boris Ignatovitch) até à corrente fotográfica humanista francesa (Robert Doisneau e Henri Cartier-Bresson), chega-se à imagem em movimento por meio dos fundadores do cinema documentário (Robert Flaherty e Dziga Vertov). Os exemplos citados no livro vão além dos aqui mencionados e caracterizam uma imersão na utilização das imagens (fixas ou animadas) no meio social.

Desse modo, entre a utilização fotográfica da antropologia e o estabelecimento do cinema documental, a sociologia fílmica busca criar uma metodologia própria - como um continuum do documentário social, sendo ela capaz de representar simultaneamente um distanciamento e uma singularidade do olhar. Distinto do documentário militante, que exibe um ponto de vista compartilhado com os espectadores já sensibilizados com o tema representado, o documentário sociológico faria com que estes se questionassem diante da realidade que os cerca, possibilitando a construção de diferentes pontos de vistas em diversos públicos. Nesse sentido, Sebag e Durand partem da concepção de uma sociedade como um espaço multidimensional, forjada pelas lutas entre dominantes e dominados em interação por múltiplos campos. Nessa perspectiva bourdieusiana, a sociologia, como um “esporte de combate” (Bourdieu, 2001Bourdieu, Pierre. (2001), Science de la science et réflexivité. Paris, Raisons d’Agir.), tem um papel de fomentar a reflexividade nas lutas pela verdade sem cair em um absoluto. Ou seja, partir de um ponto de vista para a produção científica baseada na diversidade dos pontos de vista. Logo, a mudança de posicionamento e a reflexividade são os objetivos perseguidos pelo documentário sociológico.

Todavia, a qualidade do filme e o cuidado com os aspectos estéticos não são desprezados. Assim, o conceito de punctum, elaborado por Roland Barthes (1980Barthes, Roland. (1980), La chambre claire. Notes sur la photographie. Paris, Gallimard.), concebido como uma “porção de imagem que se projeta sobre o espectador”, é referenciado e destacado como algo presente nos filmes. Esses detalhes “agudos”, “pontudos”, tocam de alguma maneira o espectador. Reconhecendo sua importância, mas sem se fecharem na semiologia, os autores principiam um debate com Erving Goffman (1973Goffman, Erving. (1973), La mise en scène de la vie quotidienne. Paris, Minuit.), ao relatarem que “na sociologia fílmica, o realizador observa as interações e as filma em situação” (p. 159, tradução nossa). Porém, as ressalvas sobre essa abordagem surgem quando apontam que “a sociologia fílmica também deseja ir além da observação das interações para lidar com as estruturas sociais, as suas influências sobre elas e os fatores que explicam o comportamento e os valores” (p. 161).

Outro debate que se estabelece na obra é referente à percepção de que, para conservar um estado crítico, o espectador ativo não poderia deixar-se levar pelas emoções. Tal noção, sustentada por Bertolt Brecht, se contrapõe à percepção de Norbert Elias (1993Elias, Norbert. (1993), Engagement et distanciation. Paris, Fayard.) de que a vida social é um continuum de dois polos, distanciamento e engajamento, sendo as emoções o resultado de características de uma dada sociedade, época e grupo social. Para ele, por mais que o distanciamento ocorra de acordo com o aumento de conhecimento, não excluiria as relações afetivas e emocionais. Essa contenda é importante, uma vez que os filmes elaborados pelo sociólogo-cineasta têm como finalidade não apenas a realização do documentário sociológico, mas sua sensibilização para distintos públicos.

A preocupação com a exibição do filme é um fator que acompanha todo o livro, visto que o ato de retornar o conhecimento àqueles que o provêm seria fundamental nesta disciplina, como parte da estreita relação estabelecida entre os pesquisadores e os sujeitos representados. O engajamento de uma coletividade além dos contornos acadêmicos, defendido pelos autores, dialoga com as expectativas de Michael Burawoy (2009Burawoy, Michael. (2009), “Pour la sociologie publique”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 1-2 (176-177): 121-144, https://www.cairn.info/revue-actes-de-la-recherche-en-sciences-sociales-2009-1-page-121.htm.
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), quando afirmam que “a sociologia fílmica abre novas perspectivas à sociologia pública a partir da realização de documentários sociológicos compartilhados entre os sociólogos e os públicos” (p. 220, tradução nossa). Nessa temática, pode-se indagar também sobre os limites entre a produção e a disseminação de conhecimento. Afinal, apesar de esta obra realçar as minúcias desse campo específico, como a sociologia fílmica poderia dialogar com outras disciplinas já estabelecidas? Tal abordagem epistemológica não se esgota nesta publicação que visa a jogar luz em uma prática da sociologia em um mundo em constante transformação.

Afora tal questão sujeita a elucidações diante de um modo de produção de conhecimento repleto de possibilidades, Jean-Pierre Durand e Joyce Sebag (2011Durand, Jean-Pierre & Sebag, Joyce. (2011), Métiers du graphisme. Paris, Ministère de la Culture.) buscam, de forma ousada, “sistematizar o vaivém entre as teorias sociológicas (racionais, objetivantes) e o pensar pela imagem (o que proporciona um grande espaço ao sensível” (p. 224, tradução nossa). Apesar da complexidade do tema, a linguagem simples e as ilustrações proporcionam fluidez ao assunto discutido, que se desdobra como um convite à reflexividade do próprio leitor mediante esta distinta forma de compreender o mundo.

Referências bibliográficas

  • Barthes, Roland. (1980), La chambre claire. Notes sur la photographie. Paris, Gallimard.
  • Benjamin, Walter. (1997), L’œuvre d’art à l’époque de reproductibilité technique. Paris, Éditions Carré.
  • Bourdieu, Pierre. (2001), Science de la science et réflexivité. Paris, Raisons d’Agir.
  • Burawoy, Michael. (2009), “Pour la sociologie publique”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 1-2 (176-177): 121-144, https://www.cairn.info/revue-actes-de-la-recherche-en-sciences-sociales-2009-1-page-121.htm.
    » https://www.cairn.info/revue-actes-de-la-recherche-en-sciences-sociales-2009-1-page-121.htm.
  • Durand, Jean-Pierre & Sebag, Joyce. (2011), Métiers du graphisme. Paris, Ministère de la Culture.
  • Elias, Norbert. (1993), Engagement et distanciation. Paris, Fayard.
  • Goffman, Erving. (1973), La mise en scène de la vie quotidienne. Paris, Minuit.
  • Jarvie, Ian Charles. (1998), Towards a sociology of the cinema. Londres, Routledge.
  • Kracauer, Siegfried. (2010), Théorie du film. Rédemption de la réalité matérielle. Paris, Flammarion.
  • Mayer, Jacob-Peter. (1946), Sociology of film: studies and documents. Londres, Faber and Faber.
  • Merleau-Ponty, Maurice. (2011), Le visible et l’invisible. Paris, Gallimard.
  • Morin, Edgar. (2018), Le cinéma: un art de la complexité. Paris, Nouveau Monde Éditions.
  • Nichols, Bill. (2017), Introduction to documentary. Indiana, Indiana University Press.
  • Sorlin, Pierre. (2015), Sociologie du cinéma. Paris, Klincksieck.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2021
  • Aceito
    11 Out 2021
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