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Resistência urbana pelas imagens: duas experiências no Bairro da Torre

Urban resistance through images: two experiences in Bairro da Torre

Resumo

São aqui relatadas duas intervenções participadas - a realização do documentário “Artigo 65” e de um processo de photovoice com crianças apresentado na exposição “Vozes do Direito à Cidade” -, implementadas no Bairro da Torre, bairro autoproduzido da Área Metropolitana de Lisboa, Portugal. Através da análise destes processos, procura-se refletir sobre o exercício criativo da produção de imagens como ferramenta que atua em direção à emancipação dos intervenientes e sobre a sua contribuição para a produção de um conhecimento crítico de visões estereotipadas sobre os subúrbios autoproduzidos, visando “(re)pensá-los” de forma a ser possível contribuir para novas abordagens de intervenção. Os desafios da cidade contemporânea apontam para a necessidade da valorização e da inclusão dos conhecimentos locais e das energias e poderes criativos de crianças, indivíduos, grupos e comunidades que moram em contextos vulneráveis para a transformação da sociedade e da cidade.

Palavras-chave:
Documentário; Photovoice; Crianças; Bairros autoproduzidos; Abordagem emancipatória

Abstract

Two participatory interventions are presented here - the making of the documentary “Article 65” and of the process of photovoice with children which resulted in the exhibition “Voices of the Right to the City” -, implemented in Bairro da Torre, a self-produced neighborhood in Greater Lisbon, Portugal. Through the analysis of these processes, we seek to reflect on the creative exercise of image production as a tool that acts towards the emancipation of those involved, and on its contribution to the production of a critical knowledge about stereotyped visions of self-produced suburbs, aiming at “rethinking” them to be able to contribute to new approaches of intervention. The challenges of the contemporary city point to the need for the valorization and inclusion of local knowledge and the energies and creative powers of children, individuals, groups and communities living in vulnerable contexts for the transformation of the society and the city.

Keywords:
Documentary; Photovoice; Children; Self-produced neighborhood; Emancipatory approach

Introdução

O Bairro da Torre, um bairro autoproduzido1 1 A noção de “autoprodução” surgiu do debate entre alguns investigadores do Grupo de Estudos Socio-Territoriais, Urbanos e de Ação Local (GESTUAL) da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa (FAUL) que a autora integra, referindo-se ao modo de produção do espaço abordado por Henri Lefebvre (1974) e não apenas à autoconstrução. da Área Metropolitana de Lisboa (AML), localizado na freguesia de Camarate, município de Loures, junto ao aeroporto de Lisboa, resultou da ocupação, a partir da década de 60, de um terreno, propriedade do Estado e sujeito à servidão do Instituto Nacional de Aviação Civil e da NAV Portugal, e de dois outros, contíguos e privados. O bairro, atualmente (novembro 2021) quase extinto, apresentava graves lacunas ao nível das infraestruturas, do espaço público, da dotação de equipamentos e da precariedade das habitações. Como referem Raposo (2012Raposo, I. (2012). Bairros de génese ilegal: metamorfoses dos modelos de intervenção. In M. Mendes, T. Sá, J. L. Crespo, & C. H. Ferreira (Eds.), A cidade entre bairros (p. 107-119). Lisboa: Caleidoscópio.) e Pestana & Braga (2016), para o contexto português, nos casos em que a posse da terra está assegurada, como nas Áreas Urbanas de Génese Ilegal (AUGIs), a Lei 91/952 2 Portugal (1995, 2 de setembro). e suas revisões permitem a sua reconversão jurídica e urbanística, enquanto que, nos bairros que resultam da ocupação de terrenos públicos ou privados, como no Bairro da Torre, as vulnerabilidades socioespaciais tendem a acentuar-se.

O bairro acolheu uma comunidade de famílias de origem africana (sobretudo imigrantes de São Tomé e Príncipe) e portuguesa, sendo esta maioritariamente de etnia cigana3 3 De acordo com os inquéritos realizados pelo GESTUAL entre 2014 e 2016 no quadro do projeto de investigação e de ação local Ação-Investigação no Bairro da Torre, Loures. Extensão académica e experimentação metodológica e projetual (2014-?). Em 2016, foram recenceadas 70 famílias. . Em 2012, a comunidade organizou-se na Associação Torre Amiga-Moradores do Bairro da Torre, presidida por uma mulher de São Tomé, Ricardina Cuthbert, apoiada por L. R. e depois por Maria Cardoso, as duas de etnia cigana.

A constituição da Associação resultou de um processo de organização que teve início em 2011 para mediar o processo de realojamento das famílias pela Câmara Municipal de Loures (CMLoures), ao abrigo do Programa Especial de Realojamento (PER). Em 2007 e em 2011, a CMLoures procedeu ao realojamento das famílias inscritas no PER, com imediata demolição das suas casas. Parte das famílias não abrangidas pelo PER também viram as suas casas demolidas, tendo ficado sem alternativa habitacional, o que as obrigou a permanecer no bairro e a refazer de forma mais precária os seus abrigos. A pressão dos proprietários do terreno, um corte no fornecimento da eletricidade para iluminação pública em outubro de 20164 4 A eletricidade chegava a cada casa através de “puxadas” ilegais a partir da rede de iluminação pública. e um incêndio em julho de 2018, contribuíram para acelerar o realojamento das famílias, que passou a ser realizado de forma dispersa. Dada a dificuldade da CMLoures em realojar os moradores com urgência no município de Loures, o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) contribuiu para o realojamento de algumas das famílias em outros municípios da AML, mas esta solução privou-as das redes locais de solidariedade e da sociedade civil que as apoiavam. Algumas perderam as suas fontes de rendimento, ficaram isoladas, com graves constrangimentos e dificuldade de adaptação às novas vizinhanças, e passaram a ter de enfrentar despesas adicionais como renda, contas de água e eletricidade e transporte. A sua situação habitacional melhorou, mas a sua situação socioeconómica, em muitos casos, agravou-se. Muitas pessoas retornavam frequentemente no bairro para receber apoio da Associação (ao nível de alimentação ou de vestuário) ou para conviver com os familiares, amigos e vizinhos que permaneciam no bairro.

Estigmatizados e marcados por forte exclusão socioespacial, os moradores do Bairro da Torre possuíam diversificadas experiências de apropriação e autoprodução do espaço, estratégias de sobrevivência no cotidiano, práticas de entreajuda e singulares manifestações culturais5 5 É o caso da festa anual da Nossa Senhora da Madre Deus, realizada desde 2014, que atraia centenas de pessoas, incluindo uma missa, uma procissão da Igreja de Camarate até ao bairro, um almoço comunitário e várias atuações de artistas santomenses. A festa foi “importada” de São Tomé pela Presidente da Associação, Ricardina Cuthbert, e sua mãe. . Esta sociabilidade e resistência atraíram instituições da sociedade civil, de luta pelo direito à habitação (Associação Habita), da academia (Grupo de Estudos Socio-Territoriais, Urbanos e de Ação Local da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa - GESTUAL, FAUL) e da igreja (Paróquia de Camarate) que, com a comunidade, apelaram para a qualificação provisória do bairro e para o realojamento coletivo dos moradores nas proximidades, em vez da sua dispersão (Figura 1).

Figura 1
“O bairro vai abaixo, mas nós ficamos de pé”. Casa no Bairro da Torre símbolo da resistência dos moradores. A casa foi demolida em 2020.

Apresentam-se aqui, como base de discussão, duas ações implementadas no Bairro da Torre, especificamente a realização do documentário “Artigo 65” e um processo de photovoice ou fotografia participativa com as crianças do bairro. Embora de natureza diferente, as duas ações constituem um exercício criativo de coprodução de imagens, através de abordagens participativas6 6 O breve relato sobre estas duas ações constitui uma primeira abordagem à reflexão iniciada no quadro da tese de doutoramento da autora sobre processos e projetos arquitetónicos com maior potencial para contribuir para a qualidade espacial das margens urbanas bem como para a inclusão, a participação e a emancipação dos seus habitantes, conduzindo a uma cidade marginal mais democrática, empoderada, inclusiva, justa, qualificada e sustentável: uma democra-city (assim definida com base no marco teórico e metodológico). Título provisório da tese: Democra-city. Processos participativos e requalificação dos bairros autoproduzidos da Área Metropolitana de Lisboa. Tese orientada por Isabel Raposo (FAUL, Portugal) e Juliana Demartini (UNEMAT, Brasil). . As duas ações têm subjacentes três noções que orientam a pesquisa - “dialogicidade” ou conhecimento construído no diálogo (Freire, 1987Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.), “ecologia dos saberes” (Santos, 2007Santos, B. de S. (2007). Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estudos CEBRAP, 79, 3-6. DOI https://doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004
ttps://doi.org/10.1590/S0101-33002007000...
) e “saberes autoconstruídos” (Nascimento, 2016Nascimento, D. M. (2016). Outra lógica da prática. In D. M. Nascimento (Ed.), Saberes [auto]construídos (p. 15-26). Belo Horizonte: Ed. AIC.) -, as quais cruzam conhecimento científico e popular, permitindo uma maior abertura em relação ao desconhecido e contrariando a monocultura do conhecimento a que se refere Santos (2002). Como defende este autor (2007), o conhecimento é inter-conhecimento e constrói-se no encontro de mundos diferentes, no nosso caso, com a cidade (quase invisível) da ilegitimidade (Staid, 2020Staid, A. (2020). I dannati della metropoli. Etnografia dei migranti ai confini della legalità. Roma: Milieu edizioni.).

O texto aborda os seguintes pontos: (i) objetivos, processos, atores e resultados das duas ações; (ii) considerações sobre a capacidade das intervenções artísticas apresentadas contribuírem para processos de emancipação local (pessoal e coletiva); (iii) reflexão sobre a premência de novos olhares e de novas formas de intervenção na cidade marginal autoproduzida, tendo subjacente os paradigmas de intervenção a nível global (da tábula rasa às iniciativas assistencialistas de sobrevivência no cotidiano); (iv) proposta de leitura dos bairros autoproduzidos como territórios insurgentes, a partir de uma breve reflexão sobre o seu cotidiano revelado pelas experiências apresentadas.

O texto discute a reconfiguração da prática profissional do arquiteto/urbanista ao “(re)pensar” e requalificar a cidade marginal autoproduzida através de práticas mais comprometidas com a inclusão, a participação e a emancipação. Visando-se ultrapassar as condições dominantes de produção da arquitetura, marcadas por lógicas tecnocráticas e abordagens top-down, o olhar centra-se no local, promovendo processos abertos às particularidades de cada tempo e território, e entendem-se os habitantes como co-autores da transformação do próprio espaço.

O documentário “Artigo 65”

Em 2019, a presidente da associação Torre Amiga pediu à artista visual Marian van der Zwaan e ao seu filho Kevin Raposo que realizassem um documentário sobre o bairro e seus habitantes. Outros documentários tinham sido produzidos anteriormente7 7 Entre outros: “Aqui tem gente” (2013) de Leonor Areal, “A Torre e o Tempo” (2015) de Guto Felipe e “Another Lisbon Story” (2017) de Claudio Carbone. . Ricardina Cuthbert pretendia realizar novas filmagens que dessem maior visibilidade aos laços forjados entre os moradores de etnia cigana e de origem africana, à construção do sentido de comunidade e ao sonho de um bairro novo para morar em conjunto. O documentário tinha assim como objetivo geral dar visibilidade às reivindicações dos moradores, à sua luta pelo direito a existir como comunidade e à autodeterminação, utilizando a noção de Staid (2020Staid, A. (2020). I dannati della metropoli. Etnografia dei migranti ai confini della legalità. Roma: Milieu edizioni.), ou seja, o direito a moldar, de forma ativa e específica, o próprio destino. A artista Marian van der Zwaan tinha realizado em dezembro de 2018 uma árvore de Natal no Bairro da Torre, concebida com a ajuda de alguns moradores, adultos e crianças, autoconstruída de forma coletiva, com restos de tábuas de madeira, e iluminada com luzes alimentadas com energia solar, pois o bairro continuava às escuras na sequência do corte do acesso à energia elétrica em 2016.

O processo de realização do documentário foi conduzido por Ricardina Cuthbert e pelos artistas, e acompanhado pelo GESTUAL, na pessoa da autora deste texto que o encarou como parte da pesquisa no campo da sua investigação de doutoramento, procurando manter uma postura de observador-participante. Para o relato das vidas dos que vivem à margem, o contato direto e prolongado no terreno, através da observação participante, impõe-se como metodologia de pesquisa, como refere Staid (2020Staid, A. (2020). I dannati della metropoli. Etnografia dei migranti ai confini della legalità. Roma: Milieu edizioni.), pelo seu potencial transgressivo que empurra os académicos para fora da sua torre de marfim, obrigando-os a romper os limites da sua posição de agente exterior, combatendo os seus próprios preconceitos e alimentando a empatia com os habitantes (Sardan, 1995Sardan, J. P. O. de (1995). Anthropologie et développement: essai en socio-anthropologie du changement social. Paris: APAD - Karthala.).

Ao longo de cerca de seis meses, desde junho de 2019, acompanhámos Ricardina Cuthbert e os dois artistas nas suas conversas com 26 moradores, representantes das cerca de 30 famílias então ainda residentes no bairro, as quais ocorreram de duas a três vezes por semana num total de 18 visitas até ao final do ano de 2019. O objetivo era a construção de relações de confiança com os entrevistados como condição para conhecer, compreender e retratar o lugar em que viviam e o seu cotidiano (Figura 2). As primeiras conversas tiveram um caracter exploratório e constituíram uma base para afinar coletivamente os objetivos da produção do documentário e a definição de estratégias para a sua realização. No início destes contactos observaram-se algumas resistências devido à desconfiança dos moradores em relação aos agentes exteriores, sentimento comum nos que vivem à margem (Rodrigues, 2017Rodrigues, F. M. (2017). Cidade e participação: dois casos paradigmáticos: Bela Vista e Riobom. In F. M. Rodrigues, A. C. Fontes, M. C. Silva, & A. Fontes (Eds.), A cidade da participação (p. 29-35). Porto: Edições Afrontamento.). O contacto com as líderes locais, Ricardina Cuthbert e Maria Cardoso, e a introdução às famílias pelo GESTUAL, permitiram criar laços de confiança que geraram as condições para os moradores contarem as suas histórias, com ou sem câmara, muitas vezes de forma espontânea. Marian van der Zwaan orientava o seu filho Kevin Raposo nas filmagens que pretendiam ser discretas. No início de cada entrevista, Ricardina Cuthbert explicava o motivo da nossa visita e as razões da realização das filmagens. As conversas fluíam quase sempre de forma não estruturada para estimular narrações livres, não se restringindo à questão do realojamento ou da construção de um novo bairro. Outros tópicos irrompiam, maioritariamente ligados com as contingências do dia-a-dia, a história do bairro e as trajetórias de vida de cada um, os relatos sobre instalação no bairro, a permanência e, quando fosse o caso, a partida, a sua cultura, os seus desafios, estratégias de resistência no cotidiano e anseios sobre o futuro (Figura 3). As visitas incluíram momentos de convívio e criaram oportunidades ricas para o encontro e a troca entre todos os participantes no processo. O “tempo lento” das filmagens foi marcado pelos ritmos do bairro, cultivando-se uma atitude “deambulatória” de escuta aberta às especificidades e aos acontecimentos de cada dia, redirecionando o foco das conversas (e das gravações) a cada momento.

Figura 2
Marian van der Zwaan e Kevin Raposo conversam com a senhora. L. durante as filmagens do documentário “Artigo 65”.

Figura 3
Duas irmãs apoiam-se ao contar a sua história em frente à camara. Fonte: Fotograma do documentário “Artigo 65”.

O documentário resultou deste processo de acompanhamento do cotidiano daqueles que continuavam no bairro e dos testemunhos daqueles que já haviam sido realojados, constituindo uma construção coletiva que se ajusta enquanto se realiza, entre artistas e moradores, em vez de um produto pré-concebido com uma visão exterior de “o que é um bairro de barracas”. Os artistas não “falaram pelas pessoas”: a sua observação poética e sem preconceitos deixou os lugares e as pessoas falarem por si, revelando os seus “costumes silenciosos” (La Cecla, 2011La Cecla, F. (2011). Contra a arquitetura. Lisboa: Caleidoscópio., p. 92). O documentário apresenta um retrato sensível do engenho dos moradores no enfrentamento dos desafios cotidianos, das práticas do espaço, das sociabilidades, da entreajuda, da gastronomia, da música. Dando voz às pessoas e ao que foi acontecendo ao longo das filmagens, pretendeu-se desenhar uma outra narrativa dos bairros autoproduzidos, contrária ao estigma e à homogeneização dos olhares dominantes sobre os territórios marginalizados que não identificam alternativas ou diferenças, que contribua para o seu reconhecimento, apesar da sua precariedade, como “a base do trabalho, da casa, de trocas materiais e espirituais da vida” (Reginensi, 2017Reginensi, C. (2017). Como praticar etnografia nas margens e fronteiras das cidades? Ponto Urbe [Online], 20. Recuperado em 01 de agosto de 2021, de http://journals.openedition.org/pontourbe/3381. DOI: https://doi.org/10.4000/pontourbe.3381
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, p. 12) dos seus habitantes.

Para além dos moradores e ex-moradores, foram entrevistados também alguns atores que estão ou estiveram ligados ao bairro, como alguns membros do GESTUAL, o missionário comboniano José Manuel Duarte da Paróquia de Camarate e Helena Roseta, arquiteta, ex-deputada e ex-presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, que elaborou o projeto da primeira Lei de Bases da Habitação em Portugal8 8 Portugal (2019, 3 de setembro). e é atualmente coordenadora nacional do Programa Bairros Saudáveis. A leitura por Helena Roseta do Artigo 65º da Constituição Portuguesa9 9 Portugal (1976, 10 de abril). O artigo 65º da Constituição da República Portuguesa consagra o direito de todos “para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto, que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar (…)”. , no restaurante de Ricardina Cuthbert, abre o documentário. Para além do direito a uma casa digna, o documentário intitulado “Artigo 65” apresenta o bairro como “território identitário, relacional e histórico” (Augé, 1994Augé, M. (1994). Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus., p. 52), sublinhando o direito ao lugar reclamado pelos moradores do Bairro da Torre. Borja (2000Borja, J. (2000). Espacio publico, ciudad y ciudadania. Barcelona: Zaida Muxí., p. 99), no seu livro Espacio publico, ciudad y ciudadania, salienta o direito ao lugar para concluir que o direito à habitação está necessariamente inscrito no direito à cidade:

As pessoas têm o direito de manter a sua residência no local onde têm as suas relações sociais, nos seus entornos significantes. Ou de terem outra de sua livre escolha. Todas as pessoas que vivem num lugar que contribuíram para construir, no qual estão enraizadas e que dá sentido às suas vidas, devem poder continuar a viver lá e ter o direito de realojamento na mesma área se esta for transformada através de políticas de desenvolvimento urbano ou de reabilitação de habitats degradados ou marginais. As autoridades locais devem proteger as populações vulneráveis que possam estar sujeitas a processos de despejo por iniciativas privadas (…) (Tradução da autora).

O processo de realização do documentário terminou em dezembro de 2019 com a sua apresentação comunitária no restaurante de Ricardina Cuthbert, que constituía um dos principais locais de encontro no Bairro da Torre. Assistiram numerosos atores e não atores da comunidade que se declararam orgulhosos das suas contribuições, do próprio bairro, das lutas e práticas solidárias e culturais, apresentadas no documentário.

Para Ricardina Cuthbert, mentora do projeto, o documentário respondeu ao seu desejo de lutar contra os estereótipos sobre o Bairro da Torre, os bairros autoproduzidos e as comunidades migrantes e vulneráveis, geralmente designadas como “necessitadas” e “onde tudo parece mau” nos discursos da comunicação social que desvalorizam os seus saberes, as suas lutas cotidianas, as suas solidariedades, que apenas as mencionam quando a polícia lá vai. Para Ricardina Cuthbert, o documentário restituiu a riqueza da comunidade do Bairro da Torre que gostaria de preservar e de partilhar:

Acho que o bairro tem quase tudo. O bairro tem uma coisa fantástica que é o laço, o laço de amor, de partilha, de amizade. Uns gostam dos outros. (…) lidamos muito bem com as famílias ciganas. É um modelo diferente. (…). As pessoas hoje em dia no mundo acham que isso não existe, mas existe. E nós somos prova viva disso. Eu vou lá tomar café na minha vizinha e a minha vizinha vem tomar uma cachupa na minha casa. Nós partilhamos as coisas. (…). Nós somos gente. Não é por sermos pobres … porque pobres não somos. Nós somos ricos: ricos de amor, ricos de Espírito, ricos de coisas para dar. Riquíssimos! E nós conseguimos passar esta riqueza para o mundo inteiro!” 10 10 Excerto de entrevista a Ricardina Cuthbert no âmbito das filmagens do documentário “Artigo 65” (novembro 2019). .

Recentemente, o documentário foi selecionado para apresentação no Better Cities Film Festival11 11 https://filmfreeway.com/bettercitiesfilmfestival. . Através da sua divulgação, espera-se contribuir para “(re)pensar” as margens, dando visibilidade e voz a narrativas outras.

Durante e após as filmagens, Marian van der Zwaan recolheu objetos dos ex-moradores do Bairro da Torre que lhe foram oferecidos ou que ficaram abandonados no entulho deixado pelas demolições que sucederam os realojamentos: uma lanterna do senhor N.12 12 A lanterna do Sr. N. constitui um objeto com grande simbolismo: foi ele que sempre se ocupou (informalmente) de fazer a ligação elétrica de cada casa à iluminação pública. , a porta de entrada da casa da senhora F. pintada de verde-água, umas fotos e um brinquedo dos seus filhos, o vestido de noiva de Ricardina Cuthbert, etc. O seu objetivo era construir, em colaboração com o marido da Ricardina, uma “casinha” semelhante à casa da senhora F. com os objetos recolhidos, desmontável e móvel, como uma memória itinerante do bairro que apenas perdurará na memória da sua comunidade. Como o documentário, esta obra poética pretende resgatar um passado de estigma, potenciar o diálogo com o cotidiano destas comunidades e um futuro mais humano.

Vozes do Direito à Cidade

No âmbito do seminário Direito à Cidade (1968-2018), organizado pelo GESTUAL e desenvolvido em dezembro de 2018 na FAUL no quadro do projeto Africa Habitat13 13 Projeto coordenado por Isabel Raposo, arquiteta-urbanista e professora da FAUL, e financiado pela FCT-Fundação para a Ciência e a Tecnologia e Aga Khan Development Network. , realizou-se a exposição coletiva de fotografia, arte e vídeo “Vozes do Direito à Cidade”, onde se pretendeu contribuir com um olhar plural à reflexão sobre a noção de Lefebvre (1968Lefebvre, H. (1968). Le droit à la ville. Paris: Anthropos.) tratada no seminário. Como preparação da exposição14 14 A exposição incluiu também fotografias de Claudio Carbone, obras de Mauro Carmelino e uma seleção de filmes e documentários sobre experiências de “construção do Direito à Cidade”. , foi realizado um processo de photovoice com crianças de etnia cigana e de origem africana residentes no Bairro da Torre e no bairro do Alto da Cova da Moura (no município da Amadora), o qual foi conduzido pela autora deste texto em conjunto com Erica Briozzo, Giovanna Gonzalez e Janice Guilherme15 15 Erica Briozzo é psicóloga comunitária e doutoranda pelo ISPA, Giovanna Gonzalez é arquiteta, doutoranda pela FAUL e membro do GESTUAL, Janice Guilherme é arquiteta, tendo sido estagiária do GESTUAL. . Escolheram-se estes dois bairros autoproduzidos da AML com diferentes níveis de consolidação do espaço e do associativismo, distintas intervenções participativas ao nível da escala e da abordagem e que são terreno de pesquisa e ação do GESTUAL16 16 No âmbito deste texto será analisado apenas o processo de fotografia participativa realizado no Bairro da Torre. .

O photovoice constitui uma ferramenta de produção artística e de pesquisa-ação participativa. Solicita-se aos participantes que, através de fotografias, retratem a sua realidade. A perceção e a interpretação da realidade passam pelo exercício da produção de imagens, sendo estas o resultado de um conjunto de escolhas que refletem o imaginário do autor (Meirinho, 2016Meirinho, D. (2016). Olhares em foco. Fotografia participativa e empoderamento juvenil. Covilhã: LabCom.IFP.). Dado o uso difuso da expressão fotográfica e a facilidade de tirar fotografias, o photovoice é adequado a qualquer faixa etária.

Neste caso, escolheram-se as crianças para o exercício de photovoice, por serem agentes da mudança, reconhecendo-se a importância da sua participação nos debates sobre a cidade e os direitos, constituindo também uma oportunidade de diálogo intergeracional (e intercultural no caso do Bairro da Torre, entre as famílias de etnia cigana e de origem africana), dentro da sua comunidade. Através da escuta do que mais gostam, do que lhes faz falta no seu dia-a-dia, das suas preocupações e dos seus desejos sobre os espaços do bairro e da cidade, das vozes e do olhar próprio das crianças (diferente do olhar dos adultos), estas podem participar na construção de cidades mais justas e inclusivas. Como destacou Enrique Peñalosa, ex-presidente da Câmara de Bogotá, “as crianças são uma espécie de indicadores. Se conseguirmos construir uma cidade de sucesso para as crianças, teremos uma cidade de sucesso para todos” (Peñalosa & Ives, 2004, p. 2, Tradução da autora). As crianças encontram-se, porém, de forma geral, à margem dos processos de tomada de decisões, ainda que participativos. Impõe-se, portanto, a necessidade de ampliar a sua participação ativa na construção das cidades, contribuindo para garantir seus direitos. Ao definir as Cidades Amigas das Crianças (Child Friendly Cities), com base na Convenção sobre os Direitos da Criança17 17 Office of the High Commissioner for Human Rights (1990). , a UNICEF (United Nations Children's Fund) afirma que “cada criança tem o direito de crescer num ambiente onde se sinta segura e protegida, tenha acesso a serviços básicos e a ar e água limpos, possa brincar, aprender e crescer onde a sua voz é ouvida e importa” (Tradução da autora)18 18 Recuperado em 27 de abril de 2021, em: https://childfriendlycities.org/. .

Através da fotografia, deu-se voz ao olhar das crianças sobre o seu lugar, reconhecendo o valor das reflexões dos jovens participantes expressas nas imagens por eles captadas em diferentes momentos do seu dia-a-dia. Pretendeu-se estimular nas crianças a sua capacidade de leitura e interpretação dos espaços do seu cotidiano, de reconhecimento da sua identidade pessoal e comunitária e conhecimento sobre os seus direitos, a fim de fortalecer seu sentimento de pertença e de cidadania ativa, a partir das suas fotografias e do debate gerado a partir destas. A atividade teve ainda como objetivo científico pensar sobre a fotografia participativa como ferramenta reflexiva e empoderadora em crianças que moram em contextos de exclusão espacial e social. Apresenta-se de seguida o processo desenvolvido e algumas reflexões que emergiram em torno do conceito de “Direito à Cidade” (Lefebvre, 1968Lefebvre, H. (1968). Le droit à la ville. Paris: Anthropos.) a partir da própria voz das crianças autoras das fotografias.

No Bairro da Torre foram envolvidas 9 crianças entre os 6 e os 12 anos. Cada criança foi contactada em sua casa, dados alguns conflitos entre vizinhos19 19 No bairro do Alto da Cova da Moura, trabalhámos diretamente no âmbito das Atividades de Tempos Livres (ATL) da Associação Cultural Moinho da Juventude. Aqui foram envolvidas onze crianças entre os 10 e os 14 anos com quem falámos depois de revelarmos as fotografias numa discussão coletiva aberta. O processo terminou com a exposição das fotografias dos jovens participantes na FAUL. . Numa primeira fase, foram cedidas máquinas fotográficas descartáveis pela sua facilidade de uso e devido ao acesso limitado à tecnologia de alguns dos participantes, e a cada um foi explicado como usar a máquina (Figura 4). Foi também entregue um guião com perguntas sobre a casa, as brincadeiras e o convívio com os amigos e a família, sobre a comunidade, as áreas verdes, o lixo e a segurança no bairro, o gosto pelo bairro e o gosto pela cidade, tendo sido pedido que os participantes respondessem através do registo fotográfico. As máquinas foram recolhidas cerca de duas semanas após terem sido entregues. Os rolos foram revelados para suporte digital e optou-se por imprimir as fotografias em papel (posteriormente doadas aos seus jovens autores) e utilizar um computador na discussão com os participantes sobre as suas fotografias, o que constituiu a segunda fase do exercício. Foi realizada uma conversa (na forma de entrevista semiestruturada) com as crianças e foi-lhes pedido que escolhessem as fotografias que consideravam as mais significativas e que identificassem em que local tinham sido tiradas, explicando o que gostariam de assinalar com elas. Um dos jovens participantes, (A) de 10 anos , declarou-se “orgulhoso” ao olhar para as suas fotografias.

Figura 4
Jovem participante no photovoice com a sua máquina.

As crianças do Bairro da Torre envolveram-se numa reflexão crítica a partir das imagens que produziram, expressando os seus pontos de vista e transmitindo-os através do meio visual e dos seus testemunhos orais que foram gravados. Desta forma, a fotografia participativa, enquanto instrumento que se fundamenta na criação de imagens e na reflexão sobre as narrativas que as acompanham, afirmou-se como ferramenta de investigação científica e, ao mesmo tempo, de intervenção social, contribuindo na sua pequena escala para a emancipação local.

A análise das fotos e das conversas com as crianças pelas investigadoras responsáveis (que constituiu a terceira etapa da ação), permitiu revelar a sua perceção sobre o seu bairro. Para (B) (12 anos) “no bairro não falta nada”. (C) (6 anos) e (D) (8 anos) assinalaram a presença de lixo, poças de água e de lama e (E) (12 anos) e (F) (10 anos) a falta de um parque para brincar. Para (D) a sua bicicleta era suficiente e lhe dava liberdade e, por isso, constituiu o sujeito (quase) exclusivo das suas fotografias (Figura 5). (B) brincava saltando nos tacos de madeira que serviam para a fogueira. As crianças referiram querer ficar no bairro, apesar deste precisar de algumas melhorias, e expressaram o desejo de construir no bairro casas novas e térreas “se tivessem dinheiro”. Contudo, as suas casas eram o lugar que mais gostavam no bairro e as suas portas de entrada foram captadas por várias crianças. “Prefiro viver na minha casa mesmo, porque esconde do frio” (B).

As fotografias e a reflexão das crianças permitiram também entender a noção de “Direito à Cidade” (Lefebvre, 1968Lefebvre, H. (1968). Le droit à la ville. Paris: Anthropos.) através do olhar das crianças a qual se pode definir como o direito a brincar. O reconhecimento do Direito a Brincar como direito fundamental da criança para a sua saúde física e mental está consagrado no Artigo 31º da Convenção sobre os Direitos da Criança20 20 V. nota 19. e, como se lê na Carta Aberta pelo Direito a Brincar em Tempo de Pandemia21 21 Associação para a Promoção da Segurança Infantil (APSI) & Associação 1,2,3 Macaquinho do Xinês (2020). Recuperado em 27 de abril de 2021, em: https://123macaquinhodoxines.wordpress.com/2020/09/02/carta-aberta-pelo-direito-a-brincar-em-tempo-de-pandemia/. O documento foi divulgado na Internet no final de 2020 e entregue aos grupos parlamentares na Assembleia da República Portuguesa, alertando para a urgência das crianças serem deixadas livres de brincar no atual contexto pandémico para a sua saúde física e mental. , esta é a forma das crianças “se expressarem, de participarem, de fazer atividade física, de digerirem os acontecimentos da sua vida e do seu mundo interior, de aprenderem, de se adaptarem, de se protegerem contra as ameaças à sua saúde mental e física”.. Os espaços de brincar na cidade merecem, portanto, maior atenção por parte dos poderes políticos e dos técnicos. O Direito à Cidade, pelo olhar das crianças, é também a possibilidade de fazerem o que lhes apetece, embora respeitando os outros. É o direito de fazerem festas, mas também de terem um lugar seguro e momentos sossegados. É o direito de estar e conviver com os amigos e a família. A palavra “família” foi das mais recorrentes nas conversas com as crianças sobre as suas fotografias. A maioria apontou para as imagens que retratavam familiares quando lhes foi pedido que assinalassem as suas fotografias preferidas. (C) gostava de estar no bairro porque tinha aí a sua família toda e sentia-se segura perto dela. (E) gostaria de construir uma casa para si perto dos pais, em tijolo, porque “fica melhor”. (A) afirmou que gostaria de morar em qualquer lado desde que estivesse com as pessoas de quem mais gosta.

Figura 5
As brincadeiras. Foto captada por (D).

Depois da exposição “Vozes do Direito à Cidade” na FAUL, as fotografias do photovoice foram expostas na “capela” do Bairro da Torre, ponto central da comunidade, com vista a devolver o trabalho desenvolvido com as crianças, na ótica da restituição e debate público dos resultados da investigação às comunidades dos territórios estudados defendida por Raposo (1999Raposo, I. (1999). Urbaniser villages et maisons: projets politiques et réalités sociales - Manica (Mozambique) et Alte (Portugal) (Tese de doutoramento). Institut d’Urbanisme de Paris, Université de Paris XII, Val de Marne.). Uma comunicação foi posteriormente apresentada no XI Congresso Português de Sociologia (APS, em formato poster, edição 2021 on-line) e outra foi apresentada no XIV Congresso Luso-Afro-Brasileiro. Utopias pós-crise. Artes e saberes em movimento (CONLAB 2021, edição on-line). Considera-se uma etapa fundamental dos processos de photovoice a divulgação da reflexão alimentada pelas fotografias e opiniões dos participantes, bem como das suas próprias imagens, para que a sua voz seja ouvida (Blackman & Fairey, 2007Blackman, A., & Fairey, T. (2007). The Photovoice Manual: a guide to designing and running participatory photography projects. London: Photovoice.).

Foi recentemente lançada uma outra ação de fotografia participativa22 22 Com Camila Andrade dos Santos, mestre em Design, doutoranda em Design pela FAUL, professora do IFMA (Brasil) e membro do GESTUAL, que participa no estudo no quadro da pesquisa para a sua tese de doutoramento: Design participativo nas margens: democracia e o direito de brincar numa situação de quilombo urbano no Brasil. que envolve as crianças que ainda permanecem no Bairro da Torre na discussão sobre a forma como este tem vindo a mudar no seguimento do intensivo processo de realojamento de que tem sido alvo nos últimos dois anos. Esta ação envolve também os participantes da primeira edição que já têm sido realojados para retratarem a sua experiência sobre um outro espaço e o seu novo cotidiano.

Reflexão

Os relatos sobre os processos de realização do documentário “Artigo 65” e do photovoice constituem uma oportunidade de refletir sobre o potencial neles inscrito de instigar mecanismos de emancipação individual e coletiva dos participantes. Por outro lado, também se questiona de que forma estas pequenas intervenções locais participadas que envolveram as crianças e os (ex)moradores do Bairro da Torre no exercício criativo e o caracter relacional destas práticas no terreno, embora viradas para as necessidades de pequenos grupos, podem contribuir na abertura de caminhos de desconstrução de estereótipos e de construção coletiva de um outro conhecimento, colaborando na imaginação de outras abordagens de intervenção nos bairros autoproduzidos.

As ações descritas incorporaram diversamente as visões dos moradores face ao seu contexto: no caso do photovoice pela própria voz das crianças que as expressaram de forma direta com as suas fotografias, no caso do documentário pela expressão artística dos realizadores. Nos dois casos, as ações visaram “dar voz” aos habitantes do Bairro da Torre e tornar visíveis os fatores de exclusão socioespacial que o marcavam, mas também a sua energia, gerando maior sensibilização em torno deste território que, como outros bairros autoproduzidos da AML (de Portugal e do mundo), passou por políticas sistemáticas de apagamento. Ao mesmo tempo, os exercícios criativos de produção de imagens desenvolvidos visaram contribuir para ações de capacitação de indivíduos, grupos e comunidades vulneráveis. A capacitação refere-se tanto a capacidades práticas específicas (o uso de técnicas fotográficas e a literacia visual no caso do photovoice), como ao desenvolvimento da capacidade individual de articular pensamentos, sentimentos e ações de forma construtiva (Moreira, 2000Moreira, M. A. (2000). Aprendizaje significativo: teoria y práctica. Madrid: Visor.), em direção à organização e ao reforço da comunidade para a tarefa comum de saber agir (Freire, 1987Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 80) e para a procura de soluções para a sua condição. Os processos de produção coletiva do documentário “Artigo 65” e de produção artística pelas crianças de fotos para o retrato da sua realidade no âmbito do photovoice estimularam os a(u)tores locais a “se pensar” e a pensar o seu meio socioespacial, identificando, retratando e transmitindo suas forças, preocupações e sonhos tanto ao nível individual como comunitário. É neste âmbito que se afirma que poderão ter contribuído para o seu empowerment (Friedmann, 1992Friedmann, J. (1992). Empowerment: The politics of Alternative Development. Cambridge, Mass and Oxford: Blackwell Publishers.). Como afirma Wodiczko (2011Wodiczko, K. (2011). Art, Trauma and Parrhesia. Art & the Public Sphere, 1(3), 293-302. DOI 10.1386/aps.1.3.293_7
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), o truth-telling, ou seja, os testemunhos têm um poder restaurador de experiências traumáticas e a saúde da democracia está ligada à possibilidade de as pessoas falarem (de que depende a sua própria saúde). De acordo com esta leitura, a realização do documentário e do photovoice, enquanto processos de produção de testemunhos pelas imagens, realizados colaborativamente e que permitiram a crianças e moradores falarem e serem ouvidos, terá contribuído para o seu bem-estar e para a sua participação à escala local da força de transformação democrática dos processos urbanos globais23 23 A avaliação do impacto destas ações está sujeita a pesquisa empírica adicional em curso no âmbito da investigação para doutoramento da autora do texto. .

As intervenções participadas de produção artística adquirem mais sentido e oportunidade quando envolvem indivíduos, grupos e comunidades marginalizados que geralmente são considerados recetores e quase nunca criadores. Na linha do pedagogo Paulo Freire (1987Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.) e no âmbito das ações apresentadas, as crianças e os (ex)moradores do Bairro da Torre tiveram a possibilidade, através das suas fotografias e testemunhos, de se constituírem como peritos e como sujeitos reflexivos, agentes ativos da reflexão que geraram, e não como objeto de estudo. A estreita interação com os habitantes e a priorização do seu conhecimento enquanto autoprodutores do próprio espaço permitem transformar a perceção e o saber teórico e técnico de arquitetos/urbanistas em torno das margens autoproduzidas, respondendo à necessidade de um olhar mais sensível e de (re)pensar a sua forma de atuar nelas, de forma a ser possível fomentar práticas de dignificação destes lugares e dos seus moradores, alternativas à excessiva tecnicização da intervenção que não responde à riqueza e complexidade local, escapando, ao mesmo tempo, à tentação do voyeurismo ou de um olhar romântico sobre os territórios autoproduzidos. A visão de vol d’oiseaux tão típica da práxis de arquitetos/urbanistas, geógrafos, etc., considerados especialistas exclusivos do espaço, e uma arquitetura de tipo autoral ou “do objeto” (que tem substituído o projeto enquanto processo) não apresentam as condições necessárias para intervir nos territórios marginalizados pelo sistema. Este procura policiar e limitar a complexidade contemporânea ao cumprimento de normas para legitimar processos de iniciativa pública ou privada, geralmente dominados pela lógica do capital, cujos benefícios recaem sobre os grupos de maiores recursos (Harvey, 1980Harvey, D. (1980). A justiça social e a cidade. São Paulo: Editora Hucitec.) versus os grupos de menores recursos, organizações da sociedade civil e associações locais, ameaçados pela lógica de mercado e, cada vez mais, por processos de gentrificação. A prática de uma arquitetura outra contribui para espaços de relação, espaços para o encontro com o outro e para a troca, ou seja, favorece, em oposição a um espaço desigual e que separa de matriz capitalista, uma nova espacialidade horizontal como terreno para fomentar o Direito à Cidade de todos os oprimidos (Biagi, 2019Biagi, F. (2019). Henri Lefebvre: una teoria critica dello spazio. Milano: Jaca Book.). Evoca-se uma abordagem caracterizada por pequenos projetos participados de intervenção local que incluem os habitantes como autores da transformação do seu lugar, que constituem dispositivos de reativação da cidade e da cidadania e que, como os processos de realização do “Artigo 65” e do photovoice descritos, visam aprender a observar e transformar criativamente e coletivamente a cidade, priorizando as especificidades de cada lugar e destacando o imperativo da sua compreensão, através da imersão profunda no terreno, como etapa fundamental do intervir em bairros autoproduzidos.

O cotidiano insurgente

O documentário “Artigo 65”, bem como as fotos captadas pelas crianças no âmbito do photovoice e os seus relatos, favorecem uma leitura das margens como lugares que abarcam virtudes materiais e imateriais, e destacam a cooperação entre familiares e vizinhos de origem africana e de etnia cigana que caracteriza o bairro como instrumento poderoso de construção política (Figura 6). Apontam, também, para o protagonismo feminino das vozes e do papel de Ricardina Cuthbert e de Maria Cardoso na organização das reivindicações da comunidade e ainda para a criatividade da população (entendida, na linha de Harvey (2000Harvey, D. (2000). Spaces of hope. Edinburgh: Edinburgh University Press.), como a capacidade de revelar as contradições do modo de produção capitalista e, ao mesmo tempo, as possibilidades da sua superação) no enfrentamento das suas lutas cotidianas como possíveis caminhos para a emancipação dos territórios autoproduzidos e para a transformação de toda a sociedade e da cidade. Neste sentido, entendem-se os subúrbios autoproduzidos como territórios insurgentes em que os seus moradores se constituem como potenciais catalisadores da mudança a partir das suas práticas que respondem à falta de recursos e oportunidades, mas também a uma autonomia nas decisões (Nascimento, 2011Nascimento, D. M. (2011). A autoconstrução na produção do espaço urbano. In J. G. de Mendonça, & H. C. S. de Moura (Eds.), Estado e capital imobiliário: convergências atuais na produção do espaço urbano brasileiro (p. 217-230). Belo Horizonte: Ed. C/Arte.), e são instigadas por lógicas outras de produção socioespacial. Trata-se das táticas subversivas do cotidiano de que fala De Certeau (1994De Certeau, M. (1994). A invenção do cotidiano: as artes do fazer. Petrópolis: Vozes.), da criação de redes de apoio e solidariedade, da afirmação dos valores do afeto, do cuidar e da partilha dos conhecimentos, da autogestão dos recursos, da implementação de microeconomias alternativas e da própria autoconstrução, insurgente por si só, porque acontece sem os técnicos (Nascimento, 2011). Os territórios autoproduzidos configuram-se, desta forma, como espaços de invenção (Lang, 2016Lang, S. (2016). Editorial. In A. Bigotte Vieira, N. Leão, & S. Lang (Eds.), Practices of resistance, spaces of invention (p. 9-27). Lisboa: J-S-F.) criados pelo encontro das pessoas e pela construção de relações, espaços de resistência, atuando fora do modo de produção capitalista, espaços de oportunidade para a imaginação de uma “vida cotidiana renovada” (Lefebvre, 1996Lefebvre, H. (1996)​. Writings on Cities​. Cambridge: Blackwell Publishers., p. 158) e espaços de subversão, pois, suas práticas do cotidiano constituem “gestos barreira” (Latour, 2020Latour, B. (2020). Imaginar gestos que barrem a retorno da produção pré-crise. Recuperado em 27 de abril de 2021, de https://www.n-1edicoes.org/textos/28.
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) que contém potencial para subverter a ordem dominante. Como afirma o filósofo Slavoj Žižek “as novas formas de consciência social que emergem dos coletivos dos slums serão os germes do futuro e a melhor esperança para um mundo devidamente livre” (Žižek, 2004, Tradução da autora). Neste sentido, urge olhar para as margens autoproduzidas como parte da cidade e não como uma doença a esconder ou a extirpar.

Figura 6
Cozinha comunitária do Bairro da Torre.

Nota conclusiva

O documentário “Artigo 65” não teve o impacto desejado na realização do sonho de construção de um bairro novo para a comunidade do Bairro da Torre ou na negociação de uma solução de realojamento mais em linha com os seus desejos. A CMLoures completou o processo de realojamento disperso e de erradicação do Bairro da Torre. As ações descritas e o seu potencial nos interpelam sobre a urgência de uma mudança do atual cenário global político e económico e das instâncias técnicas. Tendo subjacente uma noção de Direito à Cidade que associe a transformação do território à nossa própria transformação (Lefebvre, 1968Lefebvre, H. (1968). Le droit à la ville. Paris: Anthropos.; Harvey, 2008Harvey, D. (2008). The right to the city. New Left Review, 53, 23-40. Recuperado em 05 de outubro de 2021, de https://newleftreview.org/issues/ii53/articles/david-harvey-the-right-to-the-city.pdf.
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), a avaliação do impacte destas ações (em curso) pretende entender até que ponto e em que medida as pessoas e crianças que participaram no documentário e no photovoice se transformaram e ganharam consciência sobre os seus direitos, contribuindo para a imaginação de uma outra sociedade e uma outra cidade.

Será que isso nos fez pessoas melhores? (…) A implicação é que nós, individual e coletivamente, fazemos nossa cidade através de nossas ações diárias e de nossos engajamentos políticos, intelectuais e econômicos. Todos somos arquitetos de nossos futuros urbanos (Harvey, 2013Harvey, D. (2013). A liberdade da cidade. In C. Vainer, D. Harvey, E. Maricato, R. Rolnik, F. Brito, J. A. Peschanski. J. L. S. Maior, L. Sakamoto, L. Secco, M. Iasi, M. Davis, P. R. de Oliveira, R. Braga, S. Viana, S. Žižek & V. A. de Lima (Eds.), Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas no Brasil (p. 25-32). São Paulo: Boitempo., p. 29).

Agradecimentos

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT-Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito da bolsa de doutoramento com a referência SFRH/BD/129102/2017 de Rosa Arma.

Referências

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  • Declaração de disponibilidade de dados

    O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste artigo está disponível no SciELO DATA e pode ser acessado em https://doi.org/10.48331/scielodata.SY0PQC.
  • 1
    A noção de “autoprodução” surgiu do debate entre alguns investigadores do Grupo de Estudos Socio-Territoriais, Urbanos e de Ação Local (GESTUAL) da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa (FAUL) que a autora integra, referindo-se ao modo de produção do espaço abordado por Henri Lefebvre (1974) e não apenas à autoconstrução.
  • 2
    Portugal (1995, 2 de setembro).
  • 3
    De acordo com os inquéritos realizados pelo GESTUAL entre 2014 e 2016 no quadro do projeto de investigação e de ação local Ação-Investigação no Bairro da Torre, Loures. Extensão académica e experimentação metodológica e projetual (2014-?). Em 2016, foram recenceadas 70 famílias.
  • 4
    A eletricidade chegava a cada casa através de “puxadas” ilegais a partir da rede de iluminação pública.
  • 5
    É o caso da festa anual da Nossa Senhora da Madre Deus, realizada desde 2014, que atraia centenas de pessoas, incluindo uma missa, uma procissão da Igreja de Camarate até ao bairro, um almoço comunitário e várias atuações de artistas santomenses. A festa foi “importada” de São Tomé pela Presidente da Associação, Ricardina Cuthbert, e sua mãe.
  • 6
    O breve relato sobre estas duas ações constitui uma primeira abordagem à reflexão iniciada no quadro da tese de doutoramento da autora sobre processos e projetos arquitetónicos com maior potencial para contribuir para a qualidade espacial das margens urbanas bem como para a inclusão, a participação e a emancipação dos seus habitantes, conduzindo a uma cidade marginal mais democrática, empoderada, inclusiva, justa, qualificada e sustentável: uma democra-city (assim definida com base no marco teórico e metodológico). Título provisório da tese: Democra-city. Processos participativos e requalificação dos bairros autoproduzidos da Área Metropolitana de Lisboa. Tese orientada por Isabel Raposo (FAUL, Portugal) e Juliana Demartini (UNEMAT, Brasil).
  • 7
    Entre outros: “Aqui tem gente” (2013) de Leonor Areal, “A Torre e o Tempo” (2015) de Guto Felipe e “Another Lisbon Story” (2017) de Claudio Carbone.
  • 8
    Portugal (2019, 3 de setembro).
  • 9
    Portugal (1976, 10 de abril). O artigo 65º da Constituição da República Portuguesa consagra o direito de todos “para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto, que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar (…)”.
  • 10
    Excerto de entrevista a Ricardina Cuthbert no âmbito das filmagens do documentário “Artigo 65” (novembro 2019).
  • 11
    https://filmfreeway.com/bettercitiesfilmfestival.
  • 12
    A lanterna do Sr. N. constitui um objeto com grande simbolismo: foi ele que sempre se ocupou (informalmente) de fazer a ligação elétrica de cada casa à iluminação pública.
  • 13
    Projeto coordenado por Isabel Raposo, arquiteta-urbanista e professora da FAUL, e financiado pela FCT-Fundação para a Ciência e a Tecnologia e Aga Khan Development Network.
  • 14
    A exposição incluiu também fotografias de Claudio Carbone, obras de Mauro Carmelino e uma seleção de filmes e documentários sobre experiências de “construção do Direito à Cidade”.
  • 15
    Erica Briozzo é psicóloga comunitária e doutoranda pelo ISPA, Giovanna Gonzalez é arquiteta, doutoranda pela FAUL e membro do GESTUAL, Janice Guilherme é arquiteta, tendo sido estagiária do GESTUAL.
  • 16
    No âmbito deste texto será analisado apenas o processo de fotografia participativa realizado no Bairro da Torre.
  • 17
    Office of the High Commissioner for Human Rights (1990).
  • 18
    Recuperado em 27 de abril de 2021, em: https://childfriendlycities.org/.
  • 19
    No bairro do Alto da Cova da Moura, trabalhámos diretamente no âmbito das Atividades de Tempos Livres (ATL) da Associação Cultural Moinho da Juventude. Aqui foram envolvidas onze crianças entre os 10 e os 14 anos com quem falámos depois de revelarmos as fotografias numa discussão coletiva aberta. O processo terminou com a exposição das fotografias dos jovens participantes na FAUL.
  • 20
    V. nota 19.
  • 21
    Associação para a Promoção da Segurança Infantil (APSI) & Associação 1,2,3 Macaquinho do Xinês (2020). Recuperado em 27 de abril de 2021, em: https://123macaquinhodoxines.wordpress.com/2020/09/02/carta-aberta-pelo-direito-a-brincar-em-tempo-de-pandemia/. O documento foi divulgado na Internet no final de 2020 e entregue aos grupos parlamentares na Assembleia da República Portuguesa, alertando para a urgência das crianças serem deixadas livres de brincar no atual contexto pandémico para a sua saúde física e mental.
  • 22
    Com Camila Andrade dos Santos, mestre em Design, doutoranda em Design pela FAUL, professora do IFMA (Brasil) e membro do GESTUAL, que participa no estudo no quadro da pesquisa para a sua tese de doutoramento: Design participativo nas margens: democracia e o direito de brincar numa situação de quilombo urbano no Brasil.
  • 23
    A avaliação do impacto destas ações está sujeita a pesquisa empírica adicional em curso no âmbito da investigação para doutoramento da autora do texto.

Editado por

Editores responsáveis:

Afonso Nuno Martins, Maria Manuela Mendes, Maria de Lourdes Zuquim

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2021
  • Aceito
    17 Set 2021
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