Resumos
A fala do retorno do sagrado aponta, quando pensado de forma fundamental, para uma problemática além do horizonte sociológico. Porque não, então, reler um dos clássicos da literatura sobre o sagrado, o teólogo Rudolf Otto? Porque não tentar decifrar os textos tardios do pensador Heidegger com as suas alusões freqüentes ao sagrado como pista dos deuses desertados? Pois, é curioso que o programa cognitivo das ciências modernas chega, nas suas contribuições mais inovadoras, aos resultados que parecem confrontar- nos (de novo) com um mundo estranho, paradoxal e antinómico - características que apresenta Otto como atribuições do numinoso. O que tudo isto tem a ver com a técnica, a sociedade moderna e a sociologia? Disto trata o artigo a Técnica Moderna e o Retorno do Sagrado.
Rudolf Otto; Martin Heidegger; filosofia; teologia; teoria social; ciência moderna; técnica moderna; racionalidade; irracionalidade; o sagrado
The return to the Sacred points to a problem beyound the sociological horizon, if thought in a fundamental way. If so, why not reading one of the classical works concerning this topic, the theologist Rudolf Otto ? Why not trying to decipher the late texts from Heidegger and its frequent allusions to the sacred as a clue to the renegated gods? It is curious that the cognitive programme of modern sciences guide us to some results which seems to confront a strange, paradoxal and antinomical world, with its inovating contribution to this change. These features were presented by Otto. And what does it have to do with technique, modern society and sociology ? This is the topic of the textThe modern Society and the return to the Sacred .
Rudolf Otto; Martin Heidegger; philosophy; theology; social theory; modern science; modern technique; rationality; rrationality; the Sacred
ARTIGO
A técnica moderna e o retorno do sagrado
The modern technique and the return of the Sacred
Franz Josef Brüseke
Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFSC
RESUMO
A fala do retorno do sagrado aponta, quando pensado de forma fundamental, para uma problemática além do horizonte sociológico. Porque não, então, reler um dos clássicos da literatura sobre o sagrado, o teólogo Rudolf Otto? Porque não tentar decifrar os textos tardios do pensador Heidegger com as suas alusões freqüentes ao sagrado como pista dos deuses desertados? Pois, é curioso que o programa cognitivo das ciências modernas chega, nas suas contribuições mais inovadoras, aos resultados que parecem confrontar- nos (de novo) com um mundo estranho, paradoxal e antinómico - características que apresenta Otto como atribuições do numinoso. O que tudo isto tem a ver com a técnica, a sociedade moderna e a sociologia? Disto trata o artigo a Técnica Moderna e o Retorno do Sagrado.
Palavras-chave: Rudolf Otto, Martin Heidegger, filosofia, teologia, teoria social, ciência moderna, técnica moderna, racionalidade, irracionalidade, o sagrado.
ABSTRACT
The return to the Sacred points to a problem beyound the sociological horizon, if thought in a fundamental way. If so, why not reading one of the classical works concerning this topic, the theologist Rudolf Otto ? Why not trying to decipher the late texts from Heidegger and its frequent allusions to the sacred as a clue to the renegated gods? It is curious that the cognitive programme of modern sciences guide us to some results which seems to confront a strange, paradoxal and antinomical world, with its inovating contribution to this change. These features were presented by Otto. And what does it have to do with technique, modern society and sociology ? This is the topic of the textThe modern Society and the return to the Sacred .
Keywords: Rudolf Otto, Martin Heidegger, philosophy, theology, social theory, modern science, modern technique, rationality, irrationality, the Sacred.
Em novembro de 1997 espalharam as agências internacionais a notícia que o presidente da Ucrânia, Leonid Kutschma, tinha anunciado o início dos trabalhos de reparo no manto de concreto do reator de Cernobyl acidentado em abril de 1986. Doadores internacionais e os países do grupo G-7 colocaram 337 milhões de dólares à disposição dos trabalhos, soma que, junto com os 150 milhões da própria Ucrânia, garantiria a construção do sarcófago do quarto reator. Com a construção de uma gigantesca cápsula de concreto armado deveria ser garantido definitivamente a inibição da evasão de radiação.
O Sarcófago de Cernobyl
O sarcófago (em grego: "algo que corrói as carnes") é um túmulo no qual os antigos metiam os cadáveres que não queriam queimar; também pode significar a parte de um monumento fúnebre, que representa o ataúde, embora não encerre o corpo do defunto. Na cultura egípcia existiram sarcófagos desde cerca de 2600 a. C. feitos de pedra e em forma de caixa, reservados para reis e altos funcionários. Mais tarde, no reino novo, preferiram os egípcios sarcófagos que se adaptaram ao corpo humano. Estes sarcófagos antropóides tinham até cinco metros de altura e foram enfeitados com textos e apresentações religiosos. Não somente os egípcios, também o oriente conheceu sarcófagos desde o terceiro milênio a. C. Assim os reis assírios foram, depois da sua morte, colocados em caixas não-ornamentadas de madeira ou barro (XI-IX séc). Na cultura da ágeis encontramos 1400 a. C. sarcófagos na forma de um baú equipado com um teto e enfeitado por símbolos cúlticos, ornamentos e outras apresentações. Na Grécia não desenvolveu-se uma cultura do sarcófago por causa da prática preferida de queimar os mortos. Mas os romanos desenvolveram, a partir do século II a. C. nos moldes da cultura etrusca, sarcófagos sofisticados que mostraram na tampa pesada até uma reprodução plástica do falecido. O cristianismo assumiu o estilo dos sarcófagos romanos e desenvolveu na Idade Média monumentos fúnebres que não continham mais os restos mortais de uma celebridade. No centro destes monumentos encontramos freqüentemente um sarcófago, simbolizando a última morada de alguém; assim o sarcófago faz parte de um memorial.
Quando Leonid Kutschma pede e recebe doações para a construção de um artifício arquitetônico que ele e toda imprensa ocidental chamam de sarcófago acontece algo curioso. Assistimos à retomada de uma cultura, considerada extinta, que se mostra sensível para "algo que corrói as carnes". Percebemos a vontade milenar de lacrar com uma tampa pesada "aquilo" que tornou-se indizível para o homem moderno. Sentimos o desejo de perpetuar e eternizar, dessa vez não em mármore ou em bronze mas no material mais durável que nosso século tem para oferecer: concreto armado. Asseguramos assim, que ainda daqui a três mil anos, alguns exemplares das futuras gerações têm algo para decifrar: o ressurgimento súbito, no final do século vinte, da cultura do sarcófago na Europa. Lembremo-nos bem das palavras do supremo sacerdote do sarcófago de Cernobyl: Queremos garantir para sempre a não-evasão de radioatividade. Fica só a esperança que a memória histórica dure pelo menos durante os próximos 24390 anos, porque o plutônio-239 tem uma meia-vida de 24390 anos, quando perde a metade da sua radioatividade. Se a memória histórica se perder e um exemplar das futuras gerações quiser descobrir o enigma dos sarcófagos europeus do século vinte, abrindo-os como os pesquisadores e saqueadores modernos abriram os túmulos egípcios -vae vanitas!-o plutônio-239 é também depois de 24390 anos extremamente nocivo para o corpo humano.
Falta só lembrar que o lugar da última morada é em todas as culturas humanas um lugar sagrado. A construção de um sarcófago sacraliza o espaço que ele ocupa, contém e é. A sacralização dos restos do reator quatro de Cernobyl dá-nos uma pista para o sagrado? O que tem a técnica moderna a ver com o retorno do sagrado?
A técnica e o sagrado: Heidegger
Heidegger vê na técnica uma expressão do esquecimento do Ser, conseqüência da metafísica ocidental e especificamente da ciência moderna que se desenvolveu no bojo dela. Heidegger desenvolveu então uma crítica filosófica da técnica moderna e não uma apologia. Essa crítica refere-se há vários aspectos, em especial à materialização, à homogeneização, à funcionalização, à polarização entre sujeito e objeto, ao cálculo, à imposição e à vontade de dominação, a fabricar e manusear, ao consumo e à substituição. Heidegger, lançando essa crítica a partir de 1936, entende a sociedade contemporânea como presa no desocultamento técnico do Ser. Este desocultamento técnico, apesar de possibilitar um certo acesso ao Ser admitido por ele mesmo, deixa sempre algo no escuro. O Ser subtrai-se no mesmo processo que desoculta-o tecnicamente.
Com essa argumentação, Heidegger apresenta algo novo e, no contexto das críticas à técnica, bastante original. A crítica da técnica deixa de ser, nessa perspectiva, uma crítica à técnica como meio, mal usado e mal proporcionado, e revela que toda modernidade é, até as suas raízes mais profundas, técnica. Como tal ela corre o risco de perder o essencial no auge do aperfeiçoamento das ciências e dos instrumentos e métodos que descobrem cada vez mais detalhes sobre o funcionamento das coisas. O que seria o essencial? Seria um contato revelador com a plenitude do Ser, somente possível quando despedimo-nos da ilusão de poder dominar o que está à nossa mão. Um outro olhar e um outro fazer, que Heidegger denomina como schonen (conservar, resguardar), seria a conseqüência e incluiria também uma relação conservadora com a natureza. Sob este ângulo, Heidegger demonstra-se um dos precursores filosóficos do movimento ecológico que, apesar da predominância atual de uma orientação progressista, integrou desde seus primórdios elementos conservadores. Pois a crítica da técnica de Heidegger é instigante, também, num outro sentido. Ela leva-nos para uma reflexão sobre aquilo que o desocultamento meramente técnico não sabe revelar, ela nos remete sutilmente ao sagrado, apresentado como uma pista dos deuses desertados. Outros meios de pensar fazem-se necessários, outras fontes, geralmente negligenciadas pela razão calculadora, devem ser valorizadas. Uma delas é o canto dos poetas.
Heidegger apresenta em sua interpretação (cf. Heidegger, [1950]* 1994, p. 269-320)1 do poeta Hölderlin e Rainer Maria Rilke o nosso tempo como um tempo necessitado e caracterizado pela deserção dos deuses. Além do mais extinguiu-se qualquer vestígio na história que poderia dar notícia do divino. Uma noite profunda toma conta do mundo. O necessitado (die Durft) foi transformado em necessidades a serem supridas. Assim, torna-se o nosso tempo cada vez mais necessitado e é finalmente incapaz de sentir falta da falta do seu próprio fundamento. Sendo sem fundamento o nosso tempo está pendurado sobre o abismo, sobre o sem-fundamento (Abgrund). Uma mudança, uma virada radical, só pode acontecer quando este abismo for percebido e vivido. Para que isto aconteça é preciso capacidade para alcançar o sem-fundamento (Abgrund).
"A virada da época não acontece porque em algum momento somente um novo deus ou o velho novamente entra de arremesso da cilada. Para onde ele deve se direcionar na sua volta, se os homens não prepararam sua estadia antecipadamente? Como podia ser uma estadia digna para um deus, se não começasse antes transparecer um brilho de divindade em tudo o que é?" (Heidegger, 1994, p. 270).
Os deuses somente retomarão no momento adequado quando este for, de certo modo, preparado pelos próprios homens, isto é, quando estes começarem a se encontrar com sua própria essência. Ela consiste no fato de que os mortais alcançam mais fácil o abismo, o sem-fundamento, do que os divinos. O abismo (Abgrund) abriga e oculta tanto a ausência (Abwesen) como a presença (Anwesen). O Ser como presença sempre subtrai-se e é assim também ausência. Desta maneira contém o abismo, o sem-fundamento, tudo. No contato com ele experimentam os mortais suas características, que são para o poeta Hölderlin os vestígios dos deuses desertados.
"Pois o etéreo, onde os deuses são exclusivamente deuses, é a sua divindade. O elemento desse etéreo, aquele no qual mesmo a divindade ainda é essência, é o sagrado. O elemento do etéreo para o advento dos deuses desertados, o sagrado, é a pista dos deuses desertados. Pois quem consegue sentir tal pista?" (Heidegger 1994, p. 272).
São os poetas, certos poetas, que mostram, nesses tempos necessitados, sensibilidade para os rastros fugazes e quase imperceptíveis dos divinos. Eles procuram cantar os vestígios dos deuses afugentados. O que sobra para nós? Devemos nos despedir da razão calculadora, que nos engana sobre nosso tempo ocultado e abrigado pelo Ser, na medida em que ela se fixa no Ente querendo manuseá-lo. Em vez disso devemos aprender a ouvir a fala destes poetas.
Onde os rastros se perdem está à espera o perigo. Os mortais, ainda quando procuram sozinhos qualquer indício de uma pista do sagrado, devem somente continuar no seu caminho da busca enquanto eles ainda têm contato com os rastros dos deuses, enquanto eles ainda estão em contato com o sagrado. Pois nestes tempos necessitados perdemos todas as certezas; nem podemos saber com segurança se o sagrado nos dá ainda a experiência do divino, e até o caminho para um encontro com o próprio sagrado fica obscurecido. Todavia, fica o canto dos poetas que nos leva à pergunta: de onde canta o canto? Ele pode intermediar um contato com o sem-fundamento?
O Ser entrega o Ente ao tentar e arriscar (Wagnis). Assim, o Ente torna-se o arriscado. O Ser tenta e arrisca os homens e os outros seres vivos. Desta forma podemos dizer que o Ser-do-Ente é o arriscar e tentar (Wagnis), pois o arriscar significa também expor algo ao perigo, colocar algo em jogo. Sem perigo não há risco e tentativa. O Ser enquanto o arriscar (Wagnis) deixa homens, plantas e animais sem abrigo, sem proteção. Estar sem proteção não é o mesmo como estar condenado à sua própria aniquilação. O arriscar e tentar mantém o Ente num delicado equilíbrio; o Ente está no balanço, sem proteção, e numa situação de risco. Essa, como tal, carrega o Ente, balança-o (wägt) no todo do relacionamento.
O relacionamento total, a plenitude das relações, (ganzer Bezug) denomina Heidegger, encostado na linguagem poética de Rilke, o aberto (das Offene). A técnica moderna cria uma barreira entre o homem e o aberto. Na medida em que ele mesmo quer a sua própria modernidade técnica, ele arrisca mais do que os outros Seres vivos; arriscar-se mais significa também aproximar-se sem proteção do perigo.
O estar-sem-proteção (Schutzlossein) agrava-se por causa da vontade de imposição que coloca o mundo como contra-posto (Gegenstand) frente ao homem. A técnica moderna, resultado dessa vontade de se impor, e toda modernidade que é, na sua essência, técnica e faz do homem um "funcionário da técnica", o que dificulta ainda mais o acesso ao aberto (das Offene). Avançando na direção da técnica, o homem volta as suas costas para a plenitude das relações (ganzer Bezug) e despede-se do aberto. A produção técnica é, como Heidegger diz, a organização desta despedida. A essência da técnica fica obscurecida também por causa das ciências modernas que são incapazes de pensar o fundamento do seu próprio desenvolvimento.
"A essência da técnica só chega lenta à luz do dia. Esse dia é um dia meramente técnico no qual foi transformado a noite global. Este dia é o dia mais curto. Com ele ameaça um único inverno sem fim. Agora não somente a proteção falta ao homem, mas o incólume de todo o Ente fica no escuro. O são subtrai-se. O mundo torna-se insano. Por isso tanto o sagrado como pista para a divindade fica oculto, enquanto também parece extinta a pista para o sagrado, o são. Ressalvando que ainda alguns dos mortais conseguem ver o insano como insano (das Heillose). Eles deveriam perceber qual perigo agride o homem. O perigo consiste na ameaça, que atinge a essência do homem na sua relação com o Ser mesmo, mas não em forma de infortúnios ocasionais. Este perigo é o perigo. Ele oculta-se no sem-fundamento de todo Ente" (Heidegger, 1994, p. 295).
O inteiro, o são (das Heile), dando pistas para o sagrado (das Heilige), que por sua vez dá notícia da divindade, subtrai-se. Desta maneira aumenta-se o perigo, perigo que se distingue da mera periculosidade ocasional ou do arriscar. Mas, no ápice da ameaça que emana do esquecimento do Ser, ou seja, na profundidade da noite global (Weltnacht), quando só poucos ainda sabem do aberto e guardam seu segredo, cresce também aquilo que salva. Ou como canta Hölderlin "Onde está o perigo, cresce também aquilo que salva". Essa salvação não pode ser somente uma ajuda temporária ou uma solução técnica. Unicamente uma virada, que envolve a essência do homem, tem o potencial de salvar. Ganha importância aqui a vontade do homem que, acompanhando a tentação e o risco, confronta-se mais fácil com o perigo do que os outros Seres. Pois na medida em que, seguindo a própria vontade o homem escolhe a atitude de imposição, ele promove a reificação do seu mundo e se fecha contra o aberto. Se fechar contra o aberto significa: estar-sem-proteção.
Mas acompanhando a tentação e o risco o homem pode abrir mão da imposição e do desocultamento meramente técnico. Como? Continuando no caminho do risco e da tentação (Wagnis) tentando ainda mais. Tentar o que? A construção de barreiras protetoras contra o aberto? Isto resultaria de novo na fabricação de uma armação (Gestell) e na imposição, somente possível no mundo da reificação. A reificação separa-nos do aberto. Somente uma tentativa mais audaciosa, por uma idéia mais audaciosa, dá-nos segurança. Esta segurança no aberto não significa proteção, mas, estar-seguro. Sendo seguro ficamos sem preocupação (Sorge). Estamos sem preocupação quando não procuramos a nossa essência exclusivamente no campo do fabricar e manusear, no campo das utilidades. Somos seguros somente fora da proteção, fora da despedida reificada do aberto. Assim o aberto abre-se e inclui-nos na plenitude do relacionamento puro. Este inclui tudo no sem-limite e relaciona-o com o centro. Arriscando e tentando recebe o homem o que ele não fabricou e o que ele recebeu ele dá.
A fala ganha na perspectiva heideggeriana um status privilegiado; a fala é a casa do Ser. Andamos sempre por esta casa quando entramos em contato com o Ente. Todavia usamos no nosso cotidiano a fala normalmente de maneira restrita. Denominamos as coisas para manuseá-las nos múltiplos processos do manusear e fabricar. Esta fala expressa a consciência útil e a vontade de se impor. A fala como casa do Ser pode falar algo mais. Pode falar deste algo mais que pertence ao próprio Ser. Mas quem poderia falar assim? Os poetas que viram o nosso estar-sem-proteção para o aberto lembram do inteiro e do são (das Heile) no meio do desesperado e insano (das Heil-lose).
"Somente na circunferência mais ampla do são consegue aparecer o sagrado. Os poetas da maneira destes que arriscam e tentam mais estão, porque experimentam o insano (Heilloses) como tal, caminhando nos rastros do sagrado. Seu canto sob a terra santifica. Sua canção festeja o incólume da esfera do Ser. A desgraça enquanto desgraça dá-nos a pista para o são. O são acena chamando o sagrado. O sagrado liga o divino. O divino aproxima o deus" (Heidegger, 1994, p. 319).
Evitando o sagrado sociologicamente: Durkheim e Weber
O sagrado tem duas faces: a primeira assusta e aterroriza o homem, quando ele entra na circunferência mais ampla do divino. Assusta na medida em que o homem sente-se atraído e repelido por algo enigmático e muito mais poderoso do que ele mesmo. A outra face do sagrado dá notícia de algo conciliante e harmonioso que mergulha o real no brilho do ideal. A antropologia designa como sagrado os fenômenos naturais, sociais ou humanos sobrevalorizados, que simbolizam conhecimentos e poderes e fogem do controle humano. Estes fenômenos inquietam e são ao mesmo tempo desejados. As culturas, na sua diversidade, definem o que é sagrado e o que é profano. Assim, para o homem da sociedade tribal o sagrado penetra seu mundo e apóia-o na regulação das suas necessidades; o mundo da vida do primitivo é ainda permeado pelo sagrado. A modernização aumenta gradualmente o espaço do profano em detrimento dos espaços sagrados. Todavia a sociedade européia autodefine-se até às vésperas da revolução industrial fundamentalmente sob o ângulo religioso. Mas, com o florescimento das ciências modernas e da técnica moderna desertam os deuses e diminui-se cada vez mais o próprio sagrado, que fica reduzido, como Heidegger mostra, a um vestígio, a um rastro que os deuses deixaram.
Quando Durkheim pensa o sagrado, ele parte de uma cumplicidade com a sociedade2. É ela que dá os parâmetros, é ela que interessa. Sobre questões metafísicas, segundo Durkheim, a sociologia não pode e não deve opinar. Quando este clássico da sociologia pensa a religião ele se interessa pela organização social dos atos religiosos, ele se interessa pelo culto e pela igreja, mas não pelo sagrado e pelo divino. Como Durkheim, todos os racionalistas, tanto nas diversas ramificações da sociologia quanto na antropologia, na psicologia e disciplinas próximas, abortaram a irracionalidade que emana do sagrado, limparam a religiosidade da sua essência própria e forneceram-nos explicações sobre a "vida religiosa", a estrutura social das comunidades religiosas e a funcionalidade dos atos sagrados para a sua coesão.
Difícil aliás, pensar o sagrado de forma diferente. Como pensar o irracional dentro de conceitos e procedimentos racionais? Já Weber, na sua introdução à Economia e Sociedade, alerta para o preconceito racionalista que a própria sociologia compreensiva tenta evitar; preconceito que pode resultar de conveniências metodológicas adotadas para compreender o inteligível. As irracionalidades de qualquer espécie, como Weber se expressa, cruzam na vida real a trajetória da ação social, mas são negligenciadas como fatores de distúrbio e a sociedade moderna é então apresentada como se estes fatores não existissem. Weber ainda sabia da operação arbitrária na raiz da própria metodologia. Todavia, muitos dos seus leitores caíram no pré-conceito racionalista, sobre o qual ele mesmo tinha alertado. Estes leitores compreendem o inteligível e, aí o problema, se contentam com isso; acham que a sociedade é, de fato, meramente racional ou, pelo menos, a caminho de uma racionalização que deixa cada vez mais menos espaço para ações livres e arbitrárias. Com outras palavras, fazem do irracional, depois de o ter transformado em resíduo, realmente algo inexistente.
Pois o irracional parece ter vida própria, pouco se importa com as regras do método sociológico ou com o sentido visado pelo ator social. Por isso as ciências que tratam de uma ou outra forma o sentido racionalizado da sociedade moderna e seus componentes são as mais atingidas pelos surtos irracionalizantes e pagam com moeda própria: falta de força argumentativa frente a fenômenos irracionais, fuga para uma leitura monumentalista dos clássicos, abandono da meta-narrativa dos grandes contextos (que dependem do sentido) e dedicação exclusiva ao minimalismo explicativo dos pequenos casos. O cientista social, sempre quando aparece, como a lebre na fábula, no fim do campo, está sendo recebido pelo irracional com o grito: "Já estou aqui!" Pois o irracional e o racional, como o ouriço e sua mulher na fábula, são parecidos e confundem os muito apressados. Quem pensou o sagrado3 com menos pressa e assumiu sem reservas o seu conteúdo irracional foi Rudolf Otto.
O sagrado e o numinoso: Rudolf Otto
O sagrado é um conceito composto - sempre integra um momento ético (sittliches moment) e, nas grandes religiões orientais e ocidentais, um momento racional. Atrás desta concepção madura e complexa do sagrado, cultivada por exemplo pelas igrejas cristãs, existe um outro momento, que uma concepção racionalizante do sagrado perde facilmente de vista. Otto chama este momento "o numinoso", que não somente foge de alcance dos conceitos como é possuidor de uma série de qualidades. Seu cerne é irracional par excelence, como tal dificilmente explicável ou acessível com meios da reflexão científica. Todavia existem testemunhos da experiência do numinoso, e uma predisposição não-cognitiva - a princípio em qualquer criatura - que possibilita e leva ao sentimento do numinoso. Otto tem plena consciência que uma consideração do momento irracional do divino foge com facilidade da comunicação usual, que não pode abrir mão da sua própria racionalidade. Sem uma certa benevolência do leitor, disposto a abrir mão de procedimentos hermenêuticos considerados como racionais, terminaria logo a tentativa de uma aproximação, uma melhor compreensão do numinoso. Otto convida o leitor a se lembrar de uma excitação religiosa forte e simples. Os que não conseguem isso, que se lembram com mais facilidade de sentimentos pubertários, prisão de ventre ou sentimentos sociais, devem parar com a leitura. Assim mesmo expressa-se Otto logo no início da sua obra. E realmente a sua abordagem exige sentimentos comuns entre autor e leitor, sem os quais as analogias, aproximações literárias, exemplos e documentos históricos dificilmente são compreensíveis. E Otto quer que nos entendamos; que se trata no caso do numinoso de um fenômeno irracional mesmo. Exatamente isto é o tema central do livro, resgatar atrás da cortina racionalizante da própria teologia cristã aquilo que a razão não acessa; mostrar a grandeza do não-inteligível perante o qual os empreendimentos científicos se tornam algo irrisório.
Discordamos da tradução da palavra irrational, como não-racional, termo usado pelo tradutor Prócoro Velasques Filho e usado por Bruno Odélio Birck. O irrational - em alemão - de Otto é o irracional em português mesmo. Se Rudolf Otto quisesse falar sobre o não-racional, ele usaria, como ele faz inclusive em vários momentos, o termo nicht-rational, e isso sim é o não-racional. O que pode parecer em um primeiro momento como uma briga sobre a barba do profeta, revela sua relevância quando levamos em consideração que Otto atribui ao numinoso uma vida própria, vê nele o chão da fé, sem o qual todas as derivações racionais e éticas seriam algo sem fôlego ou, melhor dito, sem força e espírito. O numinoso, para Otto, não é algo simplesmente não-racional, como o são os nossos sentimentos, é irracional numa profundidade e força que abraça conceitualmente a ira dei, imprevisível, imensurável e injusta, tanto quanto o amor dei que segura o homem, jogado no aberto da sua existência, quando ele menos espera. Apesar da constatação do numinoso como o completamente outro, Otto não desiste da tentativa - e aí o mérito do livro - de uma melhor aproximação deste fenômeno com meios discursivos. No seu empreendimento, ao inverso dos seus colegas sociólogos que pensam o sagrado do ponto de vista da sociedade, Otto devolve ao numinoso o status de fonte primária, para não dizer de um sujeito poderoso e terrivelmente estranho que é independente de qualquer projeção social e perante o qual o homem treme ou se derrete em delícias máximas.
Quais são, então, os momentos característicos do numinoso? Sublinhamos que o numinoso é o sagrado menos seu momento ético e, dizemos isso mais uma vez, menos seu momento racional (Otto, 1991, p. 6). Apesar do fato de que o numinoso é completamente inacessível para qualquer conceituação racional (Otto, 1991, p. 5) apresenta o autor sete características ou momentos do numinoso; são eles: o momento tremendum, o momento do poder superior (majestas), o momento do enérgico (orgé), o momento do mistério (o completamente outro), o fascinans, o augustus (valor numinoso) e o terrivelmente estranho (das Ungeheure).
O tremendum
A irracionalidade do numinoso, que bloqueia sua conceituação explícita, faz necessário se referir aos sentimentos que o próprio numinoso provoca. Um dos sentimentos mais profundos é resultado da experiência do misterium tremendum (Otto, 1991, p. 14). Neste misterium entra o homem em contato com o segredo da criação, o que pode resultar nas manifestações emocionais mais diversas como, no seu nível mais rudimentar e cru, temor, medo ou pânico; mas encontramos também formas mais brandas de sentimentos e reações, uma delas é simplesmente o silêncio, frente a algo indizível e inexplicável, silêncio que quer evitar que a fala do segredo do Ser torne-se falatório. A história dos monastérios cristãos, que escolheram o silêncio como parte integrante de uma maneira de viver sua fé, mostra que esta atitude, muito estranha para uma pessoa moderna, era algo realmente existente.
O deus do velho testamento descarrega em certos momentos de forma súbita sua ira sobre os homens. Nem sempre é essa ira dei vinculada aos atos punitivos, conseqüência da violação das normas divinas. Como diz Otto: "Um aspecto curioso da ira de Jahve sempre chamou atenção. Primeiro aparece em alguns lugares do velho testamento de forma evidente, que essa ira não tem nada a ver, de antemão, com qualidades éticas. Ela explode e manifesta-se de forma enigmática, como uma força natural oculta, como está sendo falado comumente, como eletricidade armazenada, que se descarrega acima daquele que se aproxima demais" (Otto, 1991, p. 21).
O momento do poder superior (majestas)
O sentimento de majestas transmite a sensação de anulação da própria existência, (o eu toma-se poeira e cinzas) por um lado, e da onipotência da transcendência, por outro. O objeto transcendente ganha um status de uma presença plena enquanto o ego confronta-se com a experiência da dissolução de si mesmo. "Eu sou nada, você é tudo!" É menos um sentimento de dependência, e muito mais a impressão do poder irrestrito do completamente outro. Tanto no misticismo cristão, com mestre Eckehart, Tersteegen e outros, quanto no misticismo islâmico, com Bajesid Bostami por exemplo, encontram-se documentos deste momento da majestas evocado pelo numinoso. Aspectos do misticismo da majestas encontram-se freqüentemente na ontologia, onde o Ser ocupa o lugar da transcendência, provocando as reações descritas. Na literatura, identificamos também os rastros da majestas, principalmente em autores que valorizam a natureza, como Hermann Hesse, Hemingway, Kerouac, Henry Miller etc.4, também certos fragmentos da filosofia poética de Nietzsche oferecem material de inspiração.
O momento do enérgico (orgé)
Vontade, força, movimento, agitação, atividade e paixão caracterizam o numinoso como algo enérgico que mostra-se tanto no demoníaco como na idéia do deus vivo. Este momento de irracionalidade da orgé é o que mais se opõe ao deus filosófico, racionalizado e moralizado. Encontramos em Lutero uma interligação entre a omnipotentia dei e essa orgé do deus vivo. A mística dinâmica do mestre Eckehart resgata o enérgico do numinoso assim como o entendimento e a apresentação do demoníaco por J. W. Goethe. Além do mais, encontramos em Fichte e sua mística voluntarista com a apresentação do absoluto como uma pulsão de atividade, inquieta e gigantesca, como também em Schopenhauer e seu conceito de vontade, rastros do momento enérgico do numinoso. Nietzsche, levando a filosofia da vontade ao ápice, abraçou como ninguém entre os seus colegas filósofos a idéia de orgé e mostrou, na evolução da dicotomia entre o apollonísico e o dionisíaco, que entendeu bem do que se tratava. Perdendo complexidade, mas não vitalidade, penetrou a orgé e seu cultivo as subculturas ocidentais, freqüentemente acompanhada por ritmos frenéticos e drogas estimulantes. Ainda o fascínio do sex and crime lembra-nos de algo cujo nome nos esquecemos.
Momento do mistério (o completamente outro)
Uma ciência complicada demais ou uma máquina cujo funcionamento não entendemos não é misterioso. Misterioso é aquilo que subtrai-se principalmente e para sempre de um acesso cognitivo, ainda mais, na experiência do misterioso fazemos a experiência do completamente outro, que nos repele e nos atrai. O nada, do misticismo cristão medieval, e o nirvana do budismo são, na interpretação de Otto, ideogramas numinosos do completamente outro. Otto mostra o desenvolvimento histórico no entendimento do mistério, na sua qualidade de mirum. Primeiro trata-se do somente estranho, que ultrapassa os limites do nosso entendimento, se transformando num segundo momento no paradoxal, perturbador e aparentemente contra as regras da nossa razão, que por sua vez desemboca no antinômico, contraditório em si e a forma mais irracional do mirun, que se opõe em movimentos grotescos à lógica e surpreende a razão. O estranho, o paradoxal e o antinômico aparecem integrados no misterium do numinoso na confrontação com o completamente outro. Salve ressaltar que o estranho, o paradoxal, e o antinômico encontram-se na arte e literatura do século vinte como em nenhuma época antes, tanto enquanto tema como enquanto meio de expressão, todavia - e aí a especificidade histórica - descoberto de qualquer mistério religioso. A categoria do absurdo, provavelmente, é a expressão mais nítida do aparecimento do mirum, sob condições modernas. A forma nua dos elementos do numinoso na atualidade, quando eles se mostram libertados do seu contexto transcendental, vai nos ocupar ainda mais adiante.
O fascinans
O misterium tremendum tem como complementação e oposição o fascinans. Este em vez de repelir e afastar o homem atrai e requer aproximação. No fascinans o numinoso promete o São, acena com algo que é sempre mais ou ainda mais. Em contato com este ainda-mais o homem sente uma felicidade plena, que transcende qualquer estado emocional comum. A impressão que o fascinans deixa na alma humana é indizível, a língua é incapaz de ex-pressar o que a alma sente. Isto, mais uma vez, sublinha o caráter profundamente irracional do numinoso; esta vez na sua forma atraente e fascinante.
O desejo de alcançar o autêntico alimenta-se freqüentemente dessa fonte numinosa, que promete alcançar a identidade com o São absoluto. Isto não vale somente para a vivência individual, também na vida social constatamos algo semelhante: ela tende a uma superação coletiva, ao êxtase, ao crescendo. Tudo realmente grande, vivido e sentido como grande, explica-se assim. As missas do Führerem Nürnberg, as guerras patrióticas, atos heróicos de qualquer natureza frente aos olhos coletivos, ganham sua força de fontes localizadas muito aquém da escolha racional. Temos que dar ouvido quando Goebbels, o ministro de propaganda do terceiro Reich, diz: "Nós entramos nessa guerra como num serviço religioso!" Com este tom no ouvido e atentos à expressão facial devota dos seus ouvintes entendemos melhor o que significa: a) desvincular o numinoso do seu contexto religioso; e b) injetar as energias desta maneira liberadas em um projeto social. A sociologia sempre negligenciou isso, ela analisa o cotidiano, os fatos sociais no seu contexto racionalmente inteligível e esquece a disposição dos homens de queimarem-se, em um único grande momento, coletivamente vivenciado.
O culto destes momentos, vividos de forma intensa, é perigoso para qualquer tipo de moral social, os costumes, a tradição, que sempre necessitam da permanência e dependem da a-costumação. A sociedade tende a cercar as erupções, potencialmente perigosas para ela, e somente permite o êxtase, se ele não é profundo e prolongado demais. Assim, os momentos estáticos na liturgia católica conduzem ao numinoso para cobri-lo logo em seguida com todo o volume do órgão. Mas a falta do êxtase ritualizado, então socialmente organizado, empurra os indivíduos para o vazio, eles querem ainda mais e procuram-no mais próximo, na atualidade cada vez mais ligada com drogas de qualquer espécie. Todavia também a transgressão dos limites comportamentais, freqüentemente de forma agressiva ou sexual, quando se soltam os laços da socialização, pode levar ao contato com fontes misteriosas sentidas no fundo do próprio corpo. E não por último a música pode afetar-nos de forma enigmática; faz-nos esperar por um "arrepio sagrado", que em momentos difíceis e especiais nos assalta.
O enormemente estranho (das Ungeheure)
O sentimento do enormemente estranho une, num certo sentido, momentos do mistério, do tremendum, da majestas, do enérgico e do augusto. O enormemente estranho ultrapassa, como os outros momentos do numinoso, o nosso horizonte racional, e faz mais do que assustar pois coloca o homem numa posição de humildade frente a dimensões tanto do universo como da nossa existência e dos nossos feitos. Sófocles se refere ao enormemente estranho quando escreve: Muito existe que é enormemente estranho. Pois nada é mais estranho do que o homem.
O augustum (o valor numinoso)
O numinoso possui, segundo Otto, uma força que fundamenta finalmente qualquer valor ético. Sem o valor numinoso não existiria base sólida para exigências morais. A ética não é uma construção meramente social, como a escola durkheimiana nos faz crer, mas algo derivado desse valor numinoso. Diferente do que o fascinans, que representa este aspecto do numen que possui um valor para mim, significa o augustum um valor objetivo, um valor em si e sui generis a ser respeitado pelos homens (Otto, 1991, p. 69). O augustum faz a ponte para o conceito complexo do sagrado de Otto, porque está ancorado nas profundidades da irracionalidade do numen, embora possibilitando o desdobramento do sanctu, que abrange além das qualidades numinosas mencionadas anteriormente, momentos racionalmente compreensíveis; as obrigações éticas fazem parte deles. A ética de Otto podemos denominar uma ética forte, pois apresenta-se equipada com energias que ultrapassam o horizonte humano; podemos denominar ética fraca, qualquer ética que é resultado de negociações entre homens, pois baseia-se meramente na comunicação e suas contingências. Uma ética de responsabilidade pode se fundamentar dessa ou daquela maneira. As responsabilidades, distribuídas racionalmente, ganham sem dúvida mais força ética, quando ligadas com o augustum, que sempre guarda aspectos do tremendum.
Sacralização
Encontrando a sua expressão culturalmente bloqueada o sagrado ainda aparece como sacralização, embora distante do divino. O próprio homem sacraliza coisas, momentos, objetos de consumo e hábitos adquiridos. Neste processo, o sagrado entra na latência, enquanto o sacralizado ganha traços não-organizados e até irracionais. A própria espontaneidade, contestando ritos sagrados de outrora, apresenta-se freqüentemente de forma sacralizada e festejada nos grandes eventos da cultura pop ou durante os encontros da política orquestrada. Assim lembram tanto os eventos do partido nacional-socialista em Nürnberg, os famosos Reichsparteitage, como os concertos de bandas famosas da contra-cultura, missas que orientam a atenção das massas ao altar onde os sacerdotes da profanidade celebram suas últimas memórias do sagrado. Mas na sacralização desvirtuada esgotam-se as últimas energias religiosas, tornam-se surtos de uma paixão que não conhece mais direção nem o nome do seu amor. Por isso a sacralização chama atenção pelo seu caráter maníaco e freqüentemente violento. Na festa profana da modernidade participam Dionísio, Eros e Thanatos, confundem-se um com o outro, e provocam os homens modernos com suas brincadeiras, risadas e gestos obscenos.
A sacralização é feita pelo homem, diferente do que o sagrado que é dado como pista dos deuses desertados. Na medida em que a sociedade moderna se auto-definiu como auto-organizada, ela direcionou as energias religiosas para si mesma, ela sacralizou-se. A veneração do todo, na sua versão cosmológica ou na versão monoteísta, transformou-se neste curto-circuito em totalitarismo. O carisma que nos deu em outros tempos notícia de algo diferente e nos avisou da possibilidade de salvação numa esfera além do vale de lágrimas, reduziu-se ao carisma do pintor de Braunau e de um filho de camponeses do Cáucaso. Estes nem se deram mais ao trabalho de derivar a própria legitimação do divino, o que foi desde os faraós até os últimos reis europeus ainda necessário para justificar o poder absoluto sobre a sociedade. A dialética da história, no caso de Joseph Wissarionowitsch Dshugaschwili, e a superioridade da própria constituição biológica aliada com o destino histórico, no caso do pintor austríaco, foram aceitas pelas massas acéfalas como fundamento suficiente para o poder total. A história mesma, depois da mera constatação da morte de deus, adquiriu forças divinas, foi sacralizada.
As projeções totalitárias têm em comum a expectativa de encontrar o escaton, a salvação, durante a própria vida, ou pelo menos num espaço de tempo histórico, isto é, humano. A versão profana do juízo final foi conseqüentemente instalada na terra e conseguiu temporariamente confundir até as suas vítimas inocentes. Elas, e ainda mais os seus historiadores, interpretaram a sua morte nos campos de extermínio como holocausto, então como um ato sagrado e como tal equipado com a capacidade de uma aproximação do divino. Ou, como no caso de Bukharin, bolchevique da primeira geração, sacrificaram a própria vida à causa revolucionária, extrapolando a racionalização deste ato durante os processos em Moscou de tal forma que ela transformava-se no seu oposto; as "confissões" de Bukharin expressavam sua crença intrépida tanto na missão histórica do proletariado como do partido comunista. Uma crença baseada em certezas vindo das raízes da alma humana que fez milhares de heréticos preferirem a morte nas fogueiras da santa inquisição do que abdicarem das próprias convicções5. Bucharin, como ateu marxista, sem referencial em algo além do contexto "material", submeteu-se à história e fez da causa revolucionária a última instância. Ele sacrificou-se, como muitos outros que desapareceram na história como uma lágrima no oceano (Manés Sperber).
A sacralização como transferência de energias religiosas para o campo histórico ainda não é o que podemos chamar retorno do sagrado. Também o Djihad, a guerra santa, não se torna sagrado somente via declaração de políticos enfurecidos. Trata-se, também neste caso, de uma sacralização, isto é, uma projeção humana. Todos estes fenômenos que chamamos fundamentalismo tentam tirar as suas energias do são para conseguir um enfrentamento com algo exterior percebido como insano. Pelo menos temporariamente e em situações extremas conseguem os fundamentalistas enganar a si próprios; participam subjetivamente nas fontes das eternas certezas e excluem os outros. A exclusão do outro, fortalecendo num primeiro momento a autoconsciência e a sensação de contato exclusivo com o divino, parece o melhor indicador pelo distanciamento entre o fundamentalismo e o fundamento. O fundamento como sendo o aberto, subtrai-se no ato do seu desvelamento, como Heidegger mostra. Pois o fundamentalismo, nas suas variações mais diversas, insiste na revelação do sentido da história do Ser sem reconhecer seu caráter aberto. Fechando desta maneira o curto-circuito forma-se um campo perigoso. O homem começa a trabalhar no campo histórico, entendido hoje também como sócio-ambiental, com energias que este não suporta.
O retorno do sagrado?
A fala do retorno do sagrado quer apontar na direção de algo bem distinto; alerta então para uma confrontação ambígua do homem moderno com o mundo que ele habita e desoculta. Essa confrontação é confrontação porque acontece na base da imposição intermediada pela técnica moderna e, guiada pela ciência, ela aproxima o homem cada vez mais, e isto com meios entendidos como racionais, do enigma do Ser. Enigma que não se deixa reduzir a uma mera pergunta aberta a responder pelos cientistas futuros. A pergunta como enigma reaproxima o sagrado, mantido como extinto pelas ciências positivas e mecanicistas do século dezenove.
Seguindo a conceituação de Otto, para quem o sagrado é uma categoria composta de elementos numinosos e racionais incluindo, também, a fundamentação da ética cristã, podemos diferenciar a nossa argumentação. Primeiro, o próprio sagrado se decompõe no processo da modernização com seu avanço da ciência e da técnica moderna. As camadas mais racionalizadas (Otto também diria: esquematizadas) do sagrado estão sendo apropriadas pela sociedade moderna e desvinculadas do seu contexto religioso. A própria ética da fraternidade foi aceita sem nenhum constrangimento pelos movimentos sociais revolucionários sem que isso causasse atritos com sua orientação ideológica, em geral anticlerical e ateia. Também a arte moderna se libertou do caráter simbólico e figurativo da arte sagrada. Aproveitou a sua valorização do conceito do belo até à sua decomposição na arte abstrata e a inversão estética contemporânea, pois ainda a estética do constrangimento vive da sua oposição às harmonias de outrora, ou quer, sem que isso fosse sempre a sua intenção declarada, fazer sentir (ver, ouvir) o completamente outro.
A integração da superfície racionalizada do sagrado no contexto moderno acontece sem maiores problemas, devido à congruência e afinidade da própria racionalidade, existente em ambos os lados. Mais uma vez: encontramos a racionalidade do sagrado somente na sua superfície, e aqui principalmente nas suas derivações éticas, indispensável para a regulamentação comportamental da sociedade. O sagrado está tanto na raiz da idéia da jus como fornece a energia proibitiva do sistema jurídico. Pois, na medida em que o Estado de direito moderno se afasta de sua inspiração ética, enfraquecem as energias que o fundamentam. O entendimento do código civil como um sistema de um jogo meramente profano onde cleverness e esperteza decidem sobre ganhos e perdas, é exemplo do seu enfraquecimento e, como Weber diria, da cotidianização de um carisma, sem o qual também o Estado de direito se confronta com o problema da reinterpretação anti-autoritária do carisma (herrschaftsfremde Umdeutung dês Charismas) (Weber, [1922] 1991, p. 175). A busca da moralização da sociedade é muito mais sintoma da desorientação que resulta da distância entre uma ética ainda não separada das suas fontes do que qualquer outra coisa. As bem intencionadas comissões de ética, encarregadas pela vigilância das regras do jogo político, são caricaturas senão do juízo final então da santa inquisição. Aqui homens e mulheres se intronizam como última instância e caem necessariamente no ridículo porque não são, obviamente, a última instância.
Fundamentar uma ética, exclusivamente, com meios modernos deve ser um empreendimento difícil e até impossível. A esperança que o diálogo sem dominação constrói o que as comissões de ética não conseguem é, além de ser simpática, uma esperança moderna. Como tal aposta na racionalidade, pelo menos na racionalidade comunicativa, pois as outras esferas, a economia e a administração, são concedidas de antemão à racionalidade instrumental, difícil de domar com meios discursivos. Caracterizamos anteriormente uma ética que se fundamenta no discurso, uma ética fraca. Ela é fraca porque somente dispõe de argumentos sobre a fala. Isto não depõe contra ela como sistema de regras socialmente vantajosas, mas como uma ética capaz de exercer um poder interior sobre os homens, porque não transmite a vontade de deus, mas de uma assembléia humana. Sem o tremendum, sem a ira dei não tem ética que dure. E ainda assim, temos que acrescentar, tende o homem a violar as grandes regras. A queda quotidiana no impróprio, da qual Heidegger fala, está freqüentemente acompanhada pela perda temporária da capacidade de distinção entre o Bem e o Mal.
A decomposição do sagrado nos seus elementos não atinge somente as suas camadas mais racionalizadas mas também o próprio numinoso. Podemos até dizer que a modernidade, como ela foi vivida no século vinte, afugentou tanto os deuses como as suas manifestações mais filigranas, representadas pelo conceito complexo do sagrado que sempre nos dá notícia, para retomar um outro pensamento de Heidegger, do São. Nem surpreende então que o numinoso, nas suas formas emas e irracionais, toma-se um tema exatamente no momento, quando a técnica moderna consegue libertar, com meios racionais, energias capazes de reduzir a complexidade da vida às suas cinzas radioativas. Temos que falar então sobre a volta do numinoso em vez da volta do sagrado?
As hierophanias: manifestações do sagrado
O sagrado como o completamente outro transcende qualquer Ente profano; por outro lado faz-se presente em lugares, em momentos, em pessoas ou objetos que estão envolvidos na manifestação do sagrado, somente assim o sagrado entra no alcance da experiência humana. Estes carregadores do sagrado são as hierophanias. Elas são, segundo Mircea Eliade, qualquer coisa na qual o sagrado se manifesta (Eliade, [1949] 1986, p. 15). Certas hierophanias são universais ou, pelo menos, possuem um potencial globalizável e outras são locais ou históricas. Assim percebem somente os olhos de um homem da cultura indiana a transformação (ou melhor transubstanciação) de uma certa planta numa árvore sagrada - trata-se então de uma hierophania local. Por outro lado, conseguiu a hierophania semita do Jahwe superar suas antecedências históricas, a hierophania do Ba'al (o deus da tempestade e da fertilidade) e da Bêlit (a deusa da fertilidade, principalmente do solo). A superação dessas hierophanias restritas à experiência dos antigos semitas pela hierophania jahvista preparou o chão para uma outra, a hierophania cristã, que conseguiu alcançar uma correspondência com outras hierophanias monoteístas. Essas observações não devem convidar, nessa altura, para uma hier-archização das hierophanias; não existem, de antemão, hierophanias mais valiosas do que outras. Também as hierophanias crypticas, essas que não revelam facilmente seu conteúdo, são manifestações do sagrado. A diversidade das hierophanias nas diversas culturas humanas é o que chama a nossa atenção, diversidade que somente está superada pela insistência com a qual as hierophanias se fazem presente no percurso da história humana. Eliade escreve: "Temos que nos acostumar a aceitar as hierophanias em qualquer lugar, em qualquer área da vida fisiológica, econômica, espiritual e social. Na verdade, não sabemos se não existe algo - objeto, ação, procedimento fisiológico, Ente, um jogo etc. -, que nunca, em algum momento da história humana, havia sido transfigurado numa hierophania" (Eliade, 1986, p. 34).
O sagrado e o profano coexistem numa hierophania, coexistem como o Ser e o Nada, o absoluto e o relativo. Essa identidade, temporária, é perturbadora e contraditória. Ela significa uma ruptura antológica dando ao mundo uma estrutura paradoxal: o temporal deixa transparecer o eterno, como o limitado o infinito, ou a morte, a vida. Eliade chama atenção para um aspecto realmente curioso, ele diz: "O que é paradoxal e não entendível não é o fato da manifestação do sagrado em pedras ou árvores, mas o fato, que ele se manifesta e desta maneira limita e relativiza" (Eliade, 1986, p. 56).
Sacrificium intelectum?
A afirmação da existência de hierophanias é algo que a consciência científica comum registra como uma manifestação da fé. Concedemos à fé o que banimos das ciências: a mera postulação da existência de algo, cuja existência não podemos provar; também as esperanças de salvação das mazelas da existência finita do homem aparecem frente ao olho clínico do cientista normal como algo proveniente de um mundo de desejos, das fantasias, das imaginações. Essas e outras irracionalidades foram entendidas, durante séculos, como contrariando o espírito da ciência e tornaram-se objeto da mesma. Fiat Lux! Diminuir cada vez mais o mundo desconhecido, tomar intelegível o que ainda não é, descobrir as causas de efeitos surpreendentes, substituir com uma palavra a fé pela razão, este é o programa do racionalismo ocidental e suas ciências modernas.
Acontece que as mesmas ciências, ou melhor dito, sua vanguarda mais inovadora, chegou, executando o programa cognitivo das ciências modernas, aos resultados que parecem nos confrontar de novo com um mundo estranho, paradoxal e antinômico - características que conhecemos como atribuições que Otto dá ao numinoso. E sabemos que são nomes ilustres que afastaram a física do século vinte de uma concepção mecânica do mundo, durante séculos tida como insuperável. Entre os protagonistas encontram-se Einstein, com a sua teoria da relatividade, Heisenberg, com a sua relação de incerteza, para não falar sobre Max Planck e o matemático Poincaré, que introduziram-nos no mundo probabilístico, não-linear e cheio de surpresas. Com meios científicos derrotou a termodinâmica a concepção de uma ordem das coisas estável e infinita, mostrando que a entropia tende, em sistemas fechados, ao máximo. Os primeiros cálculos aparecem, tentando extrapolar dos ganhos e perdas de energia do planeta Terra seu provável tempo de sobrevida. O fim do mundo, até então somente tratado no apocalipse de João e nas visões horrorosas de um Nostradamus, apareceu como um acontecimento calculável dentro do horizonte científico.
O impulso inovador da física, que não se restringiu a ela pois invadiu a nossa consciência espacial e temporal, acelerou os desdobramentos da técnica e colocou a humanidade dentro de poucas décadas frente à possibilidade de sua auto-extinção colocando em funcionamento as novas descobertas sobre a microestrutura do átomo. As reais e futuras conseqüências do desocultamento técnico da energia nuclear ficam até hoje no escuro. Acostumamo-nosa falar sobre riscos do uso militar ou civil da energia nuclear. Tentamos cercar então com meios probabilísticos - um conceito novo como vimos - o fenômeno que nos assusta. Susto? Ou seria melhor falar sobre a experiência do tremendum que as populações de Nagasaki e Hiroshima fizeram, quando um cogumelo gigantesco e radioativo se erigiu acima de suas cabeças? Os que sobreviveram preferiram freqüentemente se calar frente às dimensões do acontecimento. E até hoje quando comemoramos em solenidades anuais a data da explosão da primeira bomba atômica é silêncio o único meio que achamos para dar uma resposta a algo terrível que ainda não entendemos6.
A Dolly e o π-meson
O que dizer então quando somos confrontados com os resultados da biologia molecular e da genética? A Dolly, o primeiro carneiro duplicado geneticamente, não assusta embora nos faça pensar. A fertilização in vitro de óvulos humanos, a melhoria genética de grãos... já estamos a caminho de nos acostumar com essas novidades e até descobrimos aspectos aceitáveis e úteis nos avanços da pesquisa genética e sua aplicação. A ciência e sua técnica parecem estar no caminho de conseguir desmontar a vida e remontando-a seguindo critérios próprios. Quem não se lembra do rato de laboratório com uma orelha humana nas suas costas? O que significa tudo isso? Sim, os cientistas conseguem manipular códigos genéticos e apresentam os resultados ao público atônito, pois o fato que eles podem fazer isto, não foi feito por eles. O que admite e porque, a reinvenção daquilo que foi entendido, pelo judaísmo/cristianismo e outras religiões, como criação? O mistério, que cedeu temporariamente ao jogo de pergunta e resposta dos cientistas, volta a envolver seu próprio fazer. A mais sofisticada manipulação genética não consegue escapar do Ente, que é a plataforma do seu sucesso e ao mesmo tempo sua prisão. O Ser do Ente7, revelando-se sob os olhos atentos dos cientistas, subtrai-se no mesmo momento. Desocultando tecnicamente o Ser, cujos segredos o atraem, o cientista desfaz um mistério para colocar um outro no seu lugar. E, como ouvimos, o mistério é um momento do numinoso.
Misterioso mesmo é o mundo que a nova física das partículas elementares descobriu aquém do jogo conhecido entre próton, nêutron e elétron. Os modelos atômicos mais recentes trabalham hoje com mais do que vinte partículas, que mostram um comportamento surpreendente. Holling e Kempin (1989) escrevem que algumas destas partículas podem até esquecer a sua identidade. Dizem os autores: "Quando, por exemplo, um pi-méson negativo colide com um próton e as 2 partículas desaparecem, em seus lugares originam-se uma partícula-lambda e um K-méson. A partícula-lambda, por seu lado, se divide novamente em um pi-méson negativo e um próton; enquanto o K-méson se divide novamente em 2 outras partículas, e assim por diante, de tal modo que se transformam continuamente em outros. De fato, eles se originam de um espaço 'vazio' (vácuo), portanto do nada, e lá desaparecem novamente. Aqui, a identidade desses 'objetos', no sentido sa lógica formal, é fundamentalmente questionável. Além disso, seu caráter como <objeto>, assim como a distinção entre algo e nada, perde o sentido" (Holling & Kempin, 1989, p. 65).
Micro, Meso, Máxi
As medidas do homem são as medidas médias: é o meso que segue suficientemente regras causais e abre assim a possibilidade de uma manipulação técnica que não foge facilmente do controle humano. Aquém e além dessas medidas começa o que alguns chamam o caos determinístico. O que seria aquém e além do meso? Velocidades extremas, distâncias extremamente grandes ou extremamente curtas, energias altíssimas, temperaturas muito baixas ou muito altas, densidades e pressões gigantescas, repetições de alta freqüência e assim por diante. Nessas zonas extremas o mundo torna-se inabitável e, além do mais, paradoxal. A astrofísica confronta-nos com a curvatura do espaço tentando desta maneira passar para um leigo seu entendimento do universo, a microfísica confronta-nos com locomotivas que cabem numa caixa de fósforos, tirando o espaço (teoricamente, por enquanto) entre as partículas elementares em movimento. A cisão nuclear conseguiu com uma manipulação no nível micro libertar as maiores energias jamais à disposição do homem. São a ciência e a técnica da última geração que colocaram essas esferas ao alcance do homem. A técnica pré-industrial, apesar de ter multiplicado a potência mecânica do trabalho, ainda movimentava-se na esfera meso. Hoje dispomos além disso de meios técnicos para integrar no mundo da vida o que nunca era dela. Integrar? Temos boas razões para duvidar dessa palavra. Observamos que dessas margens (micro e macro) do mundo habitável surgem forças com as quais o homem ainda não se mediu. Ou em outras palavras: somos capazes de desocultar tecnicamente o que era oculto e desconhecido, mas não somos capazes de manusear tecnicamente, e de forma sustentável, os fenômenos cujo aparecimento provocamos. Não é uma questão de pessimismo ou otimismo dizer que o corpo humano não agüenta sem proteção temperaturas altíssimas, acelerações enormes, pressões gigantescas, ritmos de alta freqüência e outros fenômenos extremos. E até o tempo que nossas emoções necessitam para se desdobrar é um tempo próprio delas e estranho ao mundo técnico. Pois, grandes doses de radiação, temperaturas extremas e altas acelerações que vinham da margem da experiência do homem, e foram freqüentemente motivos de veneração, estão hoje no centro da sua sociedade, invadem o mesoe colocam em perigo o que é próprio do homem.
A fala da sociedade de risco (Ulrich Beck, 1986) só faz sentido quando nos referimos a essa invasão de dimensões extremas no mundo da vida, processo intermediado pela técnica moderna. Risco é até uma denominação velada pois sugere que esses fenômenos são acessíveis aos nossos cálculos probabilísticos, sugere inconscientemente também que a sorte (ou um seguro) pode nos livrar de possíveis danos. Melhor seria, concordamos com Stefan Breuer, falar sobre perigos da sociedade moderna, falar sobre a civilização em perigo (Hochgefahrenzivilisation).
O sagrado em estilhaços
Ainda parece estranha essa vinculação de fenômenos extremos, chamados pela técnica moderna para dentro da sociedade humana, com o sagrado. E realmente, a alta afinidade entre racionalidade e irracionalidade é perturbadora. Tão perturbadora como ver primeiro uma foto dos físicos e engenheiros de renome como Einstein, Bohr, Planck, Heisenberg, Braun etc. e depois uma outra de Hiroshima em 1945. Tão perturbador e assustador como ver um videoclip de uma linha de montagem da Ford dos anos trinta e um documentário sobre a fabricação de defuntos em Ausschwitz. Essas imagens perturbam e procuramos orientação.
Sabemos de Otto que o sagrado é uma categoria composta de elementos racionais e irracionais, fato que deixa Otto escolher o conceito do numinoso para se aproximar melhor do fundamento irracional do sagrado. O numinoso é o sagrado menos seu momento ético e menos seu momento racional. Onde encontramos o numinoso sem seu enquadramento ético e racional estamos, num certo sentido, diante de uma forma crua do sagrado. Estas formas cruas, os elementos do numinoso, podem se manifestar de forma singular, separadas dos outros momentos irracionais, e - subentende-se - também das formas racionais e éticas. Na medida em que o numinoso se desfaz em seus elementos fica mais difícil vincular sua manifestação com uma visão mais ampla do numinoso e, igualmente difícil, ver o seu contexto maior, o sagrado complexo. Levando em consideração que o sagrado, por sua vez, é somente uma pista, uma pista para o divino, que por sua vez também somente acena para os deuses, entendemos melhor as nossas dificuldades de ver numa manifestação singular do numinoso estes últimos.
A fala do retomo do sagrado pode ter só este sentido: a razão científica afugentou os deuses, cujas últimas reservas ficaram reduzidas a ilhas num mundo-objeto das ciências e da técnica. A modernidade desconstruiu o conceito de deus, até um ponto que Nietzsche podia declarar a sua morte. E no passar do tempo até o ateísmo perdeu sua atratividade. Porque ser contra alguma coisa que não existe? Sem Deus ficou a sociedade moderna ainda na posse de abstrações cuja origem ela esqueceu ou que foram atribuídas à própria sociedade. Entre elas o conceito da totalidade, do Ser, da ética.
Na medida em que o particularismo e individualismo dissolveram a consciência da totalidade, na medida em que a queda no impróprio da sociedade de consumo e da auto-aceleração contribuiu cada vez mais para o esquecimento do Ser, na medida em que a ética perdeu seu fundamento e o Estado de Direito tornou-se um mero jogo de regras profanas, nessa medida ficou o numinoso cada vez mais desprovido das suas derivações racionalizadas e cultivadas. Depois da morte declarada de Deus, não houve mais espaço para o divino e nem para o sagrado no seu entendimento complexo (irracional, racional, ético). Confrontamo-nos então com os estilhaços deste sagrado, que atravessam o caminho do homem quando ele menos espera. As formas cruas, que intimidam (majestas), fazem tremer as bases da nossa existência (tremendum), destroem o que construímos e amamos (orgé, ira dei). Às vezes, todavia, sob influência do mysterium tremendum abre-se uma clareira (Lichtung dês Seins) que nos envolve na luz do mysterium fascinans. Nestes momentos sentimos o que poderia ser o São, o Inteiro. Sentimos o augustum, o valor numinoso, dando-nos apoio para reencontrar a fraternidade com os outros. E sentimos também o que poderia significar: pensar.
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Recebido para publicação em agosto/1998
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Abr 2012 -
Data do Fascículo
Maio 1999
Histórico
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Recebido
Mar 1998