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Descompassos de uma etnografia: sobre os passados presentes de um bairro

An ethnography mismatch: the presence of pasts in a neighborhood

Resumo

Com o objetivo de discutir a relação entre etnografia, história e memória, especificamente no que se refere ao modo como o ‘passado’ é percepcionado, representado e usado no presente, projetando-se no futuro, o artigo reflete criticamente sobre uma pesquisa realizada nos anos 1990 sobre um bairro histórico e “popular” de Lisboa. O modo como diferentes tipos de temporalidades e de memórias são estrategicamente evocadas sob a forma de “mito de origem” ou de “marcha popular”, contribuindo para a definição de um pequeno território “tradicional” urbano, e o papel ativo que o processo etnográfico desempenha nesse processo são alguns dos pontos analisados.

Historicidade; Memória; Etnografia; Bairro; Lisboa

Abstract

In order to discuss the relationship between ethnography, history and memory, specifically with regard to how the ‘past’ is perceived, represented and used in the present, projecting itself in the future, the article reflects critically on a research carried out in the 1990s on a historic and “popular” neighborhood of Lisbon. The way in which different temporalities and memories are strategically evoked in the form of “myth of origin” or “performance”, contributing to the definition of a small “traditional” urban territory and the active role that the ethnographic process plays in this process are some of the points analyzed.

Historicity; Memory; Ethnography; Neighborhood; Lisbon

Pensar as cidades como lugares feitos de apropriações, usos, experiências e histórias dos que nelas vivem, que vão impregnando de memórias e significados os espaços que as constituem, ajuda-nos a compreender o que as distingue umas das outras nas suas identidades particulares (Chen et al. , 2013CHEN, Xiangming; ORUM, Anthony M. & PAULSEN, Krista E. (2013), Introduction to cities . how place and space shape human experience. Chichester/West Sussex, John Wiley & Sons., p. 7). Olhadas de dentro, a partir da escala próxima que permite a identificação dos seus mais pequenos territórios de apego e de pertença, as cidades tornam-se mais humanas e tangíveis, sobretudo quando se dão a ver em certos lugares que revelam pontos de confluência entre o espaço social e os tempos individuais e coletivos que os habitam. Entender o modo como o fluxo contínuo da história se “enraíza” territorialmente nas cidades, estabelecendo ligações, por vezes improváveis, entre o passado e o futuro em torno de projetos identitários, significa assumir a noção de historicidade como um “processo temporal complexo feito de uma pluralidade de tempos descompassados” (Lepetit, 2001LEPETIT, Bernard. (2001) Por uma nova história urbana . Seleção de textos, revisão crítica e apresentação Heliana Angotti Salgueiro, São Paulo, Edusp., pp. 138). São esses tempos descompassados e o modo como eles se organizam numa narrativa identitária em torno da construção de um ‘lugar na cidade’ que inspiraram a reflexão que se segue, retomando alguns dados de uma pesquisa realizada nos anos 1990 sobre o processo de construção social e cultural de um bairro “popular” e “histórico” da cidade de Lisboa (Cordeiro, 1996CORDEIRO, Graça Índias. (1996), Um bairro no coração da cidade: sobre a construção social de um bairro típico de Lisboa. Tese de doutorado em antropologia social. Lisboa, ISCTE.).

Um dos aspetos analisados nessa pesquisa prendia-se com o modo como certas representações do passado referenciadas a um pequeno território urbano central eram usadas por alguns dos seus habitantes como forma de afirmação de uma “identidade de bairro”, alimentando e reproduzindo sentimentos de pertença e de apego a um lugar sentido como único. A surpreendente elasticidade e flexibilidade da própria representação territorial do bairro situacionalmente definida, entre o núcleo mais pequeno polarizado pelas escadinhas íngrimes da Calçada da Bica Grande (Bica de Baixo) e uma noção mais abrangente de Bica, englobando várias ruas do bairro, revelava formas de articulação entre diferentes escalas temporais, invocadas através de lembranças do passado, e a produção socio-espacial das fronteiras do bairro marcadas por tais lembranças. Contudo, a relação entre as categorias temporais e espaciais usadas ou, para dizer de outro modo, entre o modo como diferentes temporalidades se articulavam com certas unidades territoriais de referência para a afirmação identitária deste lugar, não foram exploradas nessa pesquisa. As várias versões e representações do passado que eu encontrei no meu terreno, às quais eu acrescentei informação histórica mais “objetiva” e “factual”, com base em uma pesquisa de arquivo, apenas me ajudaram a enquadrar e contextualizar o presente etnográfico sem ter aprofundado a sua análise crítica. Tais versões do passado eram parte integrante da imagem desse bairro “tradicional”, “típico”, “popular”, fundamentando a sua identidade própria num permanente diálogo com o imaginário de Lisboa. De forma algo intuitiva, eu apenas interpretava as fontes orais e escritas que ia descobrindo, tanto as do meu terreno etnográfico como as que encontrava nos arquivos, tentando compor o enquadramento histórico necessário à (re)construção monográfica de um dos “bairros populares” mais representativos de Lisboa. A expressão de Paul Connerton (1993CONNERTON, Paul. (1993), Como as sociedades recordam . Oeiras, Celta., p. 4) de que “as nossas experiências do presente dependem, em grande medida, do conhecimento que temos do passado e de que as nossas imagens do passado servem, normalmente para legitimar a ordem social presente” foi, nessa época, uma das fontes de inspiração para a minha pesquisa. Muito embora essa dimensão não tivesse sido suficientemente aprofundada, ela foi central na minha pesquisa etnográfica: entender como aquela microssociedade que eu recortara como unidade de observação compreendia e representava o seu passado e qual o papel que esse passado tinha na ligação do bairro à cidade de que fazia parte.

Proponho-me, pois, neste texto, revisitar essa pesquisa de forma crítica e reflexiva, através da análise de dois episódios, ou “histórias” que então ficaram na “sombra” e que mostram, de forma exemplar, de que modo o passado, através da manipulação de diferentes tipos de memória locais e da pesquisa histórica, é criativamente usado e integrado em projetos de identidade locais. A dimensão histórica dessa etnografia realizada há mais de trinta anos – fazendo, também, parte da memória biográfica da autora destas linhas – remete para o significado que o tempo passado tinha para a comunidade, revelando, por um lado, a presença de “historicidades discrepantes” (Stewart, 2016STEWART, Charles. (2016), “Historicity and anthropology”. Annual Review of Anthropology , 45: 79-94., p. 83) e, por outro, a interferência do investigador na construção das representações do passado. A relação complexa entre tais perceções culturais do passado (Stewart, 2016STEWART, Charles. (2016), “Historicity and anthropology”. Annual Review of Anthropology , 45: 79-94.), os diferentes tipos de memória em ação (Bloch, 1998BLOCH, Maurice. (1998), How we think they think: anthropological approaches to cognition, memory, and literacy . Boulder/Colorado/Oxford, Westview Press.) e a construção de tradições locais urbanas constitui, pois, o desafio desta breve reflexão.

Contextualizando: o pequeno bairro da Bica e as festas de Lisboa

Um dos primeiros passos dessa pesquisa urbana foi a definição do recorte espacial e temporal a partir do cruzamento de fontes de natureza diversa, reconhecendo que as formas da experiência urbana devem ser olhadas como “nós de temporalidade plural onde o passado sedimentado nas formas é sempre colocado no presente das práticas” (Salgueiro, 2001SALGUEIRO, Heliana Angotti. (2001), “Apresentação”. In: LEPETIT, Bernard. Por uma nova história urbana. Seleção de textos, revisão crítica e apresentação Heliana Angotti Salgueiro, São Paulo, Edusp, pp. 11-29., p. 20) e que “tal como a escala espacial, a escala cronológica é um dos elementos determinantes para a interpretação de um fenômeno” (Lepetit e Pumain, 1993LEPETIT, Bernard & PUMAIN, Denise. (1993), Temporalités Urbaines . Paris, Anthropos., p. 122). O recorte empírico foi, assim, delimitado em torno da área mais central do pequeníssimo bairro da Bica, composto por meia dúzia de ruas apertadas encravadas numa colina, como forma de conseguir agarrar o fluxo do presente-passado-futuro.

A Bica é um bairro que se situa numa das partes mais antigas da cidade, próxima do rio que banha a cidade, o Tejo. É um bairro encravado num declive, composto por prédios envelhecidos que testemunham um tipo de arquitetura corrente e popular, com um passado socioprofissional ainda recente de atividades industriais, portuárias e de serviços pouco qualificados. Ainda hoje, a intensa sociabilidade de rua é reveladora de níveis elevados de interconhecimento pessoal, baseado em redes familiares e de vizinhança densas que se dão a conhecer sobretudo, nos meses de Verão e, principalmente, ao longo do mês de junho que traz a festa para a rua, durante o período das Festas da Cidade.

Efetivamente, devido à sua participação anual nestas Festas dos Santos Populares, a Bica é considerada um dos bairros mais “populares” e “típicos” de Lisboa. Essas festas, que se iniciam antes do dia de Santo Antônio (13 de junho) e terminam logo após o São Pedro (29 de junho) são, ainda hoje, uma das peças-chave na manutenção de uma imagem de Lisboa “popular e tradicional”, baseada num conjunto de bairros antigos, humildes, mas cheios de orgulho “bairrista” (Cordeiro, 2003CORDEIRO, Graça Índias. (2003), “Uma certa ideia de cidade: popular, bairrista, pitoresca. Sociologia , 13: 185-199.), ideia esta iniciada e desenvolvida fortemente durante o regime totalitário do Estado Novo português (1933-1974). Os “arraiais populares” que enfeitam e fazem a festa noturna nas ruas dos mais importantes bairros da Lisboa antiga e as “marchas populares dos bairros” que desfilam pela artéria mais nobre da cidade, a Avenida da Liberdade, na noite de 11 de junho, véspera do dia de Santo António, são as duas principais componentes destas festas populares. Ainda hoje é bem verdade que “se perguntarmos a qualquer lisboeta quais são os bairros populares de Lisboa, a resposta esclarecerá que são aqueles que organizam as marchas populares dos bairros...” (Cordeiro, 2001aCORDEIRO, Graça Índias. (2001a), “Territórios e identidade: sobre escalas de organização sócio-espacial num bairro de Lisboa”. Estudos Históricos , 28: 125-142., p. 128).

Essas marchas são organizadas para competirem no concurso anual das Marchas Populares dos Bairros, organizado e financiado pela Câmara Municipal de Lisboa. Cada bairro participante escolhe um tema que desenvolve através dos seus arcos enfeitados, canções (marchas), trajes e coreografias musicadas e dançadas. As narrativas e figuras escolhidas representam os seus territórios próprios, manifestando, assim, uma identidade única que os distingue entre si. Como refere António Firmino da Costa (1991COSTA, António Firmino. (1991), “O ritual das marchas populares nas festas de Lisboa”. In: Festas de Lisboa . Lisboa, Livros Horizonte, pp. 56-65., p. 61), a exibição das marchas dos bairros em tempos e em espaços próprios, constitui um ritual que “resulta num poderoso mecanismo de produção de identidades”. Elas não apenas contribuem para a fixação, ao longo das décadas, da denominação de cada um desses bairros – que não têm qualquer existência administrativa ou legal – como também se têm constituído como referências congregadoras de sociabilidades colaborativas polarizadas pelas associações culturais e desportivas que as organizam em colaboração com o governo municipal, criando e recriando uma ideia de comunidade urbana enraizada no respectivo bairro que lhes dá o nome. Desde os anos de 1930, o concurso das marchas dos bairros conta com a participação ativa de cerca de vinte associações locais, uma por cada bairro participante no concurso, constituindo-se como um imenso espaço performativo em que uma imagem histórica de Lisboa é apresentada, através da atuação dos “seus tipos populares”, que fazem parte das narrativas e histórias locais.

Os “tipos populares”, figuras típicas da história dessa cidade, remontam, na sua maioria, às antigas profissões de rua mais visíveis em finais do século XIX, quando a capital teve o seu momento de grande crescimento populacional. No imaginário lisboeta, esses “tipos populares” fazem uma espécie de “condensado temático” da cidade, pois conjugam nas suas figuras estereotipadas, a diversidade regional e profissional de uma cidade histórica, em que as várias épocas se misturam numa narrativa folclórica com aquelas que são as características ambientais e naturais dessa cidade, também símbolos da sua identidade única.

O passado mais próximo: o aguadeiro como tradição local (1ª história)

A água, tanto a do rio Tejo que banha a cidade, como a das fontes, das bicas e chafarizes tem sido um desses temas fortes que circula de formas variadas nas figuras que ajudam a compor a performance e narrativa de cada marcha. A varina (vendedora de rua de peixe, oriunda da região de Ovar), o pescador, a lavadeira e, claro, o aguadeiro são alguns exemplos (Cordeiro, 1997CORDEIRO, Graça Índias. (1997), Um lugar na cidade: quotidiano, memória e representação no bairro da Bica . Lisboa, Dom Quixote., 2001bCORDEIRO, Graça Índias. (2001b), “Trabalho e Profissões no imaginário de uma cidade: sobre os tipos populares de Lisboa”. Etnográfica , 5 (1): 7-24.).

Através da sua participação nas festas populares de Lisboa, o bairro da Bica tem-se afirmado como um dos bairros “com mais tradições bairristas”, partilhando um conjunto de características comuns com todos os bairros lisboetas semelhantes, mas, afirmando, igualmente, um conjunto de traços próprios, que o distinguem de outros. É na Marcha que anualmente vai a concurso, que esse bairro, tal como todos os outros que participam, se esmera em apurar a sua originalidade em torno do tema e das figuras que cada um dos 24 pares de marchantes exibe nas suas marchas cantadas e dançadas, afirmando uma ligação umbilical ao lugar de referência: a Bica (Figura 1).

Figura 1
: A Marcha da Bica de 1992 (© Graça I. Cordeiro)

O aguadeiro, o antigo vendedor ambulante responsável pela distribuição domiciliária da água, recolhida nas fontes e chafarizes da cidade no tempo em que ainda não havia água canalizada, tem sido a referência mais estável e permanente da Marcha da Bica desde o início da sua participação no concurso, em 1952, cerca de vinte anos mais tarde que a maior parte dos outros bairros que ainda hoje participam. Escrevia-se no Diário Popular de 12 de junho de 1955: “A marcha propriamente dita é formada por pares de regateiras e de aguadeiros […] de calças azuis com listas brancas bem ajustadas à perna, colete castanho sobre a camisa creme, bonés de pala brilhante e sapatos de biqueira quadrada e conduzindo barris de água ...”. (N/a, 1955N/A. (1955), “Sem título”. Diário Popular , Lisboa, 12.06.1955.). Ou, cerca de quarenta anos mais tarde, no programa editado pela Câmara Municipal de Lisboa, em 1992: “É sob o signo da água que a Bica vai entrar nas marchas...” (Cordeiro, 1997CORDEIRO, Graça Índias. (1997), Um lugar na cidade: quotidiano, memória e representação no bairro da Bica . Lisboa, Dom Quixote., p. 280), como sugere a Figura 2.

Figura 2
: “Aguadeiros” na Marcha da Bica de 1992 (© Graça I. Cordeiro)

Quando a Marcha da Bica entrou pela primeira vez no concurso, já todas as marchas haviam distribuído entre si os “tipos profissionais ou populares” mais icônicos do imaginário histórico lisboeta: as varinas e pescadores já estavam cativos para o bairro da Madragoa, bairro sempre associado às vagas migratórias dessa cidade litoral do país; os fadistas (cantadores de fado) e as “severas”1 1 . Referência a Maria Severa (1820-1846), uma das cantadeiras mais emblemáticas da história do fado lisboeta. eram da Mouraria, bairro associado às origens do fado; os marinheiros, de Alcântara, bairro industrial e portuário; os “saloios”, camponeses do hinterland lisboeta, de Benfica, então bairro suburbano. Tal como cada um desses “tipos profissionais”, que se tinham disseminado pela Lisboa oitocentista, também os aguadeiros, maioritariamente imigrantes da Galiza, província do norte da Espanha vizinha, tinham se apropriado do transporte e venda da água na capital, a ponto de aguadeiro e galego serem praticamente sinônimos, circulando pela cidade, habitando-a talvez de forma mais dispersa ou concentrada, não o sabemos. O que sabemos é que o Bairro da Bica se apropriou com grande sucesso dessa figura e que desde a década de 1950 ela se colou aos seus destinos.

Efetivamente, logo na sua primeira apresentação, em 1952, a Marcha da Bica foi vencedora: “A Bica chegou, foi vista e venceu”, anunciava o Diário Popular de 24 de junho de 1952 (N/a, 1952N/A. (1952), “Sem título”. Diário Popular , Lisboa, 24.06.1952.). Essa primeira entrada foi triunfal, tendo ganhado o primeiro prêmio, e essa vitória se repetiu nos dois anos subsequentes de concurso, 1955 e 19582 2 . O concurso não se realizou em 1953, 1954, 1956 e 1957. . Momentos de triunfo, em que a euforia então vivida continuava a ser recordada com grande emoção no início dos anos 1990, e isso tanto pelos ex-marchantes, que entraram na marcha na década de 1950, tendo vivido intensos momentos de emoção, como pelos jovens marchantes e organizadores da marcha na década de 1990, filhos, sobrinhos e afilhados dos “mais de dez casamentos que se fizeram nessas primeiras marchas”, como todos repetiam, narrando a história da sua marcha de eleição.

As várias narrativas sobre a pequena “história” da marcha, ouvidas durante o meu trabalho de campo, com mais ou menos pormenores, situavam-se sempre nessa década áurea de 1950, em que se realizaram as três primeiras atuações ganhadoras. As recordações emocionadas desses momentos de protagonismo, assim como das “saídas” em tournée que levaram os marchantes a viajar pelo país, são inseparáveis das memórias da encenação dos aguadeiros e vendedeiras, “tipos profissionais” considerados os mais típicos do bairro. Muito embora nesse período de 1950 fosse muito improvável ainda existir algum aguadeiro em atividade na cidade de Lisboa, por já terem desaparecido, cheguei a ouvir evocações da memória de aguadeiros a trabalhar e viver na Bica, com o objetivo de justificar a associação entre esse “tipo profissional” ou popular e o bairro cuja designação remete para as bicas, fontes e chafarizes que ali teriam existido em grande número.

Contudo, tal versão no passado profissional da Bica não se coadunava com o que, na década de 1990, eu apurei através de uma pesquisa de arquivo sobre o “fundo socioprofissional dos mais antigos habitantes da Bica”3 3 . Simultaneamente ao trabalho de campo, fiz uma pesquisa de arquivo sobre os registros de batismo e nascimento dos habitantes dessas ruas centrais do bairro entre 1860 e 1970, com o objetivo de encontrar elementos de caracterização histórica e demográfica do mesmo bairro que me ajudassem a construir a minha própria versão do passado da Bica, nomeadamente no que se referia à sua base socioprofissional ao longo do século XX. , em muitos casos parentes antepassados dos habitantes nos anos 1990. Desde o início do século XX e durante décadas, a profissão de “marítimo” (marinheiro) aparecia de forma esmagadora entre a população masculina do bairro. Essa “descoberta” foi partilhada com JG, um dos meus interlocutores privilegiados no bairro, que nesse momento estava particularmente envolvido na produção da marcha da Bica que ganhara o concurso cerca de dois anos antes. A escolha dos temas, dos fatos dos marchantes, das músicas, levara-o a pesquisar livros antigos em alfarrabistas como fontes de inspiração para a inovação necessária, anual, nos temas da marcha. Quando o artigo sobre a minha pesquisa histórica saiu no número da revista Ler História (Cordeiro, 1994CORDEIRO, Graça Índias. (1994), “A construção social de um bairro de Lisboa: a vocação marítima da Bica através dos seus registos de baptismo e nascimento (1886-1970)”. Ler História , Lisboa, 26: 125-149.), ofereci-lhe uma separata. Tal artigo sustentava uma visão da Bica como um bairro com um fundo marítimo entranhado na sua organização social e cultural, e terminava com o seguinte parágrafo:

O fundo marítimo da Bica, como de outros bairros ribeirinhos, no duplo aspeto de uma população composta de migrantes oriundos de regiões litorais do país, profissionalmente empenhadas em atividades marítimas, embora não seja diretamente recriado no tema da sua marcha anual – embora noutras marchas o seja – tem constituído um dos temas mais recorrentes na afirmação cultural da cidade de Lisboa ao longo do tempo. Analisar culturalmente uma cidade a partir de um dos seus bairros mais “característicos”, conjugando as duas vertentes – uma mais sociológica, outra mais antropológica – constitui-se aqui como um desafio futuro, onde a clássica distinção entre pesquisas “macro” e “micro” não parece fazer sentido. A dimensão cultural microscópica de um bairro como a Bica, que se afirma em torno de certos símbolos comuns a toda uma nação que neles se reconhece, só é compreensível como síntese de uma produção interna e externa, numa permanente dinâmica de criação cultural que o vai construindo como bairro sempre típico, herdeiro e recriador de antigas tradições, que se constrói como microcosmos de uma Lisboa, capital de um país de marinheiros (Cordeiro, 1994CORDEIRO, Graça Índias. (1994), “A construção social de um bairro de Lisboa: a vocação marítima da Bica através dos seus registos de baptismo e nascimento (1886-1970)”. Ler História , Lisboa, 26: 125-149., p. 141).

Confesso que foi com imensa surpresa e desconforto que me dei conta, na primavera de 1995 – já após a finalização do meu trabalho de campo, e durante o período da redação da tese –, de que a Marcha da Bica mudara o seu tema e figura de referência, o aguadeiro, substituindo-o pelo marítimo ou marinheiro. Adequou tal figura a essa “vocação marítima” considerada pelo meu amigo e informante JG como mais respeitadora do rigor e da factualidade histórica da realidade socioprofissional do bairro4 4 . É relevante mencionar que os regulamentos do concurso das Marchas Populares dos Bairros sempre tem valorizado o “rigor histórico” como um dos critérios para as pontuações. .

Não posso deixar de me lembrar do incômodo generalizado da maioria dos marchantes, para quem essa mudança era incompreensível. Nesse ano, parte dos homens marcharam contrariados por terem de adaptar o seu andar à representação de uma nova figura. Ensaiavam novos movimentos, eles que estavam tão habituados a uma forma de gingar o corpo em sintonia com a bilha ou o barril de água que levavam ao ombro. Vozes discordantes e, até, revoltadas, manifestaram a sua incompreensão pelo abandono daquela que acreditavam ser uma das tradições mais genuínas do bairro antes conhecido pela boa água as suas bicas, chafarizes e fontes. Uma das frases mais trocadas entre os marchantes, amigos e familiares durante os ensaios diários da marcha, nesse ano, foi a de que “na Bica não há marinheiros, sempre houve foi aguadeiros...”. Escusado será dizer que a Marcha da Bica teve, nesse ano, talvez a sua pior pontuação e que, no ano seguinte, 1996, voltou, aliviada, à representação do aguadeiro, considerada mais tradicional, tendo recriado novamente a narrativa em torno dessa figura. O que não deixava de ser verdade, pois são eles que fazem parte da memória autobiográfica de quem participou das primeiras marchas dos anos 1950, em que todo o protagonismo e visibilidade pública da Bica se produziu a partir das atuações dessas figuras que a colocaram no pódio dos bairros de Lisboa.

O passado mais distante: o mito de origem do bairro (2ª história)

Um dos elementos que distinguem a Bica de outros bairros de Lisboa, que a tornam única, é o seu relevo acentuado – uma topografia encravada que faz do bairro uma espécie de anfiteatro que dá lugar, todos os meses de junho, a um dos arraiais mais castiços com efeitos cênicos surpreendentes. O encravamento topográfico e urbanístico desse bairro é, sem dúvida alguma, um dos seus traços distintivos. O seu território ocupa um vale entalado entre dois altos – Chagas e Santa Catarina – cujas colinas descem de forma tão ingrime em direção ao vale da Bica que as ruas são maioritariamente talhadas em forma de degraus. O bairro quase que se esconde, afundado ao longo desse vale inclinado.

A sua rua mais densamente povoada, conhecida como as Escadinhas da Bica, é uma longa e íngreme calçada perpendicular que desemboca, na sua parte baixa, na Rua de São Paulo, via de circulação urbana já exterior ao bairro (Figura 3).

Figura 3
: Calçada da Bica Grande, s.d. (© Arquivo Municipal de Lisboa | Fotográfico)

É neste ponto em que a Calçada da Bica Grande, as Escadinhas, como localmente é conhecida, entronca com a Rua de São Paulo em que, anualmente, no início do mês de junho, surge um arco assinalando a “entrada” do bairro e saudando os forasteiros. A reportagem publicada na edição do dia 12 de junho de 1948 de um jornal vespertino refere que na entrada da Calçada da Bica Grande existia um arco vistoso, muito bem engalanado, a convidar quem passasse com a seguinte frase: “Esta festa é para todos. A Bica saúda todos os bairros” (N/a, 1948N/A (Não assinado). (1948), “Sem Título”. Diário Popular , Lisboa, 12.06.1948.). Um dos relatos ouvidos durante o meu ‘terreno na Bica’, no início dos anos de 1990, foi que, em “tempos passados”, teria havido um portão de ferro nessa ligação das Escadinhas à Rua de São Paulo, que se fechava de noite defendendo os habitantes do bairro. Embora não tivesse conseguido datar tais “tempos passados”, ou “dantes”, o fato parecia verosímil, sobretudo depois de eu ter descoberto, nas paredes laterais dos edifícios setecentistas que fazem esquina com a referida Rua de São Paulo, parafusos de possíveis dobradiças e uma reentrância nas paredes onde poderia ter estado encaixado o possível portão. Esse vestígio material parecia comprovar a facticidade de uma história contada localmente e situada num tempo anterior a qualquer memória individual. É precisamente nessa espécie de entrada no bairro que, uma vez por ano, a Marcha da Bica se despede da sua comunidade, ao som de uma marcha emotivamente cantada por todos em coro, minutos antes de sair para o desfile na Avenida da Liberdade, que é o momento mais importante da qualificação para o concurso.

Mas a história que localmente mais circulava no bairro da Bica durante o meu trabalho de campo, e que me foi contada em várias versões, referia-se ao momento da “criação do bairro”, situado temporalmente em “tempos passados”, ou “dantes”, sem referência exata de período, século, ou data – muito embora as descrições desse momento fundador fossem bem realistas sobre o momento em que uma derrocada, um terremoto ou um desabamento de terras teria levado os habitantes daquela zona, antes elevada, a fugirem e perderem as suas casas engolidas pelo afundamento das terras. Tudo se passara muito rápido, durante a noite, e só não tinham morrido mais habitantes porque, como anotei em meu diário de campo em outubro de 1991, “um homem que andava a acender os candeeiros desatou a gritar para que todos fugissem que as terras estavam a desabar... e assim nasceu a Bica” (Cordeiro, 1997CORDEIRO, Graça Índias. (1997), Um lugar na cidade: quotidiano, memória e representação no bairro da Bica . Lisboa, Dom Quixote., p. 83).

Primeiro entendido por mim como “mito de origem”, encontrei mais tarde esse relato em obras de referência sobre a história da cidade de Lisboa, numa versão muito parecida à que circulava pelo bairro (Castilho, 1954CASTILHO, Júlio de. (1954), Lisboa antiga: o bairro Alto. Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa., p. 327; 1981CASTILHO, Júlio de. (1981), A Ribeira de Lisboa. Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, pp. 129-130). Nessas obras eram referidas as fontes históricas que permitiam datar o momento do desabamento de terras de forma rigorosa, como tendo acontecido na madrugada do dia 22 de julho de 1597, e foi assim que citei na minha tese de doutoramento finalizada em 1996 (Cordeiro, 1997CORDEIRO, Graça Índias. (1997), Um lugar na cidade: quotidiano, memória e representação no bairro da Bica . Lisboa, Dom Quixote., p. 84). Antes da apresentação final da tese, como sempre fazia com os textos publicados sobre essa minha pesquisa, fiz circular o draft entre os pouquíssimos “informantes” ou, mais correto, interlocutores privilegiados que tinham disponibilidade para ler e compreender os meus escritos acadêmicos. À luz dessa leitura um deles, o já mencionado JG, o meu interlocutor privilegiado, um filho do bairro, licenciado em economia e que trabalhava no ramo editorial, sempre dedicado a todo o tipo de atividades em benefício da “sua Bica”, e que, nesse momento, desempenhava funções como assessor do vereador da cultura da Câmara Municipal de Lisboa, começou desde logo a organizar as comemorações dos 400 anos do nascimento do bairro da Bica para o ano seguinte, 1997, tomando como base a referência de Júlio Castilho ao ano de 1597, momento do aluimento de terras situadas no futuro bairro da Bica.

Tais comemorações incluíram o lançamento de uma monografia antropológica sobre o bairro (a minha tese de doutoramento), cuja edição recebeu um inesperado e generoso apoio, embora já estivesse em curso na prestigiada coleção de antropologia, Portugal de Perto, coordenada por Joaquim Pais de Brito na editora Dom Quixote. Os cerca de mil exemplares do livro comprados pela Câmara Municipal de Lisboa, correspondentes a um terço da tiragem total, incluíram uma folha inicial, assinada pelo vereador da Cultura, assinalando a efeméride.

Tempos e espaços de identidade

Revisitar alguns dos episódios de uma pesquisa passada, dando-lhes o estatuto de “histórias” que já fazem parte do próprio passado de uma pesquisa que atualizo no momento em que escrevo estas linhas, tem como objetivo analisar como diferentes passados resgatados durante uma pesquisa etnográfica e histórica se articulam entre si de forma eminentemente situacional, e de acordo com as finalidades para a quais são invocados e convocados.

Começando pela primeira história: naquela altura eu acreditava que as memórias em torno da figura do aguadeiro, para sempre associadas ao sucesso da marcha da Bica, sobrepunham-se e, de certo modo, apagavam outras memórias relacionadas com a preponderância de atividades marítimas, portuárias e piscatórias, masculinas, sobretudo durante a primeira metade do século XX5 5 . De acordo com a análise de Registos de Baptismo e Nascimento entre 1886 e 1960, essa profissão aparece com mais intensidade entre 1886 e 1926 (Cordeiro, 1997, p. 150). . Uma das razões para a presença viva daquela memória decorria da emoção com que elas surgiam, associadas a momentos cruciais na vida pessoal e familiar dos seus intervenientes, tal como o início dos namoros dos seus então jovens marchantes durante esses momentos festivos. Mas havia outra razão, mais estratégica, para a sedimentação do aguadeiro como personagem chave na narrativa do passado popular de Lisboa: era ele que prendia umbilicalmente o pequeníssimo território da Bica à identidade da cidade através dessa figura, uma entre várias distribuídas pelos vários bairros. Por outras palavras, através do aguadeiro e sua narrativa, a Bica entrou definitivamente na narrativa histórica, folclorizada, da cidade-mãe.

Uma outra história aparece dentro dessa mesma primeira história: aquela que eu descobrira sobre o passado socioprofissional do bairro e que contrariava, pensava eu, essa outra versão, desenterrando um passado esquecido no bairro. No entanto, essa outra ‘minha’ narrativa histórica acabou por entrar, de forma inesperada, no circuito das narrativas possíveis, por ter sido acolhida por um dos “fazedores” da marcha, particularmente atento à facticidade histórica do passado do bairro e ao impacto que tal descoberta teria nos membros do júri do concurso das marchas – embora menos atento aos impactos negativos que tal alteração teve entre os marchantes e os outros habitantes. Só mais tarde percebi que, afinal, não se tratava de duas versões alternativas em disputa. A memória do passado socioprofissional do bairro continuava a existir bem viva no bairro e, inclusive, havia uma presença considerável de marítimos reformados ainda a viver naquelas ruas, e com quem, aliás, acabei por interagir.

Na realidade, ambas as representações profissionais do passado pareciam conviver entre si de forma pacífica, embora fossem invocadas em momentos diferentes: o passado povoado de aguadeiros era fortemente invocado em junho, no tempo das festas que davam protagonismo aos bairros populares de Lisboa, como imagem de marca desse pequeno território que se dava a conhecer para fora através das suas bicas e chafarizes, enquanto o passado marítimo do bairro era relembrado entre os habitantes como um assunto interno que não valia a pena ser publicitado para fora. Tratava-se de dois passados que não se tocavam por pertencerem, também, a tempos diferentes, não apenas no sentido cronológico do termo, mas por se tornarem presentes em momentos diferentes do ciclo anual: o “passado dos aguadeiros” surgia no tempo concentrado das festas de Verão, que afirmava a identidade de lugar em torno da associação “Bica + aguadeiro”, enquanto o “passado dos marinheiros”, tal como outras narrativas históricas, surgia em momentos de um quotidiano mais “diluído” ao longo do ano.

Hoje posso compreender melhor por que razão a história demográfica, que eu tentara fazer com base em uma pesquisa de arquivo caracterizando profissionalmente a população do bairro entre 1886 e 1960, não interessava para a afirmação da identidade do bairro perante a cidade, por ser uma história partilhada com outros bairros. Não era essa a história que interessava para ser contada à investigadora que, todos sabiam, andava a escrever um livro sobre a Bica. A história que interessava era, afinal, a que destacava o bairro de todos os outros bairros trazendo a figura do aguadeiro para o primeiro plano, era a que distinguia a Bica dos outros bairros e dava força ao seu nome no contexto de um sistema de significados partilhado por todos os bairros “populares”, “tradicionais”, “históricos” de Lisboa. Ao escolher o aguadeiro como figura icônica que representa o bairro, a Bica fazia – e faz, até hoje – jus ao seu nome e ganhava um dos lugares mais centrais nas narrativas históricas que alimentam o imaginário e a identidade de Lisboa.

A marcha de cada bairro deve, pois, apresentar uma figura icônica que represente e distinga esse bairro, estabelecendo uma ligação irrefutável entre o passado da história da cidade e o território particular de cada bairro. Os marinheiros já eram a figura cativa do bairro de Alcântara, onde se situa um dos cais mais importantes da cidade, com seus pontos de atracagem de navios de grande porte; as “ovarinas”, ou “varinas”, vendedoras de rua de peixe, oriundas da região de Ovar, que registram uma bem conhecida fixação concentrada no bairro da Madragoa, continuam, ainda hoje, a ser a profissão típica deste bairro que delas se apropriou. É claro que tanto marinheiros como varinas estavam disseminados por todos esses bairros antigos situados à beira-rio – Alfama, Bairro Alto, Bica, Alcântara –, fazendo, por isso, parte de um passado partilhado, que, porém, não serve para essa recriação folclórica do seu passado.

Um dos aspetos mais curiosos do processo de fixação de algumas dessas designações profissionais e regionais, sempre associadas entre si, é o fato de umas terem perdurado no tempo enquanto outras caíram no esquecimento. Por exemplo, varinos, frieleiras, tramariotas, algarvios 6 foram algumas das categorias que identificavam migrantes de regiões litorais do país e que caíram no esquecimento (Cordeiro, 1994CORDEIRO, Graça Índias. (1994), “A construção social de um bairro de Lisboa: a vocação marítima da Bica através dos seus registos de baptismo e nascimento (1886-1970)”. Ler História , Lisboa, 26: 125-149., p. 138). Tais designações simplificaram-se em torno do termo “varina”, que passou a ser o ícone ‘oficial’ congregador de uma imagem da venda ambulante, de rua. A simplificação em torno de um único termo fez cair no esquecimento, por exemplo, o algarvio , um dos imigrantes oriundos do Algarve, a sul do país, que terá povoado o bairro da Bica no início do século XX (Cordeiro, 1997CORDEIRO, Graça Índias. (1997), Um lugar na cidade: quotidiano, memória e representação no bairro da Bica . Lisboa, Dom Quixote., pp. 131-149), dando lugar à figura da “varina” oriunda do Norte, que tanto contribuiu para uma das definições patrimoniais mais emblemáticas da cidade de Lisboa. De modo semelhante à varina, o aguadeiro-galego tornou-se uma figura icônica do imaginário da cidade de Lisboa, objeto de várias reconstruções folclóricas ao longo do século XX, uma das quais é, sem dúvida, a sua incorporação na marcha de um dos bairros “populares” de Lisboa.

A segunda história revela um outro tipo de estratégia identitária, valorizando o enraizamento físico original de um bairro na topografia acidentada de uma cidade como Lisboa. Assim, faz todo o sentido afirmar que a narrativa identitária do bairro da Bica se construiu com base numa escolha dos seus passados estrategicamente orientados para a afirmação de um território único na cidade. A originalidade do microterritório do bairro da Bica, tanto no âmbito topográfico, devidamente sustentado pela história da sua fundação (2ª história), como no da água, que dantes corria nas suas várias bicas (1ª história), é afirmada através de combinações estratégicas de “uma diversidade dos tempos sociais urbanos” ordenando-se numa “pluralidade das formas de articulação no presente, no passado e no futuro” (Lepetit, 2001LEPETIT, Bernard. (2001) Por uma nova história urbana . Seleção de textos, revisão crítica e apresentação Heliana Angotti Salgueiro, São Paulo, Edusp., p. 242). Seguindo a linha de pensamento desse historiador francês, uma das formas de reconhecer a importância dos horizontes temporais dos atores da história, através da determinação das escalas cronológicas pertinentes, passa, também, pela reconstituição de “categorias temporais autóctones” ( Idem , ibidem ).

Embora não esteja nas intenções deste curto texto, mais exploratório do que conclusivo, avançar na identificação de categorias temporais autóctones, não posso deixar de referir que as diferentes temporalidades com que lidei ao longo deste estudo e que tentei, aqui, exemplificar por meio de duas curtas “histórias”, coexistem entre si de forma articulada com o sentido estratégico da afirmação de uma identidade territorial em diálogo com a cidade. Às duas formas de temporalidade localmente evocadas – um tempo de memória mais autobiográfica (Bloch, 2012BLOCH, Maurice, (2012), Anthropology and the Cognitive Challenge . Cambridge, Cambridge University Press.) que evoca, sob forma verbal, ritual ou outra, um passado pessoal vivido de forma emocional, referido a períodos de tempo inferiores a sessenta anos e um tempo de memória histórica –, pode acrescentar-se essa outra forma de temporalidade introduzida pela investigadora, próxima de uma história acadêmica, um tempo de “arquivo”, com escalas cronológicas fixas, tempo este que, inesperadamente, foi usado e incorporado na “pequena história” local em permanente construção.

O que ambas as histórias marcam são dois dos momentos cruciais na produção da narrativa da identidade desse território: a sua origem, a partir da evocação de um acontecimento geológico que fez nascer uma rua-anfiteatro que, só por si, garante o sucesso dos seus arraiais festivos, e a apropriação de uma figura profissional emblemática da cidade, fazendo-a depender do próprio nome do bairro. O uso de um passado histórico ou mítico “E assim nasceu a Bica...” narra, afinal, um fato original, que se acredita que aconteceu apenas nesse território, reforçando e sendo reforçado pela narrativa que dá força à figura, igualmente mítica – o aguadeiro – que teria povoado o bairro...

Finalizando: a etnografia, entre as histórias e as memórias

A presente reflexão sobre os entrelaçamentos do passado no presente de um território urbano particular, o bairro da Bica, baseou-se na análise de duas narrativas do passado, um mais distante e outro mais recente. Tais histórias ajudam a perceber o modo como diferentes “tempos sociais urbanos” se organizam estrategicamente para a produção de uma identidade territorial urbana, num encaixe de escalas, entre a rua e a cidade. Por outro lado, mostrou como a construção da memória é um processo negociado entre diversos atores sociais e, também, como esse processo é dinâmico e envolve “um debate constante entre a criação, a preservação, a erradicação e a consensualização de memórias” (Peralta, 2007PERALTA, Elsa. (2007), “Abordagens teóricas ao estudo da memória social: uma resenha critica”. Arquivos da Memória , 2 (nova série): 4-23., p. 15). É crucial olhar a memória individual como um “espaço interpretativo, resistindo frequentemente às convenções estabelecidas e/ou reinventando novas convenções [...] resultado da intersecção de histórias pessoais e sociais” ( Idem , p. 19) sabendo, no entanto, que “a construção do passado, embora assentando sempre em quadros de significação e em contextos culturais específicos, não deixa também de estar moldada pelas experiências emocionais e pelas expectativas pessoais de cada indivíduo” ( Idem , ibidem ). O que não apenas leva à contextualização crítica do sentido quase metafórico de “memória coletiva” como locus de ancoragem da identidade de grupo, assegurando a sua continuidade (Halbwachs, 1925HALBWACHS, Maurice. (1925), Les cadres sociaux de la memoire . Paris, PUF.; Peralta, 2007PERALTA, Elsa. (2007), “Abordagens teóricas ao estudo da memória social: uma resenha critica”. Arquivos da Memória , 2 (nova série): 4-23., p. 6)7 7 . Sabendo que a sua dimensão psicológica tem sido insuficientemente estudada do lado das ciências sociais, ignorando muitos dos avanços dos estudos sobre memória (Tulving, 2002; Bloch, 1998, cap. 8; 2012). , como, ainda, sublinha a dimensão situacional, afetiva e emocional da memória. Tais dimensões se relacionam com o lado implícito da memória, tornando os seus conteúdos nem sempre verbalizáveis em narrativas orais ou escritas. Como referia Lévi-Strauss (1962)LÉVI-STRAUSS, Claude. (1962), La pensee sauvage. Paris, Plon., citado por Stewart (2016STEWART, Charles. (2016), “Historicity and anthropology”. Annual Review of Anthropology , 45: 79-94., p. 88) a história não é estruturada pela cronologia, como muitos acreditam, mas sim pelo mito e pelo investimento afetivo. Tal como o mito e o ritual, a história, nos seus vários suportes orais, escritos, artísticos, ou outros, deve ser estudada como uma forma de cultura expressiva, adotada em situações sociais concretas nas comunidades de que faz parte, considerando, por um lado, a coexistência8 8 . Coevalness (Stewart, 2016). de múltiplas temporalidades presentes em qualquer sociedade, e, por outro, os usos instrumentais e políticos das suas versões (Hirsch e Stewart, 2005HIRSCH, Eric & STEWART, Charles. (2005), “Introduction: ethnographies of historicity”. History and Anthropology , 16 (3): 261-274.).

O modo como certos tipos de memória participam na construção de “perceções culturais do passado” através de relações complexas com a “factualidade histórica” e, também, com certo tipo de rituais e performances que “ensinam” o passado (Stewart, 2016STEWART, Charles. (2016), “Historicity and anthropology”. Annual Review of Anthropology , 45: 79-94.) contribuem para o processo de construção de tradições locais urbanas. Particularmente interessante é a noção de historicidade entendida como um fluxo “em que as versões do passado e do futuro (de pessoas, coletivos ou coisas) assumem uma forma presente relativamente a acontecimentos, necessidades políticas, formais culturais disponíveis e disposições emocionais”9 9 . “where versions of the past and future (of persons, collectives or things) assume present form in relation to events, political needs, available cultural forms and emotional dispositions”. (Hirsch e Stewart, 2005HIRSCH, Eric & STEWART, Charles. (2005), “Introduction: ethnographies of historicity”. History and Anthropology , 16 (3): 261-274., p. 262). Tal noção abre caminho para se analisar o modo como, no presente, as pessoas atribuem um sentido ao passado antecipando o futuro, e como há sempre diferentes maneiras de construir este passado, dependendo dos usos políticos e ideológicos, das formas de comunicação em uso e das situações sociais em que as pessoas estão envolvidas ( Idem , p. 268). O modo como as sociedades compreendem e representam o passado, tanto na sua dimensão cultural mais substantiva ( Idem , ibidem ) como nas escalas cronológicas que usam, tanto em termos narrativos como em eventos/performances, revelam a coexistência entre diferentes noções de temporalidade (Stewart, 2016STEWART, Charles. (2016), “Historicity and anthropology”. Annual Review of Anthropology , 45: 79-94., p. 84; Frehse, 2001FREHSE, F. (2001), “Potencialidades do método regressivo-progressivo: pensar a cidade, pensar a história”. Tempo Social , 13 (2), 169-184.) ou formas de representar (e medir) o tempo.

Finalmente, e contra tudo o que seria de se esperar, o que o cruzamento de fontes históricas usadas nessa pesquisa me revelou foi, não apenas a surpreendente elasticidade de escalas cronológicas locais, como, ainda, a minha involuntária participação na construção de uma historicidade local, tanto através da datação rigorosa do momento do nascimento do bairro 400 anos antes, com base na referência de uma fonte histórica, como na retificação de uma narrativa histórica relativa ao passado sociodemográfico do bairro. Os impactos dessa participação involuntária foram distintos e revelaram claramente que muito embora a pesquisa histórica realizada durante o processo etnográfico surja, normalmente, como exterior ao “pensamento local sobre o passado”, (Stewart, 2016STEWART, Charles. (2016), “Historicity and anthropology”. Annual Review of Anthropology , 45: 79-94., p. 81) tal pode não acontecer. Na verdade, o papel do etnógrafo (ou da etnógrafa, no caso) é sempre mais participante do que se imagina, assumindo uma parte ativa, por vezes involuntária, no processo de construção das narrativas identitárias das comunidades em estudo. Lembrar o papel central que o investigador participante, etnógrafo curioso pelo passado e coletor de memórias, tem, em termos do impacto nas comunidades que estuda, é fundamental, como é fundamental perceber que tais interferências são incorporadas no fluxo da historicidade das comunidades em estudo, sobretudo quando elas participam ativamente na produção da identidade própria dos territórios urbanos que são centrais na história cultural e no imaginário das urbes a que pertencem.

Um dos problemas mais desafiantes, apenas levantado neste texto, prende-se com a relação entre a memória individual de todos os implicados no processo etnográfico, nesse continuum entre memória autobiográfica e memória histórica (Bloch, 1998BLOCH, Maurice. (1998), How we think they think: anthropological approaches to cognition, memory, and literacy . Boulder/Colorado/Oxford, Westview Press.), e a construção de tradições orais localmente partilhadas pelas comunidades. Tem aqui um papel central o lugar que certos indivíduos particulares desempenham nesse processo, funcionando como porta-vozes, líderes ou, apenas mediadores involuntários que acabam por contribuir para as versões a escolher na construção de tradições locais (Agier, 2001AGIER, Michel. (2001), “Distúrbios identitários em tempos de globalização”. Mana , 7 (2): 7-33.). Essa questão, que fica em aberto, deixa no ar a possibilidade das chamadas tradições locais urbanas poderem ser olhadas como pontos de ligação entre vários tipos de memórias, como marcas de um fluxo de temporalidades que perpassa o tempo presente (Stewart, 2016STEWART, Charles. (2016), “Historicity and anthropology”. Annual Review of Anthropology , 45: 79-94.) das nossas cidades. Nesse sentido, as cidades devem ser olhadas, mais do que nunca, como “pontos de convergência de enfoques multidisciplinares” (Salgueiro, 2001SALGUEIRO, Heliana Angotti. (2001), “Apresentação”. In: LEPETIT, Bernard. Por uma nova história urbana. Seleção de textos, revisão crítica e apresentação Heliana Angotti Salgueiro, São Paulo, Edusp, pp. 11-29., p. 16) capazes de congregar, adicionalmente, todos esses outros saberes e conhecimentos que extravasam a organização disciplinar da ciência.

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  • TULVING, Endel. (2002), “Episodic memory: from mind to brain”. Annual Review of Psychology , 53: 1-25.
  • 1
    . Referência a Maria Severa (1820-1846), uma das cantadeiras mais emblemáticas da história do fado lisboeta.
  • 2
    . O concurso não se realizou em 1953, 1954, 1956 e 1957.
  • 3
    . Simultaneamente ao trabalho de campo, fiz uma pesquisa de arquivo sobre os registros de batismo e nascimento dos habitantes dessas ruas centrais do bairro entre 1860 e 1970, com o objetivo de encontrar elementos de caracterização histórica e demográfica do mesmo bairro que me ajudassem a construir a minha própria versão do passado da Bica, nomeadamente no que se referia à sua base socioprofissional ao longo do século XX.
  • 4
    . É relevante mencionar que os regulamentos do concurso das Marchas Populares dos Bairros sempre tem valorizado o “rigor histórico” como um dos critérios para as pontuações.
  • 5
    . De acordo com a análise de Registos de Baptismo e Nascimento entre 1886 e 1960, essa profissão aparece com mais intensidade entre 1886 e 1926 (Cordeiro, 1997CORDEIRO, Graça Índias. (1997), Um lugar na cidade: quotidiano, memória e representação no bairro da Bica . Lisboa, Dom Quixote., p. 150).
  • 6
    . Em itálico designações antigas que caíram em desuso.
  • 7
    . Sabendo que a sua dimensão psicológica tem sido insuficientemente estudada do lado das ciências sociais, ignorando muitos dos avanços dos estudos sobre memória (Tulving, 2002TULVING, Endel. (2002), “Episodic memory: from mind to brain”. Annual Review of Psychology , 53: 1-25.; Bloch, 1998BLOCH, Maurice. (1998), How we think they think: anthropological approaches to cognition, memory, and literacy . Boulder/Colorado/Oxford, Westview Press., cap. 8; 2012).
  • 8
    . Coevalness (Stewart, 2016STEWART, Charles. (2016), “Historicity and anthropology”. Annual Review of Anthropology , 45: 79-94.).
  • 9
    . “where versions of the past and future (of persons, collectives or things) assume present form in relation to events, political needs, available cultural forms and emotional dispositions”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2018
  • Aceito
    7 Nov 2018
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