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De Maurice Halbwachs à Filosofia da Mente Repensando a memória a partir de abordagens externalistas

From Maurice Halbwachs to the Philosophy of Mind: rethinking memory from externalist approaches

Resumo

O artigo reconstrói as principais contribuições de Maurice Halbwachs como uma abordagem externalista da memória, explorando também suas vertentes interpretativas derivadas de suas imprecisões conceituais. Isso para, paralelamente, reconstituir as principais ideias e vertentes que evoluíram a partir da “hipótese da mente estendida”, uma abordagem externalista que surgiu contemporaneamente na Filosofia da Mente. Essas duas reconstruções visam a colocar em diálogo explicações externalistas sobre a memória, reconhecendo suas similitudes e potenciais mútuas contribuições. Ao reconstruir as vertentes das abordagens externalistas da mente, demonstraremos como se preocuparam com muitos aspectos que já estavam postos na obra de Halbwachs e como esse autor clássico pode e deve ser revisitado para os novos desenvolvimentos dessa abordagem. Ao final, comentamos sobre rumos empíricos e sobre questões ausentes (como a questão do sentido) tanto na obra de Halbwachs, quanto nas abordagens externalistas da mente.

Palavras-chave:
Sociologia da Memória; Maurice Halbwachs; Filosofia da Mente; Externalismo

Abstract

The article reconstructs the main contributions of Maurice Halbwachs as an externalist approach to memory. It also explores its interpretative aspects derived from his conceptual inaccuracies. In parallel, the article reconstitutes the main ideas and aspects that evolved from the “extended mind hypothesis” - a contemporary externalist approach of Philosophy of Mind. These two reconstructions put externalist explanations about memory in dialogue, recognizing their similarities and potential mutual contributions. By doing so, we demonstrate how the externalist approaches to mind were concerned with many aspects already placed in Halbwachs’ work - what justifies the revival of his texts as a source for new developments in Philosophy of Mind. Finally, we comment on empirical issues and missing questions (such as the “meaning”) in Halbwachs’ work and the mind’s externalist approaches.

Keywords:
Sociology of Memory; Maurice Halbwachs; Philosophy of Mind; Externalism

Introdução

Por muitos séculos, a memória vem sendo tratada, pela Filosofia, pelas Ciências Naturais e pelas mais recentes Ciência Cognitiva e Psicanálise, como um fenômeno interno e subjetivo. Na década de 1920, autores das Ciências Humanas, como o sociólogo francês Maurice Halbwachs, o psicólogo social francês Charles Blondel e o psicólogo inglês Fréderic Bartlett, entre outros, promoveram uma cissiparidade nas abordagens da memória, trazendo à luz uma abordagem externalista até então pouco explorada1 1 . Ainda que houvesse uma representação coletiva da memória para os gregos, o termo mneme tinha como principal sentido as memórias ou lembranças individuais. Com poucas exceções, o tratamento individualista da memória estará presente em toda a filosofia antiga que forma o modo de pensar sobre a memória. Os principais desenvolvimentos conceituais da memória se devem a Platão (ca. 428-348 a.C) e especialmente Aristoteles (384-322 a.C). A discussão sobre a memória, neste momento, tinha um caráter ontológico. Em alguns momentos, apresentava-se como uma contrapartida empírica à crença no valor último de mortalidade/imortalidade. A primeira contribuição conceitual que persiste até os tempos modernos é a diferença entre mne- me- - e anamne- sis, em que mne- me- estaria relacionada ao modo como a visão opera, ao passo que a anamne- sis teria sua operação correspondente na audição. Platão foi o primeiro a utilizar ambos os termos com o status de conceitos filosóficos, principalmente no diálogo Meno. Neste diálogo, Platão formula sua famosa teoria da imortalidade da alma e a teoria do conhecimento como lembrança - mathe- sis é anamne- sis. . Assim, foi o trabalho de Halbwachs que trouxe para a Sociologia o tema da memória como objeto de investigação. Ele foi importante não apenas para a Sociologia, mas para as Humanidades, ao oferecer uma compreensão da memória a partir de sua interação com o ambiente externo e tudo aquilo que dele pode advir ou influenciar.

De acordo com Larry Laudan (1977Laudan, Larry. (1977), Progress and its problems: Towards a theory of scientific growth. Londres, University of California Press.), o avanço da ciência ocorre com o acúmulo de novas evidências e também com a resolução de anomalias conceituais advindas de teorias anteriores. No caso da memória, como veremos, a dimensão social dela é uma anomalia para a tradição subjetivista, dada a dificuldade ou a impossibilidade de acomodá-la em bases puramente internas. Após a década de 1920, a existência dessa anomalia conceitual passou a ser trabalhada pelas diferentes áreas que tratavam da temática (Ciências Cognitivas, Psicologia e Humanidades) em momentos diferentes. Entre 1920 e a década de 1970, houve pouco avanço no que diz respeito a uma abordagem externalista nas mais diferentes áreas, e esses autores clássicos, predecessores dessa abordagem, foram pouco lidos. Na década em 1980, verificou-se a emergência dos chamados Memory Studies, um movimento majoritariamente formado pelas Humanidades, que retomaram a obra de Halbwachs e se desmembraram em diferentes vertentes interpretativas. A partir da polissemia conceitual presente na obra de Halbwachs, os Memory Studies têm se desenrolado para tratar dos mais diferentes objetos, com base em diferentes metodologias e enfoque teóricos, sem perder, contudo, Halbwachs como referência (Cordeiro, 2020Cordeiro, Veridiana Domingos. (2020), Rememoração, identidade e tecnologias sociais: uma análise sociológica das narrativas de ex internos de uma instituição para menores. São Paulo, tese de doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.). Anos mais tarde, no final na década de 1990, a Filosofia da Mente também se propôs a pensar a mente e os processos cognitivos (inclusive, aqui, a memória) a partir de uma leitura externalista. Esse movimento não foi impulsionado pelas pesquisas dos Memory Studies, como também não revisitou os predecessores do movimento externalista. Assim como nos Memory Studies, a discussão na Filosofia da Mente também evoluiu, gerando algumas vertentes.

Ambas as áreas se colocam, cada uma em seu campo de conhecimento, contra uma postura internalista e subjetiva da mente e dos processos cognitivos. Isso, pois o externalismo é a abordagem de certos fenômenos subjetivamente experienciados que enfatiza os fatores externos à subjetividade - opõe-se, portanto, à outra abordagem, o internalismo. Por um lado, o internalismo defende que tudo que precisamos para explicar alguns ou todos os fenômenos subjetivamente experienciados são os fatores internos, isto é, fenômenos que pertencem à mente individual, à razão individual, ao pensamento, ao cérebro ou a qualquer outra entidade similar. Para nossos propósitos, diremos que depende de algum locus de subjetividade. Por outro lado, há o externalismo, que, contrariamente ao internalismo, defende que os fatores envolvidos na explicação de fenômenos experienciados subjetivamente dependem de fatores exteriores ao locus de subjetividade.

Tanto Halbwachs quanto abordagens externalistas da Filosofia da Mente endereçaram o mesmo desafio de prover uma explicação externalista de fenômenos mentais “de formas diferentes, mas indiscutivelmente compatíveis” (Michaelian & Sutton, 2013Sutton, John & Michaelian, Kourken. (2013), “Distributed cognition and memory research: History and current directions”. Rev.Phil.Psych., 4: 1-24., p. 3). Porém, enquanto Bartlett foi retomado por psicólogos cognitivistas contemporâneos (Neisser, 1997Neisser, Ulrich. (1997), “The future of cognitive science: An ecological analysis”. In: Johnson, D. M. & Erneling, C. E. (orgs.). The future of the cognitive revolution. Nova York, Oxford University Press, pp. 247-260.) e Halbwachs revivido pelos Memory Studies, a Filosofia da Mente não realizou esse retorno a autores clássicos - com exceção de John Sutton (2008), que aponta para essa lacuna.

Reconhecendo a importância desse diálogo, neste artigo, pretendemos reconstruir as principais contribuições de Maurice Halbwachs para uma abordagem externalista da memória, mas também para uma possível Sociologia da Mente, explorando também suas imprecisões e incompletudes. Paralelamente, reconstituiremos as principais ideias que evoluíram a partir da “hipótese da mente estendida” da Filosofia da Mente, apontando para suas limitações e potencialidades. Essas duas reconstruções visam a colocar em diálogo as abordagens externalistas da mente e dos processos cognitivos (aqui, neste caso, mais especificamente, a rememoração) presentes em Halbwachs e na Filosofia da Mente, a fim de reconhecer que um olhar atento à obra do primeiro já fornece insights, discussões e contribuições que só estão sendo discutidos pela segunda hoje, cem anos depois. Em contrapartida, a abertura e a receptividade que a Filosofia da Mente tem em relação às Ciências Cognitivas mais recentes permitiram-lhe avanços e precisões conceituais ausentes em Halbwachs. Assim, (i) reconstruiremos as contribuições de Halbwachs; (ii) demonstraremos em que medida ele pode ser apontado como predecessor desse movimento externalista presente na Filosofia da Mente que emergiu setenta anos depois; (iii) apontaremos afinidades e diferenças entre as contribuições de Halbwachs e de cada uma das vertentes da Filosofia da Mente; e (iv), ao reconstruir essas vertentes das abordagens externalistas, demonstraremos como elas rumaram a uma abordagem muito mais próxima do que propôs Halbwachs; para, ao final, (v) apontarmos em que medida as contribuições dele auxiliariam no desenvolvimento dessa onda mais recente de trabalhos na Filosofia da Mente.

A Sociologia da Memória de M. Halbwachs: principais contribuições

Halbwachs foi aluno de Henri Bergson e posteriormente discípulo de Émile Durkheim2 2 . Halbwachs estudou com Henri Bergson no Lycée Henry iv, ainda na adolescência, e mais tarde acompanhou seus cursos no Collège de France e na École Normale Supérieure até o começo dos anos 1900 (Wetzel, 2009). . Após pesquisar temáticas sobre o trabalho e o direito, Halbwachs, no início da década de 1920, interessou-se pela temática da memória, a qual surgiu como fruto de sua interação com Bergson, que, em muitos de seus escritos, refletia sobre a possibilidade da existência de memórias individuais amplamente variáveis, em um mundo de crescente uniformização de formas de medir o tempo. Nas palavras de Ollick, Vinitzky-Seroussi e Levy:

[O trabalho de Bergson] sobre memória chamou a atenção de Halbwachs para a diferença entre as apreensões subjetivas e as objetivas (frequentemente transcendentais) do passado: enquanto novas formas de recordação se mantêm à medida que o tempo as grava na história de maneiras cada vez mais padronizadas e uniformes, as memórias individuais ainda seriam altamente variáveis, às vezes recordando breves períodos com imensos detalhes e longos períodos com contornos mais vagos. Seguindo Bergson, essa variabilidade da memória foi para Halbwachs o seu ponto de real interesse (2011, p. 17).

Embora Halbwachs não tenha aceitado conceitos centrais de Bergson, como durée3 3 . A memória desempenhou um papel central na análise sobre a experiência do tempo de Bergson, sendo redefinida pelo conceito ontológico e epistemológico de duração (durée) no interior de sua filosofia subjetivista. Bergson rejeitou considerações objetivistas, argumentando que “a subjetividade seria a única fonte de conhecimento filosófico verdadeiro” (Ollick, Vinitzky-Seroussi & Levy, 2011, p. 17). , ele retoma outras ideias presentes na obra do mestre, como a distinção entre a memória-hábito e a imagem-recordação (Bergson, 2011). Com o conceito de memória-hábito, Bergson cobre todo tipo de memória adquirida por esforços sucessivos de repetição motora, como qualquer habilidade física ou mesmo os esforços de aprendizado de gestos e palavras envolvidos no processo de socialização. O conceito de imagem-recordação cobriria os eventos singulares e não reproduzíveis, por isso de caráter não mecânico, mas evocativo. Esses dois conceitos dizem respeito a uma distinção que é anterior a Bergson e que se mantém posteriormente a ele para diferenciar as memórias inscritas no corpo (e seus movimentos) e as memórias que têm como origem um episódio percebido por alguém. Outros autores anteriores a Halbwachs e que foram lidos por ele, como por exemplo o médico francês Théodule-Armand Ribot ([1881] 1906), já faziam essa mesma distinção: a memória-hábito de Bergson é equivalente à noção de memória orgânica de Ribot, ao passo que a memória psíquica, ou autobiográfica, de Ribot seria aquela capaz de produzir as ditas imagem-recordação de Bergson. Embora Ribot defenda a memória como um fato biológico, tanto ele como Bergson entendem que ela só é possível quando há uma continuidade da consciência - argumento este também presente entre os lockianos e neolockianos4 4 . A relação de dependência entre memória e identidade foi a resposta dada por John Locke ([1689] 1996) para o “problema da persistência da identidade” no tempo, que foi perseguido pela Filosofia durante séculos. A essa resposta, foi dado o nome de “evidência da memória”, pois a tese consiste em que é necessário que lembremos minimamente sobre o nosso passado para reconhecermos o eu presente como o idêntico ao eu passado. Nessa tese, Locke pressupõe a continuidade da consciência como premissa para que haja a identidade entre o eu passado e o eu presente. Ele calca a tese em uma hipótese subjetivista e una do self. . Contraditoriamente, em uma passagem de seu livro Maladies de la mémoire (1881), Ribot argumenta que a memória pode ser afetada tanto por alguma falha fisiológica ou por uma oscilação no estado de consciência, quanto pela ausência do que ele denomina de “pontos de referência”, os quais

[…] não são escolhas arbitrárias, eles se impõem a nós. Eles têm um valor um tanto relativo. Eles existem por uma hora, um dia, uma semana, por um mês, uma vez que, se deixados de serem usados, eles caem no esquecimento. Eles são, em geral, elementos puramente individuais, no entanto, alguns são comuns a uma família, a uma pequena sociedade e a uma nação. Se eu não estiver enganado, esses pontos de referência formam, para cada um de nós, diversas séries que respondem, pouco a pouco, a diversos eventos que compõem nossa vida: ocupações cotidianas, eventos de família, ocupações profissionais, pesquisas científicas etc. Essas séries são muito numerosas e variadas na vida do indivíduo. Esses pontos são como os limites de quilometragem ou placas indicativas nas estradas que, falando de um mesmo ponto, divergem em diferentes direções […]. Os caminhos do ano com sua sucessão de estações, suas festas, suas mudanças de ocupação fornecem os pontos de referência (Ribot, [1881] 1906, pp. 38-40).

Essa ideia confusa e mal articulada nos escritos de Ribot aparecerá de forma bem mais precisa e elaborada nos escritos de Halbwachs, alguém que teve formação sociológica clássica que lhe forneceu instrumentos para pensar a influência do entorno ambiental social de forma mais bem-acabada. É por sua interação com o grupo durkheiminiano5 5 . Halbwachs conheceu Durkheim em 1905 (Wetzel, 2009). Mais tarde, foi introduzido ao grupo durkheimiano por François Simiand e Marcel Mauss, “rapidamente se afirmando como um dos principais colaboradores de Émile Durkheim” (Montigny, 2005, p. 6). que Halbwachs pensa a memória a partir de uma perspectiva que se opõe à redução psicofísica (uma concepção materialista, atomista e psicológica) proposta pelos autores com quem ele entrara em contato, como Bergson e Ribot. Embora Durkheim não tenha explorado a memória de forma sistemática, em Les representations individuelles et les representations collectives, há várias passagens a respeito. Para ele,

[…] se a memória for exclusivamente uma das propriedades da matéria neural6 6 . É interessante notar que Durkheim estava atento às novas teorias científicas, como a teoria neural desenvolvida por Ramon e Cajal fundamentalmente na década de 1890. , as ideias não têm poder de mútua evocação; a ordem em que elas ocorrem na mente pode apenas reproduzir a origem em que seus antecedentes físicos forem reestimulados, e isto somente pode ser feito por meio de causas físicas […] qualquer Psicologia que veja a memória como um fato puramente biológico não é capaz de explicar associações de semelhança exceto pela redução delas a associações de contiguidade (Durkheim, [1898] 2009, p. 34).

Tudo o que nós desejamos é que seja compreendido que a vida das representações se estenda para além de nossa consciência presente e, como consequência, que a concepção de memória como um fato de ordem psicológica seja uma proposição inteligível. Tudo o que estamos tentando deixar claro aqui é que tal memória existe sem levar em conta todas as possíveis maneiras pelas quais ela pode ser concebida (Durkheim, [1898] 2009, p. 41).

Partindo desses pressupostos gerais propostos por Durkheim, Halbwachs apresentou um trabalho independente, que representou um “avanço” em relação a Durkheim, “uma vez que Halbwachs crê na possível interpenetração das consciências que vai contra a ideia de consciências impermeáveis, de solidões fechadas” (Zawadzki, 2007Zawadzki, Paul. (2007), “Halbwachs est-il notre contemporain: réflexions sur la question du temps dans la démocratie”. Maurice Halbwachs: le temps, la mémoire et l’émotion. Paris, Ed. L’Harmattan., p. 195), a qual Durkheim defendia.

Tomando a distinção de Bersgon, fica claro que Halbwachs está tratando de imagens-recordação, ou seja, não há interesse pelas memórias-hábito. Em geral, ele está interessado em um tipo de memória que foi conceituada, nos anos 1970, como memória declarativa (Tulving, 1972Tulving, Endel. (1972), The organization of memory. Ann Arbor, Academic Press.), para designar memórias operadas pela mente e que requerem uma capacidade cognitiva específica desenvolvida pelos seres humanos. São representacionais e discursivamente veiculadas. A grande imprecisão (e é daqui que surgem as várias interpretações acerca da obra de Halbwachs) é que ele pouco destrincha conceitualmente as variações que estão subsumidas na ideia de uma memória declarativa (Cordeiro, 2020Cordeiro, Veridiana Domingos. (2020), Rememoração, identidade e tecnologias sociais: uma análise sociológica das narrativas de ex internos de uma instituição para menores. São Paulo, tese de doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.). Tulving diferencia a memória declarativa episódica da memória declarativa semântica7 7 . Tulving também baseia essa distinção em pesquisas científicas que demonstram que o processamento/operação se dá em áreas diferentes do cérebro. A memória declarativa (sobretudo a episódica), por exemplo, é processada pelo hipocampo. . A memória declarativa semântica se refere a um conhecimento organizado de algum fato do mundo que é apresentado/ensinado ao indivíduo, geralmente através de mídias externas, já prontas e construídas. A esse tipo, Halbwachs fez menção por meio do que ele denomina de memória histórica ([1950] 1997), como um conjunto cronologicamente organizado de fatos externos ao indivíduo. Entretanto, a memória declarativa semântica diz respeito a outros fatos e conhecimentos que não apenas os históricos. Isso passa despercebido por Halbwachs quando ele trata da memória dos músicos ([1950] 1997), a qual ele denomina genericamente de memória coletiva.

De qualquer forma, Halbwachs está interessado em investigar memórias que podem ser discursivamente representadas (declarativas), ter como origem episódios experienciados por alguém e espaçotemporalmente localizados. A discussão que ele trava em torno disso é buscar entender os mecanismos e dinâmicas envolvidos na formulação desse tipo de memória, sendo que ele reconhece (assim como Tulving) que no processo de rememorar algo haverá uma interação (quase indistinguível) entre esses episódios testemunhados e outros conhecimentos do mundo (sejam ele históricos ou não).

Dito isso, em que medida Halbwachs aborda esse fenômeno de uma maneira inovadora à época e que inaugura uma abordagem externalista da memória? Como dissemos, primeiramente, ele se encontra diante de duas posições distintas em meio às quais buscará construir sua teoria: o subjetivismo, internalismo e materialismo de autores como Bergson e Ribot, e o coletivismo de Durkheim. Ele inicia suas reflexões com a discussão sobre o sonho (tanto o artigo de 1923, quanto o primeiro capítulo de Les cadres sociaux de la mémoire endereçam essa temática). No começo de Les cadres (1925), Halbwachs faz referências à A interpretação dos sonhos (1900) de Sigmund Freud8 8 . Não é possível saber se Freud chegou a ler Halbwachs, mas certamente Freud já ecoava no meio intelectual francês na época da publicação de Les cadres sociaux de la mémoire (1925). Freud é lido e citado por Halbwachs não apenas pela importância que a Psicanálise estava tomando na época, como também pelo fato de o psicanalista austríaco tratar de dois temas caros a Halbwachs: a memória e os sonhos. É válido lembrar que o Freud lido por Halbwachs é aquele anterior à década de 1920, quando ainda não havia acontecido a guinada histórica em sua obra - que se concretiza nos anos 1930, embora já apresentasse algumas formulações em Totem e tabu (1913) (Cordeiro, 2015). . Ao passo que Freud apresenta a noção de inconsciente a partir de sua manifestação nos sonhos, Halbwachs apresenta os sonhos exatamente como um contraste argumentativo para a introdução da noção do conceito de quadros sociais da memória. De acordo com Halbwachs, os sonhos não trariam imagens armazenadas no inconsciente tal como defende Freud, mas seriam fragmentos de memórias desorganizados por conta da ausência (ou presença fraca) dos quadros sociais da memória: “é no sonho, que a mente se encontra mais afastada da sociedade” (Halbwachs, [1925] 1994, p. 39). Da mesma maneira que os sonhos seriam o momento de menor manifestação dos quadros sociais da memória, o esquecimento também teria um funcionamento parecido, ou seja, esquece-se algo quando os quadros sociais da memória estão ausentes ou se transformaram ao longo do tempo. Nos longos argumentos de Halbwachs no início de Les cadres (1925), ele afirma que o sonho não deixaria marcas na memória, muito provavelmente porque não são eventos socialmente construídos, mas impressões desordenadas que têm por base memórias episódicas, “quadros sociais da memória” que seriam constituídos basicamente de convenções espaçotemporais. Os quadros sociais da memória organizariam e balizariam a reconstrução das memórias da mesma maneira que Durkheim já postulava: “[...] do mesmo modo que, para dispor temporalmente os estados da consciência, cumpre poder localizá-los em datas determinadas” (Durkheim, [1912] 2003, p. xviii). Os quadros sociais são concebidos como sistemas que podem estar organizados por datas e calendários (relativo ao tempo social), por lugares (relativo ao espaço social) ou pela linguagem (enquanto forma de enunciação). Ou seja, os quadros sociais da memória são sempre organizações coletivas que permitem a reconstrução do passado. Nas palavras dele:

As convenções verbais são o quadro mais elementar e mais estável da memória coletiva: um quadro singularmente impreciso, uma vez que deixa passar todas as recordações ainda que sejam pouco complexos (Halbwachs, 1994Halbwachs, Maurice. ([1925] 1994), Les cadres sociaux de la mémoire. Paris, Ed. Albin Michel., p. 82).

[…] pontos de referência no espaço e no tempo, noções históricas, geográficas, biográficas, políticas, dados de experiências correntes e maneiras de ver familiares, que nós somos capazes de terminar em precisão crescente e que deixam de ser apenas um esquema vazio de eventos passados (Halbwachs, [1925] 1994, p. 39).

Assim, ao reconstruir o passado, primeiramente essas imagens episódicas precisam ser inteligíveis e localizáveis pelo rememorador, sendo os quadros sociais da memória os principais instrumentos nessa empreitada. A isso, Halbwachs adiciona o fato de que essas imagens episódicas, fruto de uma experiência passada, também são experienciadas em um meio social. Aqui, ele estende sua abordagem social da mente afirmando que não apenas são necessários instrumentos sociais para operar a rememoração, mas que outros processos cognitivos como a atenção e a percepção são socialmente orientados. Isso, pois a origem da memória estaria na percepção individual que ele denomina de ser sensível, que forneceria um núcleo singular de percepções “reais”. No entanto, essa percepção inicial já é socialmente moldada, pois, de acordo com Halbwachs, nossa percepção é orientada de acordo com os interesses do(s) grupo(s) aos quais estamos afiliados. Ele denomina isso de esquemas de percepção (Halbwachs, 1950). Halbwachs assume que os esquemas de percepção são “lentes” através das quais o indivíduo percebe o mundo. Eles não são individuais a ponto de não serem compartilhados com nenhum outro ser humano, nem universais a ponto de serem compartilhados com toda a humanidade. Isso, pois estão vinculados à ideia de grupo, que é o conceito central da obra de Halbwachs (Cordeiro, 2017Cordeiro, Veridiana Domingos. (2017), “Groups as a product of individual and collective memory: the hardcore of Maurice Halbwachs theory”. Protosociology Journal, 1: 1-19. Disponível em http://www.protosociology.de/Rubrum/ Cordeiro-Groups.pdf.
http://www.protosociology.de/Rubrum/ Cor...
) e o recurso que ele, como um autor ainda preso às dicotomias do século xix, encontrou para percorrer o “caminho do meio” entre o coletivismo de Durkheim e o subjetivismo de Bergson, Ribot e Freud. E mesmo que a percepção seja guiada pelo engajamento de cunho afetivo com o mundo, ainda assim, a parcela da realidade que o indivíduo percebe seria o resultado de seu alinhamento com um dado grupo, que é um conjunto de indivíduos com quem o rememorador está alinhado no momento da rememoração. Um indivíduo pode se alinhar a diversos grupos física ou virtualmente, é o “grupo” que perspectivará a realidade infinita que o indivíduo percebe e rememora. Trata-se, portanto, de uma perspectivação e não de uma imposição homogênea que se sobrepõe às consciências individuais. Grupo é, então, um conceito mediador da codeterminação entre indivíduo e sociedade.

Essa perspectivação que o indivíduo faz no momento da percepção da realidade exige que ele a interprete caso queira compreendê-la e/ou explicá-la; função esta exercida pelo ser interpretativo que atua no momento presente em função dos interesses presentes do grupo atual ao qual o indivíduo se encontra física ou virtualmente alinhado, bem como das condições sociais do momento presente. Além disso, no momento de reconstrução de um evento passado, os quadros sociais da memória são mobilizados balizando todo o percurso de reconstrução de uma dada recordação. Quando há uma mudança nos quadros sociais da memória ou alguém se encontra completamente desvinculado de um meio social, há potencialmente uma mudança na maneira de rememorar ou uma dificuldade em fazê-lo.

Assim, ao rememorar, recorremos não apenas aos fragmentos episódicos que estariam “depositados” (como diria Bergson) em nossa mente, mas a partir deles começamos um trabalho de reinterpretação que evoca recursos de nossos múltiplos grupos sociais, símbolos materiais e práticas sociais que nos cercam. Isso não ocorre apenas quando realmente lembramos em companhia, mas também por meio dos “grupos virtuais” aos quais nos voltamos afetivamente quando revivificamos experiências. É claro que cada um terá suas próprias lembranças únicas, que são resultado da experiência única que estabelecemos com o mundo, mas isso é apenas um fato contingente sobre a complexidade da intersecção particular entre o rememorador e a interação que ele estabelece com o entorno social - com parentes, fotografias, cartas etc.

O termo memória coletiva, no entanto, como dissemos, é pouco preciso e usado por Halbwachs em exemplos diversos que trazem ambiguidade para sua teoria. Assim, quando foi retomada, anos mais tarde, algumas vertentes interpretativas deram pesos diferentes à mente, ao entorno e ao social. É a partir da reconstrução dessas vertentes que pensaremos como é possível ler Halbwachs como predecessor da abordagem externalista da mente, presente na Filosofia da Mente.

As vertentes forte e fraca que derivaram da sociologia da memória de Halbwachs

Halbwachs foi disruptivo nos estudos da memória e deixou um legado importante, contudo silenciado por algumas décadas após sua morte em 19459 9 . Halbwachs foi deportado para a Alemanha em 1945 e levado ao campo de trabalho para judeus de Buchenwald, em Ettersberg, próximo da cidade cultural de Weimar, onde faleceu em decorrência de doença e inanição. . Com a retomada do interesse pelo tema da memória nos anos 1980, o trabalho de Halbwachs foi resgatado e amplamente difundido naquilo que se convencionou chamar de Memory Studies, uma área que reúne estudos conceituais e empíricos sobre a memória nas Humanidades. A teoria de Halbwachs gerou dois ramos interpretativos no interior dos Memory Studies: o ramo dos estudos da “memória coletiva” (collective memory studies) e o ramo dos estudos da “memória coletada” (collected memory studies), de acordo com a terminologia de Jeffrey Ollick (1999Ollick, Jeffrey. (November 1999), “Collective memory: the two cultures”. Sociological Theory, 17 (3): 333-348.). Ou, igualmente, há a versão forte (strong version) e a versão distribuída (distributed version), de acordo com a terminologia de James Wertsch (1998Wertsch, James. (1998), Mind as action. Nova York, Oxford University Press.). O ramo dos estudos “fortes” ou “coletivos” agrega estudos que tendem a reificar ou hipostasiar a memória como um fenômeno de longo prazo ligado a uma estrutura social. Assim, “sociedades rememoram ou comemoram” sem precisar necessariamente das mentes individuais para tal, desconsiderando aspectos biopsicológicos da memória. Geralmente, tais estudos enfatizam o papel das organizações sociais e o poder que têm para materializar, organizar e perpetuar determinadas representações culturais. A investigação desses trabalhos está majoritariamente concentrada na análise de materiais físicos tais como monumentos, documentos, locais históricos, entre outras materializações independentes da percepção subjetiva. Possivelmente, tais estudos tomaram a veia halbwachsiana presente em seu último livro completo escrito em vida, La topographie legendaire des Évangiles en Terre Sainte (1941), no qual ele explora como o Cristianismo constrói e destrói a paisagem da Palestina a fim de conformar uma determinada memória coletiva religiosa. Tais trabalhos, ao considerarem a memória como “coisa”, conseguem compreender como se dão as disputas pelo passado e como as comemorações são moldadas e deliberadamente organizadas em espaços e objetos. Essa abordagem confere à memória um aspecto hipostasiado e objetificado, potencialmente ligado a uma identidade de grupo e a práticas específicas de transmissão pautadas em instrumentos de reprodução. Esse tipo de abordagem caracteriza o que denominam de uma “memória do grupo”, como algo que, embora reconstruído, é unificado e atribuído a um conjunto de indivíduos. De certa forma, essa abordagem captura representações institucionais sobre o passado, fundindo a produção e a recepção do objeto cultural e abstraindo quaisquer processos cognitivos que possam estar na base dessa produção da memória, por um lado, e da compreensão da mesma, por outro.

A vertente “distribuída” ou “coletada” trabalha com a ideia de uma rememoração colaborativa pautada nos processos mentais operados por alguém, no sentido de que são necessários “agentes ativos e instrumentos que medeiam a rememoração” (Wertsch, 2009Wertsch, James. (2009), “Collective Memory”. In: Wertsch, James & Boyer, Pascal. Memory in mind and culture. Cambridge, Cambridge Press., p. 119). É dita como uma versão “fraca”, pois não toma a memória como coisa, não há uma concepção hipostasiada da memória. Pelo contrário, entende-se que a memória em si não existe, mas sim processos de rememoração que podem ser colaborativos e distribuídos entre diversas pessoas e instrumentos e/ou objetos em interação, como, por exemplo, “calendários, registros escritos, em computadores, narrativas e outros” (Wertsch, 2009, p. 119). Aqui, não se pressupõe uma concretude da memória, mas sim a existência de suportes externos que colaboram/apoiam a reconstrução mental operada pelo processo de rememoração, isto é, a interpretação de algo passado a partir das condições do momento presente. Essa vertente tem relação com os primeiros escritos de Halbwachs sobre o tema (1923Halbwachs, Maurice. (jan./jun. 1923), “Le rêve et les images-souvenirs: contribuition à une theorie sociologique de la mémoire”. Revue Philosophique de la France et de L’ Étranger, pp. 57-97. Disponível em http://www.jstor.org/discover/41082002?sid=21105071185651&uid=62&uid=40528&uid=2&uid=2134&uid=67&uid=4581290627&uid=40529&uid=5910200&uid=4581290617&uid=3&uid=3737664&uid=5909624&uid=60&uid=70.
http://www.jstor.org/discover/41082002?s...
; 1925), nos quais ele enfatiza os aspectos sociais da memória “individual”, entendendo que ela é balizada pelos quadros sociais da memória que sustentam, organizam e selecionam o passado, verificando o que é plausível, realístico e coerente. Essa vertente advogaria, então, por uma memória no grupo. Essa vertente desfaz a ideia de uma memória desencarnada e a coloca como fruto de operações entre mente e ambiente social, deixando, assim, espaço para diálogos com outras áreas, como as Ciências Cognitivas e a Filosofia da Mente.

As ondas externalistas na filosofia da mente

A terminologia “onda” foi proposta por John Sutton em um de seus artigos (2010Sutton, John. (2010), “Exograms and interdisciplinarity: history, the extended mind and the civilizing process”. In: Menary, Richard (ed.). The extended mind. Cambridge, ma, mit Press.) como forma de organizar as diferentes vertentes que derivaram da hipótese inicial da mente estendida proposta por Andy Clark e David Chalmers (1998Clark, Andy & Chalmers, David. (1998), “The extended mind”. Analysis, 50: 7-19.)10 10 . Dada a variedade de trabalhos que surgiram dessa hipótese inicial acerca da mente estendida, há outros trabalhos que propõem classificações para essas vertentes, como por exemplo o trabalho de Hurley (2010) que pensa essas vertentes em termos de “what” e “how”, ou seja, as divide em função de seus focos principais: nos conteúdos cognitivos (what) ou nos processos cognitivos (how). . Sutton fala em três possíveis ondas, e outros autores (Fritzman & Thornburg, 2016Fritzman, J. M. & Thornburg, Kristin. (2016), “I is someone else: Constituting the extended mind’s fourth wave, with Hegel”. Essays Philos, 17 (2): 156-191.; Gallagher, 2013Gallagher, Shaun. (2013), “The socially extended mind”. Cognitive Systems Research. Disponível em http://dx.doi.org/ 10.1016/j.cogsys.2013.03.008.
http://dx.doi.org/ 10.1016/j.cogsys.2013...
; Gallagher & Crisafi, 2009) já propõem uma quarta onda. A ideia de “onda” em vez de “vertentes”, de alguma forma, pressupõe a ideia de que cada uma se sobrepõe à anterior, na tentativa de prover, cada vez mais, abordagens mais amplas e compreensivas dos fenômenos em questão. Como veremos, a primeira onda dá um passo tímido em direção ao externalismo da mente e dos processos cognitivos, ao passo que a quarta onda já se aproxima de uma abordagem mais coletivista, estabelecendo afinidades com o que Halbwachs propôs cem anos antes.

A primeira onda do externalismo remonta ao artigo inaugural sobre a temática de Clark & Chalmers (1998Clark, Andy & Chalmers, David. (1998), “The extended mind”. Analysis, 50: 7-19.), em que eles rompem com uma abordagem internalista da mente. Na Filosofia, mais especificamente na Filosofia da Linguagem, abordagens externalistas já vinham sendo desenvolvidas. A contribuição intelectual mais conhecida foi, sem dúvida, um experimento mental elaborado por Hillary Putnam (1975Putnam, Hilary. (1975), “The meaning of ‘meaning’”. In: Philosophical papers: Mind, language and reality. Cambridge, Cambridge University Press.) conhecido como Terra Gêmea (Twin Earth), que defende uma concepção de que o significado não poderia estar nas mentes individuais, ou nos cérebros, mas fora deles11 11 . O argumento da Terra Gêmea pode ser sintetizado da seguinte maneira: Putnam supõe a existência de um planeta exatamente igual ao planeta Terra, que ele chama de Terra Gêmea. Nele haveria um equivalente exato de todas pessoas e objetos que habitam na Terra. Em relação a isso, contudo, existiria uma única exceção: há um líquido que é superficialmente idêntico ao que chamamos de “água”: possui a mesma função da “água”, mas não é composto de h2o e sim de uma substância “xyz”. Putnam também imagina que terráqueos e “terráqueos gêmeos” desconheçam a composição química dos líquidos em seus planetas. Porém, tanto os habitantes da Terra, quanto os da Terra Gêmea utilizam a mesma palavra para se referirem aos seus líquidos: “água”. Se um habitante da Terra (h) e seu equivalente exato na Terra Gêmea (h’) usarem a palavra “água” para falar sobre o líquido em um mesmo contexto, como é possível saber se eles estão se referindo à mesma coisa? Sendo seus cérebros idênticos, neurônio por neurônio, molécula por molécula, quando h usa o termo “água”, ele se refere a h2o, enquanto h’, ao fazer o mesmo, se refere a xyz. Como conclusão, os próprios conteúdos internos do cérebro ou da subjetividade de uma pessoa não são suficientes para determinar a referência de uso, pois esta dependeria de condições externas à mente. .

Clark e Chalmers (1998Clark, Andy & Chalmers, David. (1998), “The extended mind”. Analysis, 50: 7-19.) têm uma posição mais radical, ao atribuírem a objetos exteriores características “cognizantes” com a mesma função de um procedimento cognitivo puramente interno. O principal exemplo (também um experimento de pensamento) criado por ambos é o “caderno de anotações de Otto”. Otto e uma amiga combinam de visitar juntos um museu conhecido por ambos. No entanto, Otto sofre do mal de Alzheimer, e tudo o que ele faz ou conhece é anotado em seu caderno para que possa consultá-lo posteriormente. Assim fez com o endereço do museu que já havia visitado anteriormente. Para chegar lá, Otto consulta seu caderno, ao passo que sua amiga simplesmente se lembrou espontaneamente do local. A conclusão de Clark e Chalmers é que, assim como Otto, todos utilizam uma miríade de instrumentos e objetos, externos à cabeça, que são necessários para conseguirmos realizar um procedimento cognitivo.

Essa primeira onda de trabalhos argumenta que há uma extensão da mente (e, aqui, eles querem dizer dos “processos cognitivos”) para o mundo a partir de uma equivalência funcional dos elementos internos e externos (Kirchhoff & Kiverstein, 2019Kirchhoff, Michael & Kiverstein, Julian. (2019), Extended consciousness and predictive processing: a third wave view. Londres, Routledge.). Interno e externo têm caracteres igualmente importantes e funções equivalentes; portanto, essa primeira onda está calcada no “princípio da paridade”, que pressupõe um isomorfismo funcional entre mente e elementos externos. Eles foram alvo de críticas de que os processos que acontecem na mente de Otto são diferentes daqueles que acontecem fora dele, portanto, seriam ontologicamente distintos.

Na segunda onda externalista, os argumentos giram em torno da ideia de que os processos internos e externos se complementam e se melhoram quando estão em interação. Ferramentas e tecnologias funcionam de forma colaborativa com a mente humana. Entretanto, ambos possuem formas de funcionamento e naturezas distintas. Ou seja, processos neurais internos possuem propriedades funcionais que se combinam e se integram com sistemas externos. Ao realizar uma conta, uma mente isolada desempenha um processo cognitivo distinto da operação de uma calculadora. Quando mente e calculadora operam complementarmente, uma capacidade de raciocínio matemático nova emerge, que não seria possível se ambos não estivessem operando de forma integrada. A cognição não está apenas dentro ou fora, ela não se estende de dentro para fora, mas a cognição depende de um “sistema cognitivo”.

O princípio da complementariedade, que embasa essa segunda onda, possui algumas variações com relação à causalidade (recíproca ou unidirecional) envolvida nessa integração entre interno e externo. Diferentemente da primeira onda, nesse segundo momento, não há a crença de que os processos internos e externos sejam análogos, mas sim de que eles funcionam melhor ao acoplarem-se.

Nas duas ondas (a primeira e a segunda), a pergunta “onde a mente termina e o resto começa?” (Menary, 2010Menary, Richard. (2010), “The extended mind in focus”. In: Menary, Richard (ed.). The extended mind. Cambridge, ma, mit Press.) compunha o pano de fundo do desenvolvimento das ideias. Na terceira onda, essa pergunta se desfaz à medida que há uma concepção de mente e ambiente que não possuem limites tão bem delimitados assim. A terceira onda proposta do Sutton (2010Sutton, John. (2010), “Exograms and interdisciplinarity: history, the extended mind and the civilizing process”. In: Menary, Richard (ed.). The extended mind. Cambridge, ma, mit Press.) foca em uma extensão social da mente. Nesse sentido, os mais variados trabalhos dessa onda (Sutton, 2013; Heersmink, 2017Heersmink, Richard. (2017), “Distributed selves: personal identity and extended memory systems”. Synthese, 194 (8): 3135-3151.; 2018) renomeiam a abordagem como “distribuída” (“mente distribuída”, “memória distribuída”), dissolvendo as barreiras presentes nos “sistemas cognitivos” e desterritorializando as mídias e os artefatos, em geral. Essa ideia de artefatos e indivíduos que rememoram colaborativamente, de modo que o processo de rememoração está, na verdade, distribuído, é algo que se aproxima bastante das vertentes interpretativas da obra de Halbwachs denominadas de “fraca”, “distribuída” ou, ainda, “collected”.

Os argumentos da terceira não rompem com a ideia defendida pela segunda onda de que artefatos culturais transformam processos cognitivos. Mais do que isso, a terceira onda expande essa ideia ao assumir que essa interação é constante e transcende o momento imediato de interação entre mente e artefato. De acordo com Sutton (2010Sutton, John. (2010), “Exograms and interdisciplinarity: history, the extended mind and the civilizing process”. In: Menary, Richard (ed.). The extended mind. Cambridge, ma, mit Press.), os agentes individuais “estão dissolvidos em loci de coordenação e coalescência entre múltiplas mídias estruturadas” (Sutton 2010, p. 213). Ou seja, essa integração está distribuída e é propagada nas mais diversas áreas da vida social, e a maneira como isso vai se dar não precisa ser ditada por um organismo biológico, mas pode ser ditada pelas próprias interações. Nesse sentido, as fronteiras entre interno e externo são muito mais borradas. Diferentemente da primeira e da segunda onda, Sutton argumenta que, aqui, “engramas” e “exogramas”12 12 . Sutton usa os termos engram e exogram para fazer alusão às unidades da memória. Primeiramente, o biólogo e pesquisador Richard Semon denominou de engram a unidade de informação cognitiva dentro do cérebro no qual uma memória era armazenada (ver mais em Richard Semon, The mneme, 1921). Mais tarde o termo foi amplamente usado para se referir a impressões mentais causadas por traços de memória na mente. Em contraposição a esse substrato físico e subjetivo da memória, os exograms são dispositivos simbólicos ligados ao contexto da rememoração que ajudam a estender e aperfeiçoar o nosso processo de rememoração. são distintos (funcional e ontologicamente) e nem sempre se complementam, embora estejam em constante interação e mútua transformação.

Os exogramas podem se materializar em uma variedade de meios/repositórios materiais que podem ser consumidos posteriormente. Assumindo essa ideia, já há uma ampliação considerável da concepção da interação mente-ambiente, em que é possível pensar processos mais amplos de circulação de exogramas e posterior recepção e interação deles com outras mentes. Essa dinâmica muito pouco explorada pelos textos de Sutton busca, na verdade, reconstituir (ainda que parcialmente) os processos de rememoração que Halbwachs já explora e detalha a partir de exemplos empíricos e históricos. Talvez, a contribuição de Sutton, aqui, seja meramente terminológica.

Outros trabalhos dessa terceira onda dão contribuições mais extensas por amarrarem outros fenômenos à memória com base nessa perspectiva. Heersmink (2013Heersmink, Richard. (2013), “A taxonomy of cognitive artifacts: Function, information, and categories”. Rev. Phil. Psych., 4: 465., 2017, 2018) discute a ideia de self distribuído, superando a ideia de que o self repousa na permanência do corpo ao longo do tempo; isto é, a existência de processos cerebrais é mais importante do que a consciência das experiências vividas. Há a retomada de trabalhos das Ciências Cognitivas como os de Sydney Shoemaker (1970) que desvinculam a memória e o self da consciência e do corpo. Shoemaker cunha o conceito de quasi-memory após analisar um caso clínico em que um indivíduo, após ter sofrido um acidente, manteve todas as suas memórias declarativas episódicas, sem, no entanto, reconhecê-las como tendo sido experienciadas por ele mesmo. Ou seja, a percepção originária está ausente, mas ao interagir com artefatos, como fotografias ou narrativas externas, o paciente reconhecia tais memórias, levando-o a experimentar estados mentais semelhantes ao narrador e reconhecendo-as como se fossem suas próprias - mesmo sem ter a sensação de tê-las vivenciado (Klein & Nichols, 2012Klein, Stan & Nichols, Shaun. (2012), “Memory and the sense of personal identity”. Mind, 121 (483): 677-702.). Com isso, a partir de uma perspectiva distribuída, o self deveria ter algum aporte externo (Reynolds, 2009Reynolds, Dylan. (2009), Personal identity, Sydney shoemaker and the possibility of extended selves. School of English Literatures, Philosophy and Languages Faculty of Arts University of Wollongong. Disponível em: http:// sydneybusinessschool.edu.au/content/groups/public/@web/@arts/documents/ doc/uow062031.pdf.
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; Heersmink, 2017), já que a interação com o ambiente externo (artefatos e pessoas) também é uma das principais responsáveis. Assim, a terceira onda sustenta que os processos serem externos ou internos é uma consequência de fatores sociais, históricos e culturais; por isso, processos externos podem se tornar internos, e vice-versa. Ou seja, não há a pressuposição a priori (como acontece na primeira e segunda onda) de que os processos cognitivos têm um locus rastreável (na primeira onda, assume que são internos e podem se estender, potencializando-se, e na segunda, que são em parte externos e em parte internos), mas que estão completamente distribuídos e sua dinâmica é circunstancial a depender das práticas sócio-histórico-culturais do contexto.

Todas essas três ondas rompem com a ideia, tão presente na Filosofia, de que, ao rememorar, cada indivíduo carregaria toda a informação, em forma de representações internas, que constituem a formação de uma memória. Há a ampla aceitação da premissa de que, para desempenhar qualquer tarefa cognitiva, o entorno (sobretudo o entorno social) é fundamental e necessário. Premissa básica da qual Halbwachs partiu muitas décadas antes. Essas três ondas, no entanto, não tecem reflexões sobre o sentido e sobre o entorno não imediato (incluindo entes sociais abstratos). Não há sequer discussões sobre algo que já vem sendo discutido nas Ciências Cognitivas, de que a mente é uma “máquina semântica” que detecta e cria significado. Os próprios estudiosos das vertentes da mente estendida reconheceram muito recentemente a ausência desses debates, e vêm propondo a necessidade de uma “nova onda”.

A quarta onda do externalismo

Uma das reivindicações centrais da teoria da memória coletiva de Halbwachs é que a memória seria um fenômeno eminentemente social, de modo que a própria garantia de sua existência dependeria de mecanismos coletivos. Por defender que fenômenos externos são fatores necessários para compreender um fenômeno primariamente individual, como é o caso da memória, Halbwachs mobiliza princípios básicos que seriam defendidos, hoje, por uma posição que poderíamos chamar de “externalista”. Assim, Halbwachs antecipa algo como uma perspectiva da mente estendida. Há interpretações segundo as quais, ao argumentar que a memória se manifesta socialmente, ele estaria, na verdade, argumentando mais em favor de uma cognição a nível de grupo do que uma mente estendida, de fato. A verdade é que, ao entender que, ao rememorar, o indivíduo perspectiva o mundo de acordo com o grupo ao qual se alinha no momento da rememoração, bem como ao assumir que a “memória do grupo” só se manifesta através de memórias individuais, não é possível dizer que há quaisquer prioridades ontológicas de nenhum dos dois níveis. Existe algo compartilhado entre o indivíduo e o entorno que é atividade ao rememorar. Ao ser inespecífico e tratar de várias hipóteses relativas ao “rememorar”, Halbwachs abarca essa relação entre o indivíduo e o social de maneira compreensiva. Um lugar ao qual as ondas derivadas da hipótese da mente estendida demoraram a chegar. A quarta onda busca estender essa interação entre mente e ambiente não apenas para artefatos materiais e tecnológicos (como defendem a primeira e a segunda ondas) e para outros indivíduos (como defende a terceira onda), como também para o universo das práticas culturais e das representações simbólicas. Um lugar em que Halbwachs já estava quase cem anos antes. Encontrar e reconhecer os momentos em que sua obra tocou, de alguma maneira, todas as abordagens e hipóteses presentes nas ondas externalistas não é tão óbvio ou saliente. Como dissemos, ele peca em termos de precisão conceitual, pois não tinha disponíveis avanços das Ciências Cognitivas que trouxeram clareza quanto às possibilidades biológicas da memória, bem como não finalizou muitos de seus escritos que foram posteriormente compilados.

Vistos alguns dos argumentos de Halbwachs e das ondas externalistas, temos claro que não partem de um individualismo metodológico, também não caem em solipsismo. Nesse sentido, são abordagens que têm afinidades e podem se complementar. Assim, nesta seção, buscaremos demonstrar: em que momentos cada uma das ondas poderia ter bebido da obra de Halbwachs para levantar insights que antecipassem as outras ondas; em que medida as proposições das ondas externalistas foram muito mais claras do que as proposições de Halbwachs; e como essa quarta onda, tão alinhada ao trabalho de Halbwachs, poderia ser um caminho interessante para o tratamento do fenômeno da memória na contemporaneidade.

A primeira onda apresenta como exemplo principal o caso de Otto e seu caderno. Esse exemplo, assim como o da Terra Gêmea, é limitante, no sentido de constituírem apenas experimentos mentais com situações hipotéticas que não dão conta de abordar o mundo real. Otto e seu caderno não estão isolados do mundo, há outras referências e artefatos externos nos quais Otto pode registrar ou apoiar seus pensamentos. Existem outras pessoas que poderiam lembrá-lo, portanto a extensão não se dá apenas em termos de artefatos materiais, mas também de seres sociais. Clark e Chalmers (1998Clark, Andy & Chalmers, David. (1998), “The extended mind”. Analysis, 50: 7-19.) também não exploram a variabilidade de artefatos externos nem as diferentes funções que cada tipo pode ter. Já na terceira onda, trabalhos como o de Heersmink (2013Heersmink, Richard. (2013), “A taxonomy of cognitive artifacts: Function, information, and categories”. Rev. Phil. Psych., 4: 465.) classificam os artefatos mnemônicos como semânticos e ecológicos, sendo que os semânticos podem, ainda, ser classificados como icônicos, simbólicos e indexicais - em alusão à terminologia adotada por Charles Peirce. Cada um deles interagirá com a mente de uma maneira diferente. Além disso, Otto sofria de Alzheimer, uma patologia que afeta um tipo específico de capacidade cognitiva, sobretudo, em um primeiro momento, a capacidade de rememoração de eventos recentes. Em muitos casos, eventos longínquos, como acontecimentos da infância, são claramente rememorados pelo paciente. Assim, logo de saída, Clark e Chalmers (1998), ao partirem desse exemplo único, criam um forte viés para se pensar a questão da memória. Eles, assim como Halbwachs, não fazem uma diferenciação entre “memorizar” e “rememorar”; no entanto, Halbwachs inclui ambos os processos cognitivos em sua obra, ao passo que Clark e Chalmers só abarcam o primeiro.

Dentro de sua inespecificidade, Halbwachs também traz muitos exemplos que, todavia, abrangem desde processos de rememoração até de memorização. Em Les cadres sociaux de la mémoire (1925), ele abre o livro com o exemplo de uma menina que sai de sua terra natal e, desconectada daquele ambiente social, consegue lembrar pouco da infância - um exemplo claro de rememoração e da importância do millieu social para desempenhá-lo. No texto de La mémoire collective chez les musiciens (1939), que compôs posteriormente o livro La mémoire collective (1950), ele traz o exemplo dos músicos. Os elementos são os mesmos apresentados por Clark e Chalmers (1998Clark, Andy & Chalmers, David. (1998), “The extended mind”. Analysis, 50: 7-19.): papel e uma mente. Conforme Halbwachs:

[…] como os signos e combinações musicais simples subsistem no cérebro, é inútil que assim se conservem também as combinações complexas, é suficiente que eles estejam em folhas de papel. Aqui a partitura desempenha exatamente o papel de substituto material do cérebro. […] aqui como em qualquer organismo, o trabalho se divide, as funções são executadas por órgãos diferentes; pode-se dizer que, se os centros motores que condicionam os movimentos dos músicos estão dentro de seu cérebro ou em seu corpo, seus centros visuais, em parte, estão fora, pois seus movimentos estão ligados aos signos que eles leem em suas partituras (Halbwachs, [1950] 1997, p. 24).

Entretanto, Halbwachs não está considerando apenas uma anotação pontual de alguém que precisa registrar aquele conteúdo para posteriormente resgatá-lo, pois não consegue memorizá-lo. O exemplo é mais complexo, na medida em que o que está registrado no papel é um sistema simbólico inteligível a um universo específico de pessoas que precisa desse sistema para operar um processo cognitivo: “o fato é que esses signos resultam de uma convenção entre vários homens. A linguagem musical é uma linguagem como as outras, isto é, ela supõe um acordo prévio entre os que a utilizam” (Halbwachs, [1950] 1997, p. 31). O sistema musical, que possui uma materialidade, atua conjuntamente com a mente do músico. Ele fornece as principais representações simbólicas que ajudarão o músico a lembrar e condicionar os movimentos que precisa executar para tocar:

[...] é inconcebível que todas essas combinações [de signos musicais] se conservem exatamente tais como são no córtex cerebral, sob a forma de mecanismos que preparariam os movimentos que preparam os movimentos necessários para os reproduzir. [...] De fato, essas combinações de signos estão inscritas fora do cérebro, sobre folhas de papel, isto é, elas se conservam materialmente desde fora. É certo (salvo em casos excepcionais), o cérebro de um músico não contém, não conserva a notação sob uma forma qualquer, mas é suficiente para que ele possa reproduzir todos os trechos de uma música que ele tenha tocado e que ele terá que executar de novo. No momento em que ele executa um trecho já ensaiado, o músico não sabe de cor, em geral, não o conhece totalmente (Halbwachs, [1950] 1997, pp. 23-4, grifos nossos).

O argumento de Halbwachs, nessas passagens, encaminha-se para algo como a defesa da segunda onda externalista em que há uma complementaridade entre mente e artefatos externos. Os músicos podem até externalizar alguns processos cognitivos ao escrever notações musicais para se lembrarem depois, pois, mesmo sem terem Alzheimer, a capacidade cognitiva não dá conta de “armazenar” informações tão complexas. Mas o fazem a partir de um sistema simbólico já existente e anterior a eles. Usando a terminologia cunhada por Heersmink (2013Heersmink, Richard. (2013), “A taxonomy of cognitive artifacts: Function, information, and categories”. Rev. Phil. Psych., 4: 465.), as partituras (e fragmentos de notações musicais, como um todo) são artefatos simbólicos, pois expressam uma série de informações e significados que se amparam em símbolos socialmente organizados e compartilhados. Nesse sentido, não há apenas uma potencialização da capacidade cognitiva pelo meio externo, como no caso da primeira onda, mas uma remodelação do aparato representacional dos músicos que constroem esses processos cognitivos com base nesse sistema simbólico. Uma transformação, no entanto, que não é fixa, pois continua precisando desses artefatos externos: “[…] isole o músico, prive-o de todos esses meios de tradução e fixação dos sons que a escrita musical representa: será muito difícil para ele e quase impossível de fixar na memória um número assim grande de recordações” (Halbwachs, [1950] 1997, p. 25).

Halbwachs, contudo, não se restringe ao exemplo dos músicos; caso contrário, poderíamos dizer que ele teria trazido contribuições muito próximas às da segunda onda, em que há assunção da premissa da complementaridade entre mente e recursos socioculturais em uma perspectiva sincrônica que centra a explicação em uma agência cognitiva individual. Ele vai além, também abarcando a visão integracionista e descentralizada da terceira onda, em que os processos cognitivos estão distribuídos e são constituídos em ambientes sócio-técnico-culturais mais amplos em que não é mais possível rastrear a posse ou domínio do processo cognitivo. A ideia de ininterrupta extensão entre engramas e exogramas, apresentada pela terceira onda, está dada em Halbwachs. O que é impreciso em Halbwachs é a variabilidade de representações simbólicas objetivas de que ele trata, que vão desde narrativas orais até textos sistemáticos, como a Bíblia, que descrevem passagens testemunhadas pelos apóstolos (Halbwachs, [1941] 2008). Assim, em trabalho anterior, ao discutir as lacunas terminológicas de Halbwachs (Cordeiro, 2015Cordeiro, Veridiana Domingos. (2015), Por uma Sociologia da Memória: análise e interpretação da teoria da memória coletiva de Maurice Halbwachs. São Paulo, dissertação de mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.), tentamos endereçar essa questão ao assumirmos que, para ele, qualquer representação simbólica relativa ao passado tinha uma possibilidade de objetivação na medida em que era intersubjetiva. Nesse sentido, uma unidade de memória, que renomeamos de Conteúdo Mnemônico Epistemologicamente Acessível (cmea), pode ser forte ou fraca. Isto é, um cmea fraco, que é cognitivamente apreensível e compartilhado por mais de uma pessoa, por exemplo, são conteúdos mais efêmeros e flutuantes, pois dependem da existência dos indivíduos (e suas mentes) para que continuem existindo; ao passo que um cmea forte é materializado em meios físicos, podendo perdurar para além da interação imediata entre dois indivíduos. Halbwachs já havia superado essa distinção entre engrama e exograma, pois para ele essas barreiras já estavam borradas, passando assim para a discussão sobre a materialização, ou não, de uma memória. Em outro trabalho, argumentamos que a digitalização do mundo contemporâneo ampliaria essa possibilidade diacrônica entre conteúdos cognitivos materializados e posteriormente internalizados devido aos repositórios e meios de interação digitais presentes na contemporaneidade (Cordeiro, 2020).

Gallagher (2013Gallagher, Shaun. (2013), “The socially extended mind”. Cognitive Systems Research. Disponível em http://dx.doi.org/ 10.1016/j.cogsys.2013.03.008.
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; Gallagher & Crisafi, 2009) propõe uma quarta onda externalista que mantenha essa perspectiva integracionista da mente distribuída, defendida pela terceira onda, mas que abarque o papel das instituições e respectivas normas sociais sem se restringir a “nichos cognitivos” que sejam mapeáveis; ou seja, que envolva uma distribuição mais extensa e abstrata. Ele não propõe que instituições (e suas respectivas práticas e informações) sejam extensões da nossa mente, mas sim que as práticas empreendidas dentro delas moldam nossos processos cognitivos. Mais do que isso, a possibilidade de existência dessas instituições está vinculada a um conjunto de processos cognitivos que são sistematicamente postos em curso para garantir suas permanências. Ou seja, sem práticas cognitivas distribuídas, não haveria a possibilidade da existência de certas instituições. Ora, ao tratar, por exemplo, da memória familiar ou da memória cristã em Les cadres sociaux de la mémoire (1925), Halbwachs está justamente dentro da mesma chave argumentativa de Gallagher. A Igreja Católica, enquanto instituição, só existe e se perpetua na medida em que várias pessoas rememoraram e comemoraram (seja por datas como o Natal e a Páscoa, seja por rituais como a missa) passagens da vida de Jesus. Da mesma maneira, essas práticas empreendidas dentro dessas instituições também seriam responsáveis por moldar a própria forma como nós rememoramos. Para mobilizar um exemplo da família: um encontro familiar em que há compartilhamento, entre pais, avós e filhos, de recordações do primeiro dia de aula do filho mais novo e circulação de fotografias e vídeos deste momento transforma, por completo, a maneira como as pessoas se recordam desse ponto do passado. O efeito é inclusive reverso: a família, após esse compartilhamento, também não é mais a mesma. Ali, alguns laços se reforçaram, outros se desfizeram, novas marcas emocionais foram deixadas. E isso acontece mais de uma vez. Nesse sentido, na medida em que nos engajamos cognitivamente com essas instituições, nós também as transformamos, são processos de transformações dialéticas e diacrônicas. Nós criamos instituições a partir de processos mentais, mas nossos processos mentais são engajados em instituições que são anteriores a nós. Essas instituições socialmente estabelecidas às vezes constituem, às vezes facilitam e às vezes impedem, mas em cada caso possibilitam e moldam nossas interações cognitivas com outras pessoas (Gallagher, 2013).

Um aspecto para o qual a quarta onda chama atenção é a criação conjunta de significados que acontecem dentro das instituições (Gallagher, 2013Gallagher, Shaun. (2013), “The socially extended mind”. Cognitive Systems Research. Disponível em http://dx.doi.org/ 10.1016/j.cogsys.2013.03.008.
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). Do ponto de vista de uma perspectiva externalista, qualquer interação com o mundo externo (sejam ferramentas, tecnologias ou outros indivíduos) seria responsável por criar significado para o agente. Assim, o significado não é uma empreitada individual, mas algo moldado por práticas nas instituições,

[…] a cognição não é apenas sobre conteúdo (tanto derivado, quando não derivado) que é portado por veículos (sejam neurais, como extra neurais); a cognição é um envolvimento ativo e emocionalmente embebido no e pelo mundo, através do qual resolvemos problemas, controlamos comportamentos, entendemos, julgamos, explicamos e fazemos coisas que são moldadas por ferramentas, fatores ambientais, práticas sociais etc. (Gallagher, 2013Gallagher, Shaun. (2013), “The socially extended mind”. Cognitive Systems Research. Disponível em http://dx.doi.org/ 10.1016/j.cogsys.2013.03.008.
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, p. 8).

É uma visão muito mais ampla de cognição que pode ser coadunada com perspectivas sociológicas mais amplas, para além da contribuição de Halbwachs, que estejam preocupadas com o sentido. As vertentes externalistas começam a apontar para o problema do sentido, que não é tratado em nenhuma das ondas. E também não é tratado por Halbwachs. Tanto em Halbwachs, quanto nas vertentes externalistas, escapa a questão do sentido da memória. Ou melhor, o significado está dado e não parece haver um problema sobre o mútuo entendimento dos indivíduos acerca de significados anteriormente criados e acessíveis. Os indivíduos assim teriam apenas uma relação reativa a eles, dado que sua criação e manutenção parecem ser externas.

Sabemos que há toda uma outra tradição sociológica e filosófica para a qual o problema central da vida social, seja ela em seus aspectos puramente mentais, seja na relação com artefatos simbólicos, é a compreensão do sentido/significado das ações/comportamentos de outros. Isso, pois justamente não saberíamos exatamente o que os outros pensam, o que querem dizer, o que significam suas palavras e ações para si próprios e para os outros. Traçando uma linha temporalmente paralela à que foi feita desde Halbwachs (ou até anteriormente, de Durkheim) até Gallagher, poderíamos partir de Max Weber e Georg Simmel indo até filósofos/sociólogos contemporâneos como Stephen Turner (2018Turner, Stephen. (2018), Cognitive Science and the Social: a primer. Londres, Routledge., 2021) e mesmo psicólogos e outros filósofos da mente que se preocupam com o problema da mente dos outros e da empatia (Tomasello, 2008Tomasello, Michael. (2008), Origins of human communication. Cambridge, ma, mit Press.). Assim como Simmel acreditava que a vida mental dos outros era um mistério impossível de ser decifrado, as bases da teoria social de Max Weber estão na constante tentativa de compreender o sentido da ação intentado pelos outros. Essa é a questão clássica do Verstehen, que atualmente se tenta tratar de maneira naturalista com novas descobertas das Neurociências, como é o caso dos neurônios-espelho (Rizzolatti & Sinigaglia, 2006Rizzolatti, Giacomo & Sinigaglia, Corrado. (2006), Mirrors in the brain: How our minds share actions and emotions. Oxford, Oxford University Press.). A tentativa de estabelecer a relação entre o Verstehen e um mecanismo cerebral, como seria o caso dos neurônios-espelho, tem sido também fortemente desenvolvida por Stephen Turner em muitos de seus textos nas últimas décadas (Turner, 2021). Além disso, não podemos descartar as teorias sobre simulação da mente de outros, e a hoje estabelecida teoria da mente (theory of mind), que acaba tornando a inteligência não apenas humana, mas de primatas superiores, golfinhos, polvos, corvos e outros animais, em um problema de tentar entender os estados mentais de outro indivíduo ou animal. Não à toa, textos como de Gallagher apontam para a ausência da questão do sentido dentro das abordagens externalistas. É um tema que tem sido tratado constantemente e de forma interdisciplinar.

Entretanto, as abordagens externalistas, assim como Halbwachs, poderiam se isentar de tocar em questões sobre o sentido sem perder sua força teórica. Contudo, no que tange à questão da memória, ao desenvolver trabalhos empíricos, esse é um problema que emerge. A expressão empírica da memória se dá majoritariamente por narrativas (orais ou escritas). Nesses casos, importa também saber não apenas como é possível o funcionamento da memória, mas qual o sentido do que está sendo expresso naquela narrativa.

Conclusão

Ao longo do artigo, trouxemos argumentos apresentados por Maurice Halbwachs e pelas vertentes externalistas da Filosofia da Mente acerca do fenômeno da memória, em um caminho para apontar o primeiro como predecessor das segundas. Rever esses argumentos nos permite não apenas entender como Halbwachs foi vanguardista na contraposição a abordagens internalistas da memória, que apresentavam argumentos solipsistas e que relegavam a memória à arbitrariedade de uma mente “isolada”, como também reconhecê-lo como um sociólogo da mente. É comum atribuirmos a George Herbert Mead o gérmen de uma Sociologia da Mente. Ele afirmava, na década de 1930, que “a experiência subjetiva de um indivíduo tem que ser trazida para a relação com as atividades naturais e sociobiológicas do cérebro a fim de fornecer uma explicação aceitável da mente; e isso só pode ser feito se a natureza social da mente for reconhecida” (Mead 1934, p. 133). Mead certamente tratou dessa questão com maior clareza e explicitude que Halbwachs. Entretanto, é válido buscar outras contribuições na Sociologia que tenham esboçado este caminho (ainda que por outras vias) já na década de 1920. Fazer uma leitura cognitivista da obra de Halbwachs é alinhar-se com as leituras “fracas” ou “distribuídas” de sua obra dentro dos Memory Studies, possibilitando que ele entre em diálogo com outras áreas científicas, como as Ciências Cognitivas e a Filosofia da Mente. Com isso, não perdemos, contudo, o forte viés sociológico de Halbwachs e podemos apontar para essas áreas a importância da perspectiva sociológica na análise da memória. Essas áreas (Sutton et al., 2019Sutton, John et al.. (2019), “Does collaboration with an intimate partner support memory performance? An exploratory case series of people with epilepsy or acquired brain injury”. Neuro Rehabilitation, 45: 385-400.; Harris et al., 2008Harris, Celia B.; Paterson, Helen M. & Kemp, Richard. (2008), “Collaborative recall and collective memory: What happens when we remember together?”, Memory, 16 (3): 213-230.; Stone et al., 2013Stone, Charles et al. (2013), “Forgetting our personal past: Socially Shared retrieval-induced forgetting of autobiographical memories”. Journal of Experimental Psychology, 142 (4): 1084-1099.) vêm conduzindo pesquisas sobre memória em ambientes controlados de laboratório com indivíduos (pareados com outras pessoas, objetos ou tecnologias) que são estimulados artificialmente para se lembrarem de uma série de coisas diferentes, como palavras, experiências, imagens, entre outras. Embora esses trabalhos partam da ideia de que o ambiente externo seja crucial para o processo de rememoração, ao conduzir pesquisas empíricas, eles continuam considerando a memória como um fenômeno posto em um “vácuo social” (Zerubavel, 1997Zerubavel, Eviatar. (1997), Social mindscapes: An invitation to cognitive sociology. Cambridge, Harvard University Press.), pois não levam em conta a realidade social amplamente. Assim, como essas vertentes externalistas da Filosofia da Mente já afastaram o solipsismo metodológico, taxonomias naturalistas e teorias computacionais do processamento cognitivo, é chegada a hora de se voltarem para um diálogo com a Sociologia (sejam autores clássicos como Halbwachs, que tem muito a contribuir, ou outras contribuições contemporâneas) para avançar na compreensão e na pesquisa de fenômenos cognitivos como a memória.

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  • 1
    . Ainda que houvesse uma representação coletiva da memória para os gregos, o termo mneme tinha como principal sentido as memórias ou lembranças individuais. Com poucas exceções, o tratamento individualista da memória estará presente em toda a filosofia antiga que forma o modo de pensar sobre a memória. Os principais desenvolvimentos conceituais da memória se devem a Platão (ca. 428-348 a.C) e especialmente Aristoteles (384-322 a.C). A discussão sobre a memória, neste momento, tinha um caráter ontológico. Em alguns momentos, apresentava-se como uma contrapartida empírica à crença no valor último de mortalidade/imortalidade. A primeira contribuição conceitual que persiste até os tempos modernos é a diferença entre mne- me- - e anamne- sis, em que mne- me- estaria relacionada ao modo como a visão opera, ao passo que a anamne- sis teria sua operação correspondente na audição. Platão foi o primeiro a utilizar ambos os termos com o status de conceitos filosóficos, principalmente no diálogo Meno. Neste diálogo, Platão formula sua famosa teoria da imortalidade da alma e a teoria do conhecimento como lembrança - mathe- sis é anamne- sis.
  • 2
    . Halbwachs estudou com Henri Bergson no Lycée Henry iv, ainda na adolescência, e mais tarde acompanhou seus cursos no Collège de France e na École Normale Supérieure até o começo dos anos 1900 (Wetzel, 2009Wetzel, Dietmar. (2009), Maurice Halbwachs: klassiker der Wissenssoziologie. Konstanz, Ed. uvk Verlagsgesellscaft.).
  • 3
    . A memória desempenhou um papel central na análise sobre a experiência do tempo de Bergson, sendo redefinida pelo conceito ontológico e epistemológico de duração (durée) no interior de sua filosofia subjetivista. Bergson rejeitou considerações objetivistas, argumentando que “a subjetividade seria a única fonte de conhecimento filosófico verdadeiro” (Ollick, Vinitzky-Seroussi & Levy, 2011Ollick, Jeffrey; Vinitzky-Seroussi, Vered & Levy, Daniel. (2011), The collective memory reader. Nova York, Ed. Oxford., p. 17).
  • 4
    . A relação de dependência entre memória e identidade foi a resposta dada por John Locke ([1689] 1996) para o “problema da persistência da identidade” no tempo, que foi perseguido pela Filosofia durante séculos. A essa resposta, foi dado o nome de “evidência da memória”, pois a tese consiste em que é necessário que lembremos minimamente sobre o nosso passado para reconhecermos o eu presente como o idêntico ao eu passado. Nessa tese, Locke pressupõe a continuidade da consciência como premissa para que haja a identidade entre o eu passado e o eu presente. Ele calca a tese em uma hipótese subjetivista e una do self.
  • 5
    . Halbwachs conheceu Durkheim em 1905 (Wetzel, 2009Wetzel, Dietmar. (2009), Maurice Halbwachs: klassiker der Wissenssoziologie. Konstanz, Ed. uvk Verlagsgesellscaft.). Mais tarde, foi introduzido ao grupo durkheimiano por François Simiand e Marcel Mauss, “rapidamente se afirmando como um dos principais colaboradores de Émile Durkheim” (Montigny, 2005Montigny, Gilles. (2005), Maurice Halbwachs: vie, oeuvres et concepts. Paris, Ellipses Press., p. 6).
  • 6
    . É interessante notar que Durkheim estava atento às novas teorias científicas, como a teoria neural desenvolvida por Ramon e Cajal fundamentalmente na década de 1890.
  • 7
    . Tulving também baseia essa distinção em pesquisas científicas que demonstram que o processamento/operação se dá em áreas diferentes do cérebro. A memória declarativa (sobretudo a episódica), por exemplo, é processada pelo hipocampo.
  • 8
    . Não é possível saber se Freud chegou a ler Halbwachs, mas certamente Freud já ecoava no meio intelectual francês na época da publicação de Les cadres sociaux de la mémoire (1925). Freud é lido e citado por Halbwachs não apenas pela importância que a Psicanálise estava tomando na época, como também pelo fato de o psicanalista austríaco tratar de dois temas caros a Halbwachs: a memória e os sonhos. É válido lembrar que o Freud lido por Halbwachs é aquele anterior à década de 1920, quando ainda não havia acontecido a guinada histórica em sua obra - que se concretiza nos anos 1930, embora já apresentasse algumas formulações em Totem e tabu (1913) (Cordeiro, 2015Cordeiro, Veridiana Domingos. (2015), Por uma Sociologia da Memória: análise e interpretação da teoria da memória coletiva de Maurice Halbwachs. São Paulo, dissertação de mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.).
  • 9
    . Halbwachs foi deportado para a Alemanha em 1945 e levado ao campo de trabalho para judeus de Buchenwald, em Ettersberg, próximo da cidade cultural de Weimar, onde faleceu em decorrência de doença e inanição.
  • 10
    . Dada a variedade de trabalhos que surgiram dessa hipótese inicial acerca da mente estendida, há outros trabalhos que propõem classificações para essas vertentes, como por exemplo o trabalho de Hurley (2010Hurley, Susan. (2010), “The varieties of externalism”. In: Menary, Richard (ed.). The extended mind. Cambridge, ma, mit Press.) que pensa essas vertentes em termos de “what” e “how”, ou seja, as divide em função de seus focos principais: nos conteúdos cognitivos (what) ou nos processos cognitivos (how).
  • 11
    . O argumento da Terra Gêmea pode ser sintetizado da seguinte maneira: Putnam supõe a existência de um planeta exatamente igual ao planeta Terra, que ele chama de Terra Gêmea. Nele haveria um equivalente exato de todas pessoas e objetos que habitam na Terra. Em relação a isso, contudo, existiria uma única exceção: há um líquido que é superficialmente idêntico ao que chamamos de “água”: possui a mesma função da “água”, mas não é composto de h2o e sim de uma substância “xyz”. Putnam também imagina que terráqueos e “terráqueos gêmeos” desconheçam a composição química dos líquidos em seus planetas. Porém, tanto os habitantes da Terra, quanto os da Terra Gêmea utilizam a mesma palavra para se referirem aos seus líquidos: “água”. Se um habitante da Terra (h) e seu equivalente exato na Terra Gêmea (h’) usarem a palavra “água” para falar sobre o líquido em um mesmo contexto, como é possível saber se eles estão se referindo à mesma coisa? Sendo seus cérebros idênticos, neurônio por neurônio, molécula por molécula, quando h usa o termo “água”, ele se refere a h2o, enquanto h’, ao fazer o mesmo, se refere a xyz. Como conclusão, os próprios conteúdos internos do cérebro ou da subjetividade de uma pessoa não são suficientes para determinar a referência de uso, pois esta dependeria de condições externas à mente.
  • 12
    . Sutton usa os termos engram e exogram para fazer alusão às unidades da memória. Primeiramente, o biólogo e pesquisador Richard Semon denominou de engram a unidade de informação cognitiva dentro do cérebro no qual uma memória era armazenada (ver mais em Richard Semon, The mneme, 1921). Mais tarde o termo foi amplamente usado para se referir a impressões mentais causadas por traços de memória na mente. Em contraposição a esse substrato físico e subjetivo da memória, os exograms são dispositivos simbólicos ligados ao contexto da rememoração que ajudam a estender e aperfeiçoar o nosso processo de rememoração.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2020
  • Aceito
    11 Maio 2021
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: temposoc@edu.usp.br