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Artigo bom é artigo vivo: periódicos e circulação do conhecimento

A good article is a living article: journals and the circulation of knowledge

A história das comunidades indígenas evidencia tristemente como a máxima "o único índio bom é o índio morto" foi e continua sendo muito mais que uma frase de efeito dos filmes de faroeste. Se esse mote dominou o espírito de tantos episódios de conquista do oeste norte-americano, também tem guiado fortemente ações em torno de conflitos territoriais no Brasil. No século XIX, por exemplo, enquanto escritores, pintores e compositores idealizavam a pureza e nobreza do índio tupi-guarani em verso, prosa, tintas e acordes, inúmeras comunidades macro-jê - como os maxacali, kaingang e krenak, entre outros - foram sumariamente massacradas, num período em que parte das teorias científicas argumentava a inferioridade racial daquelas populações, negando-lhes mesmo a condição efetivamente humana. Como mostrou a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, convenientemente o índio bom era o índio morto, eram Iracemas e Peris cujas comunidades existiam apenas no passado remoto. (Cunha, 1992CUNHA, Manuela Carneiro da. Política indigenista no século XIX. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 133-154., p.136) Para os índios vivos, nada de romance, nada de poesia, apenas a opressão movida por ganância pela terra e, a seguir, pelo subsolo. Todas essas narrativas são ainda mais tristes se pensarmos nas tragédias que acometem os povos indígenas no exato momento em que escrevemos estas linhas, numa sequência histórica de violência, intolerância, injustiça e desastrosas perdas, em crimes hediondos contra a vida e contra a diversidade cultural.

Historiadores têm sido incansáveis e inflexíveis ao apontar relações de domínio e ao mostrar a continuidade dessas práticas no presente. Mas teimam também em ser incuráveis otimistas, apostando em ações no presente como caminho para a criação de outros mundos possíveis. Para tanto, o poder transformador do conhecimento é considerado por eles uma ferramenta indispensável. O conhecimento histórico tem potencial propositivo: fazer pensar, detonar o questionamento das certezas estabelecidas, nutrir a esperança em "outros possíveis do homem". Como afirma o filósofo Cornelius Castoriadis, não existimos apenas para dizer o que é "mas para fazer ser o que não é". (Castoriadis, 1982CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 2a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. , p.197)

Para tudo isso, o conhecimento histórico não deve ser secreto, nem privilégio de poucos. Precisa circular, abalar os modos de ver, os valores, as percepções, ativar a imaginação de variados atores históricos, para que ousem perscrutar as possibilidades históricas presentes no jogo dos enfrentamentos sociais e políticos.

Um periódico da área de história precisa ser movido por essas pretensões, para que não se torne um simples "publicador" de artigos. Os melhores periódicos são como caçadores investigando rastros dos textos mais originais, das pesquisas mais inovadoras, mais bem fundamentadas, mais relevantes, aquelas que instigam o pensamento, que ousam dizer o que ainda não tinha sido dito, brindando o leitor com uma nova forma de ver e analisar um objeto de estudo. Nesse sentido, os bons periódicos são aqueles que desejam atrair os autores comprometidos com o conhecimento transformador, não apenas com a vaidade da publicação como um fim em si mesmo, ou quesito de incremento de currículos.

Uma vez publicados, esses textos precisam cumprir o que são em potência: ferramentas para fazer pensar, chaves para a compreensão temporal dos fenômenos em torno da vida humana, detonadores da dúvida e da vontade de conhecer mais e de ir além, máquinas de guerra na intenção quase quixotesca que todo historiador nutre - mesmo sem transparecer - de compreender e transformar o mundo.

Varia Historia tem esta premissa como base de todas as suas ações editoriais: veicular conhecimento inovador, colocar na roda textos que sejam ferramentas e máquinas de guerra. Por isso, investimos a cada dia no rigor de nossos processos editoriais, nos padrões de apresentação dos artigos, na desconfiança diante das hierarquias estabelecidas. Trabalhamos para reavivar constantemente os nossos artigos, evocando-os por meio das redes sociais (com entrevistas no canal Youtube e notícias no nosso Facebook, por exemplo); na renovação de nosso site; na conquista da recente indexação pela base Scopus; no cuidado incansável para merecer a permanência na SciELO e no Redalyc; na busca por garantir o acesso rápido e gratuito de nossos conteúdos; e na adoção da licença CC-BY, que realmente dinamiza a utilização de nossos artigos presentes na SciELO.1 1 Sobre a flexibilidade de uso dos textos publicados com a licença CC-BY, sem prejuízo dos créditos autorais, ver: https://creativecommons.org/licenses/?lang=pt_BR. Acesso em: 2 jun. 2016.

Nossa última conquista foi a digitalização de todos os números 1 a 32. Alguns deles já existiam em nosso site antigo, mas havia muitas falhas nos números disponíveis, e vários outros restavam apenas impressos, e já esgotados. A dificuldade técnica e financeira em tratar todos esses artigos para inclusão na SciELO é grande e permanece, lamentavelmente, como sonho ainda irrealizável.

Uma parceria com o Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte trouxe uma solução. A coleção completa, desde o número 1, encontra-se em nosso novo site, www.variahistoria.org. Os PDFs foram convertidos em software OCR (Optical Character Recognition), o que possibilita recursos de pesquisa e edição, assim como sua localização por aqueles que navegam na internet. Para os autores, é uma forma de circular mais facilmente artigos valiosos, novamente destacando tantas pesquisas, tantos esforços que não mereciam ficar na obscuridade, mas devem cumprir o que os moveu, a vontade de conhecer e transformar.

Além da disponibilidade dos números 1 a 32 em nosso site, as edições 33 e seguintes gozam de todos os benefícios que a plataforma SciELO oferece a autores, editores e leitores, por isso os visitantes são redirecionados imediatamente para aquela plataforma.

Esperamos agora que essas revistas recentemente digitalizadas - a maioria esgotada em versão impressa - ganhem nova vida e sejam acessíveis às pesquisas em curso, estimulando o diálogo dos jovens historiadores com o que já foi feito e pesquisado. Ao organizar os trabalhos, a qualidade do que tínhamos em mãos nos surpreendeu: colocamos na rede artigos de Alcir Lenharo, Francisco Iglesias e John Monteiro, entre muitos outros. Números especiais primorosos voltam a circular, a exemplo dos números 11 (1992) sobre Fronteiras da História; 15 (1996) com artigos de Bridget e Christopher Hill; 18 (1997), em especial sobre o centenário de Belo Horizonte; 21 (1999), com uma série de estudos sobre o conjunto de documentos coloniais reunidos no Códice Costa Matoso, entre outros.

Varia Historia quer seus artigos circulando de mão em mão, localizáveis pelos navegantes da internet, "andando" nas cabeças e nas bocas, como diz a linda canção do Chico.

A equipe de Varia Historia cultiva uma certeza e por ela trabalha. Artigo bom é igual a índio: artigo bom é artigo vivo.

Agradecimentos

Agradeço a Armando Olivetti, pela revisão do texto, e ao Tom, pelo diálogo.

Referências

  • CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 2a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
  • CUNHA, Manuela Carneiro da. Política indigenista no século XIX. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 133-154.
  • 1
    Sobre a flexibilidade de uso dos textos publicados com a licença CC-BY, sem prejuízo dos créditos autorais, ver: https://creativecommons.org/licenses/?lang=pt_BR. Acesso em: 2 jun. 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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