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Niklas Luhmann, Sistemas sociais: esboço de uma teoria geral

Luhmann, Niklas. . Sistemas sociais: esboço de uma teoria geralSão Paulo: Vozes, 2016573p.

O livro Sistemas sociais, de Niklas Luhmann, foi originalmente publicado há mais de três décadas, em 1984 (Luhmann, 1984LUHMANN, Niklas. (1984), Soziale Systeme. Frankfurt, Suhrkamp.). Curiosamente, apesar de sua envergadura teórica, bem como do fato de representar um marco para a interpretação da teoria dos sistemas (sociais) proposta por ele, sua tradução no Brasil deu-se apenas agora, sendo, inclusive, precedida pela tradução, para a língua portuguesa, de outras obras de sua autoria (Luhmann, 1980LUHMANN, Niklas. (1980), Legimitação pelo procedimento. Brasília, Editora da UnB.; 1985LUHMANN, Niklas. (1985), Poder. Brasília, Editora da UnB.). Desse modo, ainda que bem-vinda e de provável e significativo impacto, o livro acaba inserindo-se de modo diverso, permitindo a muitos leitores e leitoras o acesso ao edifício basilar dessa abordagem, que se alimenta de variadas correntes, perspectivas e disciplinas, conforme retomarei a seguir.

Ainda que se apresente como o primeiro esforço sistematizado (bem como sistêmico) no sentido de esboçar a sua vertente da teoria dos sistemas sociais, e que – conforme busca caracterizar ao longo da obra – se organize como teoria de sistemas autorreferenciais, de modo algum constitui o pontapé inicial dos trabalhos desse autor. Antes, as décadas de 1960 e 1970 haviam vivenciado as primeiras incursões de Luhmann, publicadas em artigos esparsos, reunidos em três volumes sob o título Esclarecimento sociológico (Soziologische Aufklärung) que trataram, respectivamente, da teoria dos sistemas sociais (1970b), da teoria da sociedade (1975b) e de sistema social, sociedade, organização (1981)1 1 . Trata-se de coleção composta por seis livros; os outros três apresentam trabalhos escritos concomitante e posteriormente a Sistemas sociais . Os outros volumes têm como subtítulos, respectivamente, “Contribuições à diferenciação funcional da sociedade”, “Perspectivas construtivistas” e “A sociologia e o ser humano”. . Por sua vez, Sistemas sociais de certo modo inaugura um extenso período de muita proficuidade sociológica – se assim posso formulá-lo –, na medida em que enseja a publicação e/ou a preparação de outros livros que, então, passam a discutir precisamente diversos subsistemas sociais. Nesse período pode-se notar o seu distanciamento ante a separação todo/parte, predominante na sociologia, que ele exemplifica, entre outros, no argumento de que seria heuristicamente infrutífero distinguir diferentes sociedades e que, antes, a sociedade moderna, em virtude das transformações pelas quais passou, deveria ser entendida como sociedade mundial (Luhmann, 1971LUHMANN, Niklas. (1971), “Die Weltgesellschaft”. In: LUHMANN, Niklas. Soziologische Aufklärung 2: Aufsätze zur Theorie der Gesellschaft. Opladen, Westdeutscher, 1975, pp. 51-71.).

Feita essa contextualização, vale situar, inicialmente, os pressupostos dos quais Luhmann parte. No prefácio, coloca o seu esforço em perspectiva – e, saliente-se, essa obra de mais de quinhentas páginas é qualificada por ele, em seu subtítulo, ainda como um “esboço” –, a saber, a busca de sua inserção num debate sociológico que, diante da crise identificada por ele na produção de teoria, deixou de lado até mesmo o desenho de teorias gerais. Estaria em falta, portanto, a disputa por um modelo ou um paradigma que sustentasse o conhecimento sociológico, o qual se realiza, em termos teóricos, nos seguintes moldes: “Os clássicos são clássicos, porque são clássicos; eles são atualmente identificados mediante autorreferência. Tomar grandes nomes como orientação ou se especializar neles pode, então, ser considerado pesquisa teórica” (p. 9). Com isso ele, ao mesmo tempo, de um lado justifica o cerne assumido pelo conceito de autorreferência (em sua formulação particular: autopoiese) e, de outro, destaca a pretensão de universalidade dessa abordagem teórica, que pode se manifestar em e engendrar diversas formas de expressão.

Aqui se encontra o cerne da influência exercida pela concepção sistêmica formulada por Humberto Maturana e Francisco Varela. Destaco, primeiramente, a originalidade do termo autopoiese, que em sua obra Maturana e Varela destacam como tendo sido cunhado justamente para designar um novo olhar sobre a ideia já estabelecida de autorreprodução – nos termos dele, autopoiese era “uma palavra sem história” (Maturana e Varela, 1980MATURANA, Humberto R. & VARELA, Francisco J. (1980), Autopoiesis and cognition. Boston, Kluwer., p. XVII). Isso permitiu a Luhmann trabalhar uma noção de autorreferência que fugisse aos termos estabelecidos na sociologia, tais como autonomia, reflexividade etc. e, simultaneamente, sustentasse um vínculo com a universalidade da teoria dos sistemas, cuja validade científica e cujo modelo de análise pudessem ir muito além dos sistemas sociais.

O pressuposto mais geral, referindo-se a uma teoria geral dos sistemas, encontra-se em Ludwig von Bertalanffy (1968BERTALANFFY, Ludwig von. (1968), General system theory. Nova York, Braziller., pp. 30 ss.), que fundamentava o seu pleito observando que movimentos e pontos de enfoque semelhantes se faziam presentes em campos muito distintos da ciência, de modo que o levou a postular a necessidade de uma nova disciplina, como opta por denominar essa teoria. Especificamente para o olhar luhmanniano, isso implicará adotar o que Luhmann denomina de método da análise funcional (p. 73).

O limiar em que situa a sua proposta é demarcado por Luhmann a partir de três aspectos principais. Primeiramente, a universalidade da teoria para a disciplina, abarcando todo o social de modo que não mais fora tentado desde Talcott Parsons2 2 . Evidentemente, como o próprio Parsons o apresenta (1951, cap. 1), a sua abordagem se localizava no âmbito do quadro de referência de uma teoria da ação . . Em segundo lugar, o papel fundamental exercido pela autorreferência, que se aplica à própria teoria geral esboçada. Por fim, o esforço de acrescentar complexidade à teorização, destacando como é precisamente isso que produz a centralidade assumida pelo conceito de sistema. Desse ponto de vista tratará da mudança de paradigma que observa na teoria geral dos sistemas, em que ganha corpo a diferença sistema e ambiente (substituindo aquela de todo e parte), e que Luhmann incorpora e trabalha para desenvolver sua teoria geral dos sistemas sociais. Essa pista é fundamental, na medida em que explicita uma filiação paradigmática do autor, porém, leva-o a investigar o recorte específico necessário para abarcar os sistemas sociais.

A referência à universalidade é uma aspiração que data de momento anterior, e Luhmann busca evitar equívocos interpretativos quando, naquele contexto, já destaca: “a reivindicação de universalidade da teoria quer dizer, apenas, que a teoria busca contemplar a unidade da disciplina, ou seja, fundamenta a proposta de uma abordagem de pesquisa [Forschungsansatz] unitária para toda a sociologia. Nisso não reside a reivindicação bastante distinta por exclusividade, por verdade absoluta” (Luhmann, 1967LUHMANN, Niklas. (1967), “Soziologie als Theorie sozialer Systeme”. In: LUHMANN, Niklas. Soziologische Aufklärung 1: Aufsätze zur Theorie sozialer Systeme. Opladen, Westdeutscher, 1970, pp. 113-136., p. 113). Trata-se, assim, de um tipo de universalidade específica e localizada, que cumpre requisitos estritamente científicos, sem que adentre a seara da esfera de valor.

Conforme o nome dos capítulos já indica – aludindo a conceitos ou duplas de conceitos chave para a sua interpretação, tais como, para ficar com apenas alguns exemplos, “sentido”, “dupla contingência”, “comunicação e ação”, “interpenetração” e “sociedade e interação” – há, simultaneamente, um diálogo com vertentes da sociologia, bem como a introdução de novos conceitos, oriundos da biologia, da teoria da interação, da teoria da complexidade, da teoria da personalidade e por daí em diante. A relevância assumida pela ideia da diferença – que explica a centralidade do conceito de diferenciação, tão caro às mais variadas abordagens – retorna no capítulo 5, quando aprofunda a discussão e afirma que “nem ontologicamente, nem analiticamente, o sistema é mais importante que o ambiente; pois ambos são aquilo que são apenas em referência ao respectivamente outro” (p. 204).

Assim, a obra estrutura-se de modo a fundamentar essa abordagem, e se organiza de acordo com o primado do conceito de diferenciação (funcional e sistêmica), desdobrado a fim de dar conta das variadas reciprocidades e diferenças constitutivas dos sistemas – cuja existência é tomada como pressuposto: “existem sistemas com a capacidade de produzir relações consigo mesmos e de diferenciar essas relações perante as do seu ambiente” (p. 30). Nisso se expressa o raciocínio central da autopoiese, em que compreender um sistema passa, necessariamente, por apreender as operações3 3 . Como Luhmann (2000 , p. 16) o expressará anos mais tarde: “A operação, por meio da qual os sistemas sociais, bem como a sociedade, se constituem, é a comunicação”. que levam à sua constituição e como ele estabelece a autorreferência. De outro lado, explica o motivo pelo qual Luhmann busca certa distância do conceito de identidade e de indivíduo, adotados pela sociologia: ao longo da obra ele reforça, repetidas vezes, que o fundamental é entender em que termos surge a diferença, ou seja, dão-se os repetidos processos de diferenciação.

As transformações e o tipo de relação entre sistema e ambiente são observadas, por ele, a partir dos conceitos de adaptação e seleção. Desse modo, pode dar conta de mudanças seja no ambiente, seja no sistema, e escapa à tentativa de submeter tais mudanças ao desejo, à subjetividade/interesse de determinada pessoa ou grupo – e permite que a diferenciação, como processo, ocorra novamente no interior dos sistemas, a saber, constituindo subsistemas4 4 . “Pois diferenciação sistêmica não significa apenas que no sistema são formadas unidades menores, mas também que a diferenciação sistêmica repete a formação do conjunto sistêmico em si mesma. A totalidade do sistema é reconstituída como diferença interna entre subsistema e ambiente subsistêmico, e isso para cada subsistema de modo respectivamente distinto” (p. 218). .

O movimento identificável ao longo da obra é o de colocar em questão sejam pressupostos teóricos, sejam conceitos basilares da sociologia, propondo sua reinterpretação ou falta de relevância (como se dá, no capítulo 9, com a “dialética”). Já próximo ao final do livro, no capítulo “Sociedade e interação”, Luhmann se contrapõe ao interacionismo simbólico e afirma a separação de sistemas sociais e sistemas de interação. Isso pois “na própria diferença entre sociedade e interação há uma diferença que possui significado em meio a todas as relações sociais enquanto diferença. Toda sociedade tem uma relação para ela problemática com a interação; e isso mesmo quando ela possibilita uma ação livre de interação e, apesar disso, social, por exemplo, ler e escrever” (p. 461, grifo do autor). No entanto, isso não implica ser a diferença sociedade/interação igual à de sistema/ambiente5 5 . “Sociedade, portanto, não é possível sem interação e interação não é possível sem sociedade; mas os dois tipos de sistemas não se fundem, mas são indispensáveis um para o outro em sua diferença” (p. 473). .

Isso é que explicará o fato de que “sociedade” se apresenta como o conceito central da sociologia, pois “a sociedade é o sistema social abrangente, que abarca em si tudo o que é social e que não conhece consequentemente nenhum ambiente social” (p. 463), porém ajuda a entender por qual motivo ele separa a teoria dos sistemas da teoria da sociedade e enxerga esta como um sistema parcial daquela. Logo, ainda que sustente um maior nível de generalidade, em termos de organização a sociedade continua sendo um sistema social e, portanto, justifica plenamente que se proponha compreendê-la com base numa teoria (geral) dos sistemas, tão somente especificando o seu olhar sobre os sistemas sociais.

Assim, Luhmann destaca que a pessoa não é, per se, um sistema, exigindo que se olhe para os sistemas psíquicos (cuja autorreferência é a consciência), de um lado, e os sistemas sociais (cuja autorreferência é a comunicação), de outro, ambos relevantes e complementares para a compreensão da pessoa, na medida em que atuam, mutuamente, como sistema e ambiente um em relação ao outro, e entende que eles surgiram de maneira coevolucionária, haja vista essa exigência mútua. O que eles partilham é a função central desempenhada pelo sentido, que deve ser tomado como expressão (“substância”) desse processo evolutivo. “O sentido carrega a si mesmo, pois possibilita autorreferencialmente sua própria reprodução. E somente as formas dessa reprodução diferenciam estruturas psíquicas e sociais” (p. 121, grifo do autor).

Ao mesmo tempo, ilustra a tentativa de romper com a relação parte/todo e, portanto, a noção de que há algo constituindo algo, com o capítulo dedicado exclusivamente ao que ele denomina a “individualidade dos sistemas psíquicos” – que também refuta o reducionismo de se identificar indivíduo e sistema psíquico. Mostram-se como basilares as ideias do pertencimento e da diferenciação para explicar as relações sistêmicas, notadamente no que diz respeito aos sistemas sociais. “Partimos do pressuposto de que sistemas sociais não são constituídos nem por sistemas psíquicos nem muito menos por seres humanos de carne e osso. Sistemas psíquicos pertencem ao mundo circundante dos sistemas sociais” (p. 287).

A discussão envolvendo o sentido enseja o debate acerca da dupla contingência, por ele frequentemente ilustrada pela ideia do “algo é assim, mas poderia ser diferente”, e expressa a disputa de expectativas e as formas de limitação – ou seja, estruturação – de uma miríade de possibilidades. A questão mais fundamental diz respeito, inclusive, ao fato de que se problematiza a própria (improbabilidade de) existência da ordem social. Esse raciocínio, por sua vez, implica a relevância assumida pelo acaso e pela emergência de sistemas, pois “a experiência da contingência realiza a constituição e a viabilização de acaso para funções condicionantes no sistema, ou seja, a transformação de acasos em probabilidades de construção estrutural. […] Na metaperspectiva da dupla contingência resulta, então, uma indeterminabilidade produzida pela previsão” (pp. 144-145, grifo do autor).

Se é difícil destacar um capítulo, considero que, no intuito de situar a abordagem luhmanniana na sociologia, o quarto capítulo, intitulado “Comunicação e ação”, talvez se mostre como um dos mais fundamentais, haja vista que nele se coloca o diálogo explícito com as abordagens de Parsons e de Max Weber e, indiretamente, com Habermas, deslocando seu argumento para a centralidade assumida pela comunicação. Assim, afirma que “sistemas sociais não são constituídos de ações, como se essas ações pudessem ser produzidas com base na constituição orgânico-psíquica do ser humano e pudessem existir por si próprias. Sistemas sociais são decompostos em ações e, com essa redução, adquirem fundamentos conectivos para o curso comunicativo seguinte” (p. 163). Por conseguinte, reconhece que é, sim, parte de uma interpretação sociológica (ou uma teoria da sociedade) buscar explicar as ações humanas e o seu sentido social, o que distingue de entender que as ações possam ser tomadas como constitutivas dos sistemas sociais: o conjunto de expectativas e probabilidades orienta a ação, mas a sociedade é resultado da comunicação.

Luhmann justifica seu esforço em distanciar-se profundamente da acepção predominante da comunicação, de que se transmitiria algo (informação) a alguém, salientando que a metáfora da transmissão traria mais problemas que soluções, pois “sugere que o emissor transfere algo que o recebedor recebe. Mas o emissor não se desfaz de algo, no sentido de perder algo” (p. 163). Desse modo, ele confere à comunicação o estatuto de base da existência de sistemas sociais, sem lhe atribuir juízo de valor. Isso se torna evidente quando trata do conflito, visto que “é por princípio equivocado reconduzir os conflitos a um fracasso da comunicação (como se a comunicação fosse algo ‘bom’, que poderia fracassar). A comunicação é o processo autopoiético de sistemas sociais” (p. 442). Assim é que evidencia o papel central exercido pela (auto)referência de comunicação e autopoiese em sua teoria, que se expressa, igualmente, quando se atenta à contingência posta pela comunicação.

Na tentativa de tornar mais claro esse aspecto considero que se deva incorporar o ponto discutido por ele na obra A ciência da sociedade. Ao tratar da tríade percepção, consciência e comunicação, ele observa: “A percepção em si não é comunicável, pois apenas a comunicação é comunicável. Decerto a comunicação pode referir-se a percepções, assim como a qualquer outra coisa; mas isso apenas pois essa possibilidade já foi desenvolvida por meio de comunicação anterior, ou seja, na rede recursiva da comunicação possibilitada por meio de comunicação” (Luhmann, 1992LUHMANN, Niklas. (1992), Die Wissenschaft der Gesellschaft. Frankfurt, Suhrkamp., p. 20). Como é frequente ao longo de suas reflexões, isso é exemplificado de maneira bastante singela e ilustrativa quando ele se refere à tentativa de relatar (berichten) a alguém uma cor nunca antes vista. Em outras palavras, a comunicação expressa o processo reflexivo que sustenta a si próprio e, dessa maneira, constitui a base para fundamentar os sistemas sociais. Tão somente dessa maneira é que se pode compreender por completo a formulação de que pode haver comunicação referindo-se a ou sobre algo, mas a única coisa que pode, por sua vez, ser comunicada, é a comunicação propriamente dita.

Retornando ao argumento da obra Sistemas sociais, é no capítulo 4 que, a meu ver, encontra-se um equívoco na tradução6 6 . Cabe destacar, ainda, o fato de que a tradução recorre a uma alternativa que se apresenta de modo ambíguo em certos círculos de debate, ao traduzir o substantivo alemão “ Praxis ” por “práxis ” , termo nada usual na língua portuguesa, quando, a meu ver, o mais adequado seria optar pelo sentido mais próximo ao original semântico, a saber: “prática”. Tal ambiguidade marca diversas opções de tradução como, mais à frente, na p. 32, traduzir-se Gesamtheit por “totalidade”, um conceito também alvo de muita discussão no âmbito da sociologia. Destaco que não se trata de incorreção semântica; no entanto, fazê-lo sem – como ocorre logo a seguir – manter o termo original para que o leitor ou leitora possa se situar, pode provocar implicações léxico-conceituais que seriam facilmente evitáveis. . Na escolha em verter Mitteilung por “participação da informação a outro” (p. 163), não apenas os tradutores optam por uma novidade no contexto da recepção de Luhmann no Brasil, mas o fazem – de modo quase paradoxal – sem contribuir para a melhoria do partilhamento e da semântica de seu arcabouço conceitual. Considero que as escolhas de Marcelo Neves (que opta por “mensagem”; 1997, p. XIII) ou de João Bachur (que a verte por “elocução”; 2010) se mostram tanto mais próximas do intento luhmanniano quanto fazem mais sentido na língua portuguesa, em que a expressão “participar informação” pode obnubilar bastante o entendimento de quem se aproxima do autor pela primeira vez7 7 . Outra alternativa desconsiderada foi a palavra “compartilhamento”. Essa discrepância terminológica torna-se ainda mais curiosa quanto se observa que um dos tradutores, em artigo seu no qual traduz citação de Luhmann, verte Mitteilung por “performance comunicativa” ( Torres Jr., 2014 , p. 553). . Como no referido capítulo há uma profusão de referências ao termo, a escolha dessa tradução produz formulações como “distinguir o ato de participar a informação daquilo que é participado” (p. 166), correndo o risco de deixar o leitor ou leitora em dúvida se o correto seria, por exemplo, “participar da informação”.

Para Luhmann, a comunicação fundamenta a possibilidade da existência de sistemas sociais e o faz em parte haja vista sua capacidade de aproximar e criar reciprocidade das duas formas de sistema supramencionadas: psíquico e social. “Portanto, damos uma resposta dupla à questão sobre de que se constituem os sistemas sociais: de comunicações e de sua atribuição como ação. Nenhum dos dois fatores seria capaz de evolução sem o outro” (p. 200).

Também desse ponto de vista é que se sustenta o seu entendimento de que apenas se pode compreender um sistema social como resultado de operações de observação e descrição: “pelo menos para sistemas sociais, não se pode separar reprodução autopoiética e operações de autodescrição e auto-observação que empregam a diferença sistema/ambiente no próprio sistema” (p. 192). Em outras palavras, dado que nos sistemas sociais o processo de diferenciação sistema/ambiente depreende-se justamente de que sistemas psíquicos e sistemas sociais diferenciem-se, há processos de (auto)descrição e observação, e tais processos são um aspecto fundamental para que sistemas sociais continuem existindo (autopoieticamente).

Essa constatação permanece insuficiente para explicar os condicionantes da diferenciação e leva Luhmann a distinguir entre o ser humano (sistema psíquico e sistema orgânico) e a pessoa. “Chamaremos de pessoas sistemas psíquicos que são observados por outros sistemas psíquicos ou sociais. O conceito de sistema pessoal é, assim, um conceito que envolve uma perspectiva de observador, na qual deve estar incluída a auto-observação (autopersonalização, por assim dizer)” (p. 132). Logo, insere-se como elemento central para estabelecer um diálogo com a concepção sistêmica da observação, aspecto que sustenta, por sua vez, um traço que confere sentido a uma abordagem teórica propriamente dita, afinal, fazer teoria – e, desse ponto de vista, fazer ciência – implica organizar o olhar em termos da ideia de que sempre se observa algo (ou alguém).

O desafio consiste em compreender o que leva à construção de sistemas, afinal, a possibilidade da diferenciação não é, em si, garantia de sua ocorrência: a combinação de seletividade (evolução) e complexidade atua, conforme argumenta em ensaio anterior, de modo fundamental. “No conceito da complexidade está dada, portanto, uma estrutura que a torna comparável a modelos de racionalidade conhecidos” (Luhmann, 1975a, p. 213).

Ao tratar da interpenetração, o foco consiste em discutir a relação do ser humano com os sistemas sociais – e o recurso ao ser humano também visa distanciar-se das noções de sujeito e intersubjetividade recorrentes na sociologia. De modo análogo à aproximação de sistema/ambiente ao sentido, a dupla contingência é iluminada a partir do conceito de interpenetração, explicitando a maneira por meio da qual a reciprocidade e a dependência são fundamentais para compreender os processos e a diferenciação. “Interpenetração ocorre, correspondentemente, quando, portanto, ambos os sistemas se possibilitam reciprocamente, levando ao outro respectivo sua própria complexidade pré-constituída. […] A questão inicial é antes a seguinte: o que tem de estar presente na realidade para que, com suficiente frequência e densidade, possa ocorrer a experiência da dupla contingência e, com isso, a construção dos sistemas sociais? A resposta é: interpenetração” (pp. 241, 244).

Ao acumular esse novo léxico – novo em seu domínio generalizado na discussão sociológica – Luhmann tem o cuidado de, a todo momento, indicar as diferenças em relação a concepções anteriores, além de, com certa frequência, buscar exemplificar que já havia, com relação a certos conceitos, alternativas anteriores que recebiam pouca atenção. Ele incorpora o conceito de estrutura; no entanto, reforça a ideia de não se tratar de estruturalismo. Veja-se, ao discutir estrutura e tempo, o modo como delineia suas especificidades, com o que também salienta a particularidade do entendimento de estrutura para a teoria dos sistemas: “A estrutura, uma vez que […] ela mesma chega a termo por meio de seleção, mantém pronto um campo de jogo para a possibilidade. […] Para um processo, em contrapartida, a diferença entre antes e depois é decisiva” (p. 323, grifo do autor).

Tal diferenciação é que permite refletir a respeito de condicionantes de mudança social ou do que, no linguajar sistêmico, deveria ser expresso como alteração de estruturas. Há certa ambiguidade no argumento de que, a rigor, um sistema não se alteraria, mas, de outro lado, “é correto dizer que o sistema se altera, quando suas estruturas se alteram porque, não obstante, algo que pertence ao sistema (e precisamente aquilo que possibilita a sua reprodução autopoiética) se altera” (p. 394). Simultaneamente, a alteração implicaria a conservação da estrutura8 8 . Isso pois ele entende que se trata de “evolução, ou seja, uma alteração de estruturas por meio de variação, seleção e nova estabilização” (p. 480). precisamente, pois alterar a estrutura significa que ela se mantém, e algo no interior dela passa por alguma modificação.

Conforme fora destacado por Maturana9 9 . “O conceito de autopoiese resultou da tentativa direta […] de providenciar a caracterização completa da organização que faz dos sistemas vivos unidades autônomas autocontidas [ self-contained ], e que torna explícitas as relações no âmbito de seus componentes, que precisam permanecer invariáveis sob contínuas transformações estruturais e mudanças materiais” ( Maturana, 1980 , p. 47). , embasando a ideia do que, nesse momento, Luhmann ainda caracteriza como fechamento autorreferencial, há uma relação de alternância mútua e contínua entre determinação e indeterminação: “O fechamento abre a situação, a determinabilidade volta a produzir indeterminabilidade. Mas disso não resulta uma contradição, nem um bloqueio, porque o acontecimento é ordenado assimetricamente como sequência e assim vivenciado” (p. 193). Essa concepção viria a ser desenvolvida posteriormente por ele, constituindo a base da reflexão acerca do fechamento operacional e do acoplamento estrutural (Luhmann, 1997LUHMANN, Niklas. (1997), Die Gesellschaft der Gesellschaft. Frankfurt, Suhrkamp, 2 vols., vol. 1, cap. 6).

Ao mesmo tempo, Luhmann se dedica a tratar e a enfrentar diretamente temas de enorme relevância para a teoria sociológica estabelecida – ou seja, aquela que não se filia à teoria dos sistemas – e apresentar, assim, diversos movimentos nesse sentido, algumas vezes tão somente indicando, por meio de uma nota de rodapé, que aquele debate está superado ou já fora anteriormente desenvolvido. No entanto, também há questões que merecem maiores destaque e atenção, e enfatizo, aqui, a contradição, à qual dedica todo um capítulo. O esforço primeiro consiste em refutar a própria concepção de contradição, tal como ganhou força ao longo do tempo na sociologia, citando inclusive o exemplo daquela entre capital e trabalho, para lhe contrapor a ideia de que expectativas divergentes e oposições não podem, a todo momento e em todos os casos, ser interpretadas como contradições.

Para além disso, o motivo pelo qual confere relevância ao assunto é que assume poder haver contradições sistêmicas; no entanto, entende-as como funcionais ao sistema. Desse modo, afirma: “Contradições desestabilizam um sistema e elas tornam isso visível na insegurança da expectativa. […] É preciso, contudo, tomar cuidado diante do erro bastante difundido de pensar que a desestabilização seria enquanto tal disfuncional. Sistemas complexos necessitam muito mais de uma medida muito elevada de instabilidade, para poderem reagir a si mesmos e ao seu ambiente, e eles precisam reproduzir correntemente essas instabilidades – por exemplo, sob a forma de preços que se alteram constantemente; sob a forma de um direito, que pode ser colocado em dúvida e até mesmo alterado; sob a forma de casamentos, que podem ser rompidos a qualquer momento” (p. 418).

Ainda que ofereça uma contribuição relevante para se pensar a autopoiese, aqui parece haver um certo limite do quanto a analogia e o fundamento dos sistemas autorreprodutores pode manter o seu sentido, de maneira fluída, para os sistemas sociais. Isso pois, logo a seguir, recorre a uma comparação com a ideia de sistemas imunológicos10 10 . Especificamente para a sociedade, ele afirma que “o sistema jurídico serve como sistema imunológico do sistema social” (pp. 424-425). , argumentando que o tipo de complexidade e esse (des)balanceamento de expectativas faz parte da preservação, ou seja, da sobrevivência propriamente dita do sistema. Aqui, porém, o sentido da comunicação (ou, nos termos sistêmicos: a comunicação, de um lado, e o sentido, de outro) dificultaria a convivência tranquila com contradições fundamentais (ou, no caso, sistêmicas). É certo que Luhmann está inteiramente correto quando aponta o papel exercido pelo desacordo ou pela oposição (e, portanto, exclusão mútua) de expectativas – é difícil, porém, e um pouco reducionista, equiparar isso a reinterpretar as contradições nesses moldes.

Esse entendimento leva-o a considerar que o principal problema que se coloca é o de “reproduzir sistemas sociais suficientemente plurais e suficientemente diversos de acordo com a complexidade de um determinado nível de desenvolvimento da sociedade. Isso acontece normalmente segundo uma receita, ou seja, com base nas estruturas da expectativa. O sistema imunológico assegura a autopoiese, quando essa é bloqueada pelo caminho normal” (p. 458). Em suma, tanto a contradição quanto o conflito devem, para ele, ser enxergados como fatores – quase se pode dizer aspectos necessários – dos sistemas, o que acaba por estender-se, igualmente, aos sistemas sociais.

Tratar de contradição difere, para ele, marcadamente de como se coloca o problema da crítica: na obra aqui discutida, ele refuta a ideia da “consciência crítica” (p. 459) como expressando a imunologia ao sistema social, em linha com a concepção aventada no artigo “A prática como teoria”. Ali, por sua vez, a crítica sociológica (ou a sociologia crítica) é por ele aproximada da emancipação, que, necessariamente, exige a abertura para possibilidades, sem que se estabeleça o critério de decisão acerca de seu recorte: “Assim como o recurso ao que é crítico na crítica, também o retorno ao que possibilita na possibilidade leva ao problema da complexidade, perante o qual a teoria sociológica precisa se colocar, e perante o qual apenas pode se colocar como teoria dos sistemas” (Luhmann, 1969LUHMANN, Niklas. (1969), “Die Praxis der Theorie”. In: LUHMANN, Niklas. Soziologische Aufklärung 1: Aufsätze zur Theorie sozialer Systeme. Opladen, Westdeutscher, 1970, pp. 153-167., pp. 257-258).

Os dois capítulos finais do livro abordam primeiro a “Autorreferência e racionalidade” e, a seguir, as consequências para a teoria do conhecimento. Para a ideia geral da referência específica que busca tratar, Luhmann recorre a três conceitos centrais, a saber (1) autorreferência basal, (2) reflexividade e (3) reflexão (pp. 501 ss.). Isso lhe permite propor um novo entendimento acerca de sistemas fechados (autopoiéticos), a saber, não que atingiriam tal grau de autonomia a ponto de existirem sem ambiente, mas, antes, que se deva compreendê-los a partir do fato de que produzem a comunicação e o sentido para garantir a sua própria reprodução e, nesse sentido específico, dão origem à autorreferência – sempre, é evidente, diferenciando-se face ao seu ambiente.

Não à toa, ele encerra retomando a ideia, anunciada ao início, de que existe uma busca por universalidade, e que essa se depreende, precisamente, do fato de que o diálogo está voltado sobretudo para a teoria geral dos sistemas e apenas indiretamente para a sociologia. Desse ponto de vista, inclusive, salienta que o pressuposto de uma teoria dos sistemas é, como o seria para outras formas de comunicação e de observação, a existência de sistemas.

Mesmo que relativamente laterais, considero válido indicar alguns problemas de padronização na edição/tradução final do livro. De um lado, é marcante o fato de três pessoas terem dividido a tradução: enquanto, ao longo dos cinco primeiros capítulos, nas referências apresentadas nas notas de rodapé, são traduzidos apenas os títulos em alemão de textos de autoria de Luhmann, ao longo do livro paulatinamente passa-se a traduzir os títulos de todos os textos que se encontram em alemão no original, independentemente de seu autor – e, de modo mais ou menos aleatório, alguns de outros idiomas que não o inglês como, por exemplo, O ser e o nada, de Jean-Paul Sartre11 11 . Por sua vez, a tradução do clássico livro de Norbert Elias A sociedade de corte ( Die höfische Gesellschaft ) por A sociedade cortês é simplesmente um erro. (p. 310, nota 52). Ainda nesse registro, há uma tradução bastante heterodoxa para o cânone sociológico: até um pouco além de metade da obra (pp. 85, nota 13; 123, 264) opta-se por traduzir Wissenssoziologie por “sociologia do conhecimento”, uma terminologia predominante e já estabelecida no Brasil. No entanto, ao menos a partir da primeira vez em que há a referência à forma clássica da Wissenssoziologie, passa-se a ler “sociologia do saber” (pp. 375, 377, 550). É certo que tais equívocos não prejudicam fundamentalmente a leitura, mas decerto valeria a pena, para uma segunda edição, revê-los e buscar amenizar essas disparidades.

Dito isso, destaco que Luhmann produziu uma fortuna crítica relevante e de algum alcance no Brasil, ainda que – ao menos em termos quantitativos – ela tenha se mostrado deveras limitada. É certo que o fato de apenas poucas obras, e de caráter lateral, terem sido traduzidas até os anos 2000 deve ser visto como um obstáculo significativo, o que torna compreensível que trabalhos como a dissertação de mestrado de Rômulo Neves (2006)NEVES, Rômulo Figueira. (2006), Acoplamento estrutural, fechamento operacional e processos sobrecomunicativos na teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann. São Paulo, dissertação de mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. ou a tese de doutorado de João Bachur (2010)BACHUR, João Paulo. (2010), Às portas do labirinto: para uma recepção crítica da teoria social de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro, Azougue. incluam extensas menções e discussões acerca das traduções, glossários e um tratamento singular ao aparato conceitual. Do mesmo modo, justifica a publicação de coletâneas e introduções a esse arcabouço teórico (Neves e Samios, 1997NEVES, Clarissa Eckert Baeta & SAMIOS, Eva Machado Barbosa. (1997), Niklas Luhmann: a nova teoria dos sistemas. Porto Alegre, Editora da UFRGS/Goethe-Institut/ICBA.; Araújo e Waizbort, 1999ARAÚJO, Cicero & WAIZBORT, Leopoldo. (1999), “Sistema e evolução na teoria de Luhmann (mais: Luhmann sobre o sistema mundial)”. Lua Nova, 47: 179-200.; Rodrigues e Neves, 2012RODRIGUES, Leo Peixoto & NEVES, Fabrício Monteiro. (2012), Niklas Luhmann: a sociedade como sistema. Porto Alegre, EDIPUCRS.). E cabe notar como é no direito – e em grande medida de modo seletivo, concentrado sobre parcela da produção na região Sudeste – que Luhmann encontrou ecos significativos. Isso não é de todo surpreendente, considerando que sua formação se deu no direito; ainda assim, é um traço peculiar e que, possivelmente, contribui para explicar a tradução tardia do livro Sistemas sociais.

Por sua vez, saliento que obras posteriores, notadamente aquela considerada por muitos o seu opus magnum, A sociedade da sociedade (Die Gesellschaft der Gesellschaft)12 12 . O recorte e o objetivo da obra mostram, exemplarmente, o modo pelo qual o conceito de sociedade e, sobretudo, o seu entendimento como autorreferenciada, percorrem toda a produção de Luhmann: o ponto acerca da relevância de tomar a sociedade como produzindo a si própria foi levantado no artigo “Gesellschaft” (“Sociedade”, Luhmann, 1970a ), incluído no primeiro volume da coletânea sobre o esclarecimento sociológico. O argumento visava enfrentar a ideia de a sociedade ser produzida por algo externo a ela, apresentando a base do raciocínio em torno da diferenciação sistema/ambiente bem como da seleção . , tiveram aspectos de sua argumentação referente à dinâmica de inclusão/exclusão e à globalização diretamente influenciados pelas considerações do jurista brasileiro Marcelo Neves, conforme pode ser observado pelas referências em algumas notas de rodapé (Luhmann, 1997LUHMANN, Niklas. (1997), Die Gesellschaft der Gesellschaft. Frankfurt, Suhrkamp, 2 vols., vol. 2). Um aspecto chave da produção mais recente de Luhmann, a reflexão em torno de como se dão as formas de inclusão e exclusão, expressa, uma vez mais, a tentativa de evitar abordagens que se mostrem monolíticas, do tipo isso ou aquilo – noutras palavras, se está incluído ou excluído – para sustentar a contingência no sentido de que a inclusão, por um sistema, implica a exclusão por outros, sem deixar de reconhecer a existência de hierarquias entre esses (sub)sistemas.

Em especial, Luhmann recorre ao exemplo do Brasil a fim de ilustrar como os processos de industrialização avançada, que observa como ligados à constituição de uma sociedade funcionalmente diferenciada, são insuficientes para produzir uma forma unívoca de relação sistêmica13 13 . “A exclusão integra mais fortemente que a inclusão – integração no sentido do conceito definido acima como a limitação dos graus de liberdade para as seleções. Consequentemente, a sociedade é – de modo inverso ao regime da estratificação – mais integrada em suas camadas [ Schichten ] inferiores do que em suas camadas superiores” ( Luhmann, 1997 , vol. 2, p. 631). . Doravante, as especificidades das formas de inclusão e exclusão, observadas à luz da integração funcional-sistêmica, exigiram o seu aprimoramento teórico.

Se, de um lado, isso deve muito ao fato de Neves ter feito seu doutorado em Bremen, cossupervisionado por Luhmann, logo, ter escrito em alemão e trabalhado com ele, o que revela aspectos da própria dinâmica de produção do conhecimento, representa, ao mesmo tempo, uma pequena amostra do que poderíamos chamar do ecletismo luhmanniano em termos disciplinares e, igualmente, em relação aos elementos empíricos que buscava incorporar a sua teoria, nesse caso, inclusive, levando-o a rever traços da dinâmica entre as formas de inclusão, exclusão e integração funcional/sistêmica.

Portanto, ainda que relativamente tardia, a publicação de Sistemas sociais em língua portuguesa é uma contribuição muito bem-vinda para o debate da sociologia no Brasil. Trata-se, sobretudo para quem está familiarizado com o cânone predominante da teoria sociológica em terras tupiniquins, de uma leitura de caráter misto, tanto arenosa quanto instigante. O livro abre a possibilidade para um ciclo de (re)interpretações da teoria dos sistemas na sociologia, e poderá alimentar uma miríade de debates, seja no que diz respeito a questões clássicas, tais como aquelas envolvendo a teoria da ação, a relação ação/estrutura e os ditames da interação, sejam, ainda, contendas em torno da ação comunicativa, do papel da crítica e do sentido e das possibilidades de uma sociologia de caráter mais ou menos universal.

Referências Bibliográficas

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  • NEVES, Clarissa Eckert Baeta & SAMIOS, Eva Machado Barbosa. (1997), Niklas Luhmann: a nova teoria dos sistemas. Porto Alegre, Editora da UFRGS/Goethe-Institut/ICBA.
  • NEVES, Marcelo. (2007), A constitucionalização simbólica São Paulo, Martins Fontes.
  • NEVES, Rômulo Figueira. (2006), Acoplamento estrutural, fechamento operacional e processos sobrecomunicativos na teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann São Paulo, dissertação de mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
  • PARSONS, Talcott. (1951), The social system Glencoe, Free.
  • RODRIGUES, Leo Peixoto & NEVES, Fabrício Monteiro. (2012), Niklas Luhmann: a sociedade como sistema Porto Alegre, EDIPUCRS.
  • TORRES JR., Roberto Dutra. (2014), “O problema da desigualdade social na teoria da sociedade de Niklas Luhmann”. Caderno CRH, 27 (72): 547-561.
  • 1
    . Trata-se de coleção composta por seis livros; os outros três apresentam trabalhos escritos concomitante e posteriormente a Sistemas sociais . Os outros volumes têm como subtítulos, respectivamente, “Contribuições à diferenciação funcional da sociedade”, “Perspectivas construtivistas” e “A sociologia e o ser humano”.
  • 2
    . Evidentemente, como o próprio Parsons o apresenta (1951, cap. 1), a sua abordagem se localizava no âmbito do quadro de referência de uma teoria da ação .
  • 3
    . Como Luhmann (2000LUHMANN, Niklas. (2000), Die Politik der Gesellschaft. Frankfurt, Suhrkamp. , p. 16) o expressará anos mais tarde: “A operação, por meio da qual os sistemas sociais, bem como a sociedade, se constituem, é a comunicação”.
  • 4
    . “Pois diferenciação sistêmica não significa apenas que no sistema são formadas unidades menores, mas também que a diferenciação sistêmica repete a formação do conjunto sistêmico em si mesma. A totalidade do sistema é reconstituída como diferença interna entre subsistema e ambiente subsistêmico, e isso para cada subsistema de modo respectivamente distinto” (p. 218).
  • 5
    . “Sociedade, portanto, não é possível sem interação e interação não é possível sem sociedade; mas os dois tipos de sistemas não se fundem, mas são indispensáveis um para o outro em sua diferença” (p. 473).
  • 6
    . Cabe destacar, ainda, o fato de que a tradução recorre a uma alternativa que se apresenta de modo ambíguo em certos círculos de debate, ao traduzir o substantivo alemão “ Praxis ” por “práxis , termo nada usual na língua portuguesa, quando, a meu ver, o mais adequado seria optar pelo sentido mais próximo ao original semântico, a saber: “prática”. Tal ambiguidade marca diversas opções de tradução como, mais à frente, na p. 32, traduzir-se Gesamtheit por “totalidade”, um conceito também alvo de muita discussão no âmbito da sociologia. Destaco que não se trata de incorreção semântica; no entanto, fazê-lo sem – como ocorre logo a seguir – manter o termo original para que o leitor ou leitora possa se situar, pode provocar implicações léxico-conceituais que seriam facilmente evitáveis.
  • 7
    . Outra alternativa desconsiderada foi a palavra “compartilhamento”. Essa discrepância terminológica torna-se ainda mais curiosa quanto se observa que um dos tradutores, em artigo seu no qual traduz citação de Luhmann, verte Mitteilung por “performance comunicativa” ( Torres Jr., 2014TORRES JR., Roberto Dutra. (2014), “O problema da desigualdade social na teoria da sociedade de Niklas Luhmann”. Caderno CRH, 27 (72): 547-561. , p. 553).
  • 8
    . Isso pois ele entende que se trata de “evolução, ou seja, uma alteração de estruturas por meio de variação, seleção e nova estabilização” (p. 480).
  • 9
    . “O conceito de autopoiese resultou da tentativa direta […] de providenciar a caracterização completa da organização que faz dos sistemas vivos unidades autônomas autocontidas [ self-contained ], e que torna explícitas as relações no âmbito de seus componentes, que precisam permanecer invariáveis sob contínuas transformações estruturais e mudanças materiais” ( Maturana, 1980MATURANA, Humberto R. (1980), “Autopoiesis: reproduction, heredity and evolution”. In: ZELENY, Milan (org.). Autopoiesis, dissipative structures, and spontaneous social orders. Boulder, Westview, pp. 45-79. , p. 47).
  • 10
    . Especificamente para a sociedade, ele afirma que “o sistema jurídico serve como sistema imunológico do sistema social” (pp. 424-425).
  • 11
    . Por sua vez, a tradução do clássico livro de Norbert Elias A sociedade de corte ( Die höfische Gesellschaft ) por A sociedade cortês é simplesmente um erro.
  • 12
    . O recorte e o objetivo da obra mostram, exemplarmente, o modo pelo qual o conceito de sociedade e, sobretudo, o seu entendimento como autorreferenciada, percorrem toda a produção de Luhmann: o ponto acerca da relevância de tomar a sociedade como produzindo a si própria foi levantado no artigo “Gesellschaft” (“Sociedade”, Luhmann, 1970aLUHMANN, Niklas. (1970a), “Gesellschaft”. In: LUHMANN, Niklas. Soziologische Aufklärung 1: Aufsätze zur Theorie sozialer Systeme. Opladen, Westdeutscher, 1970, pp. 137-153. ), incluído no primeiro volume da coletânea sobre o esclarecimento sociológico. O argumento visava enfrentar a ideia de a sociedade ser produzida por algo externo a ela, apresentando a base do raciocínio em torno da diferenciação sistema/ambiente bem como da seleção .
  • 13
    . “A exclusão integra mais fortemente que a inclusão – integração no sentido do conceito definido acima como a limitação dos graus de liberdade para as seleções. Consequentemente, a sociedade é – de modo inverso ao regime da estratificação – mais integrada em suas camadas [ Schichten ] inferiores do que em suas camadas superiores” ( Luhmann, 1997LUHMANN, Niklas. (1997), Die Gesellschaft der Gesellschaft. Frankfurt, Suhrkamp, 2 vols. , vol. 2, p. 631).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    5 Jan 2017
  • Aceito
    7 Jan 2017
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