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Fundurb: arena de conflito ou discricionariedade? Uma análise da instrumentalização da política urbana em São Paulo

Fundurb: arena of conflict or discretion? An analysis of the instrumentalization of urban policies in São Paulo

Resumo

Este artigo busca compreender como mecanismos institucionais influenciam a intermediação de interesses envolvidos no conflito distributivo em torno dos recursos do Fundo de Desenvolvimento Urbano de São Paulo. Foi, portanto, analisado o processo decisório do fundo entre 2003 e 2016 para identificar arenas decisórias nas quais se deu a tomada de decisão, os atores envolvidos e seu papel no processo, os critérios utilizados na priorização de secretarias e projetos. Além disso, realizou-se uma análise quantitativa da distribuição entre pastas e áreas da política, que ocorreu a partir de 2007. Operando em uma lacuna teórica entre a ciência política e os estudos urbanos, o artigo empregou como referencial teórico a literatura neoinstitucionalista, particularmente a sociologia da ação pública. A pesquisa concluiu que as regras formais e informais que regem o processo decisório do Fundurb limitam parcialmente o comportamento dos atores e, dessa forma, estabelecem relações assimétricas de poder entre diferentes demandas e interesses. Além disso, foram identificados efeitos próprios e lógicas dissimuladas dessa instrumentalização, posto que, ao produzir inércia, tais mecanismos evitam questionamentos sobre a problematização em torno de uma política de desenvolvimento urbano, garantindo a utilização dos recursos.

Palavras-chave:
Política urbana; Orçamento; Neoinstitucionalismo; Instrumentalização de políticas públicas

Abstract

This article aims to understand how institutional mechanisms influence interest intermediation regarding the conflict around the resources of the Urban Development Fund of São Paulo. In order to accomplish that, we have analyzed the decision-making process of the fund between 2003 and 2016, aiming to identify arenas where decision-making took place, which actors are involved and which is their role in the process, as well as the criteria used in the prioritization of departments and projects. In addition, we have performed a quantitative analysis of the resource distribution between departments and policy areas, which started in 2007. Operating in a theoretical gap between political science and urban studies, the article used neoinstitutionalist literature as a theoretical reference, particularly the sociology of public action. The research concluded that the formal and informal rules that govern Fundurb’s decision-making process partially limit the behavior of the actors and, thus, establishing asymmetric power relations between different demands and interests. In addition, we have identified proper effects and disguised logic of this instrumentalization, given that such mechanisms avoid questioning on the problematization of urban development policies by producing inertia, guaranteeing resource allocation.

Keywords:
Urban policy; Budgeting; Neoinstitutionalism; Public policy instrumentalization

Introdução

A decisão alocativa dos recursos públicos é sempre permeada por disputas entre grupos de interesse, necessidades de diversas políticas públicas, regras legais e limitações financeiras e orçamentárias, um processo bastante conflitivo, em especial numa metrópole como São Paulo. Para Lehner (2019Lehner, F. (2019). The Political Economy of Distributive Conflict. In F. G. Castles, F. Lehner, & M. Schmidt, The Future of Party Government [Volume 3, Managing Mixed Economies, pp. 54-96]. European University Institute.), a capacidade dos governos para resolver conflitos distributivos é influenciada pelas estruturas institucionais dentro das quais estes são intermediados politicamente, resolvidos ou acomodados.

A importância de tal discussão se pauta na análise dos limites da discricionariedade nas decisões relativas ao orçamento público. O orçamento paulistano tem diversas fontes de recursos como tributos, transferências intergovernamentais e receitas de capital. Dentre as fontes de recursos diretamente associadas ao desenvolvimento urbano, destaca-se a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC). Essa fonte de recursos é utilizada para capturar o ganho do mercado imobiliário com o potencial construtivo dos terrenos e, em regra, destinada ao Fundo de Desenvolvimento de São Paulo (Fundurb). Os recursos destinados a esse fundo passam, então, por um complexo mecanismo decisório que é acompanhado e pressionado por diferentes grupos em disputa pelo financiamento de suas políticas públicas.

Dentro desse escopo, o presente artigo procura entender como o processo decisório que envolve os atores do Conselho Gestor do Fundurb influencia a solução do conflito distributivo em torno da distribuição desses recursos. Apesar de ter sido criado em 2002, o volume arrecadado nesse fundo somente permitiu a realização de investimentos a partir de 2007 e, desde então, embora houvesse um aumento de receitas anualmente, a observação dos saldos financeiros permite afirmar que o fundo foi efetivo na utilização dos recursos (Paim, 2019Paim, D. G. (2019). A instrumentalização da política urbana no município de São Paulo: uma análise do Fundo de Desenvolvimento Urbano [dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. doi:10.11606/D.100.2019.tde-17052019-133120.
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, pp. 71-75). Diferente de outras arenas, como o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo (CMDCA SP) (Tosi, 2016Tosi, G. M. A. T. (2016). O Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente como mecanismo de participação popular: análise de sua incidência na implementação de políticas públicas [dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo. https://doi.org/10.11606/D.100.2016.tde-29082016-123357.
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), o Fundurb executou a maior parte do que foi arrecadado, chegando a liquidar cumulativamente cerca de 68% do total orçado (SF, 2003-2019, apud Paim, 2019)1 1 As despesas não liquidadas no período seguem depositadas no fundo, aplicadas financeiramente, conforme critérios do Banco Central, para utilização posterior. . Gostaríamos de mostrar neste artigo, portanto, que o fundo permitiu ao município solucionar disputas em torno dos recursos sem que houvesse impasses por meio de “regras do jogo” formais e informais apesar das diferentes dimensões de conflito, o que é inerente ao processo alocativo segundo Lehner (2019Lehner, F. (2019). The Political Economy of Distributive Conflict. In F. G. Castles, F. Lehner, & M. Schmidt, The Future of Party Government [Volume 3, Managing Mixed Economies, pp. 54-96]. European University Institute.).

Para tanto, foi realizada pesquisa baseada em métodos qualitativos e quantitativos, com a utilização de fontes de dados documentais, como legislação, atas e extratos de reunião, dados da execução orçamentária e demonstrativos contábeis, além da realização de 14 entrevistas semiestruturadas com burocratas, políticos e acadêmicos envolvidos na gestão do Fundurb entre 2002 e 2016. O desenho de pesquisa adotado compreendeu a adoção de cinco categorias analíticas: A) Arenas decisórias, sua identificação e funcionamento; B) Atores envolvidos, sua identificação e papéis desempenhados; C) Questões em disputa, encerradas nos critérios de priorização de projetos e secretarias; D) Etapas decisórias; E) Alocação de recursos, orçados e executados.

A partir dos dados analisados na pesquisa, a revelação das dinâmicas e lógicas próprias do instrumento permitiu que se extraíssem conclusões acerca de seu impacto sobre a acomodação de interesses, que é relativamente estável ao longo dos anos. Diferentes arenas decisórias permitiam papéis distintos aos atores e conferiam-lhes, portanto, poderes assimétricos sobre a alocação de recursos, o que se refletia também em desequilíbrios entre áreas da política. As regras formais e informais também revelaram a exclusão de determinadas questões, uma vez que, de forma geral, constatou-se que o funcionamento do fundo e o contexto institucional em que ele se insere privilegiam questões financeiras a estritamente programáticas ou territoriais, embora deixem uma margem para prioridades políticas dos governantes.

Este artigo se divide em seis partes, além desta introdução: 1) apresentação do Fundurb e seu histórico; 2) arcabouço teórico utilizado na pesquisa; 3) aspectos metodológicos; 4) apresentação do estudo do Fundurb; 5) análise do caso e 6) considerações finais.

O Fundo de Desenvolvimento Urbano de São Paulo

O que se considera a política urbana brasileira, incluída na Constituição de 1988 por meio de emenda popular e regulamentada pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01), foi introduzida com uma narrativa ligada ao direito à cidade, à gestão democrática dos municípios e à promoção de justiça através da distribuição dos ônus e benefícios da urbanização (Brasil, 2001; Saule Júnior & Rolnik, 2001Saule Júnior, N., & Rolnik, R. (2001). Estatuto da Cidade: novos horizontes para a reforma urbana. Pólis. (Cadernos Pólis, 4).; Guimaraens, 2012Guimaraens, M. E. (2012). Estatuto da Cidade e Instrumentos de Política Urbana. Revista da Faculdade de Direito Uniritter, 1(11), 101-120.). Visando a recuperação da valorização fundiária pelo Estado, o estatuto permitiu a cobrança de contrapartida de proprietários de terrenos que construíssem acima do coeficiente de aproveitamento básico (relação entre área construída e área do terreno) em determinados bairros ou zonas. Os recursos provenientes dessa contrapartida poderiam ser utilizados para custear investimentos de acordo com a política de desenvolvimento urbano municipal.

Nesse contexto, foi aprovado na capital paulista o primeiro Plano Diretor Estratégico (PDE) em 2002, consubstanciado na lei nº 13.430 (São Paulo, 2002, apud Paim, 2019Paim, D. G. (2019). A instrumentalização da política urbana no município de São Paulo: uma análise do Fundo de Desenvolvimento Urbano [dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. doi:10.11606/D.100.2019.tde-17052019-133120.
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). Tal plano incluía a criação do Fundurb, definido legalmente como um instrumento contábil2 2 A Lei nº 4.320 de 1964 permite a criação de fundos especiais de despesa (arts. 71, 72, 73 e 74), e isso significa que os recursos ali alocados terão gestão orçamentária especial, sempre destinados ao objeto de sua criação e controlados por um conselho gestor (Lei nº 101/2000, art. 8º § único). destinado à realização de investimentos em projetos urbanos cuja principal fonte de receita é a contrapartida pelo direito de construir. São seis as áreas prioritárias que recebem recursos do fundo: (1) habitação de interesse social; (2) transporte coletivo; (3) ordenamento e direcionamento da estruturação urbana, que inclui infraestrutura, drenagem, saneamento, parques lineares e vias públicas; (4) equipamentos urbanos e comunitários; (5) proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico; e (6) a criação de unidades de preservação ambiental (São Paulo, 2002, 2014, apud Paim, 2019).

Importa ressaltar que o Fundurb também consiste em um espaço de discussão participativa sobre a alocação dos recursos em projetos nas diferentes áreas. O fundo é administrado por um Conselho Gestor, que aprova anualmente um plano financeiro, mediante solicitações das secretarias municipais que investem nas determinadas áreas prioritárias (São Paulo, 2002, 2014, apud Paim, 2019Paim, D. G. (2019). A instrumentalização da política urbana no município de São Paulo: uma análise do Fundo de Desenvolvimento Urbano [dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. doi:10.11606/D.100.2019.tde-17052019-133120.
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). Durante o período estudado, receberam recursos, em ordem alfabética: a Secretaria Municipal de Cultura; a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU); a Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB); a Secretaria Municipal de Infraestrutura e Obras (SIURB); a Secretaria Municipal de Subprefeituras (SMSP); a Secretaria Municipal de Transportes, e a Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente (SVMA).

As regras sobre o processo decisório passaram por alterações desde 2002, principalmente as relativas à composição do Conselho Gestor e à subvinculação de recursos. Entretanto, foi mantida sua estrutura.

Figura 1
Estrutura Simplificada do Conselho Gestor do Fundurb dividida entre membros com poder decisório (presidente e conselheiros) e o Secretário Executivo.

Sendo um fundo especial de despesa, o Fundurb segue normas da contabilidade pública e, para a execução dos recursos ali depositados, é necessário seguir o rito orçamentário da despesa com previsão, contratação, empenho, liquidação e pagamento3 3 Para melhor detalhamento do processo da despesa ver: Giacomoni (2009). .

Dessa maneira, o Fundurb teve destinado ao seu orçamento inicial acumuladamente, até 2016, o valor de R$ 3.551.774.601,254 4 Corrigido pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) para 2018. . A importância do fundo também fica evidente se considerada a posição relativa desse valor em relação à execução orçamentária das secretarias municipais que utilizam o recurso, uma vez que tais recursos representaram, por exemplo, quase 50% do valor total liquidado pela Secretaria Municipal de Habitação em 2016 (SF, 2003-2019, apud Paim, 2019Paim, D. G. (2019). A instrumentalização da política urbana no município de São Paulo: uma análise do Fundo de Desenvolvimento Urbano [dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. doi:10.11606/D.100.2019.tde-17052019-133120.
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). Além disso, desde a sua criação, o Fundurb representa uma parcela considerável dos investimentos feitos pelo município de São Paulo, ainda que o volume arrecadado não seja tão expressivo - em torno de 0,5% do orçamento (Santoro et al., 2016Santoro, P. F., Lopes, M., & Lemos, L. L. (2016). Para onde vão os recursos do Fundurb? LabCidade.). No período entre 2005 e 2013, a utilização de recursos do Fundurb equivalia, em média, a 7% do valor investido pelo município (SF, 2003-2019, apud Paim, 2019).

Do referencial teórico

A pesquisa que deu origem a este artigo opera em uma lacuna entre estudos urbanos e a ciência política. Adota-se, portanto, a concepção de Marques (2017Marques, E. (2017). Em busca de um objeto esquecido: A política e as políticas do urbano no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32(95). https://doi.org/10.17666/329509/2017.
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, 2018), que considera a política e as políticas do urbano, compreendidas como “ações, negociações, alianças e conflitos pelas políticas públicas urbanas e pelo poder das (e nas) instituições políticas da cidade, assim como essas próprias instituições, suas organizações e atores” (Marques, 2017, p. 7).

Derivado da discussão sobre a autonomia do Estado, o debate sobre a instrumentalização de políticas públicas tem origem em correntes neoinstitucionalistas, que adotam uma abordagem relacional baseada no retorno do interesse pelo funcionamento do Estado. Nessa perspectiva, o Estado é capaz de formular e perseguir objetivos próprios, ainda que políticas públicas sejam resultado da interação entre Estado e sociedade (Skocpol, 1985Skocpol, T. (1985). Bringing the state back in: strategies of analysis in current research. In P. Evans, D. Ruesschmeyer, & T. Skocpol (orgs.). Bringing the state back in (pp. 3-43). Cambridge University Press.). Ao considerar instituições formais e informais que influenciam o comportamento individual a partir de valores e significados compartilhados, o neoinstitucionalismo comporta, em si, diferentes abordagens (Peters, 2012Peters, B. G. (2012). Institutional theory in Political Science - the New Institutionalism (3a ed.). The Continuun International Publishing Group.). Hall e Taylor (1996Hall, P. A., & Taylor, R. C. R. (1996). Political Science and the Three New Institutionalisms. Political Studies, (44), 936-957.) dividem a corrente institucionalista em: histórico, escolha racional e sociológico.

Os institucionalistas históricos atentam-se a conjunturas críticas e processos de longo prazo, explicando as instituições a partir da noção de “path dependence”, ou “dependência do caminho”, processo pelo qual a própria lógica institucional reforça a perpetuação de padrões e permite a identificação de estilos de política pública, o que torna desigualdades iniciais componentes da dinâmica das instituições (Hall & Taylor, 1996Hall, P. A., & Taylor, R. C. R. (1996). Political Science and the Three New Institutionalisms. Political Studies, (44), 936-957.; Skocpol & Pierson, 2002Skocpol, T., & Pierson, P. (2002). Historical Institutionalism in Contemporary Political Science. In I. Katznelson, H. V. Milner. Political Science: State of the Discipline (pp. 693-721). W.W. Norton.). O institucionalismo da escolha racional, por outro lado, baseia-se na ideia de que o comportamento dos indivíduos tende a buscar a maximização dos próprios interesses, porém as instituições oferecem limites externos a eles que atuam sobre a estratégia a ser adotada ao modificar custos de transação envolvidos (Dimaggio & Powell, 1991Dimaggio, P., & Powell, W. (1991) Introduction. In P. Dimaggio, & W. Powell (eds.). The new institutionalism in organizational Analysis (pp. 1-38). University of Chicago Press.; Hall & Taylor, 1996; Steinmo et al., 1997Steinmo, S., Thelen, K., & Longstreth, F. (1997). Structuring politics: historical institutionalism in comparative analysis. Cambridge University Press.; Peters, 2012Peters, B. G. (2012). Institutional theory in Political Science - the New Institutionalism (3a ed.). The Continuun International Publishing Group.). A abordagem sociológica, por sua vez, também se preocupa com a perpetuação de assimetrias de poder na sociedade a partir de sistemas compartilhados de regras, enfatizando a cultura e sua dimensão cognitiva (Dimaggio & Powell, 1991; Hall & Taylor, 1996).

A partir do conceito de instrumentalização da ação pública, isto é, a escolha e uso de instrumentos de políticas públicas e suas consequências (Lascoumes & Le Galès, 2012Lascoumes, P., & Le Galès, P. (2012). A ação pública abordada pelos seus instrumentos. Revista Pós Ciências Sociais, 9(18), 19-44.), é possível analisar instrumentos da política urbana e como as “regras do jogo” podem favorecer ou desfavorecer diferentes atores (Dimaggio & Powell, 1991Dimaggio, P., & Powell, W. (1991) Introduction. In P. Dimaggio, & W. Powell (eds.). The new institutionalism in organizational Analysis (pp. 1-38). University of Chicago Press.; Hall & Taylor, 1996Hall, P. A., & Taylor, R. C. R. (1996). Political Science and the Three New Institutionalisms. Political Studies, (44), 936-957.). Baseando-se na noção de instrumento como um tipo de instituição capaz de influenciar o comportamento dos atores, o institucionalismo sociológico explica a ação pública a partir de seus instrumentos, objetos técnicos que, ainda assim, encerram disputas políticas (Lascoumes & Le Galès, 2007, 2012). Os instrumentos apresentam uma dimensão cognitiva, produzindo efeitos específicos independentes dos seus objetivos inicialmente descritos ou declarados, o que compromete sua neutralidade axiológica, uma vez que exprimem valores e interpretações acerca dos problemas e situações do contexto em que se inserem (Lascoumes & Le Galès, 2012).

Tal perspectiva, ao considerar instrumentos como meios para se governar, questiona o pragmatismo e naturalidade de sua escolha e uso e evita análises normativas. Ao se considerar instrumentos como instituições, faz-se possível identificar os mecanismos postos por suas regras formais e informais no que diz respeito às representações do problema em questão e à influência exercida sobre as estratégias de grupos ou atores que pleiteiam demandas (Lascoumes & Le Galès, 2012Lascoumes, P., & Le Galès, P. (2012). A ação pública abordada pelos seus instrumentos. Revista Pós Ciências Sociais, 9(18), 19-44.). Portanto, as “molduras” colocadas por um instrumento e seu uso revelam lógicas dissimuladas pela sua naturalização como objetos técnicos.

Segundo Marques (2017Marques, E. (2017). Em busca de um objeto esquecido: A política e as políticas do urbano no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32(95). https://doi.org/10.17666/329509/2017.
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, p. 8), “Diferentes formatos criam condições diversas de insulamento, levam à produção de capacidades e influenciam os tipos de conflito político”. No caso específico de instrumentos que determinam a utilização de recursos destinados à política urbana, importa observar a forma como os constrangimentos e possibilidades oferecidas por estes podem beneficiar determinados atores ou interesses e excluir outros, intermediando diferentes interesses.

Tal discussão corrobora com o debate sobre a governança do orçamento público colocado por Peres (2018Peres, U. D. (2018). Análise da Governança do Orçamento Público. In E. C. L. Marques. (Org.). As políticas do urbano em São Paulo (pp. 111-140). Editora Unesp.). O processo orçamentário é político por excelência e permeado por diferentes camadas institucionais (North, 1990 apud Peres, 2018). Conforme Peres (2018), a orçamentação é um processo conformado por questões de natureza histórica, política e econômica, e o entrelaçamento de regras formais e informais molda uma estrutura de poder em níveis micro e macroinstitucional.

No nível macro estão regras legais, constitucionais e controles financeiros que impõem aos agentes (governantes e governados) limites à sua atuação na definição, negociação e barganha em torno de receitas e despesas orçamentárias. Essa negociação ocorre no nível micro-orçamentário no qual regras informais de conduta, como pertencimento burocrático, respeito hierárquico, domínio da complexidade técnica tornam alguns atores mais capacitados que outros no enfrentamento do conflito distributivo que ocorre na arena orçamentária (Peres, 2018Peres, U. D. (2018). Análise da Governança do Orçamento Público. In E. C. L. Marques. (Org.). As políticas do urbano em São Paulo (pp. 111-140). Editora Unesp.). Este conflito é marcado pelo maior ou menor nível de escassez de receitas (Schick, 1976Schick, A. (1976). O PPB e o orçamento incremental. Revista de Administração Pública, 10(2), 65-84.).

No processo orçamentário, a existência de espaços protegidos pela vinculação de receita ou regras de obrigatoriedade de execução de despesa criam uma diferenciação de disputa por recursos. Comunidades de políticas públicas que têm recursos pré-definidos ficam menos sujeitas aos limites impostos pela escassez geral de receitas e protegidas da disputa na arena da política orçamentária. Nesse sentido, o Fundurb define regras para aplicação de recursos no desenvolvimento urbano e, dessa forma, organiza-se como um instrumento que define, em si, um espaço de receitas com proteção dentro da arena orçamentária. Há regras e limites, por sua vez, para o uso dos recursos desse fundo. Portanto, a discricionariedade dos agentes públicos estaria por elas limitada, não apenas no que diz respeito aos objetivos da criação do fundo, mas seus usos e a própria representação dos problemas por ele colocados e a permeabilidade a pressões e conflitos externos.

Como um instrumento de política pública, o Fundurb é uma instituição e contém regras formais e informais que moldam o comportamento de atores (Dimaggio & Powell, 1991Dimaggio, P., & Powell, W. (1991) Introduction. In P. Dimaggio, & W. Powell (eds.). The new institutionalism in organizational Analysis (pp. 1-38). University of Chicago Press.; Hall & Taylor, 1996Hall, P. A., & Taylor, R. C. R. (1996). Political Science and the Three New Institutionalisms. Political Studies, (44), 936-957.; Immergut, 1998Immergut, E. (1998). The theoretical core of the new institutionalism. Politics & Society, 26(1), 5-34. https://doi.org/10.1177/0032329298026001002
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; Lascoumes & Le Galès, 2007Lascoumes, P., & Le Galès, P. (2007). Introduction: Understanding Public Policy through its instruments - from the nature of instruments to the sociology of public policy instrumentation. Governance: An International Journal of Policy, Administration and Institution, 20(1), 1-21., 2012). Dessa forma, para compreendê-las, é preciso identificar as esferas onde há tomada de decisão para especificar os atores que fazem parte do processo e seu papel (Peres, 2018Peres, U. D. (2018). Análise da Governança do Orçamento Público. In E. C. L. Marques. (Org.). As políticas do urbano em São Paulo (pp. 111-140). Editora Unesp.). A constatação das questões em disputa no âmbito do instrumento, por sua vez, permite estabelecer o conteúdo que é despolitizado, isto é, demandas afastadas da arena política (Lascoumes & Le Galés, 2007, 2012).

Faz-se necessário também identificar os diferentes momentos que decisões são tomadas. Para Giacomoni (2009Giacomoni, J. (2009). Orçamento público (14a ed.). Editora Atlas.) o processo orçamentário pode ser definido como um ciclo com 4 fases: a elaboração da proposta orçamentária; a aprovação da lei orçamentária; execução orçamentária; e controle da execução orçamentária. Dessa forma, torna-se possível capturar o comportamento dos atores em momentos distintos, levando em consideração a anualidade do processo orçamentário.

Por fim, a análise da alocação e utilização dos recursos do Fundurb é fundamental para a identificação das demandas atendidas e o padrão de distribuição dos recursos. Isto porque importa não apenas o processo, mas o que ele enseja, uma vez que as decisões tomadas configuram o uso do instrumento, que pode revelar lógicas dissimuladas em sua concepção (Lascoumes & Le Galés, 2012Lascoumes, P., & Le Galès, P. (2012). A ação pública abordada pelos seus instrumentos. Revista Pós Ciências Sociais, 9(18), 19-44.). Para entender por que e quando os governos são mais efetivos no manejo de suas atividades econômicas, é preciso investigar o impacto de diferentes estruturas institucionais na acomodação de interesses (Lehner, 2019Lehner, F. (2019). The Political Economy of Distributive Conflict. In F. G. Castles, F. Lehner, & M. Schmidt, The Future of Party Government [Volume 3, Managing Mixed Economies, pp. 54-96]. European University Institute.).

Método5 5 Para maior detalhamento, vide Paim, 2019, pp. 47-55.

Realizou-se um estudo de caso combinando técnicas quantitativas e qualitativas para analisar o processo de alocação dos recursos do Fundurb e sua utilização pelos diferentes órgãos municipais entre a sua criação, em 20026 6 Embora tenha sido criado em 2002, os recursos do Fundurb apenas foram utilizados a partir de 2007. Dessa forma, a presente análise focou-se no período de 2007 a 2016. , e o fim do último ciclo eleitoral completo em 2016.

Primeiramente, investigaram-se as arenas decisórias, buscando compreender o papel do Conselho Gestor, como instância formal de deliberação, e também identificar outras esferas que contribuíram para a tomada de decisão no período; além dos diferentes atores participantes em cada arena. Informações sobre os critérios de priorização de projetos e secretarias possibilitou o levantamento das questões em disputa. Arenas, atores e questões foram então posicionados de acordo com as etapas de um processo anual específico do instrumento. Para captar o uso do instrumento, analisou-se a distribuição de recursos entre secretarias e áreas da política7 7 A classificação por funções foi utilizada como proxy para as áreas da política. Embora não corresponda exatamente às áreas prioritárias do fundo, ela permite complementar a análise por secretaria. Para mais informações, vide Paim, 2019, pp. 84-85. durante o período estudado, considerando-se valores orçados, empenhados e liquidados8 8 Os estágios da despesa pública são definidos pela Lei nº 4.320/1964. O art. 58 define empenho como ato “que cria para o Estado obrigação de pagamento pendente ou não de implemento de condição”, e a liquidação, segundo o art. 63, “consiste na verificação do direito adquirido pelo credor”, ficando, portanto, condicionada à entrega ou prestação do bem ou serviço por parte do particular. Por fim, o pagamento consiste na autorização dada pelo ordenador de despesa para a entrega de valores liquidados. .

Para isso, utilizaram-se dados coletados a partir da legislação municipal9 9 (São Paulo, 2002, 2003a, 2003b, 2004, 2006, 2008, 2010, 2013, 2014, 2016, apud Paim, 2019). , de atas e extratos de reuniões do CG-Fundurb10 10 (SMUL, 2003, 2004, 2006, 2007, 2008 2009a, 2009b, 2010a, 2010b, 2011a, 2011b, 2011c, 2011d, 2011e, 2012a, 2012b, 2012c, 2012d, 2012e, 2012f, 2012g, 2013a, 2013b, 2013c, 2013d, 2013e, 2013f, 2014a, 2014b, 2014c, 2014d, 2015a, 2015b, 2015c, 2015d, 2015e, 2016a, 2016b, 2016c, 2016d, 2016e, 2016f, 2016g, 2016h, apud Paim, 2019). , de entrevistas, da execução orçamentária do município e de demonstrativos contábeis do fundo. A legislação contém as regras formais que disciplinam tanto a criação como o funcionamento do fundo. Informações presentes em atas e extratos de reuniões foram utilizadas para entender a dinâmica das reuniões do CG-Fundurb no decorrer dos anos. As entrevistas semiestruturadas com burocratas, políticos e acadêmicos envolvidos na gestão do Fundurb, por sua vez, permitiram captar a percepção dos atores envolvidos no processo de alocação de recursos11 11 A seleção de entrevistados foi realizada por meio de levantamento dos participantes de reuniões do CG-Fundurb combinado com o método “bola de neve”, em que os entrevistados indicaram outras possíveis entrevistas. . A análise de dados da execução orçamentária permitiu extrair informações a respeito dos valores orçados, atualizados, empenhados e liquidados para o órgão, por cada secretaria destinatária desses recursos, por função de governo e por projeto12 12 Os dados coletados foram ajustados pelo IPCA 2018. . Por fim, o fluxo financeiro do fundo foi analisado a partir de informações sobre os valores arrecadados, empenhados por função e saldos financeiros ao final dos exercícios, contidas nos Balancetes do fundo13 13 (SMUL, 2011f, 2011g, 2012h, 2013g, 2014e, 2015f, 2016i, apud Paim, 2019). .

Quadro 1
Modelo analítico da pesquisa

Estudo de caso: o Fundurb

Esta parte do artigo se dedica à apresentação dos dados obtidos a partir da pesquisa. Para isso, a descrição do caso será feita a partir das categorias analíticas expostas no quadro acima.

4.1 Das arenas decisórias e atores

A análise das competências do Conselho Gestor do Fundurb permite identificar três papéis desempenhados pelo conselho: (1) deliberativo; (2) fiscalizador; e (3) disciplinador. Dessa forma, cabe a ele não só aprovar os Planos Anuais de Aplicação de Recursos do fundo, elaborados por sua secretaria executiva, como acompanhar a aplicação dos recursos e ditar normas e procedimentos. Decisões tomadas em reuniões do conselho exigem maioria simples, cabendo ao presidente do conselho o desempate.

Durante o período estudado, como ilustrado anteriormente, diferente da composição, a estrutura se manteve. O conselho era presidido pela pasta gestora do fundo, que tinha um papel diferenciado no direcionamento geral dos investimentos, evidenciado pelas entrevistas. Outros membros do poder público, que se dividiam em representantes de secretarias municipais e, brevemente, empresas públicas e subprefeituras14 14 Até 2006 participaram também a Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (COHAB) e a Empresa Municipal de Urbanização (EMURB), e oito delegados de subprefeituras. , somavam-se a representantes da sociedade civil. Por fim, sem poder de voto, o secretário executivo, burocrata responsável pela gestão diária do fundo, tinha um papel com menos discricionariedade que os demais.

As secretarias municipais de Finanças (SF), Governo (SMG), SIURB e SEHAB eram sempre representadas. Foram adicionadas posteriormente a Secretaria Municipal de Transportes (SMT), em 2003, e a Secretaria Municipal de Cultura (SMC), em 2008, mas ambas deixaram de fazer parte do conselho em 2016, juntamente com a Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente (SVMA) e a Secretaria Municipal de Subprefeituras (SMSP). As secretarias “meio”, que correspondiam à pasta de Planejamento (SEMPLA)15 15 Durante o período estudado, houve a cisão das funções de planejamento urbano e orçamentário, o que ocasionou a inclusão posterior da SEMPLA no conselho. Para mais detalhes, vide Paim, 2019, p. 57. , SF e SMG, não recebiam recursos do fundo e, “por terem atribuições ligadas ao planejamento orçamentário e o controle do fluxo de recursos, desembolso financeiro e reestimativa da receita do fundo ao longo do ano”, nas palavras do entrevistado nº10, distinguiam-se por realizar um papel de coordenação em relação à estratégia de investimentos da prefeitura de forma geral. Por outro lado, as secretarias “fim” ou setoriais, quais sejam SEHAB, SIURB, SMSP, SMT, SVMA e SMC16 16 Apenas na gestão Haddad, a SMDU, além de pasta gestora, também foi contemplada no orçamento. , apresentavam suas demandas por recursos de investimento, votavam os planos de utilização e prestavam contas sobre o que era executado.

No tocante à participação formal da sociedade civil no conselho, embora o Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU) estivesse sempre representado, apenas após o PDE de 2014 passou a haver uma maior representação direta da sociedade civil organizada. A partir de então, o conselho tornou-se paritário e metade dos membros eram oriundos de conselhos municipais. Entretanto, embora tivessem formalmente o poder de voto e de participar das reuniões com apontamentos de caráter fiscalizatório, os representantes do CMPU não tinham um papel central nas decisões sobre a alocação de recursos. As entrevistas apontaram que as reuniões eram protagonizadas pelos representantes do governo e até o envio anual dos planos de investimentos para o CMPU era feito apenas para ciência.

O conselho, entretanto, não era o único âmbito de decisão. Já em sua primeira reunião, em 2003, o então presidente apontou a ambivalência do locus decisório do CG-Fundurb, que é condicionado pelo plano de governo da gestão. Para o entrevistado nº 9, “mal comparando, o Conselho Gestor funcionava como um cartório de certificação das decisões tomadas pela administração central sobre os recursos do fundo”. A maioria dos entrevistados apontou para a realização de reuniões prévias com os secretários da pasta gestora do fundo e das secretarias meio para decidir quais demandas seriam levadas para o conselho ou até em que já eram definidas parcelas que caberiam a cada secretaria. Por exemplo, durante a gestão do prefeito Fernando Haddad, as discussões aconteciam no âmbito da chamada Junta Orçamentária Financeira (JOF), órgão criado em 2013 (São Paulo, 2013, apud Paim, 2019Paim, D. G. (2019). A instrumentalização da política urbana no município de São Paulo: uma análise do Fundo de Desenvolvimento Urbano [dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. doi:10.11606/D.100.2019.tde-17052019-133120.
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) que reunia semanalmente SEMPLA, SF, SGM e a Secretaria de Negócios Jurídicos (SNJ). Ademais, conforme relataram os entrevistados, sem que configurasse uma instância decisória formalmente estabelecida, os próprios prefeitos tinham um papel decisório incidental, geralmente de arbítrio em disputas não solucionadas entre secretarias.

4.2 Das questões em disputa

Estabelecido de forma clara pela disciplina jurídica do Fundurb, o rol de áreas da política urbana que devem receber investimentos não é passível de discussão ou disputa política. No entanto, a alocação exige uma escolha no caso concreto para optar por privilegiar determinadas secretarias ou projetos específicos. Dessa forma, foram identificados critérios de priorização dos investimentos de ordem: i) financeira, ligados aos fluxos próprios das finanças municipais; e ii) programática, relacionados aos objetivos do Fundurb e à disputa pelo significado de se investir no desenvolvimento urbano da cidade. De acordo com os últimos, era levado em consideração quais áreas da política merecem destaque e quais áreas da cidade devem receber investimentos, isto é, o caráter redistributivo do fundo em relação à arrecadação.

Geralmente, observou-se uma prevalência de critérios financeiros, como a velocidade de utilização dos recursos. Obras em andamento em secretarias com maior capacidade para executar recursos tinham preferência e a disponibilidade de recursos para investimentos com outras fontes de receita do município, também era considerada. Na verdade, para a maior parte dos entrevistados, havia uma inversão do processo decisório, uma vez que cada pasta definia o próprio plano de investimento geral, o qual era submetido para análise da junta orçamentária, sendo o Fundurb apenas uma das fontes que poderiam fornecer os recursos.

Especificamente no que diz respeito à localização dos projetos, conforme apontado por entrevistados, embora tenha havido um esforço durante a gestão do prefeito Fernando Haddad de tornar público o mapeamento dos projetos e estabelecer a redistribuição como um critério (SMUL, 2013c, p. 1; SMUL, 2015b, apud Paim, 2019Paim, D. G. (2019). A instrumentalização da política urbana no município de São Paulo: uma análise do Fundo de Desenvolvimento Urbano [dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. doi:10.11606/D.100.2019.tde-17052019-133120.
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), a questão não pode ser considerada um objeto de disputa política. Isto porque, no âmbito do processo decisório de alocação de recursos do fundo, discussões técnicas dentro das secretarias definiam a distribuição dos recursos no território em casos concretos.

Em 2014, entretanto, houve um aumento de constrangimentos formais ao processo decisório. Até então, os recursos eram distribuídos livremente entre as secretarias e áreas da política pertinentes ao rol determinado. Com o advento do novo Plano Diretor Estratégico, criaram-se subvinculações, restringindo ainda mais a discricionariedade dos atores em todas as arenas identificadas. Foram introduzidos limites mínimos obrigatórios para subáreas dentro das previamente estabelecidas: 30% para a “aquisição de terrenos destinados a produção de Habitação de Interesse Social” em determinadas zonas da cidade; e 30% para “a implantação dos sistemas de transporte público coletivo, cicloviário e de circulação de pedestres” (São Paulo, 2014, apud Paim, 2019Paim, D. G. (2019). A instrumentalização da política urbana no município de São Paulo: uma análise do Fundo de Desenvolvimento Urbano [dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. doi:10.11606/D.100.2019.tde-17052019-133120.
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). Conforme relatos dos entrevistados, é possível afirmar que a mudança legislativa tenha surgido da confluência entre demandas da sociedade civil organizada e um posicionamento do próprio governo por uma agenda de desenvolvimento urbano que priorizasse Habitação e Transporte. Dessa forma, a disponibilidade de recursos para as duas áreas, cujos projetos são implementados por SEHAB e SIURB, passou a pautar a alocação e o restante era partilhado entre outras secretarias, em detrimento de áreas como Cultura, gerida pela SMC (SMUL, 2015a, apud Paim, 2019).

4.3 Etapas decisórias e a alocação de recursos17 17 Embora tenham sido identificadas quatro etapas do processo alocativo de recursos do fundo (1- Aprovação da distribuição entre secretarias para o exercício seguinte; 2 - Aprovação da lei orçamentária anual; 3 - Atualização do orçamento ao longo do ano, isto é, remanejamentos entre secretarias e projetos; e 4 - Execução do orçamento), o contraste do resultado de reuniões com as leis orçamentárias anuais mostrou que, na etapa pertinente ao Poder Legislativo, não se alteraram significativamente os valores do Fundurb. Portanto, a análise quantitativa foi feita a partir da comparação entre: (1) os valores estabelecidos na lei orçamentária, (2) valores atualizados ao longo do ano; e também o efetivamente executado, entre valores (3) empenhados e (4) liquidados. Importa ressaltar que a análise dos dados da execução orçamentária permitiu o apontamento de tendências apenas, uma vez que os dados disponíveis se encontram incompletos. Para maiores detalhes, vide Paim, 2019.

A partir de 200718 18 Embora o recorte temporal da pesquisa coincida com a criação do fundo, em 2002, até 2006, ainda que valores simbólicos de R$ 1.000,00 tenham sido orçados, não foram realizados investimentos. , passaram a receber recursos: SMC, SEHAB, SIURB, SVMA, SMT e SMDU - esta apenas a partir de 2014 - e o montante dos investimentos realizados anualmente variou em função da arrecadação, que é determinada também por fatores como o aquecimento e desaquecimento do mercado imobiliário. Para compreender a distribuição de recursos, por outro lado, é preciso comparar valores destinados e também executados por cada secretaria e por cada área da política durante o período.

Tabela 1
Distribuição de recursos do Fundurb por secretaria

De forma geral, independente do prefeito ou partido político que ocupava a gestão municipal, SEHAB e SIURB foram priorizadas durante todo o período, recebendo mais recursos no orçamento inicial, tendência que se manteve com a atualização do orçamento. Vale destacar que houve um incremento para ambas as pastas a partir de 2014 relacionado à subvinculação estipulada pelo PDE do mesmo ano. Estas também foram as que mais executaram recursos em relação às outras secretarias. Certos anos, SEHAB chegou a empenhar e liquidar quase 100% do orçamento atualizado, enquanto SIURB empenhou, em média, 86% e liquidou 73% dos valores atualizados.

SMSP, SMC e SVMA, em contrapartida, observaram uma participação mediana. Entretanto, a análise da variação do peso relativo de SMC e SVMA ao longo dos anos revela a prioridade dada a tais pastas nas duas gestões de Gilberto Kassab, comparando-se à gestão do prefeito Fernando Haddad.

Foram beneficiadas com menos recursos, relativamente, SMT e SMDU, tanto no orçamento inicial como atualizado. Embora a função Transporte represente uma das mais importantes áreas da política na implementação do fundo, como será demonstrado em seguida, a pasta recebeu, em média, 7% dos recursos no orçamento inicial de cada ano, reduzidos a 6% quando atualizados. A baixa participação da secretaria explica-se tanto pela concorrência por projetos de transporte com SIURB e SMSP, no âmbito do fundo, como pela transferência da execução de projetos para a Companhia de Engenharia e Tráfego (CET) com recursos de outros fundos19 19 Para maiores detalhes, vide Paim, 2019, pp. 79-80. . SMDU, por sua vez, como pasta gestora do fundo, não pode ser considerada uma secretaria setorial e teve uma participação peculiar em projetos estruturantes nos últimos anos da gestão Haddad20 20 Para maiores detalhes, vide Paim, 2019, pp. 80-81. . Além disso, as duas secretarias também executaram uma menor parte de seus respectivos limites orçamentários, em média, quando comparado a outras pastas.

Tabela 2
Distribuição de recursos do Fundurb por função

A análise da distribuição de recursos no orçamento por função, por sua vez, tornou evidente um ângulo diferente. As funções Habitação, Cultura e Gestão Ambiental correspondem exatamente às secretarias SEHAB, SMC e SMVA, respectivamente. Por isso, o padrão se repete: Habitação como a função que recebe mais recursos, Cultura e Gestão Ambiental com uma participação mediana, embora com tratamentos distintos nas duas gestões da prefeitura. Entretanto, o impacto das alterações legais introduzidas pelo PDE de 2014 fica evidente na análise de valores destinados às outras funções. Saneamento, contida em projetos da privilegiada SIURB, chegou a concentrar 46% do orçamento inicial do fundo em 2014, mas depois perdeu espaço significativo e não superou 10% do total destinado ao fundo, ainda que a secretaria correspondente mantivesse parte significativa do total de investimentos.

A função Transporte, diferentemente de SMT, observou aumento expressivo em sua participação após a subvinculação de recursos para mobilidade urbana. De forma semelhante, a participação de Urbanismo aumentou nos últimos anos, principalmente com a atualização do orçamento. Isso ocorreu tanto por uma decisão pela realização de projetos considerados estratégicos pela SMDU quanto pela implementação de projetos relacionados à reforma de passeios públicos, que dividem com a função Transporte os recursos para mobilidade.

Gráfico 1
Distribuição média de recursos liquidados por função. Comparação entre o percentual de recursos do Fundurb liquidados por função em dois períodos: 2007-2012 e 2013-2016.

A análise do que foi efetivamente liquidado ao fim do processo orçamentário revela padrões distintos de priorização das áreas pelas gestões da prefeitura. Fica claro o tratamento distinto conferido a Gestão Ambiental e Cultura, priorizados pela gestão de Gilberto Kassab, transporte e habitação, que, por outro lado, ganharam importância durante a gestão de Fernando Haddad.

Análise do caso

A partir dos dados analisados na pesquisa, foi possível caracterizar e compreender as regras, tanto formais como informais, que regem a alocação de recursos do Fundurb e afetam as escolhas políticas, no sentido de Dimaggio & Powell (1991Dimaggio, P., & Powell, W. (1991) Introduction. In P. Dimaggio, & W. Powell (eds.). The new institutionalism in organizational Analysis (pp. 1-38). University of Chicago Press.), Hall & Taylor (1996Hall, P. A., & Taylor, R. C. R. (1996). Political Science and the Three New Institutionalisms. Political Studies, (44), 936-957.) e Immergut (1998Immergut, E. (1998). The theoretical core of the new institutionalism. Politics & Society, 26(1), 5-34. https://doi.org/10.1177/0032329298026001002
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). Além disso, os resultados concretos desse processo, isto é, a distribuição dos recursos, completaram a análise com a observação do uso do Fundurb enquanto instrumento como preconizado por Lascoumes & Le Galès (2007Lascoumes, P., & Le Galès, P. (2007). Introduction: Understanding Public Policy through its instruments - from the nature of instruments to the sociology of public policy instrumentation. Governance: An International Journal of Policy, Administration and Institution, 20(1), 1-21., 2012). Tal análise revelou as dinâmicas e lógicas próprias e lançou luz sobre sua influência na resolução do conflito distributivo em torno dos recursos destinados à política urbana, ou políticas do urbano, no município de São Paulo ao afastar do campo político discussões sobre seu caráter redistributivo tanto em relação a diferentes atores como áreas da política e no território.

A investigação das arenas decisórias onde era deliberada a alocação de recursos do fundo e dos atores que delas participam apontou instâncias distintas do formalmente estipulado Conselho Gestor onde se concentra o poder de determinados atores, confirmando como a configuração pode ensejar desequilíbrios entre centros de interesses dentro do processo (Dimaggio & Powell, 1991Dimaggio, P., & Powell, W. (1991) Introduction. In P. Dimaggio, & W. Powell (eds.). The new institutionalism in organizational Analysis (pp. 1-38). University of Chicago Press.; Hall & Taylor, 1996Hall, P. A., & Taylor, R. C. R. (1996). Political Science and the Three New Institutionalisms. Political Studies, (44), 936-957.). O processo decisório do Fundurb, portanto, determina parcialmente o comportamento dos atores (Immergut, 1998Immergut, E. (1998). The theoretical core of the new institutionalism. Politics & Society, 26(1), 5-34. https://doi.org/10.1177/0032329298026001002
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; Lascoumes & Le Galés, 2007Lascoumes, P., & Le Galès, P. (2007). Introduction: Understanding Public Policy through its instruments - from the nature of instruments to the sociology of public policy instrumentation. Governance: An International Journal of Policy, Administration and Institution, 20(1), 1-21.). Embora os secretários agissem estrategicamente segundo o interesse de suas pastas, a regra tácita “costume” de privilegiar o Plano de Governo vigente reduzia a margem de negociação (Immergut, 1998), o que suporta as abordagens cálculo e cultural (Hall & Taylor, 1996).

Além disso, a identificação de distintos papéis exercidos pelos atores envolvidos também permitiu constatar a existência de assimetrias de poder entre eles (Dimaggio & Powell, 1991Dimaggio, P., & Powell, W. (1991) Introduction. In P. Dimaggio, & W. Powell (eds.). The new institutionalism in organizational Analysis (pp. 1-38). University of Chicago Press.). Pode-se afirmar, portanto, que a escolha e uso do Fundurb reforçaram determinados privilégios - ainda que estes possam ser considerados estruturais, isto é, não originados a partir do fundo. Dessa forma, é possível entender que o Fundurb opera na intermediação de interesses de um modo descrito por Lehner (2019Lehner, F. (2019). The Political Economy of Distributive Conflict. In F. G. Castles, F. Lehner, & M. Schmidt, The Future of Party Government [Volume 3, Managing Mixed Economies, pp. 54-96]. European University Institute.) como “corporativismo fraco”, em que há participação institucionalizada de diferentes atores na tomada de decisão, mas o escopo aberto à barganha coletiva é pequeno.

Embora formalmente imbuídos do poder de participar das reuniões, diferentes atores apresentam poder de influência distinto sobre o que é decidido no âmbito do fundo devido a sua lógica. As secretarias setoriais, onde se concentram interesses específicos das diferentes áreas da política, podem apresentar demandas, mas não influem na proporção de recursos recebidos. Da mesma forma, representantes da sociedade civil exercem pouca influência, devido, segundo os entrevistados, a uma assimetria de informações, à própria natureza abrangente do fundo e ao formato constitutivo do conselho gestor, que não permite a discussão de projetos concretos. O maior poder decisão das secretarias meio, principalmente SF, dava-se desde a alocação até a liberação dos recursos, para além do Conselho Gestor. Entretanto, ao se relativizar conclusões pautadas em análises de instituições isoladas, como preconizam Hall & Taylor (1996Hall, P. A., & Taylor, R. C. R. (1996). Political Science and the Three New Institutionalisms. Political Studies, (44), 936-957.), percebe-se que isto se deve, em parte, ao contexto institucional mais amplo e ao processo orçamentário da prefeitura como um todo, no sentido de Peres (2018Peres, U. D. (2018). Análise da Governança do Orçamento Público. In E. C. L. Marques. (Org.). As políticas do urbano em São Paulo (pp. 111-140). Editora Unesp.).

Conforme analisa Peres (2018Peres, U. D. (2018). Análise da Governança do Orçamento Público. In E. C. L. Marques. (Org.). As políticas do urbano em São Paulo (pp. 111-140). Editora Unesp.), o regramento que disciplina o orçamento paulistano reduz a margem de discricionariedade política, diminuindo o espaço dos investimentos em infraestrutura. Dessa forma, é possível entender que, por ser direcionado a esse investimento, o Fundurb torna-se objeto especial de controle pelo núcleo político do governo e pela JOF.

A análise dos dados também lançou luz à relação entre secretarias beneficiadas, permitindo a extração de questões pertinentes à representação particular do problema que o instrumento se propõe a resolver (Lascoumes & Le Galès, 2007Lascoumes, P., & Le Galès, P. (2007). Introduction: Understanding Public Policy through its instruments - from the nature of instruments to the sociology of public policy instrumentation. Governance: An International Journal of Policy, Administration and Institution, 20(1), 1-21., 2012). Além da associação com o plano de governo, questões financeiras mostraram-se um filtro mais efetivo. Com maior capacidade de execução dos recursos, SEHAB (Habitação) e SIURB (Saneamento e transporte) foram priorizadas de forma constante em todo o período. Questões como a velocidade de execução e a disponibilidade de caixa em outros fundos também direcionavam a distribuição de recursos entre secretarias; enquanto questões programáticas, como a aderência a objetivos de desenvolvimento urbano compactuados no Plano Diretor e a adoção de um caráter redistributivo, eram afastadas da seara política durante a decisão alocativa. Isso indica que o Fundurb foi capaz de delimitar o que está aberto à discussão naquele âmbito e o que não está (Lascoumes & Le Galès, 2007, 2012).

Evidência da existência de disputa latente pelos recursos do fundo, o incremento de suas regras formais a partir do PDE de 2014 logrou mudanças nas “regras do jogo” que cristalizam a acomodação de interesses. Por via legislativa, isto é, fora das arenas usuais pertinentes ao Fundurb, e, a partir também da participação de outros atores, a introdução de subvinculações tornou ainda mais forte a permeabilidade a determinadas demandas (Immergut, 1998Immergut, E. (1998). The theoretical core of the new institutionalism. Politics & Society, 26(1), 5-34. https://doi.org/10.1177/0032329298026001002
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). Transporte, enquanto área da política, observou um ganho de importância relativo e a relevância da função Habitação, que já era consolidada em razão da capacidade executora de SEHAB, aumentou.

A distribuição de recursos não é constante, o que reforça a importância de se considerar as questões que ficam abertas à discricionariedade dos atores (Dimaggio & Powell, 1991Dimaggio, P., & Powell, W. (1991) Introduction. In P. Dimaggio, & W. Powell (eds.). The new institutionalism in organizational Analysis (pp. 1-38). University of Chicago Press.; Lascoumes & Le Galès, 2007Lascoumes, P., & Le Galès, P. (2007). Introduction: Understanding Public Policy through its instruments - from the nature of instruments to the sociology of public policy instrumentation. Governance: An International Journal of Policy, Administration and Institution, 20(1), 1-21., 2012), sendo permeável a questões anteriores e maiores do que o instrumento, pertinentes ao processo orçamentário como um todo, no sentido de Peres (2018Peres, U. D. (2018). Análise da Governança do Orçamento Público. In E. C. L. Marques. (Org.). As políticas do urbano em São Paulo (pp. 111-140). Editora Unesp.). Entretanto, a análise também permitiu verificar que a implementação do fundo ocorre de forma a produzir inércia, materializando efeitos específicos que independem de seus objetivos como descritos (Lascoumes & Le Galès, 2007). A institucionalização de um conselho-gestor com composição definida, etapas decisórias e procedimentos sedimentados sobre investimentos em um rol exaustivo de áreas da política urbana deixa margem a pouco questionamento e aumenta a resistência a pressões externas.

Considerações finais

A pesquisa levantou informações a respeito do processo decisório do Fundo de Desenvolvimento de São Paulo (Fundurb) buscando analisar como se deu a tomada de decisão a respeito da alocação dos recursos desse fundo, partindo da premissa que a utilização periódica dos recursos é uma evidência da acomodação de interesses em disputa. Ela permitiu confirmar, portanto, o entendimento do Fundurb como instrumento de política pública na visão de Lascoumes & Le Galès (2007Lascoumes, P., & Le Galès, P. (2007). Introduction: Understanding Public Policy through its instruments - from the nature of instruments to the sociology of public policy instrumentation. Governance: An International Journal of Policy, Administration and Institution, 20(1), 1-21. e 2012). Esse fundo, embora tenha sido concebido como um objeto técnico, um fundo contábil, não opera de forma automática, mas inclui disputas políticas e estabelece critérios e procedimentos para resolvê-las, delimitando por meio de regras o que está aberto à negociação naquele espaço, por quem e como deve ser decidido.

Para entender como as disputas são acomodadas, a análise identificou diferentes dimensões do conflito distributivo por recursos do Fundurb: 1) a disputa entre secretarias, isto é, centros de interesse dentro da estrutura organizacional da prefeitura; 2) a disputa entre áreas da política, que incluem diferentes comunidades de políticas; e 3) o conflito pela distribuição territorial dos recursos.

Como demonstrado acima, a alocação de recursos do Fundurb se dava por secretaria e, embora próximas, a divisão entre áreas da política e a classificação orgânica não são coincidentes. SIURB manteve sua alta participação nos investimentos do fundo durante todo o período, ainda que Saneamento, uma das áreas que investe, tenha progressivamente perdido importância, enquanto Transporte fez o movimento inverso. Regida primeiramente por questões financeiras, mas também pelo Plano de Governo das gestões da prefeitura, a disputa entre secretarias ditou a tônica das discussões sobre recursos do Fundurb de forma predominante. A forma encontrada para que as disputas não impedissem a distribuição dos recursos, nesse caso, foi o arbítrio de instâncias externas ao conselho e o poder informal conferido aos secretários de pastas meio.

A disputa entre áreas, por outro lado, mostrou-se secundária. Foi necessário que surgisse uma demanda fora do processo decisório do Fundurb durante a revisão do PDE, em 2014, para que a distribuição entre áreas da política pautasse a discussão. Este pode ser considerado, portanto, um marco na instrumentalização da política em questão, pois introduz regras que enrijecem o processo, diminuem a discricionariedade dos atores e conferem vantagens a áreas específicas. A solução do conflito latente, nesse caso, deu-se por via legislativa, uma interferência na configuração do fundo.

A terceira dimensão do conflito distributivo, por sua vez, revelou-se invisível por completo. Embora a análise da efetiva distribuição de investimentos no território fuja ao escopo desta pesquisa, foi possível identificar que a questão, ainda que pertencente aos objetivos do fundo, como descritos, não se configurou um critério sistemático e foi afastada do processo político na decisão alocativa. Não sendo uma questão relevante para a distribuição de recursos, as demandas por investimento em locais determinados não aparecem entre os critérios utilizados na tomada de decisão.

As regras do Fundurb, ao privilegiarem questões de ordem financeira e a disputa entre secretarias, colocam em segundo plano tanto os conflitos em torno de áreas da política como em torno de territórios, que são regidos por questões programáticas. É possível afirmar, portanto, que a solução do conflito, como um todo, é viabilizada, isto é, há efetiva utilização dos recursos, justamente em razão da assimetria entre as questões em disputa. Tal fato evidencia, dessa forma, uma lógica dissimulada da configuração desse instrumento em particular que torna possível o investimento do recurso, conferindo governabilidade aos atores envolvidos (Lascoumes & Le Galès, 2007Lascoumes, P., & Le Galès, P. (2007). Introduction: Understanding Public Policy through its instruments - from the nature of instruments to the sociology of public policy instrumentation. Governance: An International Journal of Policy, Administration and Institution, 20(1), 1-21., 2012).

É preciso considerar, entretanto, que o financiamento das políticas do urbano em São Paulo é extremamente complexo e utiliza diversas fontes de recursos e instrumentos que observam lógicas distintas à que rege o funcionamento do Fundurb. Para Lascoumes & Le Galès (2007Lascoumes, P., & Le Galès, P. (2007). Introduction: Understanding Public Policy through its instruments - from the nature of instruments to the sociology of public policy instrumentation. Governance: An International Journal of Policy, Administration and Institution, 20(1), 1-21.), o ato de governar acontece por meio de uma multiplicidade de instrumentos com efeitos específicos (Lascoumes & Le Galès, 2007). Por exemplo, consiste em um limite à presente pesquisa o fato de que Operações Urbanas Consorciadas, financiadas pelo mesmo fato gerador, competirem por recursos e investirem em áreas determinadas, utilizando critérios distintos, mas absorvendo demandas semelhantes.

Além disso, a indisponibilidade de dados impede a análise da utilização do recurso no período anterior à criação do fundo, o que impossibilita conclusões acerca do impacto da introdução do novo instrumento sobre o padrão de utilização dos recursos da política urbana no município. Dessa forma, não se pode descartar ou afirmar se a instrumentalização, nesse caso, mascarou a ausência de mudança de política pública (Lascoumes & Le Galès, 2012Lascoumes, P., & Le Galès, P. (2012). A ação pública abordada pelos seus instrumentos. Revista Pós Ciências Sociais, 9(18), 19-44.). Tais limites indicam a necessidade de se realizar uma análise mais abrangente que considere não só o Fundurb, mas outros instrumentos, como as Operações Urbanas Consorciadas (OUC) e outras fontes de recursos destinados à política urbana em São Paulo.

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    » https://doi.org/10.11606/D.100.2016.tde-29082016-123357
  • 1
    As despesas não liquidadas no período seguem depositadas no fundo, aplicadas financeiramente, conforme critérios do Banco Central, para utilização posterior.
  • 2
    A Lei nº 4.320 de 1964 permite a criação de fundos especiais de despesa (arts. 71, 72, 73 e 74), e isso significa que os recursos ali alocados terão gestão orçamentária especial, sempre destinados ao objeto de sua criação e controlados por um conselho gestor (Lei nº 101/2000, art. 8º § único).
  • 3
    Para melhor detalhamento do processo da despesa ver: Giacomoni (2009).
  • 4
    Corrigido pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) para 2018.
  • 5
    Para maior detalhamento, vide Paim, 2019, pp. 47-55.
  • 6
    Embora tenha sido criado em 2002, os recursos do Fundurb apenas foram utilizados a partir de 2007. Dessa forma, a presente análise focou-se no período de 2007 a 2016.
  • 7
    A classificação por funções foi utilizada como proxy para as áreas da política. Embora não corresponda exatamente às áreas prioritárias do fundo, ela permite complementar a análise por secretaria. Para mais informações, vide Paim, 2019, pp. 84-85.
  • 8
    Os estágios da despesa pública são definidos pela Lei nº 4.320/1964. O art. 58 define empenho como ato “que cria para o Estado obrigação de pagamento pendente ou não de implemento de condição”, e a liquidação, segundo o art. 63, “consiste na verificação do direito adquirido pelo credor”, ficando, portanto, condicionada à entrega ou prestação do bem ou serviço por parte do particular. Por fim, o pagamento consiste na autorização dada pelo ordenador de despesa para a entrega de valores liquidados.
  • 9
    (São Paulo, 2002, 2003a, 2003b, 2004, 2006, 2008, 2010, 2013, 2014, 2016, apud Paim, 2019).
  • 10
    (SMUL, 2003, 2004, 2006, 2007, 2008 2009a, 2009b, 2010a, 2010b, 2011a, 2011b, 2011c, 2011d, 2011e, 2012a, 2012b, 2012c, 2012d, 2012e, 2012f, 2012g, 2013a, 2013b, 2013c, 2013d, 2013e, 2013f, 2014a, 2014b, 2014c, 2014d, 2015a, 2015b, 2015c, 2015d, 2015e, 2016a, 2016b, 2016c, 2016d, 2016e, 2016f, 2016g, 2016h, apud Paim, 2019).
  • 11
    A seleção de entrevistados foi realizada por meio de levantamento dos participantes de reuniões do CG-Fundurb combinado com o método “bola de neve”, em que os entrevistados indicaram outras possíveis entrevistas.
  • 12
    Os dados coletados foram ajustados pelo IPCA 2018.
  • 13
    (SMUL, 2011f, 2011g, 2012h, 2013g, 2014e, 2015f, 2016i, apud Paim, 2019).
  • 14
    Até 2006 participaram também a Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (COHAB) e a Empresa Municipal de Urbanização (EMURB), e oito delegados de subprefeituras.
  • 15
    Durante o período estudado, houve a cisão das funções de planejamento urbano e orçamentário, o que ocasionou a inclusão posterior da SEMPLA no conselho. Para mais detalhes, vide Paim, 2019, p. 57.
  • 16
    Apenas na gestão Haddad, a SMDU, além de pasta gestora, também foi contemplada no orçamento.
  • 17
    Embora tenham sido identificadas quatro etapas do processo alocativo de recursos do fundo (1- Aprovação da distribuição entre secretarias para o exercício seguinte; 2 - Aprovação da lei orçamentária anual; 3 - Atualização do orçamento ao longo do ano, isto é, remanejamentos entre secretarias e projetos; e 4 - Execução do orçamento), o contraste do resultado de reuniões com as leis orçamentárias anuais mostrou que, na etapa pertinente ao Poder Legislativo, não se alteraram significativamente os valores do Fundurb. Portanto, a análise quantitativa foi feita a partir da comparação entre: (1) os valores estabelecidos na lei orçamentária, (2) valores atualizados ao longo do ano; e também o efetivamente executado, entre valores (3) empenhados e (4) liquidados. Importa ressaltar que a análise dos dados da execução orçamentária permitiu o apontamento de tendências apenas, uma vez que os dados disponíveis se encontram incompletos. Para maiores detalhes, vide Paim, 2019.
  • 18
    Embora o recorte temporal da pesquisa coincida com a criação do fundo, em 2002, até 2006, ainda que valores simbólicos de R$ 1.000,00 tenham sido orçados, não foram realizados investimentos.
  • 19
    Para maiores detalhes, vide Paim, 2019, pp. 79-80.
  • 20
    Para maiores detalhes, vide Paim, 2019, pp. 80-81.

Editor:

Paulo Nascimento Neto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2020
  • Aceito
    16 Mar 2021
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