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Sobre a analítica do poder de Foucault

About the Foucault’s analytic of power

Resumos

Compreender a forma pela qual se estruturam as relações sociais, em especial as relações desiguais de obediência e dominação que justificam a autoridade e a natureza das obrigações políticas, tem sido uma tarefa constante do pensamento humano. Neste texto sustentamos que Michel Foucault deu uma contribuição inegável a uma compreensão melhor desta ordem de fenômenos. Na primeira parte examinamos algumas das características do seu conceito de poder. Na segunda, privilegiamos um outro eixo de análise, acompanhando as transformações que este conceito sofreu ao longo dos anos 70 em sua obra.

Foucault; conceito de poder; bio-poder; governamentalidade


To understand the way social relations are structured, in particular the unequal relations of obedience and domination which justify both autority and the nature of of political obligation, has been one of the constant efforts of human thought. In this paper we sustain that Michel Foucault has offered a decisive contribuition to a better understanding of these social phenomena. In the first part, we examine some characteristics of Foucault's concept of power. In the second, we followed the transformations which this concept suffered along the seventies in his work.

Foucault; concept of power; bio-power; governmentability


Texto completo disponível em PDF.

  • Agradeço a Márcia Bernardes a ajuda que me deu na preparação do texto para a publicação
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    A única exposição sistematizada de Foucault a respeito das suas reflexões sobre poder se encontra no texto Sujeito e poder (1982).
  • 2
    Refutando a perspectiva que veria numa oposição dominantes X dominados, o eixo central da articulação das relações de poder Foucault propõe o seguinte: "que o poder vem de baixo; isto é, não há, no princípio das relações de poder, e como matriz geral, uma oposição binária e global entre os dominadores e os dominados, dualidade que repercute de alto a baixo e sobre grupos cada vez mais restritos até as profundezas do corpo social. Devese, ao contrário, supor que as correlações de forças múltiplas que se formam e atuam nos aparelhos de produção, nas famílias, nos grupos restritos e instituições, servem de suporte a amplos efeitos de clivagem que atravessam o conjunto do corpo social. Estes formam, então, uma linha de força geral que atravessa os afrontamentos locais e os liga entre si; evidentemente, em troca, procedem as redistribuições, alinhamentos, homogeneizações, arranjos de série, convergências, desses afrontamentos locais. As grandes dominações são efeitos hegemônicos continuamente sustentados pela intensidade destes afrontamentos" (Foucault, 1979b, p. 90).
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    Como destaca Foucault em uma das páginas mais esclare-cedoras sobre este assunto: "Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro como uma multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram uma nas outras, formando cadeias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais" (1979b, p. 88).
  • 4
    Este aspecto do conceito de poder de Foucault se encontra explicitado em The subject and power (1982, p. 220), texto fundamental à compreensão desta noção. Como esclarece Foucault: "Quer isto dizer que se deve procurar o caráter próprio para as relações de poder na violência, que deve ter sido sua forma primitiva, seu segredo permanente e seu último recurso, que em sua análise final, aparece como sua natureza real quando ela é forçada a tirar sua máscara e mostrar- se como realmente é? De fato, o que define uma relação de poder é que ela é um modo de agir que não atua direta e imediatamente sobre os outros. Ao invés, ele atua sobre suas ações: uma ação sobre outra ação, sobre ações existentes ou sobre aquelas que podem surgir no presente e no futuro. Uma relação de violência age sobre um corpo ou sobre coisas; ela força, dobra, destrói ou fecha a porta a todas as possibilidades. O seu pólo oposto pode ser apenas a passividade e, ao se deparar com qualquer resistência, sua única opção é tentar minimizá-la. Por outro lado, uma relação de poder somente pode ser articulada com base em dois elementos que são indispensáveis tratando-se realmente de uma relação de poder: que o 'outro' (aquele sobre quem o poder vai ser exercido) seja plenamente reconhecido e mantido até o fim como uma pessoa que age; e que, em face de uma relação de poder, todo um campo de respostas, reações, resultados, e possíveis invenções seja aberto.
  • 5
    Como indica Foucault "Para levar a cabo a análise concreta das relações de poder, deve-se abandonar o modelo jurídico da soberania. Com efeito, este modelo pressupõe o indivíduo como sujeito de direitos naturais ou poderes primitivos; ele se coloca como objetivo de dar conta da gênese ideal do Estado; enfim, ele faz da lei a manifestação fundamental do poder" (1974-82, curso 75/76, p. 361).
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    Em passagem esclarecedora Foucault comenta este ponto: "(...) parece-me que a história e teoria econômica forneceram (um bom) instrumento para as relações de produção; que a linguística e a semiótica ofereceram instrumentos para o estudo das relações de significação; mas para as relações de poder não há instrumentos para estudar. Nós temos recorrido somente a maneiras sobre o poder baseadas em modelos legais, isto é: O que legitima o poder? Ou então recorremos ao modo de pensar baseados nos modelos institucionais, isto é: O que é Estado?" (grifos meus) (Foucault, 1982. p. 209).
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    No tocante a este aspecto, e apontando para este nível de análise, que obrigaria a construção de uma física do poder, destaca Foucault: "A transformação da penalidade não depende apenas de história dos corpos, porém, mais precisamente, de uma história das relações entre o poder político e os corpos. A coerção sobre o corpo, o seu controle, seu assujeitamento, a maneira pela qual ela os dobra, os fixa, os utiliza está no princípio da mudança estudada. Seria necessário escrever uma 'Física' do poder, e mostrar quanto ela foi modificada em relação a suas formas anteriores, no começo do século XIX, quando do desenvolvimento das estruturas estatais" (citado em Marietti, 1977).
  • 8
    Em relação a esta nova realidade políticoeconômica que demandava a utilização das tecnologia disciplinar. "Esclarece Foucault:" Esse triplo objetivo da disciplina responde a uma conjuntura histórica bem conhecida. É por um lado a grande explosão demográfica do século XVIII: aumento da população flutuante, (fixar é um dos primeiros objetivos da disciplina; é um processo de antinomadismo); mudança da escala quantitativa dos grupos que importa controlar ou manipular (...). O outro aspecto da conjuntura é o crescimento do aparelho de produção, cada vez mais extenso e complexo, cada vez mais custoso também e cuja rentabilidade urge fazer crescer. O desenvolvimento dos modos disciplinares de proceder responde a esses dois processos ou antes sem dúvida à necessidade de ajustar sua correção "(Foucault, 1977).
  • 9
    Como destaca Foucault, em esclarecedora passagem: "A disciplina é uma técnica de exercício de poder que foi, não inteiramente inventada, mas elaborada em seus princípios fundamentais durante o século XVIII. Historicamente as disciplinas existiam a muito tempo, na Idade Média e mesmo na antigüidade. Os mosteiros são um exemplo de região, domínio no interior do qual reinava o sistema disciplinar. A escravidão e as grandes empresas escravistas existentes nas colônias espanholas, inglesas, francesas e holandesas, etc., eram modelos de mecanismos disciplinares. Pode-se recuar até a Legião Romana e lá também encontrar um exemplo de disciplina. Os mecanismos de disciplina são, portanto, antigos, mas existiam em estado isolado, fragmentado, até o século XVII e XVIII, quando o poder disciplinar foi aperfeiçoado como uma nova técnica de gestão dos homens. Fala-se, freqüentemente, das invenções técnicas do século XVIII - as tecnologias químicas, metalúrgica, etc. - mas erroneamente, nada se diz da invenção técnica dessa nova maneira de gerir os homens, controlar suas multiplicidades, utilizá-las ao máximo e majorar o efeito útil de seu trabalho e sua atividade, graças a um sistema de poder suscetível de controlá-los. Nas grandes oficinas que começam a se formar, no exército, na escola, quando se observa na Europa um grande processo de alfabetização, aparecem essas novas técnicas de poder, que são uma grande invenção do século XVIII" (Foucault, 1979a, p. 105).
  • 10
    Este novo processo de atuação do poder se dará, como diz Foucault, com "a entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie humana na ordem do saber e do poder no campo das técnicas políticas" (Foucault, 1979b, p.133). Como ele afirma em outra passagem, a população vai passar a ser, na segunda metade do século XVIII, um objeto privilegiado de atuação do poder: "Os traços biológicos de uma população tornam- se fatores relevantes para a administração econômica e torna-se necessário organizar ao seu redor um aparato que vai afirmar não apenas a sua sujeição mas também o crescimento constante de sua utilidade" (Foucault, 1980b, p. 172).
  • 11
    Como já afirmado, alguns traços do bio-poder são expostos no final da Vontade de saber. No tocante aos cursos do Collège de France, as referências não são muito numerosas também. O Curso 75/76 tratou, resumidamente, da questão da utilização do modelo guerreiro como possibilidade de inteligibilidade das relações de poder. Em 76/77 não houve curso. É no curso de 78/ 79 que basicamente temos algumas informações já que, no curso de 78/79, Foucault privilegiou a análise em termos da Governamentalidade e no estudo da racionalidade liberal. Assim, no curso de 77/78, há uma esclarecedora passagem acerca desta questão da população, objeto do bio-poder: "Assim, começa aparecer (...) o problema da população. Esta não á concebida como um conjunto de sujeitos de direito, nem como um grupo de braços destinados ao trabalho; ela é analisada como um conjunto de elementos que de um lado se aproxima do regime geral dos seres vivos (a população depende então da espécie 'humana': noção nova à época, distinta da noção de 'gênero humano') e de outro, pode dar lugar às intervenções concentradas (por intermédio das leis, mas também das mudanças de atitude, da maneira de fazer e de viver que podem ser obtidas pelas 'campanhas')" (Foucault, 1974-82, curso 77/78, p. 447-448).
  • 12
    Como explica Foucault: "Certamente o problema da população sob a forma: 'seremos nós muito numerosos, não suficientemente numerosos? , há muito tempo colocado, há muito tempo que se dá a ele soluções legislativas diversas: impostos sobre os celibatários, isenção de impostos para as famílias numerosas, etc. Mas, no século XVIII, o que é interessante, em primeiro lugar, é uma generalização destes problemas: todos os aspectos do problemas população começam a ser levados em conta (epidemias, condições de habitat, de higiene, etc.) e a se integrar no interior de um problema central. Em segundo lugar, vêse a este problema novos tipos de saber: aparecimento da demografia, observações sobre a repartição das epidemias, inquéritos sobre as amas de leite e as condições de aleitamento. Em terceiro lugar, o estabelecimento de aparelhos de poder que permitiam não somente a observação, mas a intervenção direta e manipulação de tudo isto. Eu diria que neste momento começa algo que se pode chamar de poder sobre a vida, enquanto antes só havia vagas incitações descontínuas para modificar uma situação que não se conhecia bem" (Foucault, 1979a, p. 234-275).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • DELEUZE, Gilles. (1986) Foucault Paris, Les Éditions de Minuit.
  • ESCOBAR, Carlos Henrique de (org). (1984) Dossier Rio de Janeiro, Ed. Taurus.
  • EWALD, François. (1975) Anatomie et corps politique. Critique, Paris, nº 343, Édition de Minuit.
  • FOUCAULT, Michel. (1974-82) Anuário do Collège de France
  • ______ . (1977) Vigiar e punir Petrópolis, Ed. Vozes.
  • ______ . (1979a) Microfísica do poder Rio de Janeiro, Ed. Graal.
  • ______ . (1979b) A vontade de saber 2ª edição. Rio de Janeiro, Ed. Graal.
  • ______ . (1980a) L' impossible prison, recherches sur le systeme pénitentiaire au XIX siècle Paris, Éd. du Seuil.
  • ______ . (1980b) Power and knowledge New York, Pantheon Books.
  • ______ . (1982) Subject and Power. In: DREYFUSS, H. & RABINOW P. Beyond structuralism and hermeneutics Brighton, The Harvester Press.
  • MACHADO, Roberto. (1979) Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder Rio de Janeiro, Ed. Graal.
  • ______ . (1982) Ciência e saber - a trajetória da arqueologia de Foucault Rio de Janeiro, Ed. Graal.
  • MARIETTI, Angèle K. (1977) Introdução ao pensamento de Michel Foucault Rio de Janeiro, Zahar Editores.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Dec 1995

Histórico

  • Recebido
    Jun 1995
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