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Cidade flutuante: Manaus em três autores

Floating city: Manaus in three authors

Resumo

A partir de uma análise de alguns dos contos de Alberto Rangel em Inferno verde, de Márcio Souza em A caligrafia de Deus, e de Milton Hatoum em A cidade ilhada, o artigo objetiva articular os diferentes modos de figuração da cidade de Manaus e relacionar o texto literário com a problemática urbana. A análise dos contos aponta tanto para as questões relativas ao trabalho intelectual e literário a partir da cidade quanto para as novas representações da Amazônia fabuladas pelos autores.

Palavras-chave:
Literatura; Cidade; Amazônia; Manaus

Abstract

Based on the analysis of some short stories by Alberto Rangel, in Inferno verde, by Márcio Souza, in A caligrafia de Deus, and by Milton Hatoum, in A cidade ilhada, the aim of this article is to articulate different forms of representation of Manaus and understand how the problem of urban reality can be addressed by literature. The analysis of these tales also allows us to understand how the new representations of the Amazon emerge.

Keywords:
Literature; City; Amazon; Manaus

Introdução

A partir da análise de alguns contos de três autores direta ou indiretamente vinculados à realidade amazônica, embora um deles, Alberto Rangel, esteja inserido em um tempo histórico mais longínquo em relação aos outros dois, Márcio Souza e Milton Hatoum, estes mais contemporâneos, o artigo intenta demonstrar como o meio urbano, ao atuar na formação intelectual dos autores, interferiu nos processos de representação literária da região em suas respectivas fabulações, a despeito das mudanças políticas e estilísticas havidas no decorrer do tempo. Ao tomar-se a cidade de Manaus como cenário de suas tramas em contextos histórico-culturais específicos, os contos analisados deixam transparecer não só como a representação literária da Amazônia oscila entre diferentes balizas, mas também revela como os próprios autores explicitam seus projetos de criação literária. Da rigidez racionalista escorada no positivismo de Alberto Rangel até a fluidez e disformidade de certo lirismo de Milton Hatoum, passando pela visão grotesca e satírica de Márcio Souza, as narrativas deixam transparecer distintos modos de apreensão da realidade regional a partir de uma perspectiva do urbano.

Cidade e fragmentos

No romance Pontos de fuga, de Milton Hatoum (2019)HATOUM, Milton. (2019), Pontos de fuga. São Paulo, Companhia das Letras., dois estudantes de arquitetura polemizam acerca do projeto urbanístico de Brasília. A conversa revela os vínculos do autor com a temática da arquitetura1 1. Milton Hatoum formou-se em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP). Sobre a trajetória de Milton Hatoum e de comentários variados acerca da sua obra, ver Cristo (2007). e, de certa forma, explicita a relação entre o texto literário e a questão urbana. O traçado de Brasília expressaria a racionalidade destinada a minimizar os efeitos caóticos próprios de um centro urbano. Uma sociedade harmônica, portanto, estaria viabilizada a partir do esquadrinhamento racionalizado de seu espaço urbano. Mas o misticismo contaminou o racionalismo, na medida em que a religiosidade se imiscuiu na planificação de Brasília ao ser traçada com base em uma inspiração místico-religiosa: a cruz.

Segundo um dos personagens de Hatoum, a imprevisibilidade deve ser uma característica crucial para um espaço urbano humanizado, de tal modo que a cidade deve equiparar-se a um labirinto a promover desorientação e encontros inusitados. A possibilidade de descoberta de ruas, becos e praças se converteria em algo central para uma convivência menos mecanizada no âmbito dos espaços urbanos, como analisado por Walter Benjamin ao abordar a figura do flâneur como representação do próprio escritor a deambular pelas ruas da cidade (Benjamin, 2015BENJAMIN, Walter. (2015), Baudelaire e a modernidade. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte, Autêntica Editora., p. 56).

A singularidade da escrita do autor de Relato de um certo Oriente, por sua vez, o distancia de toda uma tradição literária amazônica refém do sempre recorrente exotismo da paisagem regional2 2. Pontos de fuga é o segundo romance da trilogia Um lugar mais sombrio. Vale ressaltar que a trilogia não toma a Amazônia como temática ou como cenário de sua trama, diferentemente dos romances anteriores. . Os modos como são estruturados os romances de Milton Hatoum podem ser relacionados com o dinamismo da vida urbana na medida em que seus narradores, por exemplo, caracterizam-se por revolver memórias e percorrer labirintos existenciais imbuídos da árdua e angustiante tarefa de rejuntar partes despedaçadas de uma realidade dilacerada.

As cidades se converteram, ao longo do tempo, em polos de dominação econômica e política, bem como locais a partir dos quais as noções de espaço e de tempo foram redimensionadas, além de propiciarem formas de pensar mais abstratas3 3. O texto de Simmel acerca da metrópole moderna como o ambiente propício a instaurar formas de pensar mais abstratas, bem como a abordagem de Benjamin a articular a modernização de Paris e a poesia de Baudelaire, convertem-se em análises mais pontuais no sentido de demonstrar como o fenômeno urbano se articula com as questões culturais mais abrangentes e com problemáticas artístico-literárias específicas. Ver Simmel, 2013, pp. 311-329, e Benjamin, 2015, especialmente “A Paris do Segundo Império na obra de Baudelaire”, pp. 11-102. . Os efeitos e os desdobramentos no âmbito da cultura que o dinamismo da vida urbana proporcionou ao embaralhar e fazer interagir indivíduos desarraigados e/ou associados a grupos sociais variados também afetaram os modos de representação na arte4 4. A articulação empreendida por Schorske de Viena de fins do século XIX entre a remodelação urbanística da cidade e o surgimento de novas linguagens no ambiente artístico-literário, bem como a relação entre tais linguagens e o ambiente político então vigente, pode ser comparada à análise de T. J. Clark acerca da remodelação urbanística de Paris e a emergência do impressionismo como nova concepção da linguagem pictórica. Ver Schorske, 1988, e Clark, 2004. Já a obra de Raymond Williams promove uma ampla abordagem acerca de uma diversidade de textos literários a identificar como a relação entre campo e cidade na Inglaterra afetou os modos de representação de um e outro ambiente. Ver Williams, 1989. . A tradição literária brasileira sofreu os efeitos do processo de urbanização5 5. Sobre o processo de urbanização acelerado de algumas cidades brasileiras em finais do século XIX e inícios do século XX (dentre elas, Manaus) em função das mudanças estruturais acionadas pelo capitalismo em sua nova fase a partir dos países europeus, ver Sevcenko (1995). já no decorrer das duas primeiras décadas do século XX quando do surgimento de formas de percepção da realidade decorrentes das novidades materializadas em diversos aparatos técnicos, desde o bonde até as máquinas fotográficas e de escrever (Süssekind, 1987SÜSSEKIND, Flora. (1987), Cinematógrafo de letras; literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras.). O movimento modernista, dadas as possibilidades igualmente abertas pelo uso de tais aparatos dentro de um ambiente que se urbanizava, radicalizou os experimentos em termos de linguagem e de representações da realidade brasileira.

Segundo Arruda (2015)ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. (2015), Metrópole e cultura: São Paulo no meio do século XX. 2 ed. São Paulo, Edusp., a metropolização da cidade de São Paulo ocorrida desde os anos 1950 aprofundou os experimentos de linguagem em distintas dimensões da cultura ao concretizar o projeto da modernidade6 6. A autora, inspirada no trabalho de Schorske acerca de Viena, busca articular entre si diferentes dimensões da vida cultural da cidade de São Paulo no decorrer dos anos 1950, desde o teatro de Jorge Andrade até o movimento concretista e a sociologia de Florestan Fernandes. . A metrópole paulista havia urdido uma nova arquitetura, por exemplo, dentro de um contexto propício a experimentos estéticos (Arruda, 2015ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. (2015), Metrópole e cultura: São Paulo no meio do século XX. 2 ed. São Paulo, Edusp., p. 46). O projeto urbanístico de Brasília efetivado em inícios dos anos 1960, portanto, reverberava aqueles experimentos arquitetônicos levados a cabo na capital paulista anos antes. A conversa entre os dois estudantes no romance Pontos de fuga travada em um bairro da metrópole paulista em inícios dos anos 1970 insinua um sentimento de frustração quanto às possibilidades de manutenção de uma visão integradora da realidade.

Se o subjetivismo e a fragmentação do texto literário podem ser relacionados com as dificuldades crescentes em se preservar uma perspectiva totalizadora, tais empecilhos estão atrelados aos modos de vida urbano. As formas de percepção engendradas pela vida nas cidades interferem nos modos de representação do campo (e da natureza), sendo permanentemente redefinidos ou, como salienta Leenhardt (1996)LEENHARDT, Jacques. (1996), “Uma poética da fronteira”. Literatura e Sociedade, 1 (1). Disponível em https://doi.org/10.11606/issn.2237-1184.v0i1p15-21.
https://doi.org/10.11606/issn.2237-1184....
, as fronteiras externas e internas entre campo e cidade são refeitas a partir do espaço urbano.

Ora, as representações acerca da Amazônia como uma região selvagem ou como a terra dos mitos e da aventura devem ser relacionadas aos avanços de uma mentalidade urbana gradativamente incorporada ao processo de criação artística e literária. A própria definição de natureza ganha novas conotações na medida em que a cultura redefine as fronteiras entre uma dimensão e outra. A inclusão ou a exclusão da humanidade quando da definição da natureza ou a atribuição à natureza de um caráter a oscilar entre opressão/acolhimento estão diretamente ligadas aos modos de configuração da esfera cultural (Williams, 2005WILLIAMS, Raymond. (2005), “Ideas of nature”. In: Culture and materialism. Londres, Verso, pp. 67-85., p. 75).

Se o caráter fragmentário do texto literário de Milton Hatoum pode ser associado ao dinamismo da vida urbana e, dessa forma, propiciar uma representação da Amazônia a partir de um enfoque assentado na memória por intermédio de uma subjetivação quase lírica de seus narradores, os primeiros romances de Márcio Souza já haviam indicado as ingerências do urbano no fazer literário ao tratar da realidade amazônica. No caso do autor de Mad Maria, os experimentos com a linguagem literária estão diretamente vinculados às possibilidades abertas pela linguagem cinematográfica. Seu romance de estreia, Galvez, Imperador do Acre, está estruturado como um roteiro de cinema. No entanto, Operação silêncio, segundo romance do autor, ambientado na capital paulista e que narra as agruras de um cineasta às voltas com as possibilidades e limitações do cinema como instrumento político ou mero entretenimento, é considerada sua obra mais experimental (Hardman, 2005HARDMAN, Francisco Foot. (2005), “Revolta; na planície do esquecimento: a grande falha amazônica”. Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo, n. 19, p. 96-117.) em função da aproximação radical entre literatura e cinema (Leão e Krüger, 2013LEÃO, Allison & KRÜGER, Frederico (orgs.). (2013), O mostrador da derrota: estudos sobre o teatro a e ficção de Márcio Souza. Manaus, UEA.).

Além do cinema, a influência de Oswald de Andrade sobre a obra de Márcio Souza articula-se com a visão política então vigente em fins dos anos 1960, pautada pela identificação dos fatores que travavam o desenvolvimento do país7 7. Segundo Candido (2000), se o vanguardismo dos modernistas da década de 1920 apoiou-se na ideia do Brasil como um projeto de país, nos anos 1960 o vanguardismo se justificava pela consciência do subdesenvolvimento. . Desde seus primeiros escritos sobre cinema até os romances e ensaios com temática amazônica, os embates contra a tradição literária regional foram levados a cabo por Márcio Souza por meio do uso experimental da linguagem e do abuso da sátira como estratégia a minar criticamente o passadismo literário.

Autores atrelados a uma certa tradição literária amazônica, no entanto, já insinuavam a presença do urbano no processo de representação literária da região. Uma série de obras dos anos 1930 poderia ser listada como representativas de uma Amazônia delineada de um ponto de vista urbano, a despeito de as tramas ambientarem-se no interior da região. Os romances Terra de icamiaba, de Abguar Bastos, Terra de ninguém, de Francisco Galvão, e No circo sem teto da Amazônia, de Ramayana de Chevalier, por exemplo, incorporam temas e atores sociais oriundos do contexto urbano em tramas políticas caracterizadas por enredos a mesclar natureza, mito e política.

Recuando no tempo, restam os autores que se converteram em pilares de uma linguagem literária expressiva da realidade amazônica para aqueles romancistas dos anos 1930: Euclides da Cunha e Alberto Rangel. O autor de Inferno verde viveu em Manaus durante algum tempo em inícios do século XX quando dos melhoramentos urbanísticos previstos no Plano de Embelezamento formulado por Eduardo Ribeiro, militar oriundo da academia da Praia Vermelha e nomeado interventor no Amazonas após a instauração da República (Mesquita, 2009MESQUITA, Otoni. (2009), La Belle Vitrine: Manaus entre dois tempos (1890-1900). Manaus, Edua.). Uma arquitetura art nouveau foi a marca dos novos prédios públicos com jardins e monumentos, e uma área urbana esquadrinhada como um tabuleiro de xadrez com ruas e avenidas geometricamente traçadas após o soterramento de igarapés. Em sua área próxima ao porto da cidade, as ruas ganhavam uma agitação maior em função da intensificação do comércio da borracha. Nas cartas enviadas por Euclides da Cunha, Manaus é descrita como uma cidade de arrivistas e estrangeirada, “meio caipira, meio europeia”, além de dar a sensação de viver-se em uma canícula, “na constância formidável de uma estufa” (Galvão e Galotti, 1997GALVÃO, Walnice & GALOTTI, Oswaldo. (org.). (1997), Correspondência de Euclides da Cunha. São Paulo, Edusp., p. 256).

Para Alberto Rangel, a cidade ganha os contornos inusitados de um centro da civilização em plena selva. Embora os contos em Inferno verde enfoquem as adversidades dos nordestinos migrados para a Amazônia, é a natureza como contraface da civilização a personagem principal. Mas é possível identificar nos diferentes entrechos modos de percepção da natureza atrelados ao dinamismo de uma vida urbana. Conforme salienta Simon Schama (1996)SCHAMA, Simon. (1996), Paisagem e memória. Tradução de Hildergard Feist. São Paulo, Companhia das Letras., quando a natureza é concebida como um ser vivo, não há como fugir ao vocabulário da arquitetura8 8. Pode-se aplicar a Alberto Rangel o mesmo raciocínio de Simon Schama acerca de Adam Mickiewicz quando trata da floresta na Lituânia em sua poesia. “E nunca havia surgido um escritor da natureza que, confrontado com a mata primitiva, não recorresse ao vocabulário da arquitetura. Sendo impossível visualizar ou verbalizar a natureza em termos despojados de qualquer associação cultural, habitualmente se concebia o interior da floresta como um espaço vivo, uma câmara abobadada […].” (Schama, 1996, p. 68). .

A análise acerca da representação literária de Manaus em alguns contos de Márcio Souza e de Milton Hatoum torna possível não só um eventual contraponto entre ambos, mas também um contraste de um e outro com os contos de Alberto Rangel. A despeito de o narrador de Inferno verde perambular pelos ermos amazônicos, é o urbano a referência para uma figuração da região a partir da contraposição entre Natureza/Cultura, eixo estruturante dos contos. Já nos contos de Márcio Souza e Milton Hatoum o eixo desloca-se para outras referências (razão/mito) ou simplesmente desfaz-se, dadas as incertezas quanto a uma representação possível com base em uma única perspectiva.

Nos arrabaldes da cidade

Na abertura do conto “Um conceito de Catolé”, uma descrição sombria da cidade de Manaus de inícios do século XX é apresentada. Embora o narrador do conto destaque as mudanças e os melhoramentos urbanísticos que transformaram uma simples vila em uma cidade moderna, uma visão soturna não deixa de ser notada em função das condições precárias a que estavam condenados os migrantes nordestinos afugentados pela seca, bem como suas angústias e incertezas em uma terra desconhecida.

Na margem risonha da cidade, de São Raimundo ao Educandos, a casaria moderna estende-se, de vidraçaria faiscante, entablamentos, platibandas e cumeeiras coroados das torres da Matriz e dos Remédios e da cúpula do Teatro. À hematose do progresso, operara-se o prodígio da transformação das palhoças da antiga vila da Barra do Rio Negro na metrópole amazonense dos nossos dias. Muralhas de cais, trapiches, frontarias de casas altas, o edifício do Mercado e a sua “rampa” formam a primeira linha da cidade, junto ao negro gorgorão da água, que a banha funereamente.

Próximo ao mercado, em terreno acrescido nas aluviões do rio, mas que este pela aguagem da enchente não dispensa inundar, está um imenso barracão de velhas tábuas. Prevendo a alagação, edificaram-no sobre estacaria alta, mal aprumadas e que a vazante deixa totalmente a descoberto.

Esse imenso pardieiro todo o dia palpita do resfolegar de uma caldeira e do zoar das serras rasgando toros, desmanchando os rolos dos cedros em vigas e tabuados. De noite a parte de cima emudece; a parte inferior, entre as estacas apodrecidas e limosas, vive então alguns meses de uma sombria vida noturna.

Nesse esconderijo imundo resguarda-se muita gente miserável, que desembarca dos “gaiolas” ou dos paquetes do Sul, a fim de buscar sustento, ou talvez, opulência na pátria encantada do caucho.

É um acampamento de ciganos. As famílias instalam-se em promiscuidade nos lôbregos baixos da oficina-cortiço.

Incompreensível construção, teimosa em ficar bem exposta como escárnio à civilização que a rodeia, a serraria é um asilo amoroso. Não tem tabuleta a hospedaria gratuita e nada exige por acoitar a necessidade e a desgraça. Vibra-lhe um coração no peito desgarrado e rígido de traves e barrotes. Na sua humildade de maltrapilha apieda-se dos indigentes que a procuram. Nenhum guarda e a mais perfeita ordem […] (Rangel, 2001RANGEL, Alberto. (2001), Inferno verde; cenas e cenários do Amazonas. 5 ed. Manaus, Ed. Valer/Edições Governo do Estado., pp. 51-52).

Os contornos de Manaus tal como vislumbrados pelo narrador só poderiam ser assim definidos em função de uma perspectiva de quem se aproxima pelo rio. E é precisamente por causa dessa visão horizontalizada que uma linha imaginária pode ser traçada a dividir a cidade em duas partes que parecem constituir um todo desarranjado. Uma parte superior logo se destaca, com realce para o casario moderno e para as torres das igrejas da Matriz e dos Remédios e para a cúpula do Teatro Amazonas. Portanto, uma faceta sorridente e iluminada. Uma parte inferior está oculta e submersa sob os assoalhos das palafitas construídas à beira do rio com madeiras apodrecidas, vulneráveis ao ritmo das águas a oscilar entre cheias e vazantes. Os corriqueiros contingentes de migrantes nordestinos que, rumo aos seringais, passavam pela cidade, viam-se obrigados a um refúgio provisório sob os precários abrigos, ocultando-os do frenesi de uma cidade que se travestia como parte da civilização.

Mas o protagonista do conto se recusa a embrenhar-se nos seringais justamente para preservar a filha da sanha que acomete os seringueiros por conta da escassez de mulheres naqueles rincões. Após a morte da esposa, João do Catolé se viu atraído pela Amazônia em função das possibilidades de uma vida melhor e mais decente em uma terra a prometer riqueza. Decidiu ganhar a vida na colônia agrícola criada pelo governo localizada nos arrabaldes de Manaus. Ali conseguiu um lote de terras e iniciou uma vida de trabalho árduo de plantação e colheita. Sua filha Malvina, apesar de adolescente, mostrou-se bastante ativa e útil na empreitada para transformar aquele lote de terra encravado entre a cidade e a selva em fonte de sustento digno a ambos.

Tinha, então, uns treze anos a Malvina. Ela ajudava-o bastante. Até na “carpa”, ou no encoivarar, a rapariga prestava auxílio ao pai. Cobria a cabeça de largo chapéu de palha e tomava o terçado; era um homem! Muitas vezes o Catolé ficava cismando a olhar; o oval do rosto, os olhos gázeos e o riso eram da sua defunta mulher; porém mais resoluta e mais trabalhadora. A rapariga não tinha um minuto de seu. Cuidava da casa, da roupa, da cozinha, da criação miúda, ia para a roça, e ainda lhe sobrava o tempo para fazer renda de crivo. Que formosa era a Malvina com a almofada ao colo e nas mãos de dedos ágeis os bilros saltando lépidos, com o rumor de castanholas agitadas febrilmente num samba! Os catolés dos bilros estalavam doidos, mas a linha entretecia-se sabiamente por entre os alfinetes no “pique” (Rangel, 2001RANGEL, Alberto. (2001), Inferno verde; cenas e cenários do Amazonas. 5 ed. Manaus, Ed. Valer/Edições Governo do Estado., pp. 54-55).

A agilidade de Malvina na tessitura da renda com os bilros feitos de catolé9 9. Catolé “é uma espécie de palmeira pertencente aos gêneros coco e ataleia da zona árida central do Brasil cujos cocos se introduzem nas pontas de pequenos paus para confecção de bilros. Os próprios bilros são também assim chamados”. (Simas, 1949, p. 152). parece compensar e equilibrar o seu afinco na lida da aragem da terra. Se os bilros utilizados para tecer a renda insinuam uma aproximação entre o feminino e a natureza, o trabalho de aragem/cultivo como tarefa masculina é levado a cabo tanto por Malvina quanto pelo pai, alcunhado com um nome de vegetal. A ambiguidade do próprio trabalho intelectual/literário de Alberto Rangel parece se revelar nesse cruzamento entre o feminino e o masculino. Mas, apesar do afinco, da disciplina no trabalho e de algum progresso naquele lote de terra, a colônia em si não progredia. Os motivos para o fracasso eram atribuídos à aridez da terra, imprópria para o plantio. Somente a atividade extrativa e a caça eram corriqueiramente praticadas pelos colonos. O contraste entre a fachada civilizada da cidade e os seus arrabaldes ainda dominados pela presença ostensiva da floresta complementa o desarranjo observado pelo narrador ao contrastar o casario moderno acima das palafitas na beira do rio.

A rotina de trabalho, no entanto, sofreu um trágico revés. Malvina foi seduzida por um cearense migrado e então a serviço da administração da colônia agrícola, com quem decidiu afugentar-se em função de um assassinato por ele cometido. Ambos se refugiaram nas brenhas da selva. Após algumas semanas de busca, seus corpos foram encontrados já em estado de putrefação avançada. Com a perda trágica da filha, a desesperança apoderou-se de João do Catolé, e o ânimo para o trabalho minguou até o completo abandono de suas tarefas rotineiras. A floresta retomou o terreno onde havia plantação, e os cupins se alastraram pelo casebre habitado pelo cearense. Tudo se transmutou em ruína.

O fecho do conto salienta como causa do insucesso do migrante cearense não aqueles fatores inicialmente apontados pelo narrador como intrínsecos à própria natureza amazônica, mas sim à solidão a que foi relegado após a morte da filha. O sentimento de isolamento na selva reforça a imagem da Amazônia como uma região inóspita, uma imagem urdida a partir de uma perspectiva da cidade. Se o traçado geometrizado do espaço urbano racionaliza a circulação ordenada de pessoas e de mercadorias, nas zonas de arrabalde tal racionalização é nublada pela presença da floresta, presença a propiciar eventuais desvios e descaminhos atiçados pela vazão dos desejos, como no caso de Malvina. Na abertura do conto, quando da descrição da visão panorâmica da fachada da cidade, o narrador identifica um contingente de migrantes alojados nos subterrâneos das palafitas. Todos mostram-se resignados e à espera de seus destinos incertos, esperançosos por uma vida melhor. As amarras e constrangimentos sociais que o espaço urbano impõe tendem a desfazer-se à medida que se adentra a selva.

“Um conceito de Catolé” é o segundo dos onze contos a compor Inferno verde. Ao longo dos diferentes entrechos, é possível associar o narrador em terceira pessoa com um viajante a percorrer as veredas amazônicas com o objetivo de esquadrinhar o espaço da selva, como um engenheiro a localizar e medir terrenos, tal como Malvina a tecer sua renda com os bilros de catolé. Uma possível identificação entre o narrador e o próprio autor é tentadora na medida em que o engenheiro Alberto Rangel foi de fato contratado pelo governo do Amazonas para demarcar e registrar terras (Paiva, 2011PAIVA, Marco Aurélio C. de. (2011), “O sertão amazônico: o inferno de Alberto Rangel”. Sociologias. Porto Alegre, 26 (13).). Mas a estrutura e a armação do livro revelam que ele foi concebido a partir de uma resolução literária ao figurar a Natureza não só como pano de fundo ou paisagem, mas como personagem central das distintas tramas.

As bordas de um labirinto

Desde Galvez, Imperador do Acre e Mad Maria até O fim do Terceiro Mundo, passando por A resistível ascensão do Boto Tucuxi, romances de Márcio Souza publicados entre 1976 e 1990, a Amazônia e a cidade de Manaus são literariamente representadas de modo a refletir as mudanças em processo no decorrer daqueles anos de publicação das obras. Daí a importância dos contos reunidos na coletânea A caligrafia de Deus, escritos na década de 1970.

Já no conto que dá título ao livro10 10. O conto “A caligrafia de Deus” foi publicado originalmente na coletânea Malditos escritores!, de 1977 (Leão e Krüger, 2013, p. 177). , o traçado um tanto quanto sinuoso da periferia de Manaus acompanha os efeitos perversos do processo de desagregação das populações tradicionais da região e faz referência ao caos instaurado nas suas áreas suburbanas. A expansão acelerada da malha urbana da cidade gerou uma situação que, embora não propriamente inédita, acentuou-se cada vez mais: a favelização da cidade.

O modelo Zona Franca de desenvolvimento adotado em determinadas regiões do mundo destinava-se a beneficiar o capital internacional em seu momento de expansão. A existência de um contingente de mão de obra desqualificada e barata foi condição imprescindível para a sua adoção na Amazônia11 11. Acerca do modelo Zona Franca e, mais especificamente, quanto à Zona Franca de Manaus e seus impactos sobre o empresariado local, ver Seráfico (2011). . A Zona Franca de Manaus promoveu uma concentração populacional ao atrair para a capital do estado um importante volume de ribeirinhos, caboclos e indígenas, descaracterizando-os de suas formas de existência e tradições culturais. A ocupação gradativa das áreas periféricas da cidade por parte dessa população desarraigada alterou seu traçado urbano de maneira irremediável.

O conto “A caligrafia de Deus” estabelece uma relação entre um processo de transmutação das identidades de grupos étnicos da região e o novo cenário urbano de Manaus. Como uma crônica policial, o conto relata a trajetória de dois personagens que, de imediato, são referidos pelo narrador como cadáveres encontrados em um bairro da periferia: uma mulher e um homem, ambos assassinados pela polícia. A vida dos dois personagens é brevemente esboçada de modo a ressaltar as motivações que os levaram a se deslocar de suas respectivas localidades interioranas para a periferia de Manaus. O desfecho trágico ressalta a violência vigente no cotidiano dos arrabaldes da cidade ao longo daqueles anos. O labirinto de becos e ruelas das áreas suburbanas destinadas a abrigar essa população migrada do interior acompanha a trajetória errática dos personagens.

A abertura do conto funciona como uma grande panorâmica a contrastar diferentes aspectos de uma cidade em mutação brusca: de um lado, palafitas construídas em terrenos irregulares e lamacentos, de outro, e ao longe, os sinais de uma cidade moderna com a visão de edifícios e da cúpula do Teatro Amazonas, uma visão invertida em relação àquela do narrador do conto de Alberto Rangel. Embora o narrador faça uso da ironia ao relatar os acontecimentos, tal fato em nada arrefece a tragédia vivenciada nos subúrbios de uma cidade mergulhada em uma espécie de “loucura coletiva”.

Quarenta e oito horas depois, havia dois cadáveres atravessados por balas de fuzil. Uma casa de tábuas cinzentas e retorcidas pela chuva e pelo sol. Na loucura da Zona Franca, o povo era tão afável na sua ironia que chamava aquilo de casa. Tinha muito campi-serra, urtiga, um pé de mamoeiro e uma velha mangueira quase sem folhas. A casa, coberta de palha, devia ter goteira como o diabo. Um rego de água fedida atravessava os calombos da rua e fazia um mapa escuro no barro seco. As viaturas da polícia e os carros dos jornais tinham estacionado quatro quadras atrás, isto é, a uns trinta metros de um labirinto de becos, terrenos baldios e lençóis secando em taquaras. Daquela rua, que o povo chamava de rua São João, entre as vinte ruas São João que há em Manaus, era possível ver a gloriosa cúpula do Teatro Amazonas e dois ou três espigões da moderna capital dos barés. Tinham sido quarenta e oito horas de trabalho para todo mundo. Menos para os moradores do bairro do Japiim. Na loucura da Zona Franca, o povo era tão afável na sua ironia que chamava aquilo de bairro. Em dez anos, aquelas colinas suaves cortadas por um igarapé viram desaparecer os buritizais e a mata quase cerrada, as chácaras e os banhos, para dar lugar a um conjunto habitacional do BNH e às adesões provocadas pela iniciativa particular dos ribeirinhos que chegavam com a anual subida das águas. O conjunto habitacional nunca ficaria pronto, e era um inferno de calor e poeira ao meio-dia, uma geladeira tropical de umidade e bruma durante a noite. Nada mais restava da antiga mata e o deserto estendia-se pelo lado das casas dos ribeirinhos. Nos meses de chuva, formava-se um atoleiro que era um verdadeiro nirvana para os porcos; nos meses sem chuva, uma paisagem marciana com todo charme de um bairro avermelhado que empoava as crianças e as galinhas […] (Souza, 1994SOUZA, Márcio. (1994), A caligrafia de Deus. São Paulo, Marco Zero., pp. 15-16).

A mudança drástica do cenário daqueles arrabaldes da cidade no decorrer de poucos anos, antes caracterizados pela presença da floresta e de balneários, depois transformados em terreno irregular e desértico destinado a um conjunto habitacional nunca concluído, é um indicativo do ritmo de expansão da área urbana. A invasão por parte dos migrantes deu origem a palafitas e habitações improvisadas, criando ruas e ruelas sinuosas. As expectativas quanto aos supostos benefícios que um centro urbano pudesse oferecer e que motivaram a migração de muitos, na realidade, redundaram naquele labirinto enlameado e fétido. O emaranhado de linhas retas e sinuosas a caracterizar o traçado da periferia da cidade é espelhado nas próprias trajetórias dos personagens da trama.

Detenhamo-nos no caso de Izabel. Oriunda do pequeno município de Iauareté-Cachoeira, localizado na região do Alto Rio Negro, a sinuosidade da sua trajetória tem início já na incerteza a marcar as suas origens identitárias. Filha de um casal de índios, mãe da etnia tukano e pai da etnia baniwa, Izabel foi criada e educada pelas freiras de uma das missões salesianas ali atuantes. A violência simbólica exercida pelas missões evangelizadoras sobre a população indígena pode ser mensurada, conforme o narrador sugere, pela homogeneização de costumes impostos pelos padres e freiras às múltiplas etnias, anulando quaisquer diferenças entre elas. A adoção de um mesmo sobrenome para o conjunto dos índios revela o grau de imposição de uma noção de racionalidade estranha àqueles povos.

Os modos de vida da população não eram completamente compreensíveis por parte de Izabel. Uma mescla entre costumes indígenas ainda preservados no cotidiano e práticas religiosas cristãs impostas e vigiadas por freiras e padres. Como insinua o narrador, havia algo de incongruente e de incompatível entre costumes distintos. Uma situação que colocou Izabel em suspensão, sem entender a sua própria posição em um ambiente confuso. A condição “em suspenso” de Izabel não pode ser interpretada como uma mera lacuna na formação da sua personalidade/subjetividade. Embora se configure uma problemática de identidade étnica, é o desconforto gerado pela incongruência entre anseios subjetivos e possibilidades objetivas que a impulsiona a aderir a valores oriundos do meio urbano. As revistas de fotonovelas por ela folheadas encarregavam-se de inculcar outros valores próprios de uma cultura urbana. Seus desejos em viver aquela vida dos personagens de fotonovelas, uma espécie de bovarismo, foram arrefecidos pelo repisado adágio pronunciado por sua mãe: “Deus escreve certo por linhas tortas”. Mas, como ressalta o narrador, Izabel permaneceu a desconfiar dessa caligrafia divina.

Izabel não compartilhava da estranha lógica conformista da mãe, da aceitação passiva de uma vida que, a despeito das dificuldades, era a única viável e, ademais, uma vida a facilitar um argumento negativo: poderia ser pior. Izabel recusava-se a se ver como uma “letra malfeita”, a aceitar aquela caligrafia divina um tanto quanto tortuosa. A sua presença naquela localidade impregnada de loucura, segundo ela, estava inviabilizada. Somente uma vida na cidade poderia saciar seus anseios.

Após implantar uma prótese dentária absolutamente incompatível com o tamanho da sua boca, deformando de maneira bizarra as linhas do seu rosto, Izabel rumou para Manaus com o objetivo não só de conseguir um emprego, mas também um namorado. Com os dentes alvos e alinhados como aqueles das mulheres por ela admiradas nas fotonovelas, não seria difícil beijar alguém. No entanto, insatisfeita com o salário e com o tipo de trabalho repetitivo desempenhado em uma das fábricas do polo industrial da Zona Franca, além de não conseguir namorado por conta da sua boca desalinhada, ela resolveu prostituir-se como meio de ganhar a vida. Embora Izabel não tenha se conformado com a escrita tortuosa da divindade, seu final trágico seguiu as linhas sinuosas de um destino previsível. A tragédia de seu destino coaduna-se com o processo de urbanização de Manaus então em curso nos anos seguintes à implantação da Zona Franca: sem identidade e desfigurada.

Uma aproximação entre Izabel e o autor do conto não é de todo descabida caso se considerem as dificuldades e frustrações daqueles que, distantes dos centros culturais do país, acabam por investir em uma carreira literária incerta e, assim, dar vazão aos seus anseios e descontentamentos. A mesma situação “em suspenso” vivenciada pela protagonista do conto pode ser atribuída a Márcio Souza, na medida em que a sua carreira literária se concretiza quando do seu retorno para Manaus após um período de formação em São Paulo e de seu breve contato com movimentos políticos e artístico-culturais a experienciar outras linguagens no âmbito do cinema, do teatro e da literatura. Vale notar, ainda, a prática da escrita de roteiros para cinema a partir da adaptação de obras literárias voltadas para o grande público, fato decisivo e responsável pelo autor alinhar-se a uma determinada concepção do fazer literário. Como dito por ele mesmo:

[…] Eu escrevo para os leitores; o editor tem de fazer o que lhe cabe. Eu quero ser lido. Se eu tiver uma edição esgotada, maravilha, é como eleição direta. Livraria é aonde o público vai e vota - se você acertou, ganha leitores […] (Souza, 2005SOUZA, Márcio. (2005), “Ofício de escritor (entrevista)”. Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo, n. 19, pp. 23-49., pp. 23-49).

Espaços em branco

No conto “Dois poetas na província”, de Milton Hatoum (2009)HATOUM, Milton. (2009), A cidade ilhada; contos. São Paulo, Companhia das Letras., para além do rechaço do exotismo da paisagem amazônica12 12. O conto foi originalmente publicado na Nouvelle Revue Française com o título “Qui sont les sauvages” [Quem são os selvagens] (Hatoum, 2009). , é possível entrever os modos pelos quais o espaço urbano pode ser literariamente representado na própria construção textual. O enredo desenrola-se a partir do encontro entre o velho poeta e professor de francês aposentado Zéfiro e o jovem Albano, um de seus ex-alunos. O ano era 1981 e ambos se encontravam no restaurante de um hotel outrora prestigioso e já em decadência nos inícios daquela década. Albano era filho de um endinheirado da cidade que, por saber francês com certa fluência, estava de partida para Paris, onde pretendia ficar por dois anos e escrever seu primeiro romance. De imediato o leitor é informado pelo narrador acerca do mistério em torno da figura do velho professor e poeta: seu endereço era algo completamente desconhecido na cidade. Considerando-se a idade avançada de Zéfiro, já com oitenta anos, e sua alardeada posição política contestatória desde a nomeação do interventor federal no governo estadual quando da instauração do regime militar, recusando-se a publicar seus poemas sob patrocínio governamental como demonstração de resistência13 13. Quando da instauração do regime militar em 1964, foi nomeado como interventor no estado do Amazonas o já então renomado historiador Arthur Cézar Ferreira Reis. Seu governo foi marcado pela implementação de uma política cultural voltada para a edição de autores e obras de referência sobre a Amazônia. Tal política cultural, por sua vez, contou com a colaboração de jovens aspirantes ao mundo intelectual local, dentre eles Márcio Souza (Amaral, 2015). , aquele mistério a envolver seu local de moradia revela-se inverossímil. Mas seu nome expressa seu papel no entrecho da narrativa e da invisibilidade que lhe é atribuída: uma espécie de divindade inquieta responsável pelos ventos a soprar ao entardecer (Chevalier e Gheerbrant, 2012CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. (2012), Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução de Vera da Costa e Silva. 26 ed. Rio de Janeiro, José Olympio., p. 936). Seu conhecimento pormenorizado de Paris, no entanto, mostra-se bastante verossímil na medida em que indicações detalhadas são por ele repassadas ao jovem Albano acerca de ruas e locais onde famosos poetas haviam residido, bem como endereços de livrarias e cafés por eles frequentados. Só quem viveu e deambulou pelas ruas de Paris seria capaz de esmiuçar os diferentes quadrantes da capital francesa. Tal intimidade foi ainda reforçada quando o velho poeta fez alusões ao seu encontro com Jean-Paul Sartre ali mesmo naquele hotel quando da passagem do afamado filósofo por Manaus em 1960.

Embora o enredo do conto promova um contraste entre a conversa entabulada pelos dois personagens amantes das letras e o grupo de turistas estridentes a ocupar com suas bugigangas e artesanato indígenas uma das mesas do restaurante do hotel, o que se destaca no desfecho da trama é o fato de o velho poeta, após rumar para o seu misterioso endereço, ser flagrado sentado em sua poltrona a mirar o mapa de Paris dependurado na parede de seu escritório. Uma cidade que, de fato, ele nunca havia conhecido. Uma cidade que possuía, para ele, contornos mais reais do que Manaus, de onde nunca se ausentou. Impregnado pela força imaginativa da literatura e da poesia francesas consumidas ao longo dos anos, a invisibilidade de seu endereço vinha a reboque de uma vivência imaginária de Paris. O mistério acerca do endereço do velho poeta converte-se em “ponto cego” na malha urbana de Manaus e torna-se uma espécie de elo imaginário entre as duas cidades. O jovem abastado rumo a Paris a fim de dedicar-se à literatura é a encarnação dos ideais literários do velho poeta, e a literatura uma ponte a ligar o passado frustrado e o possível futuro promissor, o mais velho a aconselhar o mais jovem em função de suas experiências falhadas.

Inversamente, o conto também ressalta que a cidade de Manaus se incorpora ao imaginário da Amazônia como uma região de antemão tomada como selvagem, tal como indicado pelo comportamento do grupo de turistas. O estranhamento do velho poeta e do jovem aprendiz de romancista em relação aos turistas extasiados em suas toscas imitações de rituais indígenas faz com que se opere um deslocamento nos termos de uma dada representação da região e de onde decorre a pergunta: “quem são os selvagens?”.

O conto “Dois poetas da província” promove, assim, uma sobreposição entre o mapa de Paris e o traçado urbano de Manaus. O contraste entre o projeto literário frustrado do velho poeta e as esperanças depositadas no jovem escritor faz com que a narrativa se volte sobre si mesma e desvele os processos de ordem política mais geral implicados na consolidação de uma dada representação da cidade de Manaus e da Amazônia. Mas, tal como o endereço do poeta octogenário, a incerteza do passado permanece no presente. Os aconselhamentos da experiência literária falhada do poeta ancião não garantem o sucesso para o jovem romancista de partida para a Europa.

Incerteza levada a extremos quando se aborda uma narrativa que toma como cenário o Teatro Amazonas. No conto “A ninfa do teatro Amazonas”, o jogo entre representação e realidade ganha delineamentos a oscilar entre sonambulismo e loucura, vida e morte, passado e presente. Trata-se de um personagem idoso a rememorar o passado que, ainda criança, vivenciou os momentos gloriosos do Teatro Amazonas quando companhias líricas estrangeiras aportavam em Manaus para breves temporadas. As lembranças do velho Álvaro, encarregado da vigilância do teatro, estão condensadas na fotografia que ornamenta a parede de seu pequeno aposento nos andares superiores daquele prédio: a imagem de uma famosa soprano milanesa quando do seu desembarque em Manaus no remoto ano de 1919. A intensidade da chuva que cai embala o sono e as lembranças do velho vigia que, em um sobressalto, é despertado por um ruído vindo do palco. Ao vislumbrar pela pequena janela a praça em frente, ainda com os olhos semicerrados, tem a impressão de ver um dos navios do monumento ali existente a flutuar sobre as águas. A chuva, aparentemente, havia inundado tudo.

O andamento da narrativa desdobra-se em dois planos que se entrelaçam de modo a reforçar o jogo de representações. A misteriosa mulher grávida descrita como um vulto a perambular sob a chuva torrencial ao redor da praça São Sebastião, vinda não se sabe de onde, adentra as dependências do teatro e aloja-se em uma cadeira na plateia próxima ao palco. Os tais ruídos que despertaram o vigia de seu sono foram provocados pelo choro de uma criança, embora não fosse possível ter certeza. Mesmo em estado sonambúlico, o vigia arrisca-se a descer armado da sua velha Winchester. Após trilhar os corredores que conduzem até os bastidores do palco, ele posiciona-se para melhor averiguar o que ocorre.

Cauteloso, mas não aterrorizado - o seu passado, a sua profissão ou talvez a arma o tranquilizassem -, ele tateou a parede mais próxima e encontrou, entre teias de aranha, uma alavanca de madeira; com um gesto brusco empurrou-a para baixo. Um filete de luz brotou de um orifício de tela, o pano de boca se iluminou. O vigia pôde imaginar as cores e as formas da imensa pintura da cortina: garças e jaburus no meio de flores aquáticas e açucenas-brancas, uma naia deitada numa concha flutuando entre as águas do Negro e do Amazonas. Seu Álvaro aproximou o olho direito do orifício e percebeu que o anel de luz coincidia com o umbigo da naia. Com o corpo apoiado na arma, seu olho esquadrinhou a sala de espetáculos, tentando encontrar a fonte do ruído que o despertara. Sentiu um desânimo ao notar a sala deserta, cadeiras e camarotes vazios. Então o olho arregalado viu uma sombra, a forma de um corpo sentado perto do palco. Pela primeira vez o vigia teve um pouco de medo. Pôs os óculos a fim de enxergar com nitidez a sala; ali estavam seus velhos conhecidos: o busto de Carlos Gomes, de Racine e de Molière; e, numa cadeira da primeira fila, o corpo molhado de uma mulher morena (Hatoum, 2009HATOUM, Milton. (2009), A cidade ilhada; contos. São Paulo, Companhia das Letras., p. 92, grifos meus).

A pintura do pano de boca a representar os diferentes ícones da paisagem regional, desde os pássaros até os rios Negro e Amazonas, tem como figura central os contornos de uma naia a flutuar sobre uma concha nas águas comuns dos dois grandes rios. É através do umbigo da naia do lado inverso do pano de boca que o raio de luz permite ao vigia ancião percorrer seu olhar pelos assentos da plateia e das frisas. A identificação de uma mulher morena com uma criança recém-nascida ao colo parece perturbar o velho Álvaro, que, “como se estivesse lúcido em pleno sonho”, começa a bater sua arma contra o piso até ser arrastado por dois enfermeiros para o cenário ainda montado no palco a reproduzir “um pequeno aposento de madeira com uma única janela, a torre de igreja e um campanário; num céu de papel alumínio brilhava uma lua de papelão, solta no ar” (Hatoum, 2009HATOUM, Milton. (2009), A cidade ilhada; contos. São Paulo, Companhia das Letras., p. 93).

O fecho do conto é narrado por um médico psiquiatra que, após a internação do ancião no hospício da cidade, arrisca um diagnóstico. Segundo ele, uma fotografia já envelhecida foi encontrada em um dos bolsos do vigia e estampa a figura de um menino de mãos dadas com uma mulher. Não é possível identificar o rosto da mulher em função de a fotografia estar “borrada e puída”, mas o narrador principal, um jornalista, sugere ser a famosa soprano milanesa que, de fato, esteve na cidade nos idos de 1919. O médico psiquiatra arrisca outra hipótese: pode ser uma famosa pianista local que fez diversas apresentações no teatro quando o velho Álvaro já exercia seu ofício. Como todos sabem, diz o médico, a tal pianista morreu afogada “não muito longe do encontro das águas”.

Diferentemente do lamaçal da periferia da cidade a estabelecer um vínculo simbólico entre água e morte, a água da chuva torrencial que parece inundar a praça São Sebastião, bem como o encontro das águas dos rios representado na pintura do pano de boca do Teatro Amazonas, tendem a apontar para uma relação entre água e vida (Chevalier e Gheerbrant, 2012CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. (2012), Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução de Vera da Costa e Silva. 26 ed. Rio de Janeiro, José Olympio., pp. 15-22). A sobreposição temporal entre passado e presente condensa-se na figura quase fantasmática do vigia do teatro a rememorar o passado. O delírio confunde-se com o momento de nascimento representado não só pela visão de uma mulher a amamentar uma criança, mas também se encontra estampado na figura da naia do pano de boca. Como divindades das águas, as naias reforçam o simbolismo da água como expressão da vida. A luz atravessa o tecido do pano de boca pelo umbigo da naia. É justamente por meio desse orifício que a ligação entre as duas temporalidades se efetiva, uma ligação umbilical entre nascimento e morte, o novo e o velho, passado e presente.

As fotografias, por sua vez, tanto aquela a ornamentar a parede dos aposentos do velho vigia quanto a outra encontrada em seu bolso, e já amarelecida pelo tempo, oscilam entre a versão mais longínqua da soprano milanesa e a versão mais plausível da pianista local afogada no encontro das águas. As duas figuras femininas estão diretamente associadas ao Teatro Amazonas, tanto ao seu passado glamuroso quanto ao seu presente de quase abandono. O cenário ainda montado de uma antiga peça mimetiza um aposento com uma janela pela qual se entrevê o campanário com um céu feito de papel alumínio e uma lua de papelão ao fundo. Um cenário que duplica os aposentos do vigia, localizado na parte superior do teatro.

No entanto, cabe a pergunta: os tormentos vivenciados pelo vigia foram decorrentes de algum delírio/sonho ou de fato aconteceram? No jogo de espelhamento proposto no conto, a verdade buscada pelos narradores, um jornalista, e, em seu fecho, um médico psiquiatra, apresentam distintas possibilidades14 14. O conto foi publicado em uma versão em inglês no Grand Street Magazine dos Estados Unidos com o título “The truth is a seven-headed animal” [A verdade é um bicho de sete cabeças] (Hatoum, 2009, p. 122). . O jogo de representações estabelecido entre a pintura, a fotografia e a encenação de uma peça de teatro, em associação com o mito, o sonho e o delírio, abre uma fenda (ou um orifício) por onde uma luz tende a iluminar e a baralhar as tradicionais referências sempre mobilizadas para representar a cidade de Manaus e a Amazônia. Tal baralhamento, por sua vez, decorre da necessidade de novos modos de fabulação acerca da região em função da dinâmica urbana e como consequência da emergência e consolidação de novas vozes autorizadas a falar sobre a Amazônia.

Conclusão

Segundo Ángel Rama (2015)RAMA, Ángel. (2015), A cidade das letras. Tradução de Emir Sader. São Paulo, Boitempo., a noção de “cidade das letras” sintetiza como, não só ao longo do processo de colonização, mas também já no período pós-colonial, a predominância da cidade foi decisiva como instância a legitimar uma dominação sobre os diversos grupos étnicos esparramados pelo território da América Latina. Como aparato político-administrativo, a cidade deu vazão aos processos econômicos diretamente vinculados aos interesses dos colonizadores. A cidade também passou a ser decisiva como um ambiente a formar uma intelectualidade local que, de início, incorporou os parâmetros de racionalidade advindos do mundo europeu. Mas, a despeito dos variados movimentos artísticos e literários ocorridos no período pós-colonial, a ideia da “cidade das letras” permaneceu como um elemento a organizar e a subordinar o entendimento das realidades rural e sertaneja da América Latina aos ditames próprios de um ambiente urbano. Urbanidade que fez emergir, no decorrer do tempo, uma política própria destinada a revolver os problemas atinentes à representação da realidade colonial e pós-colonial (Rama, 2015RAMA, Ángel. (2015), A cidade das letras. Tradução de Emir Sader. São Paulo, Boitempo.).

Os contos de Inferno verde estão estruturados em conformidade com o princípio racionalista europeu de fins do século XIX e, em função disso, pressupõem uma separação entre Natureza e Cultura. Mesmo considerando-se o fato de a Natureza desempenhar um protagonismo nos entrechos dos contos, tal fato apenas enfatiza o seu papel como barreira para uma afirmação civilizatória na Amazônia. No entanto, e conforme ressalta Sevcenko (1995)SEVCENKO, Nicolau. (1995), Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 4 ed. São Paulo, Brasiliense., dadas as mudanças e as novas condições impostas ao exercício do trabalho intelectual em finais do século XIX na capital do país, é a posição instável e incerta do intelectual no ambiente urbano em transformação o fator decisivo a promover alternativas aos modos de percepção da realidade nacional. Tal fato pode ser entrevisto nos contos de Inferno verde quando se atenta para a não conjuminância entre os limites da linguagem e a pretensão em abarcar a realidade amazônica a partir de um prisma cientificista.

Mesmo obras que se utilizaram dos mitos das populações indígenas como elementos de superação dos limites da linguagem permaneceram enredadas na oposição Natureza/Cultura, a despeito dos experimentos estilísticos do modernismo literário terem promovido certo baralhamento entre um polo e outro15 15. Obras como Macunaíma, de Mário de Andrade, e Cobra Norato, de Raul Bopp, são exemplos eloquentes de como se deu o aproveitamento dos mitos amazônicos como motivo de criação literária em um ambiente de renovação estética. . A própria condição de relativa autonomia reclamada pelo trabalho intelectual a partir do movimento modernista viabilizou formas alternativas de investigação estética e proporcionou uma reavaliação das fronteiras existentes entre Natureza e Cultura em função das demandas políticas por um novo entendimento da nacionalidade brasileira. No caso da Amazônia, apesar da abertura de possibilidades de investigação estética, o aproveitamento dos mitos como motivo de criação literária sofreu os efeitos diretos e indiretos dos embates de ordem política mais geral (Paiva, 2010PAIVA, Marco Aurélio C. de. (2010), O papagaio e o fonógrafo; os prosadores de ficção na Amazônia. Manaus, Edua.).

Nos contos de Milton Hatoum e de Márcio Souza, a cidade de Manaus é representada diversamente. Embora ambos compartilhem da mesma avaliação quanto aos efeitos deletérios para a cidade ocasionados pelo modelo Zona Franca, pode-se dizer que a transição e o contraste entre um cenário de civilidade predominante ao longo de décadas e o quadro de caos urbano instaurado a partir dos anos 1970 propiciaram aos autores redimensionarem os parâmetros de representação literária da região. Junte-se a isso o fato de ambos terem vivenciado de modo mais ou menos intenso movimentos culturais a experienciar novas formas de linguagem artística e literária nos principais centros urbanos do país, afora o quadro político de tensão e de ruptura de finais dos anos 1960 (Ridenti, 2014RIDENTI, Marcelo. (2014), Em busca do povo brasileiro; artistas da revolução, do CPC à era da TV. 2 ed. São Paulo, Ed. Unesp.).

A Amazônia como temática converteu-se em importante trunfo para o ingresso de jovens escritores no campo literário no decorrer dos anos 1970, caso consideremos a relevância crescente da questão indígena e ecológica no contexto político nacional e internacional. No entanto, o fato de o processo de urbanização ter se aprofundado e se consolidado no país ao longo da década de 1970 alterou significativamente os parâmetros de entendimento acerca do Brasil e da Amazônia.

O conto “A caligrafia de Deus” aponta para uma desfiguração completa da cidade de Manaus ao longo dos anos 1970 e estabelece uma associação direta entre tal processo de transformação da cidade e seu impacto sobre as populações autóctones. Embora a questão indígena esteja associada ao processo histórico de exploração da região, os contos do autor de Mad Maria abordam a cultura e os mitos das diversas etnias indígenas não por um prisma a ressaltar uma suposta ancestralidade fundadora da nação, nem pela perspectiva de uma tradição folclórica a marcar uma identidade regional, mas sim pelos efeitos da violência e da exploração e seus desdobramentos no plano simbólico. Portanto, um modo de abordagem a render um aproveitamento diverso tanto da tradição literária vinculada ao passadismo quanto das correntes atreladas ao modernismo. Ao mesmo tempo, é precisamente no plano simbólico que se vislumbra a resistência cultural de tais povos, principalmente em função das mudanças operadas pelo contexto urbano em expansão.

Se o conto de Márcio Souza ressalta o contraste entre a periferia e o centro urbano de Manaus, os contos de Milton Hatoum aqui analisados, e a despeito de uma resolução literária distinta, apontam para um quadro similar de degradação e, ao mesmo tempo, indicam uma possível saída para os impasses gerados no plano da representação literária. À cidade desfigurada agrega-se o aspecto selvagem tradicionalmente atribuído à Amazônia, porém a literatura se constitui em refúgio necessário para se contornarem tais representações corriqueiras.

A ruptura de um círculo vicioso que aprisiona os processos de figuração da Amazônia faz com que o fenômeno urbano ganhe relevância na medida em que propicia a gênese de formas alternativas de representação por parte de artistas e intelectuais os mais diversos e já enredados em processos específicos de legitimação. Se o conto “Dois poetas na província” contrapõe passado e futuro e inverte os termos no que diz respeito aos clichês em torno da cidade de Manaus, o conto “A ninfa do teatro Amazonas” desconstrói referências mais ou menos estáveis recorrentemente utilizadas. Mas, a despeito das incertezas, a água converte-se em elemento simbólico central na medida em que sinaliza para a renovação dos processos de representação literária da região. Não mais a água parada e pútrida, nem a água enlameada a escorrer pelos terrenos baldios da periferia da cidade, mas a água como um elemento de renovação. A literatura de Milton Hatoum se apresenta como esse rio de águas menos turvas sobre as quais flutua a cidade de Manaus.

  • 1.
    Milton Hatoum formou-se em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP). Sobre a trajetória de Milton Hatoum e de comentários variados acerca da sua obra, ver Cristo (2007)CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de (org.). (2007), Arquitetura da memória: ensaios sobre os romances Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte de Milton Hatoum. Manaus, Ed. da Universidade Federal do Amazonas/Uninorte..
  • 2.
    Pontos de fuga é o segundo romance da trilogia Um lugar mais sombrio. Vale ressaltar que a trilogia não toma a Amazônia como temática ou como cenário de sua trama, diferentemente dos romances anteriores.
  • 3.
    O texto de Simmel acerca da metrópole moderna como o ambiente propício a instaurar formas de pensar mais abstratas, bem como a abordagem de Benjamin a articular a modernização de Paris e a poesia de Baudelaire, convertem-se em análises mais pontuais no sentido de demonstrar como o fenômeno urbano se articula com as questões culturais mais abrangentes e com problemáticas artístico-literárias específicas. Ver Simmel, 2013SIMMEL, Georg. (2013), “As grandes cidades e a vida do espírito”. Tradução de Leopoldo Waizbort. In: BOTELHO, André (org.). Essencial sociologia. São Paulo, Penguin Classics/Companhia das Letras, pp. 311-329., pp. 311-329, e Benjamin, 2015BENJAMIN, Walter. (2015), Baudelaire e a modernidade. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte, Autêntica Editora., especialmente “A Paris do Segundo Império na obra de Baudelaire”, pp. 11-102.
  • 4.
    A articulação empreendida por Schorske de Viena de fins do século XIX entre a remodelação urbanística da cidade e o surgimento de novas linguagens no ambiente artístico-literário, bem como a relação entre tais linguagens e o ambiente político então vigente, pode ser comparada à análise de T. J. Clark acerca da remodelação urbanística de Paris e a emergência do impressionismo como nova concepção da linguagem pictórica. Ver Schorske, 1988SCHORSKE, Carl. (1988), Viena fin-de-siècle; política e cultura. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo, Companhia das Letras., e Clark, 2004CLARK, T. J. (2004), A pintura da vida moderna; Paris na arte de Manet e de seus seguidores. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo, Companhia das Letras.. Já a obra de Raymond Williams promove uma ampla abordagem acerca de uma diversidade de textos literários a identificar como a relação entre campo e cidade na Inglaterra afetou os modos de representação de um e outro ambiente. Ver Williams, 1989WILLIAMS, Raymond. (1989), O campo e a cidade; na história e na literatura. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo, Companhia das Letras..
  • 5.
    Sobre o processo de urbanização acelerado de algumas cidades brasileiras em finais do século XIX e inícios do século XX (dentre elas, Manaus) em função das mudanças estruturais acionadas pelo capitalismo em sua nova fase a partir dos países europeus, ver Sevcenko (1995)SEVCENKO, Nicolau. (1995), Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 4 ed. São Paulo, Brasiliense..
  • 6.
    A autora, inspirada no trabalho de Schorske acerca de Viena, busca articular entre si diferentes dimensões da vida cultural da cidade de São Paulo no decorrer dos anos 1950, desde o teatro de Jorge Andrade até o movimento concretista e a sociologia de Florestan Fernandes.
  • 7.
    Segundo Candido (2000)CANDIDO, Antonio. (2000), A educação pela noite & outros ensaios. 3 ed. São Paulo, Ed. Ática., se o vanguardismo dos modernistas da década de 1920 apoiou-se na ideia do Brasil como um projeto de país, nos anos 1960 o vanguardismo se justificava pela consciência do subdesenvolvimento.
  • 8.
    Pode-se aplicar a Alberto Rangel o mesmo raciocínio de Simon Schama acerca de Adam Mickiewicz quando trata da floresta na Lituânia em sua poesia. “E nunca havia surgido um escritor da natureza que, confrontado com a mata primitiva, não recorresse ao vocabulário da arquitetura. Sendo impossível visualizar ou verbalizar a natureza em termos despojados de qualquer associação cultural, habitualmente se concebia o interior da floresta como um espaço vivo, uma câmara abobadada […].” (Schama, 1996SCHAMA, Simon. (1996), Paisagem e memória. Tradução de Hildergard Feist. São Paulo, Companhia das Letras., p. 68).
  • 9.
    Catolé “é uma espécie de palmeira pertencente aos gêneros coco e ataleia da zona árida central do Brasil cujos cocos se introduzem nas pontas de pequenos paus para confecção de bilros. Os próprios bilros são também assim chamados”. (Simas, 1949SIMAS, L. G. de. (1949), Elucidário do Inferno verde, de Alberto Rangel. Revista do Arquivo. São Paulo, CXXVII., p. 152).
  • 10.
    O conto “A caligrafia de Deus” foi publicado originalmente na coletânea Malditos escritores!, de 1977 (Leão e Krüger, 2013LEÃO, Allison & KRÜGER, Frederico (orgs.). (2013), O mostrador da derrota: estudos sobre o teatro a e ficção de Márcio Souza. Manaus, UEA., p. 177).
  • 11.
    Acerca do modelo Zona Franca e, mais especificamente, quanto à Zona Franca de Manaus e seus impactos sobre o empresariado local, ver Seráfico (2011)SERÁFICO, Marcelo. (2011), Globalização e empresariado: estudo sobre a Zona Franca de Manaus. São Paulo, Annablume..
  • 12.
    O conto foi originalmente publicado na Nouvelle Revue Française com o título “Qui sont les sauvages” [Quem são os selvagens] (Hatoum, 2009HATOUM, Milton. (2009), A cidade ilhada; contos. São Paulo, Companhia das Letras.).
  • 13.
    Quando da instauração do regime militar em 1964, foi nomeado como interventor no estado do Amazonas o já então renomado historiador Arthur Cézar Ferreira Reis. Seu governo foi marcado pela implementação de uma política cultural voltada para a edição de autores e obras de referência sobre a Amazônia. Tal política cultural, por sua vez, contou com a colaboração de jovens aspirantes ao mundo intelectual local, dentre eles Márcio Souza (Amaral, 2015AMARAL, Vinícius Alves do. (2015), “Ou a revolta ou a obediência estúpida”: Aldísio Filgueiras frente à ditadura civil-militar (1964-1968). Manaus, dissertação de mestrado em História, Universidade Federal do Amazonas.).
  • 14.
    O conto foi publicado em uma versão em inglês no Grand Street Magazine dos Estados Unidos com o título “The truth is a seven-headed animal” [A verdade é um bicho de sete cabeças] (Hatoum, 2009HATOUM, Milton. (2009), A cidade ilhada; contos. São Paulo, Companhia das Letras., p. 122).
  • 15.
    Obras como Macunaíma, de Mário de Andrade, e Cobra Norato, de Raul Bopp, são exemplos eloquentes de como se deu o aproveitamento dos mitos amazônicos como motivo de criação literária em um ambiente de renovação estética.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2021
  • Aceito
    20 Set 2021
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