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Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador

RESENHAS

Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador

Fábio Cardoso Keinert

Doutor em sociologia pela USP

André Singer. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo, Cia. das Letras, 2012. 276 pp.

A maior virtude de Os sentidos do lulismo foi encontrar um ponto intermediário entre a análise da atual conjuntura político-eleitoral e a reflexão sobre dinâmicas históricas de longo prazo. Foi nesse registro que André Singer armou uma narrativa que apresenta rigor no tratamento dos dados eleitorais, observando mudanças decisivas nos padrões de voto, sem se descuidar do impacto de condicionantes mais abrangentes, ligados à formação social brasileira. O aspecto inovador do livro reside na mobilização de intérpretes do Brasil como meio de intelecção do mercado eleitoral, permitindo ao autor esquivar-se de tendência em que o manejo da análise se restringe à dimensão dos "hábitos e comportamentos do indivíduo".

A solução de Singer foi realçar a imbricação entre a vida política e a estrutura social, visível somente quando se escolhe o ângulo da perspectiva histórica. Esse tipo de abordagem evita tomar o jogo democrático como imune à divisão de classes. Ao contrário, trata-se de considerar o impacto, no cenário contemporâneo, do ritmo lento com que as feições aristocráticas da sociedade brasileira se dissolveram, levando a que suas fontes de poder se associassem justamente à atrofia da mobilização das camadas subalternas. O recurso à comparação com outros casos nacionais de modernização revelou-se central ao argumento do autor, uma vez que permitiu realçar os fatores que deram tônus à mudança social no Brasil, do século xix aos dias de hoje.

Não à toa, o conceito de "revolução passiva" de Gramsci é referência chave para André Singer, na medida em que revela os elementos que moldaram o ritmo vagaroso de uma modernização sem ruptura com o passado. Esse é o caso de nações de desenvolvimento econômico retardatário, em que a modernidade é implantada "de cima para baixo", não como resultado do conflito entre frações da elite, mas sob coalização heterogênea entre setores modernos e tradicionais da sociedade. Tal foi o caso descrito pelo autor italiano, em que o moderno se constituiu como pacto entre os industriais do norte e as elites agrárias do sul.

A caracterização, feita por Singer, do surgimento do "lulismo", nascido "sob o signo da contradição" (p. 9), sugere justamente que a experiência brasileira ainda se explica como variante da via conservadora de modernização. Nesse modelo de mudança social, estendido ao longo do tempo, o Estado tem papel proeminente na alavancagem dos mais pobres, sem que isso implique ruptura com setores reacionários do mundo rural, tampouco com a atual ordem dominante dos interesses financeiros. Eis o que Singer nomeou como "reformismo fraco" na era Lula, manejado por um Estado que se apresenta como demiurgo da mudança, o que esvazia o conteúdo ideológico desse processo em favor de uma política conduzida sob a égide da conciliação.

O argumento do livro atualiza aspectos das interpretações surgidas na geração dos anos de 1970, como as de Simon Schwartzman (1975), Luiz Werneck Vianna (1978, 1997) e Elisa Reis (1980), todos ocupados em analisar as raízes históricas dos dilemas democráticos no país. A principal contribuição desses cientistas sociais foi a de mobilizar a sociologia histórica comparada de autores como Barrington Moore (Origens sociais da ditadura e da democracia), a fim de compreender a política brasileira por meio da estrutura do processo que a constituiu. O fato é que a formação brasileira não se explica pela dinâmica de lutas como as que deflagraram as revoluções liberais na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos, entre a burguesia e a aristocracia rural. A matriz periférica e colonial da sociedade brasileira fez com que o Estado se constituísse, no século xix, antes da emergência do desenvolvimento econômico e se impusesse como único agente capaz de dinamizar a modernização.

Nessa perspectiva, as linhas de continuidade entre o passado e o presente no Brasil explicam-se pela presença constante das elites agrárias no poder, a despeito da incorporação progressiva dos setores emergentes às coalizações governamentais, desde a revolução de 1930. Em tais condições históricas, o que surge é um sistema político impermeável à sociedade civil, de modo que a melhor estratégia para se fazer ouvir na arena política é se integrar aos cargos da máquina governamental.

No contexto em que a balança do poder pende ao Estado em detrimento da sociedade civil, o progressismo revestiu-se, em meados do século xx, das cores do nacional-desenvolvimentismo. Tratava-se da crença de que a mudança dependia de neutralização do conflito ideológico, de modo que a questão social se resolveria como benevolência do Estado, que, por sua vez, reivindica a imagem de entidade em estado de fusão com o povo brasileiro. Ora, o que Singer sugere é que o fenômeno do lulismo atualiza essa revolução à brasileira, em que o processo contemporâneo de reforma transcorre sem a mobilização de sua principal base eleitoral, a vasta camada de subproletários, sobretudo do Nordeste, que adquire visibilidade graças à capacidade de o Estado convertê-la em ator político. Nesse arranjo, a figura da "grande personalidade" encarnada por Lula é central, como foi Bismarck na Alemanha e Bonaparte na França de meados do século xix, representando a posição do patriarca acima dos conflitos entre classes.

É no âmbito dessa abordagem histórica que o cerne do argumento de Singer sobre o "realinhamento eleitoral" adquire sentido. O exame dos resultados eleitorais sinaliza que a eleição de Lula em 2006 se viabiliza, apesar da repercussão negativa do "mensalão", um ano antes, uma vez armada nova clivagem de classe no âmbito da votação, favorável ao governo. Assim Lula perde seus eleitores históricos desde 1989, entre as frações mais escolarizadas e progressistas do sudeste, mas compensa essa perda com a adesão da massa de indivíduos que veem suas condições materiais de vida melhorarem com programas como o Bolsa Família.

A tese do livro é consistente por estar bem ancorada em evidências empíricas. Em 2010, o cenário se repete, já que a camada que elege Dilma Rousseff é formada justamente pelos que contam com até dois salários mínimos como renda mensal familiar. A identificação dos que superam a condição miserável com o imaginário lulista passa a decidir as eleições, o que se comprova na importância conferida pela própria oposição, como a de José Serra e Marina Silva, aos programas sociais de transferência de renda. Mesmo em 2012, a vitória de Fernando Haddad no pleito municipal paulistano confirma a capacidade de seu padrinho em arrematar votos entre os mais pobres, haja vista a vitória acachapante nas periferias de São Paulo.

O fato é que a historicidade conferida por Singer à conjuntura presente revela que o fenômeno do lulismo é complexo, por ser marcado por sentimentos divergentes, como "esperança" e "decepção". O livro sugere um ponto de vista equilibrado, valorizando as conquistas sociais de "nossa revolução passiva", no mesmo passo em que recusa o entusiasmo anacrônico da militância atual, que preferiu permanecer no imaginário dos anos de 1980 a compreender as transformações da conjuntura política, no plano nacional e internacional, desde os anos 2000.

Assim, André Singer demonstra as relações de homologia entre a "solução intermediária" do "reformismo fraco" - que atende a interesses sociais contraditórios -, o resgate do imaginário nacional-popular e a supressão da luta ideológica. A clivagem entre "ricos e pobres" torna-se justamente o aspecto que garante a vitória eleitoral, mas cujo conflito potencial se atenua na dinâmica da cooptação pelo Estado. Talvez o exame da trajetória social de Lula pudesse completar o argumento do livro, dando maior ênfase às afinidades entre a força simbólica de sua biografia e o resgate do emblema do popular, provisoriamente deixado de lado ao longo da era Fhc.

Ao incluir o memorial de livre-docência no posfácio, o autor deixa ver aspectos de sua própria trajetória intelectual inscritos no plano das motivações para elaboração do livro e de suas escolhas teóricas. O interessante é que o memorial sugere o enraizamento dos aspectos que moveram a reflexão de André em dimensões mais profundas de sua experiência de socialização familiar e acadêmica. Filho de Paul Singer, economista e intérprete da dinâmica da desigualdade social no Brasil, André ingressa no curso de ciências sociais da Universidade de São Paulo em fins dos anos de 1970, época em que a militância de esquerda e as leituras do marxismo arrebatavam as paixões estudantis, num contexto de intensa politização do meio universitário. Não parece casual a presença constante, em Os sentidos do lulismo, de autores como Caio Prado Jr. e Celso Furtado, os quais durante décadas serviram de guias para a reflexão sobre o Brasil, pelo pensamento de esquerda em São Paulo.

O livro recupera o gênero das interpretações abrangentes da sociedade brasileira, que desfrutaram de grande valor em nosso mercado intelectual e cujas questões principais, ligadas à ideia de nação, sempre foram uma espécie de imperativo de agenda. Num registro similar ao da influência dos pensadores marxistas citados anteriormente, observam-se ecos da célebre obra de Florestan Fernandes dos anos de 1970, sobre os impasses d'A revolução burguesa no Brasil, que realçava justamente as consequências de uma modernidade emergente sem polarização entre o moderno e o tradicional.

A partir de meados dos anos de 1980, André Singer inicia uma carreira como jornalista da Folha de S. Paulo, cobrindo a área de política. O duplo vínculo, entre o jornalismo e a vida universitária uspiana, o leva, anos mais tarde, à posição de porta-voz e secretário de imprensa da presidência da República, entre 2003 e 2007. É interessante lembrar que a participação no governo de Lula não foi exclusividade sua, uma vez que não foram poucos os cientistas sociais que se incorporaram à burocracia pública de Brasília, quando, enfim, a esquerda chega ao poder em 2002.

É possível dizer que essa experiência de aquisição de maior notoriedade pelo intelectual na vida pública, especialmente no Estado, reitera um fenômeno que marcou intensamente gerações intelectuais anteriores. O contexto, entretanto, era o de uma vida acadêmica institucionalizada de maneira ainda precária, tal como ocorreu entre os modernistas até 1945 e alguns dos sociólogos cariocas, até os anos de 1960. Mesmo no contexto em que a profissionalização da carreira universitária adquiriu maior densidade, a partir dos anos de 1980, o Estado, ao que parece, não deixa de se constituir como território de projeção dos intelectuais. Basta lembrar o fascínio despertado por figuras com trânsito entre a política e a universidade, cujo exemplo maior é o de Fernando Henrique Cardoso.

O exercício de objetivação da experiência histórica da qual participou diretamente é um mérito da reflexão de André Singer, sempre disposto a optar por um ponto de vista analiticamente distanciado. Mas o interessante é que a rara repercussão de seu livro na grande mídia, considerando o impacto reduzido que as obras de ciências sociais costumam ter, parece ter sido marcada por esse traço da história dos intelectuais brasileiros, que, a despeito da institucionalização acadêmica, permaneceram siderados pela chance de ocupar posições no Estado.

  • REIS, Elisa. (1980), The agrarian roots of conservative modernization Brazil, 1880-1930 Cambridge, tese de doutorado, Mit.
  • SCHWARTZMAN, Simon. (1975), São Paulo e o estado nacional São Paulo, Difel.
  • VIANNA, Luiz Werneck. (1978), Liberalismo e sindicato no Brasil Rio de Janeiro, Paz e Terra.
  • ______. (1997) A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro, Revan.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    Nov 2012
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