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Tentando “chegar lá”: as experiências de jovens em um cursinho popular

Trying to “make it there”: underprivileged students and their attempts to reach Higher Education

Resumo

Este artigo retrata o caso de jovens de camadas populares que buscam alcançar o ensino superior com base em uma iniciativa de “cursinho popular” organizada na cidade de São Paulo. O texto busca caracterizar e evidenciar, primeiramente, os agenciamentos de socialização a partir dos quais esses jovens são investidos de disposições ao alongamento de suas expectativas escolares, incorporando o ensino superior como destino educacional pressentido como “possível” por eles. Em seguida, o artigo busca esclarecer como esses agenciamentos se desdobram, no entanto, em desajustes, limites e inadequações entre as disposições incorporadas por esses jovens e as exigências dos modos de seleção próprios às instituições de ensino superior público, que passam a ser valorizadas e pretendidas por eles a partir de suas passagens pelo cursinho popular.

Sociologia da educação; Habitus; Jovens de camadas populares; Acesso ao ensino superior; Cursinhos populares

Abstract

This article focuses on the reality of underprivileged students who aim to enter Higher Education through their participation on a tuition-free “prep course” organized within the city of Sao Paulo. Firstly, the text evidences the internalization of dispositions, among these students, towards the prolongation of their educational trajectories through their taking part in the selection processes for accessing public Higher Education. Secondly, nevertheless, I argue that key aspects of their socialization and schooling trajectories lead to inadequacies and barriers between their incorporated dispositions and the exigences of such modes of selection.

Sociology of education; Habitus; Underprivileged youth; Democratization of higher educacation; “Cursinhos populares”

Introdução

No Brasil, a ampliação do ensino superior a camadas sociais historicamente alheias a ele foi acelerada durante os anos de 1990, caracterizando uma relação historicamente tensa entre o alargamento desse nível de ensino e a tardia expansão do ensino secundário no país1 1 . Para caracterizações históricas sobre a expansão tardia da educação básica no país, recomendo os clássicos estudos de Otaíza Romanelli (1978) e de Luiz Antônio Cunha (1975). . Se a primeira onda de expansão do ensino superior privado data do início da década de 1970 (Schwartzman, 1993SCHWARTZMAN, S. (1993), “Policies for higher education in Latin America: the contexto”. Higher Education, 25: 9-20.), a literatura ainda tratava a baixa cobertura do ensino secundário como fator de estagnação de matrículas no ensino superior privado durante os anos de 1980. Essa estagnação é superada, sobretudo ao longo da segunda metade da década seguinte, em virtude tanto do crescimento nas taxas de acesso e de conclusão do nível secundário, quanto de estratégias empresariais e de mudanças institucionais que impulsionam o crescimento do setor privado na educação superior (Sampaio, 2000SAMPAIO, H. (2000), Ensino superior no Brasil: o setor privado. São Paulo, Hucitec.).

Ao final da primeira década dos anos 2000, a despeito dos sinais de estabilização dos egressos do ensino médio após sua expansão tardia2 2 . Vale observar que, entre a década de 1970 e os anos 2000, o contingente de estudantes do ensino secundário cresceu sete vezes (IBGE, 2013). , os dirigentes dos grandes conglomerados privados parecem voltar sua atenção à concorrência e à disputa pelo amplo contingente de egressos desse nível de ensino que não transitam diretamente para o ensino superior (Sampaio, 2011SAMPAIO, H. (2011), “O setor privado de ensino superior no Brasil: continuidades e transformações”. Revista de Ensino Superior da Unicamp. Disponível em: https://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/o-setor-privado-de-ensino-superior-no-brasil-continuidades-e-transformacoes, consultado em 17/5/2017.
https://www.revistaensinosuperior.gr.uni...
, p. 35).

Nesse contexto, ao longo da década de 1990, o processo de expansão dos matriculados no ensino superior centrou-se na figura do “estudante-trabalhador”: perfil majoritário de estudantes que ingressaram na educação superior durante a referida década. Esse perfil é composto, conforme registra a literatura (Romanelli, 2003ROMANELLI, Geraldo. (2003), “Famílias de camadas médias e escolarização superior dos filhos: o estudante-trabalhador”. In: NOGUEIRA, Maria Alice; ROMANELLI, Geraldi. & ZAGO, Nadir. Família & escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. 2. ed. Petrópolis, Vozes, pp. 199-225.; Comin e Barbosa, 2011COMIN, Álvaro & BARBOSA, Rogério J. (2011), “Trabalhar para estudar: sobre a pertinência da noção de transição escola-trabalho no Brasil”. Novos Estudos Cebrap, 91: 75-95.), por indivíduos acima do intervalo de idade comumente associado à condição universitária (isto é, entre 18 e 24 anos), já acumulando um percurso considerável no mercado de trabalho, em posições e funções desempenhadas em período integral e, logo, inclinados à preferência por graduações mais curtas e oferecidas no período noturno, nos cursos mais frequentemente ofertados pelas instituições de ensino superior (doravante, IES) privadas, geralmente administração, direito e pedagogia.

Na década seguinte, a criação do Programa Universidade Para Todos (Prouni), em 20043 3 . Programa de concessão de bolsas, parciais ou totais, no ensino superior privado com base em critérios socioeconômicos conjugados ao desempenho dos candidatos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). , continuou a amparar o crescimento do setor privado. Wilson A. Mesquita (2012)MESQUITA, Wilson A. (2012), Ampliação do acesso ao ensino superior privado lucrativo brasileiro: um estudo sociológico com bolsistas do Prouni na cidade de São Paulo. São Paulo, tese de doutorado em sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. e Márcia Lima (2013)LIMA, Márcia. (2013), “As novas políticas de inclusão escolar e as famílias: o caso dos beneficiários do Prouni na Região Metropolitana de São Paulo”. In: ROMANELLI, Geraldo; NOGUEIRA, Maria Alice; ZAGO, Nadir. (orgs.). Família e escola: novas perspectivas de análise. São Paulo, Vozes, vol. 1, pp. 312-333. buscam descrever e analisar o perfil dos beneficiários do programa, evidenciando claras semelhanças com a figura dos “estudantes-trabalhadores” qualificada pela literatura mencionada.

Ao longo dos anos 2000, o setor público também passou a experimentar crescimento em termos da criação de novas instituições e aberturas de vagas a partir do Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), operacionalizado através de “termos de pactuação de metas” entre o Ministério da Educação e as instituições federais em torno de objetivos, tais como, por exemplo, elevar a média de alunos por docente e as taxas de conclusão dos cursos (Mancebo et al., 2015MANCEBO, D.; VALE, A. & MARTINS, T. (2015), “Políticas de expansão da educação superior no Brasil, 1995-2010”. Rev. Bras. Educ., 20 (60): 31-50.). Ainda assim, entretanto, ao final da primeira década dos anos 2000, cerca de três quartos das matrículas na graduação estavam concentradas no setor privado, caracterizado, no entanto, por volumes médios de capital simbólico e científico tendencialmente menores do que o volume médio desses capitais nas IES públicas.

A partir da oferta sensivelmente maior de vagas no setor privado, uma série de medidas foram implantadas, ao longo dos anos 2000, para fomentar a inclusão de perfis socioeconômicos e raciais de alunos historicamente excluídos do ensino superior público. Feres Jr. et al. (2011)FERES JR., J., DAFLON, V., & CAMPOS, L. A. (2011), A ação afirmativa no ensino superior brasileiro (Gemaa). Rio de Janeiro, Iesp-Uerj., Guimarães (2013)GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. (2013), “Brasil, 1996-2012: anotações para uma sociologia política da adoção de cotas no ensino superior público”. Comunicação apresentada no 546 AFR Panel: Quotas in Brazilian universities: history and current Challenges. Latin American Studies Association, Washington., Almeida e Ernica (2015)ALMEIDA, Ana Maria F. & ERNICA, Maurício. (2015), “Inclusão e segmentação social no ensino superior público no Estado de São Paulo (1990-2012)”. Educação e Sociedade, Campinas, 36 (130): 63-83., bem como Perosa e Costa (2015)PEROSA, Graziela Serroni & COSTA, Taline de Lima E. (2015), “Uma democratização relativa? Um estudo sobre o caso da expansão da Unifesp”. Educação e Sociedade, 36 (130): 117-137., analisam, nesse contexto, diferentes experiências de políticas de cotas e/ou de reserva de vagas empreendidas por instituições públicas ao longo do período que se encerra com a Lei de Cotas, n. 12.711/2012, que torna obrigatório e unificado o regime de cotas nas instituições de ensino superior federais.

Vale igualmente ressaltar que a implantação do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), a partir de 2010, também foi projetada com o intuito, entre outros objetivos, de fomentar a inclusão de perfis discentes tradicionalmente excluídos do ensino superior público, uma vez que a unificação da seleção, via Enem, reduz os custos de inscrição e de realização da seleção para diferentes IES públicas: barreira particularmente sensível às chances de acesso ao sistema por parte de tais perfis discentes4 4 . Para uma recente análise sobre os resultados do Sisu em um contexto universitário delimitado, recomendo o estudo de Claudio Nogueira et al. (2017). .

Desde os anos de 1990, esse contexto de expansão do ensino superior nacional registrou, igualmente, a emergência e a multiplicação de cursos preparatórios para os exames vestibulares, organizados à margem do sistema educacional oficial. Os chamados “cursinhos populares” são organizados a partir do engajamento voluntário ou militante de seus colaboradores, apresentando-se como gratuitos ou financiados a taxas módicas, sendo frequentemente (embora não necessariamente) focados na atração de perfis socioeconômicos e raciais de alunos historicamente excluídos do ensino superior público (Zago, 2008ZAGO, Nadir (2008), “Cursos pré-vestibulares populares: limites e perspectivas”. Perspectiva, 26 (1): 149-174.).

Os jovens que passam a tomar conhecimento da existência dessas iniciativas e a acessá-las (muitas vezes, em função de suas redes de relações imediatas com amigos, vizinhos, colegas de escola etc.) chegam frequentemente aos “cursinhos populares” projetando seu ingresso no ensino superior a partir da figura do “estudante-trabalhador”. Ou seja, eles incorporam inicialmente suas possibilidades de acesso ao ensino superior (ES, doravante) a partir da combinação entre a simultânea inserção no mundo do trabalho e em IES privadas: estatuto identitário duplo personificado por amigos, parentes ou conhecidos mais velhos, cuja entrada no sistema de ensino superior remete, portanto, ao contexto de expansão do sistema vigente nos anos de 1990 e, como vimos, reatualizado nos anos 2000 pelo Prouni.

Ao adentrarem os “cursinhos populares”, entretanto, esses jovens passam a travar contatos regulares com colaboradores e organizadores de tais iniciativas, cujas condições de ingresso no ensino superior remetem à expansão das instituições e vagas no sistema público, combinadas às iniciativas de inclusão, próprias à primeira década dos anos 2000. Como veremos, esses colaboradores e organizadores são, em geral, graduandos em carreiras das humanidades ou das licenciaturas em IES públicas recém-implantadas no contexto do Reuni, frequentemente originados de grupos familiares caracterizados por modestos volumes de capital econômico e cultural.

A menção preliminar a dois informantes de meu estudo qualitativo sobre uma iniciativa de “cursinho popular”, situada na zona norte da cidade de São Paulo, pode ilustrar brevemente os perfis próprios aos dois estágios de expansão de nosso sistema de ensino superior que entram em interação no contexto relacional próprio aos cursinhos populares. Nesse quadro, Washington corporifica o estatuto objetivo do “estudante trabalhador”, que caracteriza a expansão do sistema privado ao longo dos anos de 1990, reatualizada pelo Prouni durante a primeira década dos anos 2000; já Natália incorpora subjetivamente algumas das condições próprias aos perfis ingressantes no ES público a partir dos anos 2000.

Washington (20 anos, entrevistado em 2014) é filho de migrantes nordestinos, com EM incompleto, mãe dona de casa e pai “administrador” (termos do informante) de três pequenos bares no centro de São Paulo. Após ingressar no cursinho popular, o garoto relata: “Eu estudei, estudei, estudei, mas, apesar de reconhecer que sou inteligente, eu vi que na [universidade] pública não ia dar…”. Assim, ele busca um curso ligado à área de tecnologia da informação (TI) em uma IES privada, contando com o suporte relacional da irmã (também uma “estudante-trabalhadora” em uma IES privada) para subjetivar, ou seja, para dotar de sentido, o ingresso em instituições de menor reputação simbólica no campo.

[…] ela [irmã] disse que, pra alguns empregos, [os empregadores] vão sim se preocupar com o nome da faculdade, mas quem faz faculdade é o aluno, não importa o nome, se você tá disposto a aprender, você vai aprender. Depois dessa conversa com minha irmã, eu quis Anhanguera, tentei na Anhanguera, mas consegui na FMU. Eu tive uma outra visão, né? Claro, pra um emprego de tecnologia, se vê uma USP no currículo, uma Unicamp, Unifesp, Unesp, você vai ser o primeiro, com certeza, mas também ela não vai desmerecer o conhecimento das outras [faculdades]. Hoje eu tenho um olhar bem abrangente nisso, faculdade quem faz é o aluno.

Assim, Washington cursava, durante a entrevista, uma graduação curta (previsão de cinco semestres de curso) em análise e desenvolvimento de sistemas, no período noturno, jornada complementada pelo trabalho, em tempo integral, no suporte de TI de uma concessionária japonesa de carros. Esse emprego lhe permitia o pagamento das mensalidades do curso, evidenciando a condição paradigmática de “estudante-trabalhador” experienciada pelo informante.

Já Natália (20 anos, entrevistada em 2014) é filha de mãe que possui escolaridade sensivelmente mais alta do que a ampla maioria dos pais de estudantes do cursinho popular (ES completo, Letras, em uma IES privada). A mãe é apresentada na entrevista junto à garota como “ex-dirigente de movimentos de moradia”.

A experiência no cursinho popular (no qual Natália passa de estudante à coordenadora, após seu ingresso universitário), na universidade pública (carreira de Políticas Públicas na UFABC) e na militância junto ao Partido Socialismo e Liberdade (Psol) faz a garota reproduzir algo da trajetória militante da mãe5 5 . Ativista ligada a setores progressistas da Igreja Católica e ao Partido dos Trabalhadores, que abandona a militância em 2006 em função da desilusão com os rumos do governo federal, segundo a informante. , incorporando práticas culturais, valores políticos, uma bolsa acadêmica e um estilo de vida sensivelmente distintos de suas amigas de colégio público, próximas à figura dos “estudantes-trabalhadores”, conforme a própria informante reporta:

Sim, minha prioridade máxima é a revolução, mas dentro disso… Como eu sei que ela não vai acontecer amanhã… [risos] Eu tento “razoabilizar”… Porque eu tenho uma outra vida, fora da militância… Eu tenho amigas que nem sabem o que eu faço, mas eu gosto delas! [risos] Eu gosto de elas não saberem o que eu faço! A gente fala sobre outras coisas, não sobre militância, não sobre política… É outro mundo… E eu gosto de respeitar elas, acho que é importante […]. Elas têm uma realidade totalmente diferente da minha, elas fazem faculdade, mas fazem as particulares, elas trabalham… São dois mundos diferentes…

Nesse quadro, portanto, “cursinhos populares” posicionam jovens de camadas populares entre as condições de ingresso universitário e os correspondentes estatutos identitários que demarcam perfis próprios a dois estágios distintos da expansão relativa do ensino superior no país, isto é, como vimos acima, a figura do “estudante-trabalhador” e os novos perfis de ingressantes em IES públicas a partir de carreiras menos concorridas.

Se os jovens chegam frequentemente aos cursinhos populares projetando seu ingresso universitário devido à figura dos “estudantes-trabalhadores”, ao longo de suas experiências em tais iniciativas, a projeção da universidade pública (por organizadores e colaboradores de perfis assemelhados ao de Natália) como destino educacional a ser valorizado e incorporado tende a ser difundida entre os estudantes da iniciativa: como vimos, por exemplo, no caso de Washington, que aspira ao acesso às IES públicas, retomando, entretanto, a trajetória de “estudante-trabalhador” após pressentir as baixas chances de aprovação nos vestibulares dessas instituições.

Desse modo, conforme argumentarei, os “cursinhos populares” terminam por se afigurar como privilegiados loci de observação empírica para abordar trajetos de socialização e de escolarização de jovens de camadas populares que:

  • Incorporam e expressam expectativas de percurso escolar alongado até o ensino superior primeiramente em IES privadas, passando a almejar, entretanto, o acesso às IES públicas durante o cursinho.

  • Porém, tais estudantes também se caracterizam, com frequência, por trajetos de socialização e de escolarização dissonantes ante as exigências próprias dos modos de seleção das IES públicas: uma minoria entre eles logra a aprovação em tais instituições, em decorrência de trajetos singulares de socialização e escolarização (caso de Natália, mãe com ES completo, militante política, alto capital cultural), enquanto a maioria dos informantes delineia trajetos assemelhados ao de Washington, retomando as expectativas próprias à figura do “estudante trabalhador”.

A partir de tais considerações, o texto buscará, pois, traduzir alguns dos resultados de meu estudo sobre uma iniciativa de cursinho popular, localizada na zona norte da cidade de São Paulo entre 2012 e 2015.

Nesse quadro, procurarei evidenciar traços e aspectos próprios à socialização e a escolarização desses agentes que os fazem incorporar disposições ao alongamento de suas vidas escolares até o ES, que tendem a se desdobrar, entretanto, em condições de socialização e de escolarização flagrantemente dissonantes ou inadequadas ante o modo de seleção vigente nas IES públicas, conforme observado entre a maioria dos informantes.

Veremos ao longo do texto, portanto, mais casos assemelhados ao de Washington do que ao perfil de Natália, uma vez que a descrição e a análise específica das condições singulares de socialização e de escolarização que impulsionam o acesso às IES públicas, entre estudantes da iniciativa de cursinho popular retratada na pesquisa, serão exclusivamente abordadas em outra oportunidade.

O cursinho popular investigado e o perfil social de seus estudantes

O cursinho popular em que conduzi meu estudo é sediado em uma escola municipal na zona norte da cidade de São Paulo, próximo ao Terminal Rodoviário do Tietê, sendo organizado e conduzido, desde 2011, por graduandos de universidades públicas (sobretudo da UFABC e da Unifesp), recentemente implantadas na região metropolitana de São Paulo, em carreiras de humanidades, licenciaturas e pedagogia.

Além da coleta de dados socioeconômicos sobre a origem e a trajetória dos estudantes desta iniciativa, a pesquisa de campo também abrangeu entrevistas em profundidade com 26 de seus alunos para a reconstrução de suas trajetórias de socialização e de escolarização, bem como a experiência etnográfica de observação das aulas e atividades da iniciativa.

Pelo cursinho investigado, passam cerca de quatrocentos estudantes por ano. Com idades entre 17 e 19 anos, em geral, esses jovens cursaram o EM em escolas públicas da zona norte de São Paulo no ano anterior ao seu ingresso na iniciativa, ou, por vezes, esses estudantes cursam a iniciativa simultaneamente ao terceiro ano do EM.

Os grupos familiares desses estudantes são constituídos, na pesquisa, como afiliados às camadas populares urbanas da região que circunda a iniciativa, uma vez que as origens e percursos sociais de tais grupos são recorrentemente caracterizados pelas seguintes propriedades objetivas:

  • Essas famílias habitam bairros periféricos ou semiperiféricos da zona norte da cidade (como o Jardim Peri, no extremo da zona norte, ou a Vila Brasilândia, por exemplo), bairros relativamente estigmatizados do centro da cidade (Bom Retiro, por exemplo) ou, ainda, localidades também periféricas na cidade de Guarulhos.

  • A maioria dos grupos familiares caracteriza-se por trajetórias de migração, empreendidas na geração dos pais ou dos avós dos informantes, a partir da região Nordeste do país ou do interior do estado de São Paulo (em muitos casos, localidades rurais nas quais os pais ou avós dos estudantes do cursinho eram trabalhadores agrícolas manuais).

  • Os pais dos estudantes são caracterizados por baixos volumes de capital cultural (segundo levantamento junto a matriculados no cursinho no ano de 2013, 56% de seus pais e mães não possuíam EM completo).

  • Do ponto de vista ocupacional, os pais e as mães dos informantes inscrevem-se, em geral, como trabalhadores de baixa qualificação no setor de serviços (empregadas domésticas, auxiliares administrativos, repositores de estoque, porteiros, seguranças, vendedoras “autônomas” ou no comércio local, entre outras ocupações).

  • Do ponto de vista racial, o corpo discente da iniciativa pesquisada pode ser considerado como heterogêneo, ainda que registre (segundo os dados levantados entre matriculados no ano de 2013) maior proporção de estudantes que se declararam como negros (35% declararam-se “pardos”, enquanto 12% declararam-se “pretos”, totalizando, portanto, 47% de negros) em comparação com a porcentagem de negros na população da cidade de São Paulo (37% segundo o Censo Demográfico do IBGE em 2010).

Certamente, há considerável variação e heterogeneidade dentro dessa amostra de grupos familiares, como vimos, inclusive, na oposição entre os casos de Natália e Washington.

A despeito dessa variação interna à amostra, porém, a análise exposta no texto busca alinhavar traços e aspectos recorrentes nos trajetos de socialização e de escolarização dos informantes, sobretudo entre perfis de informantes assemelhados aos de Washington. Ou seja, perfis de informantes que nos possibilitem apreender traços e aspectos próprios a percursos sociais e educacionais de estudantes do cursinho que têm expectativas de vidas escolares alongadas, chegando a aspirar às IES públicas (a partir de suas experiências na iniciativa), mas cujas disposições se revelam como dissonantes ante os modos de seleção próprios a tais instituições.

Assim, no próximo tópico, busco reconstituir esses traços e aspectos que caracterizam disposições ao alongamento das expectativas de vida escolar entre os informantes, a partir das seguintes dimensões analíticas: (a) a “moratória provisória” quanto à entrada no mundo do trabalho concedida ou negociada junto aos pais dos informantes; (b) os agenciamentos maternos no sentido de evitar episódios de “gravidez precoce” que poderiam obstaculizar o alongamento de tais trajetórias educacionais, tanto entre garotas, quanto entre garotos na amostra; e (c) o investimento moral e disciplinar que constitui um sentimento de distinção familiar, amparando as propensões ao investimento educacional observadas entre esses agentes.

A “moratória provisória” quanto à entrada no mundo do trabalho

Em seu conhecido estudo sobre casos de sucesso escolar no seio de camadas populares, Bernard Lahire (1997)LAHIRE, Bernard (1997), Sucesso escolar nos meios populares: razões do improvável. São Paulo, Ática. argumenta que, sendo o engajamento no jogo da concorrência escolar um investimento de longo prazo (e de caráter incerto para essas camadas), níveis mínimos de estabilidade material inscrevem-se como aspectos da socialização familiar que tendem a dotar os agentes de maiores propensões ao exercício do “ascetismo escolar”6 6 . Denomino de “ascetismo escolar” o conjunto de propensões à racionalização e ao autocontrole de pulsões à fruição presente e espontânea do tempo e da sociabilidade, infantil ou juvenil, em nome da incorporação e do exercício de graus profundos de investimento (de tempo, de atenção e de esforços) em atividades e tarefas escolares. . Nesse sentido, somente a experiência subjetivada de certa estabilidade material objetiva pode propiciar ao agente a antecipação intuitiva de possíveis recompensas futuras, de natureza simbólica ou material, à incorporação e ao exercício do ascetismo escolar.

Se essa condição de socialização é relevante à compreensão sociológica do sucesso escolar das crianças do ensino primário, ela se revela como igualmente central ao caso de jovens das camadas populares urbanas no Brasil, uma vez que, historicamente, a alta evasão no ensino secundário é problematizada, na literatura, com base nas necessidades materiais que encontrariam expressão no duplo movimento de entrada no mundo do trabalho e de abandono do mundo da escola durante o ensino secundário7 7 . Uma revisão crítica dessa literatura e de sua problemática é empreendida no estudo de Alves-Mazzotti (2002). .

Nesse quadro, as entrevistas com os informantes do estudo denotam que os pais desses garotos e garotas concedem a eles (ou “negociam” junto a eles, como veremos) algo que poderíamos qualificar como uma “moratória provisória” quanto às necessidades de ingresso no mundo do trabalho.

Tendo os próprios pais dos informantes sido iniciados no mundo do trabalho antes da conclusão do ensino secundário – por vezes na condição de trabalhadores manuais rurais nas pequenas localidades a partir das quais empreenderam seu trajeto de migração a São Paulo –, esses pais compreendem que livrar seus filhos da necessidade de trabalhar durante o EM equivale a provê-los com as condições necessárias para que esses garotos e garotas alcancem níveis de escolaridade mais altos e, por consequência, possam futuramente encontrar melhores condições de inserção ocupacional.

Se Bourdieu e Passeron (1970) apresentam a “ideologia do dom escolar” como a principal sociodiceia moderna para justificar e reproduzir desigualdades de posições sociais, nosso material qualitativo evidencia que os laços afetivos entre os informantes e seus pais impedem que os entrevistados reconheçam e apontem seus pais como “culpados” ou “responsáveis” por suas baixas escolaridades ou posições ocupacionais desvalorizadas. Assim, conforme veremos, os informantes tendem a representar seus pais como sujeitos que foram objetivamente impossibilitados de dar continuidade aos estudos em razão de necessidades materiais.

Desse modo, os informantes compreendem os agenciamentos de seus pais no sentido de lhes proverem uma “moratória temporária” ante o mundo do trabalho enquanto “sacrifícios” (o termo repete-se nas falas de alguns entrevistados) feitos pelos pais para lhes assegurarem melhores chances futuras de educação e de inserção ocupacional.

Vale ressaltar que tais agenciamentos foram objetivamente favorecidos pela conjuntura socioeconômica em que transcorreu a escolarização dos informantes, uma vez que essa conjuntura foi caracterizada por cerca de uma década de crescimento do trabalho formal, na qual o aumento dos ganhos reais de trabalhadores pouco qualificados no setor de serviços (posição ocupacional da maioria dos pais dos informantes) é destacado pela literatura econômica (Rugitsky, 2016RUGITSKY, Fernando. (2016), “Milagre, miragem, antimilagre: A economia política dos governos Lula e as raízes da crise atual”. Revista Fevereiro, Dossiê Brasil, abr. Disponível em http://www.revistafevereiro.com, consultado em 11/5/2017.
http://www.revistafevereiro.com...
).

Não obstante, como a exposição e a interpretação do material evidenciam (sobretudo em entrevistas realizadas com alguns dos pais dos informantes), a concessão familiar de tais moratórias não é, de modo algum, universal ou indistinta, por exemplo, entre irmãos em um mesmo grupo familiar.

Irene, 56 anos, ES incompleto, telefonista concursada em hospital público, reporta, na entrevista, afirmar recorrentemente ao seu filho Augusto, 18 anos (um de nossos informantes): “Olha, filho, enquanto eu puder, eu arrumo dois, três empregos, se for o caso [risos], mas você vai estudar o quanto você quiser, porque isso é o que eu prefiro, na verdade”.

De fato, a despeito da estabilidade que experimenta como funcionária pública, Irene revelou que, quando gastos imprevistos pressionam o orçamento doméstico, ela recorre a empregos temporários e informais como cuidadora de idosos ou no setor de telemarketing: um agenciamento que preserva Augusto da necessidade de trabalhar, principalmente em momentos de imprevistos financeiros na vida da família.

Não obstante, a moratória que Irene concede a Augusto, escorada nessas eventuais jornadas duplas de trabalho, não é estendida a Carlos, seu filho dois anos mais novo.

Segundo Irene reporta divertidamente na entrevista, os professores dos garotos sempre se impressionaram com a semelhança física entre os meninos, conjugada, no entanto, à diferença de seus comportamentos e níveis de interesse em sala de aula. Dada a referida oposição de seus filhos quanto ao ascetismo escolar, Irene incentivou Carlos a procurar uma primeira oportunidade de emprego em um programa de estágios para estudantes do EM: experiência desde a qual o garoto começou a estagiar nas funções administrativas de um banco aos 16 anos de idade.

Oposição semelhante entre os filhos é articulada por Anelize, 38 anos, auxiliar de limpeza, EM incompleto. Eraldo, 18 anos, estudante do cursinho, sempre despertou o orgulho da mãe em virtude de suas disposições ao ascetismo escolar. Anelize associa sua própria trajetória ocupacional precária e instável à falta de condições de estudo: barreira que ela julga, portanto, estar sendo transposta por Eraldo.

Seu filho mais novo, Vitor, 16 anos, desperta, contudo, outro tipo de classificação e de admiração por parte da mãe.

Agora acabou o contrato de trabalho dele [de Vítor], ele falou que não tem problema, logo mais ele trabalha… Ele trabalha bem e arranja trabalho em qualquer lugar! Ele chega lá com aquela carinha dele, falando todo educado… [risos] O Vítor nunca ficou parado… Desde os 12 anos… Ele começou lá num lava rápido, né, Eraldo? [o primogênito confirma a informação] […]. O Vitor nunca teve gosto pra estudar… [risos] Mas ele tem o dom pra trabalhar e pra fazer dinheiro!

Indagada sobre a oposição entre os garotos, Anelize afirma que, para ela, quem tem “gosto” pelo estudo poderia ficar mais tempo sem precisar trabalhar, caso de Eraldo, enquanto, no caso de Vitor, ela apoia o ingresso mais cedo no mundo do trabalho, ressalvando, apenas, que exige do garoto a conclusão do EM, nível de ensino não completado por ela – dificuldade, como vimos, que a mãe localiza como explicação para sua trajetória ocupacional precária e instável.

Para além dos casos em que a moratória ante o trabalho não é estendida a toda a fratria, há também informantes que precisam “negociar” tal condição perante seus pais. Após dois anos frequentando duas iniciativas de cursinho popular, Renato (19 anos) logrou a aprovação para a carreira de contabilidade na FEA-USP. Porém, a fim de se manter dois anos estudando para o vestibular, o garoto teve que lidar com as pressões maternas, que se desdobraram, inclusive, em oportunidades de emprego que a mãe (EM completo, desempregada no momento da entrevista, tendo trabalhado anteriormente como vendedora e recepcionista) do garoto encontrou para ele graças à sua rede de relações.

O garoto precisou driblar essas pressões, apresentando à mãe a seguinte alternativa, que lhe agradou apenas parcialmente à época: Renato arrumou “bicos” em bufês de festas infantis e como vendedor em feiras de quadrinhos que lhe tomavam somente os fins de semana, mantendo então as semanas livres para o estudo.

Desse modo, tanto a concessão quanto a negociação dessas “moratórias temporárias” permitem aos informantes não apenas a conclusão do EM, mas também possibilitam suas tentativas de concorrência e de acesso a IES públicas, constituindo-se, portanto, como um dos aspectos do trajeto de socialização familiar a partir do qual esses jovens incorporam disposições e condições para, ao menos, tentar o alongamento de suas expectativas de vida escolar.

Evitando situações de “gravidez precoce”, assegurando percursos escolares alongados

Em estudo sobre percursos educacionais alongados no meio popular, Laurens (1992)LAURENS, Jean-Paul. (1992), 1 sur 500: la réussite scolaire en milieu populaire. Toulouse, Presses Universitaires du Mirail. argumenta a favor do peso que a racionalização da fecundidade pode exercer, em meios sociais populares, sobre a incorporação de disposições ao superinvestimento escolar a partir de volumes modestos de capital econômico e cultural. Entre menos irmãos, maior volume de recursos materiais, culturais ou de tempo livre dos pais pode se condensar na socialização de cada criança, segundo o raciocínio implícito ao argumento do autor.

O material qualitativo de meu estudo sugere uma interpretação orientada em sentido assemelhado. A racionalização da fecundidade ao longo do trajeto social e educacional de jovens de meios populares – ou seja, os agenciamentos de seus pais e do próprio jovem orientados no sentido de evitar a ocorrência de situações de gravidez durante o trânsito desse agente pelo sistema de ensino – também se afigura como um aspecto da socialização familiar que caracteriza a incorporação de disposições ao alongamento da vida escolar desses jovens.

Pois um traço recorrente nos percursos sociais dos pais, mas sobretudo das mães dos informantes, é, justamente, a ocorrência de episódios de gravidez qualificados pelos informantes ou pelos seus próprios pais dos mesmos como “precoces”. Não raramente, quando eu indagava sobre a escolaridade de seus pais, os informantes, como mencionei anteriormente, não responsabilizam ou culpam seus pais. Na verdade, eles buscam justificar as baixas certificações escolares de seus progenitores tanto com o argumento de que eles teriam começado “a trabalhar muito cedo”, quanto com o argumento de que eles foram pais “cedo”, tendo que sacrificar então seus percursos escolares em virtude da criação dos informantes e de seus irmãos.

Há, por certo, a possibilidade de que esta seja tão somente uma racionalização a posteriori com base na qual informantes e seus pais buscam dotar de um sentido moralmente irrepreensível a baixa escolaridade dos pais.

Não obstante, sendo ou não tais episódios uma racionalização por parte desses agentes, o fato é que o material qualitativo evidencia recorrentemente como as mães8 8 . Em nosso material qualitativo, não encontramos menções ou episódios nos quais os pais dos informantes exerciam os agenciamentos de socialização referidos neste tópico. de nossos informantes não hesitam em mobilizar suas próprias trajetórias de escolaridade interrompidas pela gravidez não apenas como advertência aos seus filhos e filhas, como também buscam justificar, valendo-se de tais advertências, seus agenciamentos no sentido de evitar, na trajetória de seus filhos e filhas, a reprodução desses episódios de gravidez qualificados, por elas próprias, como “precoces”.

Ainda que essa vigilância sobre a vida afetiva e sexual dos jovens informantes possa ser igualmente impulsionada por componentes morais, é mister notar que, em nossa amostra, tais agenciamentos de vigilância materna não se desdobram em interditos ou em tabus quanto à expressão ou à prática da sexualidade nem por parte das filhas, nem por parte dos filhos dessas mães.

Aliás, a exposição e interpretação do material qualitativo, neste ponto específico, começarão, inclusive, pelo caso da estudante Bárbara (17 anos), que narra espontânea e abertamente à mãe sua primeira experiência sexual: a reação da mãe é tão somente, como veremos, facilitar o acesso da garota a anticoncepcionais que impeçam a ocorrência de uma gravidez – fato que a mãe localiza como móvel de dificuldades que envolveram a interrupção de seus próprios estudos.

Assim, Bárbara decidiu contar a sua mãe quando perdeu a virgindade, pois a mãe (37 anos, ES incompleto, digitadora de planilhas em um laboratório de exames) sempre havia agido, conforme a garota afirma durante a entrevista, como uma “amiga” dela e de sua irmã mais nova. Bárbara reporta com os seguintes termos a reação materna:

Ela me contou que, com 19 anos, ficou grávida e minha vó pôs ela pra fora de casa. Ela disse: “Tô falando isso pra você, tô contando isso pra você, pra não acontecer com você… Por isso que eu te falo, toma o remédio [anticoncepcional]; se você quiser, eu te levo no médico… O que eu passei, eu sofri muito e eu não quero isso pra você”. Então ela conversa bastante sobre essas coisas comigo e com a minha irmã.

A mãe de Janaína, 23 anos, ficou grávida antes de completar o EM, fato ao qual ela atribui o atraso em sua escolarização (EM e magistério completo após os 20 anos de idade). A gravidez “precoce” da mãe delegou, igualmente, um papel central à avó na criação de Janaína, em virtude da “pouca idade” da mãe quando grávida, segundo as representações e termos empregados pela própria informante.

Assim, ao longo da entrevista, Janaína justifica o controle intensivo que a mãe e a avó exercem sobre suas saídas e companhias.. Esse controle tornou-se sensível ao longo da entrevista, uma vez que, ao longo das duas horas de nossa interação, a mãe de Janaína lhe telefonou duas vezes: ela havia sido previamente informada pela filha sobre a entrevista e, mesmo assim, sentiu a necessidade de ligar duas vezes para ela, perguntando e confirmando a hora de seu retorno. Janaína compreende e justifica tal controle por parte de sua mãe, afirmando que “[…] no mundo, filho é uma responsabilidade sem tamanho porque que nem minha mãe fez… Ela se abdicou de tudo dela pra me criar, de tudo dela pra me dar estudo”.

Mas tais agenciamentos de vigilância não ocorrem apenas entre as garotas. Quando pergunto a Eraldo (18 anos) se ele pensa em “casar e ter filhos”, o garoto reproduz as constantes pregações maternas para que ele jamais se esqueça de levar preservativos consigo. Na transcrição abaixo, observamos como a mãe de Eraldo – Anelize (38 anos, EM completo, auxiliar de limpeza) – afirma diretamente que engravidar uma garota faria Eraldo “ver o ciclo da família girando de novo”.

[Pesquisador] E família? Você pensa em casar e ter filhos, ou não?

[Eraldo] Em casar e ter filho? Olha, confesso que eu venho pensando nesse assunto há um tempinho, mas não tenho uma opinião… A priori, não, eu tô num momento da minha vida em que o estudo é muito importante, tanto que minha mãe sempre fala: “Eraldo, usa a camisinha!” [risos]. Não é só o RG não, é a camisinha também! Ela preza muito isso também, ela fala: “Eraldo, se você quer ferrar sua vida hoje, faça essa besteira [ter um filho], faça essa besteira que você vai ver o ciclo da família girando de novo”. Ela fala: “Não faça filho!”, e ela conseguiu implementar isso na minha mente, né?. Eu tomo cuidado também! [risos] (citação)

Desse modo, portanto, os agenciamentos de vigilância maternos sobre a sexualidade dos informantes parecem incidir na tentativa de evitar – nas trajetórias dos entrevistados e entrevistadas – a reprodução de episódios de gravidez que, nos percursos de suas mães, parecem ter contribuído para o encurtamento de seus trajetos educacionais. Nesse sentido, as mães não interditam, estigmatizam ou proíbem a prática da sexualidade, mas, como vimos nos casos das mães de Bárbara e de Eraldo, facilitam o acesso e endossam o uso de anticoncepcionais ou de preservativos por parte dos informantes.

Nesse sentido, esses agenciamentos de vigilância, assim como as “moratórias temporárias” ante a entrada no mundo do trabalho, também compõem um aspecto da socialização desses agentes que caracteriza a incorporação de disposições ao alongamento de suas vidas escolares. No próximo tópico, veremos como tais disposições são igualmente caracterizadas por estratégias de distinção moral e disciplinar no meio familiar que impulsionam as propensões ao investimento escolar desses agentes.

A distinção moral e disciplinar de si e do grupo familiar

Em seu estudo sobre os casos de sucesso escolar entre crianças de meios populares no ensino primário, Bernard Lahire argumenta (1997, pp. 25-27) que a ordem moral e disciplinar rigorosa e distintiva, estabelecida no contexto de socialização familiar, inscreve-se como uma das dimensões de socialização de crianças e jovens no meio popular que os predispõem ao profundo engajamento no jogo escolar.

A ordem moral e disciplinar regular e exigente – mas vista como justa, legítima e incorporada pela criança – exterioriza-se através de disposições ao comportamento regrado e autônomo no ambiente escolar: traço comportamental fortemente valorado e premiado pela instituição escolar.

Por vezes, essa ordem moral e disciplinar é incorporada e expressa, pelos informantes, a partir de uma aparente estratégia de distinção de si e de seu grupo familiar ante seus vizinhos ou, até mesmo, frente aos membros de sua própria família estendida. Nesses momentos, o material qualitativo parece sugerir a ocorrência de estratégias de preservação do “capital simbólico” definido em termos de “honra” familiar.

Em tais ocorrências, essas estratégias de distinção moral encontram-se intimamente conectadas, nas falas dos próprios informantes, aos graus de ascetismo escolar que eles gostam de ressaltar em suas trajetórias. Mais do que isso, eles fazem questão de lamentar a ausência dessas disposições ao ascetismo escolar e ao investimento educacional – estigmatizando, inclusive, tais ausências – nas trajetórias de seus pares de idade nos bairros em que os informantes moram ou em suas famílias estendidas (primos, tios etc.).

Assim, conforme veremos, evitar a manutenção ou o aprofundamento de relações cotidianas com esses pares de idade é expresso como estratégias ou escolhas de sociabilidade necessárias para incorporar e preservar as disposições dos informantes ao alongamento de suas vidas escolares.

Já mencionamos Bárbara no tópico anterior. Ela é uma garota que reproduz, desde os cursos profissionalizantes frequentados a partir dos 15 anos de idade, a busca contínua e inquieta por credenciais escolares que caracteriza igualmente a trajetória de sua mãe9 9 . A garota relata na entrevista que a mãe, a cada momento de desemprego em sua trajetória, buscou sucessivas credenciais escolares como forma de aumentar suas chances no mercado de trabalho. Assim, a mãe de Bárbara obteve o diploma de ensino médio por meio do Enem (anos após ter desistido da escola secundária), cursou um técnico em secretariado após uma experiência de desemprego na área e, antes da entrevista, havia ingressado em uma IES privada, porém um problema de saúde motivou o trancamento do curso. .

Bárbara explica por que desistiu – ao longo da adolescência e da reprodução continuada dos investimentos educacionais exemplificados pela mãe – das amigas e amigos de seu bairro com quem costumava brincar durante a infância, abandonando o espaço e as práticas de socialização que caracterizam esse grupo de pares (isto é, como se verá, as conversas em frente aos portões das casas desses jovens), estigmatizando o desinvestimento educacional que nota como traço comum entre esses jovens.

Eu parei pra pensar, as pessoas que ficavam ali sentadas, [seus amigos e amigas de infância, sentados na rua, em frente aos portões de suas casas] era só pra ficar ali naquele momento, mas chama eles pra fazer um curso… não, eles chegavam mas não terminavam [o curso], até hoje eu pego no pé: “Não vai voltar a estudar?”. “Não…” Se eu ficar ali com essas pessoas, eu vou dar um passo pra frente e dez pra trás.

Esse sentimento de distinção também foi expresso, ao longo de recorrentes entrevistas, por meio da comparação, estruturada discursivamente pelos próprios informantes, entre seus estilos de vida e os de seus vizinhos e primos, sintetizados, de acordo com os próprios entrevistados, por uma forma determinada de preferência musical que associaria padrões de consumo, de sociabilidade juvenil e, até mesmo, de sexualidade aos baixos investimentos educacionais desses jovens, novamente estigmatizados pelos informantes. Essa preferência musical seria, como Gisele (17 anos; pai, porteiro com ensino fundamental incompleto; mãe, empregada doméstica com EM realizado através de supletivo) afirma, o “funk ostentação”.

Meus pais e minha família cobram muito de mim pelo fato de ninguém na família ter ido atrás. Eles sentem muito pelos meus primos não terem terminado a faculdade e, agora que meu tio terminou a faculdade, acho que eles [os primos] têm uma vontade… Mas é só uma vontade porque os [risos] “primos da ostentação” só pensam no hoje, no agora, não pensam no amanhã… Eles são da ostentação… Do funk… [risos]

[Pesquisador]: Como eles ostentam?

Gastando o salário todo numa blusa, numa bermuda, num tênis colorido, na moto que é o brinquedinho deles lá e essas coisas assim, eles só pensam nisso…

Os “primos da ostentação” de Gisele gostam de funk e despendem suas rendas mensais em bens de consumo valorados no circuito de sociabilidade juvenil que frequentam (o “tênis colorido” e a moto como um “brinquedinho deles lá”). Segundo a entrevistada, eles “só pensam no hoje, no agora, não pensam no amanhã”, ou seja, eles centrariam (sempre de acordo com a visão da garota) esse suposto hedonismo consumista na fruição despreocupada do presente, apresentando pouca inclinação para investimentos de longo prazo – como o investimento educacional, por exemplo –, que demandariam o autocontrole ascético das pulsões de consumo, de sociabilidade e de sexualidade, no presente, para a projetada efetivação de planos de mobilidade educacional e ocupacional no futuro: propensões comportamentais que os informantes identificam em si próprios e a partir das quais delineiam, portanto, fronteiras que os separam de seus pares de idade em seus bairros ou em suas famílias estendidas.

Desse modo, a estratégia de distinção moral e disciplinar de si e do grupo familiar – que, como a fala de Gisele denota, é comumente remetida à socialização familiar – caracteriza a incorporação das disposições ao alongamento das expectativas de vida escolar dos informantes, ao lado de outros aspectos de sua socialização, como os que vimos nos tópicos anteriores.

No último tópico da análise, veremos, porém, como tais disposições incorporadas se desdobram, por outro lado, em dissonâncias, insuficiências e desajustes que marcam a experiência, objetiva e subjetiva, de enfrentamento dos modos de seleção próprios às IES públicas por parte desses jovens.

Algumas dissonâncias… E o caso específico da prática de estudo e de apropriação de materiais audiovisuais a partir da internet

Ao longo do estudo, foram identificadas múltiplas dissonâncias entre as condições de socialização e de escolarização dos informantes e o extenso programa de conteúdos e de competências que lhes são exigidos pelos modos de seleção que caracterizam a concorrência pelas IES públicas: destino social valorado e pretendido por esses jovens a partir de suas passagens pelo cursinho investigado.

Ao contrário de alguns de seus concorrentes nos vestibulares, originados de extrações de classe privilegiadas, nossos informantes não foram expostos a meios familiares ou sociais em que portar uma certificação de ES fosse algo quase banal. Nesses meios privilegiados, conforme sugere a literatura (Silva, 2003SILVA, Jaílson. (2003), Por que uns e não outros? Caminhada de jovens pobres para a universidade. Rio de Janeiro, 7Letras.; Zago, 2006ZAGO, Nadir (2006), “Do acesso à permanência no ensino superior: percursos de estudantes universitários de camadas populares”. Revista Brasileira de Educação, 11 (32): 226-237.), intensos fluxos de “capital informacional” sobre as instituições, as carreiras e sobre os próprios modos de seleção ao ES tendem a circular, possibilitando a implícita familiarização de jovens socializados em tais meios com esse nível de ensino.

Tampouco puderam os informantes do estudo contar com múltiplas e diferenciadas experiências de acumulação de capital cultural fora do contexto escolar por meio de atividades e experiências tais como cursos extraescolares de idiomas ou de fazeres artísticos (música, pintura etc.), viagens nacionais ou internacionais, fruição regular de equipamentos culturais por iniciativas familiares ou de suas escolas etc. Tais experiências ou atividades extraescolares proveem condições de socialização que podem conformar importantes vantagens relativas em situações de concorrência escolar (Lareau, 2003LAREAU, Annette. (2003), Unequal childhoods: class, race and family life. Berkeley, University of California Press.).

Durante a pesquisa de campo, um achado empírico me surpreendeu em especial, no entanto. Os entrevistados afirmavam, recorrentemente, que suas práticas de estudo não eram centradas na leitura nem de livros didáticos do colégio, nem de materiais escritos preparados pelos professores do cursinho popular. Assim, as práticas de estudo de muitos dos entrevistados simplesmente não se baseavam na leitura, na interpretação e na apropriação de materiais escritos: tais práticas eram organizadas, fundamentalmente, a partir de videoaulas a que assistiam e que acessavam de forma gratuita na internet.

Videoaulas são explicações de quinze a vinte minutos, em geral, sobre conteúdos e tópicos curriculares, livremente postadas e disponibilizadas na internet por professores, estudantes universitários ou mesmo alunos do próprio ensino médio. Essas aulas podem contar ou não com o recurso a uma lousa, à realização ou não de exercícios, a “piadinhas”, curiosidades ligadas à matéria etc. No mais das vezes, os estudantes as encontram através de pesquisas no sítio do YouTube ou no buscador de informações Google.

Quando peço para Lucas (18 anos)10 10 . Pai, EM completo, aposentado como metalúrgico. Mãe, EM incompleto, vendedora autônoma. comparar os materiais acessíveis pela internet com os livros didáticos, o garoto explica que, nos livros da escola, “você tem que se matar pra descobrir o que vai cair no vestibular e ainda pode cair uma coisa diferente da forma que tá no livro”. Ao passo que, na internet, os conteúdos seriam, segundo ele, facilmente localizáveis. Comumente, os entrevistados declaravam que seria mais fácil entender conteúdos “vendo alguém que explica as coisas”, como afirma a garota Ana (17 anos)11 11 . Pai, ensino fundamental incompleto, músico. Mãe, ES completo (curso de administração a distância), vendedora. , ao invés de tentar apreendê-los através da leitura solitária.

A reconstrução das práticas de consumo cultural que esses jovens incorporam em sua socialização familiar e nas redes de sociabilidade com seus pares de idade evidencia uma densa concentração de seu padrão de lazeres e de consumo cultural na linguagem audiovisual da TV (lazer favorito dos pais), do videogame, bem como dos vídeos, filmes e músicas acessados pela internet12 12 . Cerca de 90% dos estudantes do Allende têm computadores pessoais e acesso à internet em casa. . Desse modo, os estudos através das videoaulas evocam aparentemente um simples desdobramento de seus padrões de consumo cultural para a esfera escolar.

Ademais, esse desdobramento é reforçado pela subutilização – ou, por vezes, pela completa ausência – dos livros didáticos nas formas de organização e de condução do trabalho didático e pedagógico pelos seus professores e instituições escolares. Ana afirma ter descoberto por que a distribuição de livros em seu colégio sempre foi irregular: no terceiro ano de seu EM, a coordenadora da escola a conduziu para o interior de uma sala trancafiada e abarrotada de livros novos na escola, permitindo que ela levasse para casa tantos livros quantos desejasse em virtude do interesse da garota em prestar vestibular. Ana aventa a possibilidade de que tal atitude, por parte do colégio, seria explicada pelo receio da diretoria em ver os estudantes queimarem ou rasgarem esses livros seja na escola ou em suas imediações…

Já Caio (22 anos), que, depois de sua passagem pelo cursinho popular, se afirma interessado em Shakespeare, Voltaire e Dostoiévski, explica da seguinte forma por que preferiu as videoaulas aos livros didáticos durante sua preparação para o vestibular:

A escola distribuía livros, mas eu nunca parei pra ler não… Num tinha o mínimo interesse, pra falá a verdade… A gente sabia que o professor não ia usar todo o livro também, não ia nem chegar na metade [da matéria a ser cumprida, ao que parece]… Dependendo do professor, [ele] nem usava o livro.

Essa concentração de práticas de estudo em materiais audiovisuais, acessíveis a partir da internet, pode ser interpretada como um fenômeno geracional. Não obstante, faz-se necessário notar que tal fenômeno é consideravelmente modulado a partir de diferentes condições de socialização e de escolarização. O caso de Diogo (19 anos; pai, ES incompleto, sargento da Aeronáutica; mãe, EM completo, técnica em enfermagem) evidencia como um trajeto de socialização e de escolarização mais privilegiado e rigoroso, em comparação com os demais jovens da amostra, faz o garoto incorporar disposições e práticas de estudo que mesclam a apropriação de livros didáticos com materiais audiovisuais, reservando, entretanto, um lugar marginal e tão somente complementar aos últimos com relação à importância central dos livros em sua prática de estudo, identificável na fala do rapaz.

Diogo, estudante de engenharia química na Unifesp, era professor de matemática no cursinho. Na entrevista, ele reportou entusiasmado como, desde sua infância, foi objeto de investimentos culturais e pedagógicos por parte de seus pais. Ele era incentivado pelos pais a assistir a programas educativos e documentários na TV Cultura e a brincar com jogos e brinquedos educativos, por exemplo. Seu pai, então estudante na carreira de física13 13 . Diogo afirmará que o pai foi “jubilado”, uma vez que os deveres da carreira militar impediram, segundo o entrevistado, a condução a bom termo da graduação dele. , estimulava o interesse do garoto por ciência, conversando e explicando a ele mecanismos e processos próprios a fenômenos naturais. Diogo afirma então que, desde a infância, observava seu pai estudando “com livros e gráficos” na mesa e, mesmo sem entender do que tratavam aqueles materiais escritos, sentia fascínio pelos mesmos.

No sétimo ano do ensino fundamental de Diogo, sua família mudou-se para Recife (em função dos deveres militares do pai), e o garoto foi matriculado no bem reputado e rigoroso Colégio Militar do Recife. No colégio, Diogo relembra que os professores de humanidades, por exemplo, costumavam relacionar os conteúdos dos livros didáticos com livros de literatura, filmes ou documentários. Ademais, ele também recorda que as lições de casa, em todas as disciplinas, eram fundamentadas na leitura e na realização de exercícios próprios aos livros didáticos. Conclui-se, portanto, que esses livros eram mobilizados de forma regular e sistemática na organização do trabalho pedagógico no colégio, ao contrário do que vimos ocorrer nos trajetos de escolarização dos informantes Ana, Caio e Lucas.

Como resultado, Diogo lembra-se e cita espontaneamente, dois anos após a conclusão do EM, os nomes dos autores dos livros didáticos de quatro disciplinas escolares: indicativo da familiaridade e da importância que a apropriação de tais materiais teve em seu trajeto de escolarização. O garoto afirma que assistia a videoaulas no momento em que se preparava para o vestibular. Contudo, ao comentar a importância de documentários históricos, por exemplo, ele argumenta que esses documentários apresentam o “cenário”, o “contexto” de diferentes épocas e acontecimentos históricos, mas que, sem a leitura e o estudo prévio dessas épocas e acontecimentos (leitura e estudos através das aulas e dos livros didáticos), não seria possível entender, reter ou fixar nada do que os documentários representam ou transmitem.

O caso de Diogo desenha, portanto, uma oposição entre ele e a maioria de seus estudantes no cursinho popular, caracterizados pela concentração majoritária (quando não exclusiva) de suas práticas de estudo em materiais audiovisuais, fato que revela as dissonâncias e os desajustes entre essas práticas e as competências exigidas pelos exames de vestibular.

Ana Almeida (2009ALMEIDA, Ana Maria F. (2009), As escolas dos dirigentes paulistas: ensino médio, vestibular, desigualdade social. Belo Horizonte, Argumentum., pp. 47-48) evidencia como a criação do Enem supõe, por exemplo, o relaxamento das exigências de memorização de dados, de conteúdos ou fórmulas matemáticas, para, em contrapartida, intensificar as exigências quanto às capacidades de interpretação textual e de correlação crítica entre diferentes registros discursivos ou informativos (gráficos, textos literários ou acadêmicos, tabelas, fotografias etc.) que conformam os longos enunciados das questões em todas as áreas avaliadas pelo exame. A reação e a interpretação textual dos estudantes a tais questões devem ser, ademais, incessantemente ágeis em virtude da extensão da prova e de seus limites de tempo.

Tais necessidades de reação e de interpretação textual ágeis supõem uma desenvoltura e uma familiaridade com a apropriação, a intelecção e a capacidade de correlação de diferentes registros textuais que, dificilmente, poderão ser incorporadas com base em práticas de estudo centradas majoritariamente (quando não exclusivamente) na apropriação de materiais audiovisuais.

Nesse contexto, portanto, tais práticas de estudo tendem a posicionar os consumidores majoritários ou exclusivos de videoaulas em desvantagem objetiva frente a estudantes que – como vimos no caso de Diogo – incorporaram disposições às práticas de estudo que combinam a apropriação de materiais da cultura escolar legítima, em linguagem escrita, com a apropriação, em caráter tão somente complementar ou secundário, de materiais audiovisuais.

Talvez não seja por coincidência que estudantes como Ana e Caio, cujo entusiasmo com as videoaulas foi exposto anteriormente, tenham sido informantes que expressaram altos níveis de ansiedade e de sofrimento subjetivo com a natureza e as exigências da situação de exame própria aos vestibulares. Ana revelou que havia buscado ajuda psiquiátrica, tendo sido diagnosticada e medicada a partir de um quadro de ansiedade em virtude do estresse causado pelos vestibulares: momento em que, segundo ela, o aluno de escola pública descobre a distância entre o que ele precisa saber e o que ele, de fato, aprendeu ao longo de sua escolarização. Já Caio qualificou, em nossa entrevista, o Enem como “desumano”, ressentindo-se do tamanho dos enunciados das questões em todas as disciplinas e do fato de que “[…] nem mesmo se eu tivesse todo o tempo do mundo, 24 horas por dia, daria pra ver tudo o que o vestibular pede”.

Conclusão

Este artigo buscou evidenciar, primeiramente, que os “cursinhos populares” atraem jovens de camadas populares posicionados entre as condições e estatutos identitários que demarcam perfis de ingresso próprios a dois estágios distintos da expansão relativa do ensino superior no país. Pois esses jovens chegam aos “cursinhos populares”, modelando inicialmente suas aspirações de ingresso ao ensino superior a partir da figura do “estudante-trabalhador”, conhecida por esses jovens em seus círculos relacionais imediatos (parentes, vizinhos, amigos etc.).

A partir, entretanto, das experiências desses jovens em tais iniciativas, eles entram em contato regular com as condições e estatutos identitários distintos dos organizadores dos cursinhos, geralmente estudantes de IES públicas em carreiras pouco concorridas, cujos perfis remetem à expansão das instituições, das vagas e das políticas de inclusão no sistema público que caracterizam os primeiros anos da década de 2000.

Desse modo, os “cursinhos populares” terminam por se afigurar como privilegiados loci de observação empírica nos quais a pesquisa sociológica pode flagrar e reconstituir trajetos de socialização e de escolarização que expressam a incorporação das disposições ao alongamento das expectativas de vida escolar entre esses estudantes. Por outro lado, no entanto, essa abordagem também permite reconstituir como tais disposições se desdobram em dissonâncias, inadequações e desajustes entre tais disposições e as exigências dos modos de seleção das IES públicas: destino educacional valorizado e pretendido a partir da passagem desses jovens por “cursinhos populares”.

Nesse quadro, o texto buscou abordar, em primeiro lugar, os agenciamentos de socialização que tendem a alongar os trajetos educacionais dos informantes, com base em três dimensões analíticas do material qualitativo: (1) as “moratórias provisórias” quanto à entrada no mundo do trabalho; (2) os agenciamentos maternos para evitar situações de gravidez que podem obstaculizar esses trajetos potencialmente alongados; e (3) a distinção moral e disciplinar como base de amparo das disposições ao investimento escolar.

Por fim, o artigo reconstituiu e evidenciou algumas das dissonâncias entre as disposições incorporadas pelos informantes e as exigências dos modos de seleção das IES públicas. Nesse momento, o texto investiu na exposição de um surpreendente achado de pesquisa que evidencia como condições de socialização e de escolarização recorrentes entre os informantes tendem a se desdobrar em práticas de estudo centradas na apropriação de materiais audiovisuais gratuitamente acessíveis pela internet: fato que ilustra uma das principais dissonâncias experienciadas por esses jovens ante as exigências de reação, de interpretação e de correlação textual ágeis e desenvoltas que medeiam suas chances de acesso às IES públicas.

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  • ZAGO, Nadir (2006), “Do acesso à permanência no ensino superior: percursos de estudantes universitários de camadas populares”. Revista Brasileira de Educação, 11 (32): 226-237.
  • ZAGO, Nadir (2008), “Cursos pré-vestibulares populares: limites e perspectivas”. Perspectiva, 26 (1): 149-174.
  • 1
    . Para caracterizações históricas sobre a expansão tardia da educação básica no país, recomendo os clássicos estudos de Otaíza Romanelli (1978)ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. (1978), História da Educação Brasileira: 1930-1973. Petrópolis, Vozes. e de Luiz Antônio Cunha (1975)CUNHA, Luiz A. (1975), Educação e desenvolvimento social no Brasil. Rio de Janeiro, Francisco Alves..
  • 2
    . Vale observar que, entre a década de 1970 e os anos 2000, o contingente de estudantes do ensino secundário cresceu sete vezes (IBGE, 2013INSTITUTO Brasileiro de Geografia – IBGE. (2013), Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro, IBGE.).
  • 3
    . Programa de concessão de bolsas, parciais ou totais, no ensino superior privado com base em critérios socioeconômicos conjugados ao desempenho dos candidatos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
  • 4
    . Para uma recente análise sobre os resultados do Sisu em um contexto universitário delimitado, recomendo o estudo de Claudio Nogueira et al. (2017)NOGUEIRA, Cláudio Marques Martins et al. (2017), “Promessas e limites: O Sisu e sua implantação na Universidade Federal de Minas Gerais”. Educação em Revista, 33..
  • 5
    . Ativista ligada a setores progressistas da Igreja Católica e ao Partido dos Trabalhadores, que abandona a militância em 2006 em função da desilusão com os rumos do governo federal, segundo a informante.
  • 6
    . Denomino de “ascetismo escolar” o conjunto de propensões à racionalização e ao autocontrole de pulsões à fruição presente e espontânea do tempo e da sociabilidade, infantil ou juvenil, em nome da incorporação e do exercício de graus profundos de investimento (de tempo, de atenção e de esforços) em atividades e tarefas escolares.
  • 7
    . Uma revisão crítica dessa literatura e de sua problemática é empreendida no estudo de Alves-Mazzotti (2002).
  • 8
    . Em nosso material qualitativo, não encontramos menções ou episódios nos quais os pais dos informantes exerciam os agenciamentos de socialização referidos neste tópico.
  • 9
    . A garota relata na entrevista que a mãe, a cada momento de desemprego em sua trajetória, buscou sucessivas credenciais escolares como forma de aumentar suas chances no mercado de trabalho. Assim, a mãe de Bárbara obteve o diploma de ensino médio por meio do Enem (anos após ter desistido da escola secundária), cursou um técnico em secretariado após uma experiência de desemprego na área e, antes da entrevista, havia ingressado em uma IES privada, porém um problema de saúde motivou o trancamento do curso.
  • 10
    . Pai, EM completo, aposentado como metalúrgico. Mãe, EM incompleto, vendedora autônoma.
  • 11
    . Pai, ensino fundamental incompleto, músico. Mãe, ES completo (curso de administração a distância), vendedora.
  • 12
    . Cerca de 90% dos estudantes do Allende têm computadores pessoais e acesso à internet em casa.
  • 13
    . Diogo afirmará que o pai foi “jubilado”, uma vez que os deveres da carreira militar impediram, segundo o entrevistado, a condução a bom termo da graduação dele.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2016
  • Aceito
    23 Jun 2017
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