Open-access Evento, historicidade e mito em Macunaíma (1928) de Mario de Andrade

Event, Historicity and Myth in Mario de Andrade’s Macunaíma (1928)

RESUMO

Nesse ensaio, exploro a relação entre representação, historicidade e mito no modernismo vanguardista do início do século XX, em especial na obra Macunaíma (1928), de Mario de Andrade. Valendo-me das reflexões sobre evento modernista de White e da natureza da irrealização do evento de Jameson, exploro as razões da cisão entre arte modernista e historiografia. Sugiro que para além de uma incongruência entre dois sistemas de representação incompatíveis – um mimético-realista e sua alternativa modernista – a crítica das vanguardas históricas à historiografia deriva de diferentes noções fundamentais de historicidade e temporalidade. Argumento, em seguida, que o interesse modernista na mitologia e na elaboração de um método mítico tem raízes na maneira como no mito se articula historicidade e temporalidade. Finalmente, analiso a obra de Mario de Andrade em dois tempos: primeiro, acompanho Melo e Souza e Proença na tentativa de descrever o método mítico do qual Mario de Andrade faz uso para compor sua rapsódia e conferir a ela sua originalidade estrutural; em seguida, demonstro como o mito, particularmente um tempo e um espaço míticos, encontram-se urdidos na narrativa andradiana e como, portanto, Macunaíma pode ser entendido como uma maneira alternativa (à historiografia moderna) de articular historicidade e tempo.

Palavras-chave
modernismo; Macunaíma ; mito

ABSTRACT

In this essay, I aim to delve into the relationship between representation, historicity, and myth in the avant-garde modernism of the early 20th century, particularly in Mario de Andrade’s Macunaíma (1928). Drawing upon White’s reflections on the modernist event and Jameson’s insights into the irrealization of the event, I explore the underlying reasons for the division between modernist art and historiography. I suggest that beyond a difference rooted in two incompatible systems of representation—a mimetic-realistic one and its modernist alternative—the critique of historical vanguards towards historiography stems from different fundamental notions of historicity and temporality. Furthermore, I argue that the modernist interest in myth and the development of a mythical method is grounded in how myth articulates historicity and temporality. Lastly, I analyze Mario de Andrade’s work in two steps: firstly, I follow Gilda de Melo e Souza and Cavalcanti Proença in attempting to describe the mythical method Mario de Andrade employs to compose his rhapsody and lend it its structural originality; secondly, I demonstrate how myth, particularly a mythical time and space, are interwoven in Andrade’s narrative, and thus, how Macunaíma can be understood as an alternative (to modern historiography) way of articulating historicity and time.

Keywords
modernism; Macunaíma ; myth

MODERNISMO, EVENTO E REPRESENTAÇÃO

Em 7 de abril de 1929, na coluna moguem (mais frequentemente grafado moquém), da segunda dentição do quarto número da Revista de Antropofagia, Tamandaré, pseudônimo de Oswaldo Costa, fez uma devastadora crítica ao ainda fresco Retrato do Brasil: um ensaio sobre a tristeza brasileira (1928), de Paulo Prado. De acordo com o antropófago, o polêmico ensaio histórico-psicológico de Prado “é ruim, não vale um caracol, está cheio de injustiças e inverdades e é, sobretudo, indigno do esperançoso e promissor talento do escritor magnífico de ‘Paulística’” (Tamandaré, 1929, p. 6). A avaliação de Costa se dá por uma razão principal: Paulo Prado teria, segundo o autor, se fantasiado, em plena “época de Freud”, de “visitador do Santo Ofício”; em outras palavras, teria “preferido [...] apoiar-se ás muletas da moral europeia, ás muletas do Santo Ofício” ao defender em sua tese central que a origem da tristeza brasileira encontrava-se na hiperestesia sexual e na busca incessante pelo ouro – luxúria e cobiça – relatadas nas fontes coloniais.

A crítica de Oswaldo Costa é perfeitamente alinhada ao projeto e à economia simbólica do Movimento Antropofágico. O Manifesto Antropófago (1928) de Oswald de Andrade faz o uso da mesma imagética: o Santo Ofício como instituição que melhor encarna, na sociedade colonial portuguesa na América, a moral patriarcal do colonizador, castradora e produtora de todas as doenças psíquicas do povo americano – tudo isso muito claro naquele momento, época de Freud. Mais importante do que isso, no entanto, é notar que para Costa as razões pelas quais Paulo Prado, “homem de [...] talento incontestável”, incorre em um erro tão tolo, em um moralismo tão tacanho, é sua subserviência, primeiro, às fontes coloniais e, segundo, a Capistrano de Abreu. “A Capistrano”, escreve Tamandaré (1929, p. 6),

faltou senso histórico. Ele não teve a menor intuição do fenômeno brasileiro. Não penetrou o verdadeiro sentido da conquista ‘espiritual’ do roupeta – simples instrumento de dominação política da Contra Reforma – não compreendeu o aspecto essencial da acção formidável do bandeirante – o político-econômico – não percebeu na nossa inquietude incessante a luta homérica de libertação que a Antropofagia identificou. Não vale um suspiro a sua história. Era um bom arquivista. Faltava-lhe capacidade filosófica (Tamandaré, 1929, p. 6, grifo nosso).

Tal crítica é particularmente irônica quando direcionada a Capistrano de Abreu, haja vista o famoso obituário que o historiador cearense escreveu para Francisco Adolfo de Varnhagen, no qual ecoa praticamente a mesma crítica – daquela vez direcionada ao visconde de Porto Seguro. Importa a nós, no entanto, que a raiz do problema de Retrato do Brasil é a crença que o autor deixa transparecer na equivalência entre os relatos coloniais e o acontecido, como indica de maneira perspicaz Ulisses do Valle (2020, p. 42). Valle chama essa atitude realista de preconceito fotográfico, expressão que toma emprestada do comentário que Oswald de Andrade faz sobre a reação à exposição de Anita Malfatti de 1917, em particular sobre Paranóia ou mistificação, de Monteiro Lobato. Segundo Valle (2020, p. 33), o preconceito fotográfico “era, por assim dizer, o fundamento, partilhado mesmo com o senso-comum, das diversas ideologias políticas e correntes de pensamento que gravitavam na sociedade brasileira até a ascensão do modernismo”. O embate dos modernistas era um embate contra uma “ordem estética unificada pelo realismo” (Valle, 2020, p. 33) da qual o pensamento histórico era (e talvez ainda seja, como discutiremos mais à frente) grande devedor.

Entre os especialistas no assunto – mesmo entre aqueles que são muito desconfiados com a memória que o modernismo vanguardista produziu de si mesmo, ver Faria (2004) – parece consensual a ideia de que o embate dos modernistas contra o realismo mimético não era apenas motivado pelo desejo de efetivar uma retórica vanguardista, mas uma reação a uma crise bem mais profunda que também se configurou como uma crise da ordem estética vigente: Ver Sevcenko (1992; 1993) e Velloso (2011). Esse diagnóstico está na base dos estudos modernistas e na própria compreensão do que foi o modernismo, em especial quando essa categoria é utilizada para se referir a uma sensibilidade histórica e a um estilo de época. É nesse sentido, por exemplo, que aponta o último capítulo da Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental (1946), de Erich Auerbach, que inspirou vários trabalhos importantes para a definição de um campo de estudos modernistas com o argumento de que o modernismo seria uma reação à crise de um sistema de representação mimético que havia se desenvolvido na literatura ocidental desde a antiguidade até as primeiras décadas do século XX. A questão está posta também em Modernisms: A Guide to European Literature 1890-1930 (1978), de Malcolm Bradbury e James McFarlane, amplamente considerado o primeiro esforço sistemático de produzir um estudo sobre o modernismo em uma perspectiva transnacional. Bradbury e McFarlane (1991, p. 19) sugerem que para entender esse fenômeno é necessário recorrer a uma sismologia cultural, ideia que definem como “uma tentativa de mapear as mudanças e deslocamentos da sensibilidade que regularmente acontecem na história da arte, literatura e pensamento” em três distintos níveis de magnitude, cada qual com suas consequências. Para Bradbury e McFarlane, os modernismos são consequência de uma transformação de terceiro nível, o dos “deslocamentos esmagadores”. Essa ideia de que os modernismos são uma resposta a “convulsões cataclísmicas da cultura” encontra lugar tanto nas concepções mais tradicionais de modernismo – que circunscrevem o fenômeno a um conjunto de inovações estéticas e a uma cronologia muito restrita – até abordagens bem pouco ortodoxas, como a proposta por Susan Stanford Friedman em Planetary Modernisms (2015), que defende que para cada transformação cataclísmica da cultura já ocorrida houve também um modernismo, a maior parte das vezes completamente desconectado temporal e geograficamente do modernismo vanguardista europeu da primeira metade do século XX.

Acatar tais interpretações advindas dos estudos modernistas implicaria admitir uma série de consequências mais graves para os estudos históricos. A relevância dessa discussão para historiadores (sobretudo para aqueles de maior inclinação teórica) não se restringiria somente ao interesse em historicizar diferentes ordens estéticas, mas também em determinar a natureza de transformações muito mais profundas, capazes de produzir novas sensibilidades histórico-temporais e, consequentemente, demandas por novos sistemas de representação capazes de dar conta dessas novas condicionantes históricas. Dada a pretensão realista que está no cerne da constituição da historiografia disciplinar do século XIX – pretensão que foi escrutinada, criticada e matizada mas jamais radicalmente abandonada pelo mainstream da historiografia acadêmico-disciplinar ao longo do século XX, como sugere Hayden White (2018, p. 14) – acatar a interpretação de que o modernismo surge como reação a transformações profundas da cultura e à insuficiência dos sistemas de representação mimético-realistas disponíveis naquele momento significa admitir a possibilidade de que a historiografia não tenha reagido adequadamente a desafios postos há mais de um século e que essa possa ser a razão pela qual muitos intelectuais modernistas se insurgiram contra um certo tipo de história. Ademais, poderíamos especular sobre a relação entre a insuficiência da resposta dada a essa crise pela historiografia acadêmico-disciplinar e a diminuição relativa do espaço das ciências históricas no debate público ao longo do século passado e das primeiras décadas desse.

Creio que Hayden White foi o teórico da história que mais extensivamente refletiu sobre essas questões a partir de uma leitura do modernismo literário. White (1996, p. 32) defende – e eu subscrevo – que as inovações estilísticas que o modernismo produziu em seu esforço de lidar com a perda de um certo “sentido de história” (White escreve “sense of history”) provavelmente oferecem instrumentos melhores para representar os eventos cataclísmicos que levam a transformações profundas da cultura e dos sistemas de representação vigentes do que as técnicas de enredamento tradicionalmente utilizadas pelos historiadores.

Primeiramente, White (1996, p. 17) aceita a interpretação recorrente da crítica literária contemporânea de que a literatura modernista “dissolve a tríade evento-personagem-enredo que serviu de base para a novela realista e para a historiografia [...], de onde a literatura novecentista derivou seu modelo de ‘realismo’”, e defende que a dissolução do evento tem consequências particularmente importantes para as maneiras como a relação entre literatura e história são percebidas no mundo ocidental. Nas palavras de White:

A invenção de uma historiografia sem sujeito e sem enredo no século vinte já demonstrou amplamente que a pesquisa e a escrita históricas modernas conseguem se virar sem as noções de personagem e enredo. Mas a dissolução do evento como unidade básica de ocorrência temporal e componente fundamental da história enfraquece a concepção mesma de fatualidade e com isso ameaça a distinção entre discursos realistas e meramente imaginativos. O modernismo resolve os problemas postos no realismo tradicional, a dizer, como representar a realidade de maneira realista, simplesmente abandonando o terreno no qual o realismo é construído como uma oposição entre fato e ficção. A negação da realidade do evento mina a noção mesma de ‘fato’ que informa o realismo tradicional. Com isso, fica abolido o tabu de misturar fato e ficção fora do discurso manifestadamente ‘imaginativo’. E, assim como sugere a opinião critica corrente, a noção mesma de ‘ficção’ é deixada de lado na conceitualização da ‘literatura’ enquanto modo de escrita que abandona ambas as funções de uso da linguagem referencial e poética (White, 1996, p. 17-18).

Não nos deixemos levar por uma caracterização caricatural do problema; é evidente que historiadores já vem, há muito, discutindo os aspectos imaginativos e ficcionais da historiografia. Essas reflexões não parecem, no entanto, ter levado à conclusão mais radical (do modernismo) de que os fatos estabelecidos sobre um determinado evento não são capazes de arbitrar os diferentes significados que podem ser atribuídos a um evento (o que comumente chamamos de relativismo histórico ou, pejorativamente, de pós-modernismo). É nessa relação que reside a tensão entre o sistema de representação mimético-realista e a crítica modernista, e não na negação do fato ou da realidade. Basta lembrarmos o aforisma que abre o Manifesto Pau-Brasil (1924), de Oswald de Andrade, “A poesia existe nos fatos” (Andrade, 2011, p. 21), ou o apelo do autor pela “volta ao sentido puro” ou para “ver com os olhos livres” (Andrade, 2011, p. 24, grifos nossos). Para Oswaldo Costa, Paulo Prado endossa o moralismo colonizador precisamente, porque acredita na equivalência entre fonte e fato e no poder do fato de arbitrar entre os possíveis significados de um evento.

É também White quem especula sobre a natureza desses eventos capazes de produzir um curto-circuito nos sistemas de representação disponíveis – o evento modernista. Os eventos modernistas são eventos “holocáusticos” (“holocaustal”), repete White no texto supracitado,

tal como as duas Guerras Mundiais, a Grande Depressão, o crescimento até então inimaginável da população global, pobreza e fome em escalas nunca antes experienciadas, poluição da ecosfera por explosões nucleares e o descarte indiscriminado de substâncias contaminantes, programas de genocídio levados a cabo por meio do uso de tecnologia científica e procedimentos de governança e guerra racionalizados (dos quais o genocídio alemão de 6 milhões de judeus europeus é paradigmático) – [que] funcionam na consciência de certos grupos sociais exatamente como se entende que traumas infantis funcionam na psiquê de indivíduos neuróticos. Isso significa que eles não podem ser simplesmente esquecidos e removidos da mente, mas que também não podem ser adequadamente relembrados, isto é, clara e inequivocamente identificados segundo seu sentido e contextualizados na memória grupal de tal maneira que reduza a sombra que eles lançam sobre a capacidade do grupo de ir ao seu presente e imaginar o seu futuro livre de seus efeitos debilitantes (White, 1996, p. 20, grifo nosso).

White (1996) defende, portanto, que esse tipo de evento, por sua imprevisibilidade radical e pela “amplitude, escala e profundidade” (White, 1996, p. 22), ou “natureza, amplitude e por suas implicações” (White, 1996, p. 20), difere quantitativa e, necessariamente, qualitativamente dos eventos históricos convencionalmente abordados. Quantitativamente, o número de “detalhes identificáveis em qualquer evento singular é potencialmente infinito” e “o ‘contexto’ de cada evento singular é infinitamente extenso ou pelo menos não é determinável objetivamente” (White, 1996, p. 22); logo, apesar da expressiva amplitude e profundidade dos eventos modernistas, e do advento de mídias capazes de registrar e disponibilizar tal riqueza de detalhes, não é quantitativa a diferença fundamental entre eventos modernistas e eventos históricos convencionais. A diferença qualitativa do evento modernista – isto é, sua natureza intrusiva e disruptiva que o torna ao mesmo tempo inesquecível e irrememorável – é a razão de sua resistência ao sistema de representação mimético-realista disponível e, principalmente, de sua inarrabilidade. Os eventos modernistas não são irrepresentáveis; do contrário, a maior parte do esforço feito em O Evento Modernista consiste em identificar diferentes respostas literárias aos desafios postos pelo evento modernista e Hayden White dedica longos trechos à análise de como novas tecnologias de representação advindas da revolução eletrônica produziram maneiras outras de representar esse tipo de evento – maneiras que não apenas fazem dos eventos “impermeáveis a todo esforço de explicá-los, mas também resistentes a qualquer tentativa de representá-los na forma de uma estória” (White, 1996, p. 23). São, no entanto, profundamente resistentes ao enredamento na forma de uma narrativa, em termos benjaminianos, isto é, uma “estória” em que a história (entendida aqui em amplo significado), o conhecimento e os signos de uma cultura são transmitidos de uma geração para a outra. Isso porque é impossível transmitir por meio de uma estória (composta de personagens, eventos e ações, no sentido convencionalmente empregado na historiografia humanista) o que não se pode esquecer ou, principalmente, lembrar.

É nesse sentido – apesar de sua ênfase nos procedimentos de enredamento, e não nos aspectos metafísicos da questão1 – que Hayden White (1996, p. 24) defende que o modernismo literário marca o fim da narrativa (storytelling): “Após o modernismo, quando tratamos da tarefa de narrar, seja na escrita histórica ou literária, as técnicas tradicionais de narração tornam-se inutilizáveis – exceto como paródia”. A prática literária modernista, segundo White, dissolve a noção de personagens “que originalmente eram sujeitos da estória ou pelo menos representantes de possíveis perspectivas dos eventos da estória”, e não cede à tentação de enredar eventos e ações dos personagens “demonstrando como o fim de algum deles pode estar contido em seu começo”. É isso que Fredric Jameson chama de efeitos de irrealização (de-realization, em White) do evento: o uso de técnicas literárias para “esvaziar o evento de sua tradicional função narrativa, a de indexar a irrupção do destino, da sina, da sorte, da graça, da providência e mesmo da história ela mesma em uma vida (ou pelo menos em algumas vidas)” de modo a conferi-las “no pior dos casos, uma aparência de padrão, e, no melhor, uma significância real, transsocial e transhistórica” (White, 1996, p. 25).

Não é necessário nos atermos aos procedimentos identificados nesse texto por White a partir da análise que faz das obras de Virginia Woolf, Jean Paul-Sartre e Gertrude Stein porque mais adiante analisarei os procedimentos utilizados por Mario de Andrade em Macunaíma (1928). Basta dizer, antes de avançarmos, que o contexto de conformação do modernismo literário vanguardista no Brasil é marcado por vários desses eventos modernistas, convulsões cataclísmicas da cultura e pela emergência de uma nova sensibilidade histórico-temporal. Nicolau Sevcenko já havia acentuado, por exemplo, as transformações urbanas profundas da cidade de São Paulo nas décadas finais do século XIX e iniciais do século XX em Orfeu extático na metrópole (1992) e logo depois, de forma mais concisa, em Transformações da linguagem e advento da cultura modernista no Brasil (1993). Pensada como tentativa de dar conta de uma sensibilidade histórica emergente, a insurgência do modernismo literário contra os modos de representação miméticos-realistas pode ser entendida – Macunaíma incluso – como a busca por uma forma de expressão histórica alternativa à historiografia disciplinar daquele momento.

EVENTO, HISTORICIDADE E TEMPO

Tenho até então preferido utilizar o termo historiografia disciplinar ou historiografia humanista tradicional para me referir ao alvo das críticas modernistas, ainda que acredite que nenhum dos dois termos é totalmente preciso – visto que o processo de disciplinarização da história acontece de maneira assíncrona em diferentes tradições de pensamento e que não é precisamente o humanismo caraterístico às abordagens historiográficas disciplinares do século XIX o que está em jogo. Ao mesmo tempo, ecoar os modernistas e utilizar os termos história ou tradição significaria ecoar também a indefinição do objeto da crítica modernista, efeito do uso de termos tão polissêmicos. Os intelectuais e artistas modernistas eram contrários a um tipo específico de história e a uma relação específica com a tradição – atitude que Henrique Gaio chamou de crítica ao passadismo. Nas palavras de Gaio (2008, p. 21-22):

É de suma importância, todavia, diferenciar a crítica ao passadismo, desenvolvida com bastante firmeza pela geração modernista influenciada pelo futurismo italiano, de uma crítica direcionada ao passado. Passadismo não representa um simples sinônimo de passado, mas sim a insistência de um passado que quer se manter presente, que resiste e repele de forma anacrônica o surgimento do novo, do contemporâneo (Gaio, 2008, p. 21-22).

Clement Greenberg (2003, p. 27) percebe a crítica ao passado, história e tradição operando em sentido muito similar ao brasileiro em textos do modernismo anglo-americano:

Contrário ao que dita o senso comum, o modernismo ou vanguarda não se lançaram rompendo com o passado. Longe disso. Nem tinham isso como um programa [...]. Fez parte de sua natureza, no entanto, uma atitude e uma orientação: uma atitude e uma orientação a padrões e níveis: padrões e níveis de qualidade estética em primeiro e em último lugar. E de onde foi que os modernistas tiraram seus padrões e níveis estéticos? Do passado, isto é, da melhor parte do passado (Greenberg, 2003, p. 27).

O uso do passado para a construção de uma tradição é também destacado por Gaio (2008, p. 22) em diálogo com Eduardo Jardim:

No entanto, o passado revestido em tradição representa uma importante base de apoio ao desenvolvimento da brasilidade. O modernismo, através do uso constante de fragmentos alegóricos do passado, inspira-se para a construção de sua crítica. O passado é re-construindo, re-qualificado e re-disposto com intuito de atualizá-lo, retirando com isso a carga nociva e tradicional na qual se manifesta (Gaio, 2008, p. 22).

Para modernistas brasileiros e estrangeiros, portanto, a historiografia da época deveria ser combatida não apenas porque privilegiava um modo de representação realista, mas também porque nutria uma relação imprópria – num sentido heideggeriano – com a historicidade e com o tempo. O problema da historicidade e da temporalidade, em particular da relação com o tempo passado, esteve no centro da clivagem entre historiografia e modernismo vanguardista.

Sobre a temporalidade modernista, White (2024, p. 209) escreve que alguns modernistas tentaram revisar as noções herdadas de história e tradição, enquanto os mais radicais “buscaram dissociar história e tradição de noções newtonianas de tempo e temporalidade, e em imaginar uma temporalidade pós-histórica como pré-condição necessária para a renovação da cultura contra os imperativos do realismo e da modernização”. Já Marlon Salomon (2018, p. 14) destaca a atitude propositiva – e não apenas negativa ou reativa – das vanguardas históricas em relação ao problema da temporalidade:

Na literatura e nas artes, Cronos experimentava novas aventuras. A nova forma do romance, se pensarmos em Marcel Proust, James Joyce e Virginia Woolf, não apenas refutava o tempo em sua forma cronológica, como buscava pensá-lo sob uma condição na qual a narrativa se liberasse de sequências cronológicas contínuas e lineares. A progressão da narrativa não coincidia mais com a ordem dos acontecimentos. Os escritores modernos ‘renunciaram’ a alinhar a representação da ‘história das suas personagens’ com o ‘decurso cronológico’. Perseguir um ‘tema do princípio ao fim’ dando a ele um ‘tratamento global cronologicamente ordenado’ deixava de ser o ideal de escrita e composição romanesca. De modo que, para Erich Auerbach, sua principal novidade consistia em um novo ‘tratamento do tempo’, na descoberta de ‘outros tempos’ (Salomon, 2018, p. 14).

Descobrir, isto é, revelar o que está coberto ou oculto, me parece o termo apropriado para descrever a principal novidade modernista. O conjunto de técnicas literárias e modelos que compõem o paideuma modernista foi composto por meio de sucessivos atos de descobrimento – vejam a “descoberta do Brasil”, como escreve Oswald na dedicatória de Pau-Brasil (1925), pelos modernistas paulistas durante sua caravana pelo interior do país acompanhando o poeta franco-suíço Blaise Cendrars – e de atualização da tradição que, como buscarei demonstrar na análise de Macunaíma mais à frente, revelam também outros tempos possíveis, que por sua vez contornam outras possíveis formas de existir em um mesmo mundo. Mas os modernistas não necessariamente (e, de certo, não frequentemente) inventaram novos tempos. Zoltán Boldizsár Simon e Marek Tamm (2023, p. 17) lembram que “todos vivemos e temos vivido em tempos diferentes”, e explicam:

O elemento básico da existência humana na Terra é que estamos fora de sincronia uns com os outros, assim como com o que nos cerca, simplesmente porque vivemos em uma condição de tempos ‘múltiplos, heterogêneos e divergentes’, como Helge Jordheim (2022a: 47) recentemente expressou. A ideia de um tempo homogêneo e universal é um mito moderno (Hamann 2016), ou, mais precisamente, como veremos, um feliz ato de sincronização temporal. Mas devemos ter em mente que esse mito ou ato de sincronização nunca foi exclusivo. Desde o surgimento do tempo histórico moderno, existe uma forte tradição alternativa de pensar em termos da coexistência de múltiplos tempos históricos (Simon; Tamm, 2023, p. 17).

Parte do que está em jogo na literatura modernista é precisamente esse tempo homogêneo e universal da modernidade europeia enquanto um ato ou performance de sincronização. Além de inventar soluções que permitiram contornar as limitações do modo de representação mimético-realista vigente até então, os modernistas inventaram também maneiras de reconhecer e abordar a multiplicidade do tempo. Alguns deles – como acreditamos ser o caso de Mario de Andrade em Macunaíma – ofereceram formas alternativas de sincronização e dessincronização temporal. Em tradições vazadas por um passado colonial, esses atos de sincronização e dessincronização caracterizam-se por conflitos de ordem temporal e pela concorrência desproporcional do tempo dos colonizadores contra o tempo do colonizado. Simon e Tamm (2023, p. 46) lembram que tais conflitos “não são meras abstrações” e que frequentemente a contemporaneidade do não-contemporâneo, traduzida em conceitos como o de atraso, “serviu como ferramenta da legitimação da empresa colonial ocidental”.

Sobre o problema da historicidade, Fredric Jameson (1961, p. 34-39) postula em um estudo sobre Sartre que a irrealização modernista do evento – lembro, o esvaziamento do evento de sua função narrativa tradicional de indexar a história na vida – acaba resultando na rejeição da historicidade, no sentido técnico de seu uso pela historiografia (o que Jameson chama de facticidade); e que tal rejeição provoca uma abertura da sensibilidade modernista à mitologia, por um lado, e às “extravagâncias do melodrama” (White, 1996, p. 26), por outro. No primeiro caso – aquele que nos interessa aqui – “o significado de eventos outrora inimagináveis parece residir em sua semelhança com estórias arquetípicas atemporais” (“timeless”), ou seja, de certo modo, em sua historicidade própria no sentido ontológico-filosófico. Em outras palavras, para Jameson e para White, a sensibilidade modernista tende a ser refratária à historicidade de determinado objeto (evento, personagem, ação, para nos determos à linguagem formalista de White) em sua acepção historicista de “estar na história” (Carvalho, 2021, p. 185) e acolhedora à historicidade em sua acepção filosófico-existencial, isto é, a “disposição [...] humana para compreender-se ‘historicamente’, simplesmente porque todo ser existe sempre temporalmente, visto que há um condicionamento temporal do qual a existência em geral não pode isentar-se” (Carvalho, 2021, p. 188).

Hayden White chama atenção para o índice temporal implícito na etimologia da palavra modernismo – isto é, sua raiz na palavra latina modus, que significa a medida do agora, ablativo de modo, agora – e defende que o conceito é um conceito temporal. Para White (2024, p. 213),

esse ‘agora’ (que mais tarde reaparece no trabalho de Walter Benjamin como eine Jetztzeit) não apenas apaga (entkräftet) a linearidade da historicidade [historicality] convencional; ele convoca uma oportunidade, um momento kairótico no qual se pode romper a ideia vulgar (vulgäre) de tempo histórico e retornar ao que Heidegger – um modernista exemplar – chamará de uma ‘historicidade própria’ (eingentliche Geschichtelichkeit). Esse ‘retorno’ não é, certamente, um retorno a um passado clássico ou cristão, assim como sonhavam pensadores do Renascimento e da Reforma como Maquiavel ou Lutero. É o que Heidegger chama em Ser e Tempo (1927) de “retorno do possível” (eine “Wiederkehr” des Möglichen) que assume que a ‘historicidade própria’ retorna apenas caso, ‘num in-stante do destino, a existência se abra para a possibilidade, numa re-petição decidida’ (“die schicksalhaft-augenblicklich für sie in der entschlossenen Wiederholung offen ist”) (White, 2024, p. 213).

A agoridade do modernismo é duplamente uma negação da historicidade linear convencional e uma abertura kairológica para um tempo do retorno e da repetição, próprios da historicidade em seu sentido ontológico. É nessa abertura kairológica que os modernistas operam – vejam por exemplo a opção frequente desses escritores pelo gênero manifestário, que segundo Walderez Ramalho (2021, p. 85), inscreve e organiza poeticamente historicidades kairológicas.

Também o recurso ao mito, como discutiremos a seguir, não é ocasional: por meio de métodos mitológicos ou mitopoeias, ou seja, por meio de técnicas de urdidura de mitos – que no caso de Macunaíma assumem a forma da emulação dos procedimentos de composição poética dos cantadores de coco e repente nordestinos, como postula Gilda de Melo e Souza – escritores modernistas foram capazes de, nas palavras de um de seus célebres representantes, “controlar, ordenar, dar forma e significância ao imenso panorama de futilidades e à anarquia que são a história contemporânea” (Eliot, 1923, p. 483). Para entender melhor o porquê isso é um exercício produtivo, discutamos brevemente qual é esse tempo mítico que foi repetidamente evocado.

MODERNISMO E MITOLOGIA

Muitos dos intelectuais que já dedicaram esforços a compreender a função do mito chamam atenção para a ambiguidade semântica do conceito, que significa ao mesmo tempo uma história fundacional profundamente significativa e, simplesmente, uma falsidade. A superimposição desses dois significados revela, segundo Michael Bell (1997, p. 1), um aspecto fundamental do uso literário moderno do mito: “cidadãos plenamente conscientes do século XX sabem que seus mais profundos compromissos e crenças são parte de uma visão de mundo”, seja ela coletiva ou individual, “que não pode ser transcendentalmente fundamentada ou privilegiada em relação a outras possíveis visões de mundo”. A mitopoeia modernista, portanto, seria uma maneira de combinar a relatividade radical e a natureza apodítica da convicção (Bell, 1997, p. 4). O diagnóstico de Bell é certeiro e aponta na direção da análise que se segue: que a afirmação da própria visão de mundo é um reconhecimento de que existem outras visões de mundo da mesma natureza que com ela concorrem; ou que, nos termos que discutiremos adiante, o esvaziamento da função explicativa do mito é a habilitação da função simbólica do mito. Sua tese também reforça, na esteira de vários mitólogos, a função do mito de dar sentido à vida, uma vida abandonada por um certo tipo de historiografia e por seus procedimentos metodológicos sofisticados e apego aos duros e frios fatos. Isso é, junto aos debates sobre a relação entre história e ficção, o ponto nodal de uma parte substancial das discussões sobre história e mito. Dele deriva um projeto de reabilitar na historiografia um certo potencial mítico que já estava presente, em alguma medida, no revival da filosofia da história nas obras de Max Nordau, Alfred Rosenberg ou Theodor Lessing (White, 2024, p. 213). Essas discussões, no entanto, não se ocupam de um aspecto fundamental da relação entre mito e história, isto é, que cada um deles enseja modos de articular temporalidade e historicidade distintos.

O tempo mítico, segundo Ailton Krenak (2017, p. 71), é o tempo em que não havia angústia da certeza: “essa passagem do tempo em que não havia a angústia da certeza deve se referir ao instante imediatamente anterior à linha que divide os povos que têm história e os que passariam a ter mito”, diz Krenak em entrevista. Ele também define o tempo mítico como o “tempo em que tudo é possível, em que é possível que os mundos se intercambiem”, diferente do “tempo chapado, com uma história linear” (Krenak, 2017, p. 73). Vemos aí dois entendimentos para tempo do mito no pensamento de Krenak: em primeiro lugar, estamos falando de um momento anterior à invenção da divisão entre um pensamento mágico e um pensamento da certeza, encarnados, respectivamente, em mito e história. Em segundo lugar, cada um desses tipos de pensamentos expressa, para Krenak, uma relação com o tempo: enquanto o tempo do mito é um tempo de possibilidade, “uma janela” (Krenak, 2017, p. 74), o tempo histórico é chapado e linear. No primeiro entendimento, o mito remete ao evento que acontece antes do início do tempo e que o ordena; no segundo, a uma forma particular de articular temporalidade e historicidade.

De maneira muito semelhante, Paul Ricoeur (1978, p. 117) define, também em entrevista, o mito como portador de mundos possíveis. “O mythos de uma dada comunidade é portador de algo que excede suas próprias fronteiras; é o portador de mundos possíveis”. Ricoeur está primeiramente preocupado com o que chama de “núcleo mito-poético oculto” (Ricoeur, 1978, p. 112) que estrutura diferentes sociedades. O filósofo francês sugere (Ricoeur, 1978, p. 113) que se a sociedade deve ser compreendida a partir de uma abordagem pancrônica, isto é, ao mesmo tempo sincrônica (“um conjunto de instituições simultâneas”) e diacrônica (“um processo de transformação histórica”), o núcleo mito-poético sobre o qual uma determinada sociedade se estrutura também tem essa característica dupla: enquanto sistema simultâneo de símbolos, o mito deve ser objeto de uma análise estrutural; já sua formação é histórica, porque “é sempre através de um processo de interpretação e reinterpretação que eles são mantidos vivos. Mitos tem uma historicidade própria”. A ideia de que o mito requer uma constante ativação por meio da interpretação e reinterpretação põe em xeque a convencional oposição entre o mito acrítico e falso e a história crítica e verdadeira; é o que Ricoeur (1978, p. 115) sugere quando diz que

em nossa cultura ocidental, aquele que produz o mito sempre esteve ligado à instância crítica da razão. Isso porque ele [o mito] teve de ser constantemente interpretado e reinterpretado em diferentes épocas históricas. Em outras palavras, é porque a sobrevivência do mito demanda uma reinterpretação histórica perpétua que ele contém um componente crítico (Ricoeur, 1978, p. 115).

Portanto, o que faz do mito interessante para Ricoeur está além da questão da racionalidade crítica ou da veracidade – contornos que a discussão costuma ganhar na historiografia. Ao desempenhar sua função de núcleo oculto de diferentes sociedades, o mito diz algo sobre a existência em si. Paul Ricoeur afirma que “[...] o mito vai além de sua reivindicação de fundar uma comunidade particular e fala ao homem como tal” (Ricoeur, 1978, p. 117).

As semelhanças entre o que dizem Ailton Krenak e Paul Ricoeur sobre o tempo do mito e o que lemos na análise de White sobre o “agora” modernista apontam para um aspecto fundamental da questão. Assim como Krenak e Ricoeur sugerem sobre o tempo do mito, White afirma a partir de sua leitura de Heidegger que o “agora” é um tempo de abertura para a possibilidade, para a historicidade própria, que se opõe à linearidade da historicidade convencional. O “agora” modernista tem, portanto, qualidades similares ao tempo do mito. Creio ser essa a principal razão pelas quais os escritores modernistas fazem uso do mito: em suas tentativas de dar conta das insuficiências do sistema de representação mimético-realista, os modernistas descobrem no mito mais do que uma fonte de inspiração para um conjunto de técnicas de irrealização do evento, mas também maneiras alternativas de articular a historicidade e de organizar o tempo.

Antes de prosseguir com o argumento, gostaria de deixar claro que não acredito que se deva equacionar uso do mito e mito. A mim parece que os escritores modernistas entendiam que seu recurso à narrativa mitológica era instrumental e não necessariamente resultava na produção de um mito modernista. É o que se vê na famosa resenha do Ulisses (1922) de James Joyce escrita por T. S. Eliot, Ulysses, Order, and Myth (1923). Comentando sobre as técnicas de composição de Joyce, Eliot (1923, p. 482-483) escreve:

É aqui que o uso paralelo que o Sr. Joyce faz da Odisséia revela grande importância. Ele tem a importância de uma descoberta científica. [...] Ao usar o mito, ao manipular um paralelo contínuo entre contemporaneidade e antiguidade, o Sr. Joyce persegue um método que outros devem perseguir na sua esteira. [...] Trata-se simplesmente de uma maneira de controlar, ordenar, dar forma e significado ao imenso panorama de futilidade e anarquia que é a história contemporânea. É um método já esboçado pelo Sr. Yeats, e de cuja necessidade o Sr. Yeats foi o primeiro contemporâneo a ter consciência. É um método do qual o horóscopo é auspicioso. A psicologia (tal como é, independente de nossa reação a ela ser cômica ou séria), etnologia e O Ramo de Ouro concorreram para fazer possível o que era impossível até poucos anos atrás. Ao invés do método narrativo, nós podemos agora usar o método mítico. Trata-se de, acredito seriamente, um passo na direção de fazer o mundo moderno possível para a arte [...] (Eliot, 1923, p. 482-483).

Por um lado, Eliot faz claras menções a “usar o mito”, e não a mitografar, e a um “método mitológico” – esse último oposto ao método narrativo. Por outro, a função de tal método parece similar àquela do mito: controlar, ordenar, dar forma e significado ao mundo. O que desfaz essa aparente contradição é a menção a O Ramo de Ouro (1890), de James George Frazer, livro de substancial influência no modernismo vanguardista, que consiste em um amplo estudo comparativo de mitologia e religião. O Ramo de Ouro é uma instância exemplar do que Paul Ricoeur chama, na esteira da teologia existencial de Rudolf Bultmann, de demitologização, fundamental para o interesse do autor francês no que chama de função simbólica do mito. Breno Mendes (2019, p. 116) explica:

Em um texto seminal publicado em 1941, Bultmann procura equacionar o crer ao compreender no contexto da racionalidade científica moderna. Seu ponto de partida é a impossibilidade de reestabelecer a concepção mítica do universo tal como ela é veiculada pelo Novo Testamento com a interferência de poderes sobrenaturais sobre acontecimentos naturais. Assim, ele coloca como tarefa para a teologia a demitologização da mensagem cristã. Em poucas palavras, demitologizar significa entender o mito como um mito. Isto é, não o tomar como um discurso que veicula uma explicação objetiva do universo. Em vez disso, o mito deveria ser interpretado antropologicamente, ou, de modo ainda mais preciso, existencialmente. Na abordagem existencial o mito é mais do que mera ideologia ou falseamento da realidade, antes, ele é meio privilegiado para a compreensão da existência humana. ‘O mito fala do poder ou dos poderes que o ser humano supõe experimentar como fundamento e limite de seu mundo, bem como de seu próprio agir e sofrer’ (Bultmann, 1999, p. 14).

Ricoeur (1972, p. 162) afirma, portanto, que é precisamente porque o homem moderno não é capaz de coordenar o tempo do mito com o tempo histórico e porque o espaço mítico não pode ser coordenado com os lugares de nossa geografia que “nós somos tentados a entregarmo-nos a demitologização de todo nosso pensamento”. Demitologização, para Ricoeur, é a separação do mito e da história; e a demitização da história – com a qual conviveu o modernismo – é “o outro lado de um entendimento do mito como mito e a conquista, pela primeira vez na história da cultura, da dimensão mítica”. Encarar o mito como mito é esvaziá-lo de sua pretensão explicativa e, ao mesmo tempo, revelar sua função simbólica, isso é, “seu poder de descobrir e revelar o elo entre o homem e o que ele considera sagrado” (Ricoeur, 1972, p. 5).

Isto posto, quero dizer que a menção de Eliot a O Ramo de Ouro enquanto condição de possibilidade do método mítico revela sua visão própria do mito como mito, isto é, do mito despido de sua função explicativa de dar ordem ao mundo, mas disponível em sua função simbólica de desvelar o elo entre o homem e o que ele considera sagrado. Mais uma vez, isso é semelhante ao que Hayden White (2024, p. 219-220) defende em sua própria leitura da resenha de Eliot:

Apesar de muitos críticos e acadêmicos pensarem que isso [a resenha] sinalizava um retorno a mitologia, é evidente que Eliot quis dizer outra coisa. [...] O que Eliot e os modernistas de sua geração fizeram ao apelar ao ‘método mítico’ foi construir a imaginação como uma faculdade cognitiva e defendê-la como base da crítica tanto a ‘ideias vulgares de história’ (profissionais e amadoras) quanto a ideias metafísicas sobre a história promovidas por ‘filósofos da história’ [do período anterior à Primeira Guerra Mundial, que buscavam justificar os métodos e procedimentos da historiografia profissional, ver p. 213]. Em sua busca por retornar à arché ou às origens, ao tempo antes da história começar, os primeiros modernistas abandonaram todos os variados ‘enredos’ (macro e micro) que foram impostos à temporalidade na modernidade (White 2024, p. 219-220).

O argumento que eu gostaria de avançar na parte final desse texto é o seguinte: Mario de Andrade, assim como outros modernistas vanguardistas brasileiros, buscou elaborar uma alternativa à história passadista do Brasil. Essa alternativa está expressa em sua obra mais popular, Macunaíma (1928), e consiste em uma maneira de dar ordem, por meio de uma construção textual rapsódica, ao “imenso panorama de futilidades e anarquia que é a história contemporânea” do Brasil no final da década de 1920, panorama esse composto tanto por uma crescente literatura etnográfica que fazia emergir historicidades recalcadas, quanto por uma historiografia que insistia em mobilizar um sistema de representação mimético-realista incapaz de dar conta da natureza dos eventos modernistas que se desencadeavam desde o final do século anterior. A versão que Mario de Andrade constrói da história nacional faz uso do mito (e de um método de tratamento deste) para des-realizar o evento, articular a historicidade em seu sentido metafísico-ontológico, de modo a performar um ato de ressincronização temporal visando acolher multiplicidade e ambiguidade.

O MÉTODO MÍTICO DE MARIO DE ANDRADE

Macunaíma é um livro complexo, vazado por hibridismos de todas as ordens. O próprio Mario de Andrade teve dificuldades em classificá-lo; chamou-o de brincadeira ou brinquedo algumas vezes nos prefácios não publicados da obra e em algumas cartas – recusando-se sistematicamente a reconhecê-lo como sua mais importante obra. No primeiro prefácio, de 1926, diz ter aproveitado algumas das lendas indígenas recolhidas pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg para os poemas de Tempo de Maria (1930) e usado o resto para escrever “um romancinho” (Andrade, 2017, p. 191); mais tarde inscreveu o livro em um prêmio literário como “romance”, ideia que não teria sido sua, mas que não repudiou (Proença, 1974, p. 7). Ainda nos prefácios não publicados, Mario de Andrade (2017, p. 192) diz que a obra “não passa duma antologia do folclore brasileiro” e que é “sintoma de cultura nacional” (Andrade, 2017, p. 194). O termo que preferiu foi rapsódia, que ocorre nos prefácios, em cartas a amigos, e em uma famosa carta aberta endereçada a Raimundo Moraes, publicada no Diário Nacional em 20 de setembro de 1931, na qual o autor se manifesta sobre as acusações de plágio que vinha sofrendo e das quais o escritor paraense o defendeu em Meu dicionário de cousas da Amazônia (1931). Nesta carta, Mario explica alguns de seus procedimentos de composição. Cito um longo trecho:

O sr., muito melhor do que eu, sabe o que são os rapsodos de todos os tempos. Sabe que os cantadores nordestinos, que são nossos rapsodos atuais, se servem dos mesmos processos dos cantadores da mais histórica antiguidade, da Índia, do Egito, da Palestina, da Grécia, transportam integral e primariamente tudo o que escutam e leem pros seus poemas, se limitando a escolher entre o lido e o escutado e a dar ritmo ao que escolhem pra que caiba nas cantorias. Um Leandro, um Ataíde nordestinos, compram no primeiro sebo uma gramática, uma geografia, ou um jornal do dia, e compõem com isso um desafio de sabença, ou um romance trágico de amor, vivido no Recife. Isso é o Macunaíma e esses sou eu.

[...] Porém Macunaíma era um ser apenas do extremo-norte e sucedia que a minha preocupação rapsódica era um bocado maior que esses limites. Ora coincidindo essa preocupação com conhecer intimamente um Teschauer, um Barbosa Rodrigues, um Hartt, um Roquette Pinto, e mais umas três centenas de contadores do Brasil, dum e do outro fui tirando tudo o que me interessava. Além de ajuntar na ação incidentes característicos vistos por mim, modismos, locuções, tradições ainda não registradas em livro, fórmulas sintáticas, processos de pontuação oral, etc. de falas de índio, ou já brasileiras, temidas e refugadas pelos geniais escritores brasileiros da formosíssima língua portuguesa.

Copiei, sim, meu querido defensor. O que me espanta e acho sublime de bondade é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha cópia a Koch-Gruenberg, quando copiei todos (Andrade, 1931, p. 3).

Mario diz, portanto, que a cópia o serve como meio de composição de uma narrativa capaz de dar conta de sua preocupação rapsódica centrada no Brasil – ainda que não limitada a ele, como veremos mais à frente. O uso do termo “cópia” é irônico e não faz justiça ao complexo processo de composição de que Mario de Andrade fez uso. Esse procedimento é (apenas aparentemente) parasitário, segundo Gilda de Melo e Souza (2003, p. 9), e consiste, na realidade, não em “recortar com neutralidade nos entrechos originais as partes de que necessita para reagrupá-las, intactas, numa ordem nova”, mas em submeter todo esse material acumulado e selecionado a “toda sorte de mascaramentos, transformações, deformações, adaptações” (Souza, 2003, p. 24-25), ou seja, alterá-lo em profundidade.

O livro é inteiramente composto por esse procedimento de seleção, alteração e justaposição, portanto os exemplos são inúmeros – a maioria deles mapeados por M. Cavalcanti Proença em Roteiro de Macunaíma (1950). Destaco, dentre eles, a conversão de Makunáima ou Makunaimã, entidade cosmogênica malévola (cujo nome significa em karib Taulipang: Grande Mal) presente nos mitos pemón, taurepang, wapixana e macuxi, em Macunaíma, herói sem nenhum caráter – que, portanto, não é moral, nem imoral, nem bom, nem mal; pertence à categoria de “seres nem culpados nem inocentes nem alegres nem tristes mas dotados daquela soberba indiferença que Platão ligava à sabedoria” (Andrade, 1943, p. 63 citado por Proença, 1974, p. 15). Os mitos de Makunaimã versam, em larga medida, sobre a origem do bem e do mal e correspondem, portanto, ao tipo de mito que Paul Ricoeur analisa em O Simbolismo do Mal (1960). Tais mitos são do interesse do filósofo francês precisamente porque pretendem englobar todo o conjunto da humanidade em uma história exemplar, coisa que a rapsódia andradiana não pretende fazer. Nesse sentido, fica já aí evidente um deslocamento entre o mito indígena e seu uso rapsódico; este pressupõe a desmitificação daquele, a perda de seu potencial explicativo.

Gilda de Melo e Souza é quem, a meu ver, melhor decodificou o método mítico andradiano. Segundo a autora, é importante compreender que o método de composição de Mario de Andrade não corresponde ao método de composição em mosaico, visto que este implica em uma simples justaposição de materiais recortados de sistemas diversos, ao passo que em Macunaíma vemos um método que também “os desarticula, rompendo sua inteligibilidade inicial para, em seguida, insuflar sentido diverso no agenciamento do novo dos fragmentos” (Souza, 2003, p. 9). Igualmente insuficiente seria aproximar o método andradiano da bricolagem, porque o bricoleur “é norteado por um sentido lúdico” e “é impossível inscrever nesse horizonte raso de acasos, onde o sentido emerge e se extingue seguindo a vida breve das formas, o livro intencional e cheio de ressonâncias de Mario de Andrade” (Souza, 2003, p. 10). Vale lembrar que nos prefácios não publicados de Macunaíma, Mario insiste em dizer que o livro é uma brincadeira, mas também insiste em repetir suas intenções rapsódicas. É também importante lembrar que esse método compositivo de seleção, recorte e alteração é encontrado em várias outras obras do modernismo vanguardista e que não determina a originalidade estrutural da rapsódia andradiana.

Gilda de Melo e Souza defende que o procedimento compositivo de Mario de Andrade se origina na música popular. Para decodificá-lo, Souza analisa as obras do autor paulista sobre a música, nas quais confluem o estudo do fenômeno musical e da imaginação coletiva. No decênio que antecede a publicação de Macunaíma, Mario de Andrade esteve particularmente preocupado com os processos coletivos de criação brasileiros, objeto que investigou por meio da etnografia e crítica musical, mas também, como indica Telê Ancona Lopez, por meio “do confronto de [Edward Burnett] Tylor, [Lucien] Lévy-Brühl e [James] Frazer” (Souza, 2003, p. 10). Sua ênfase no processo criativo, nas normas de compor, deriva do diagnóstico de que em nações novas, como o Brasil, concorrem elementos formativos de natureza muito díspares e que, por tal razão, existe uma dificuldade em forjar uma música popular nacional diferenciada – uma dificuldade, que, arrisco dizer, produz a necessidade de criar métodos de hibridação cultural sofisticados capazes de contorná-la2. É nos procedimentos de organização dessa “mixórdia étnica” que é possível reconhecer “certas formas fixas”, “certos esquemas obrigatórios, presentes no canto, na melodia, na música instrumental, nas danças”. Na leitura que Gilda de Melo e Souza (2003, p. 12) faz dos ensaios sobre música de Mario de Andrade, entre essas formas fixas,

duas se apresentam como dominantes: o processo rapsódico da suíte — característico das danças populares — e a forma da variação, que ocorre tanto na música instrumental como nas canções. Frequentes no populário elas são, no entanto, normas universais de compor (Souza, 2003, p. 12).

A suíte é um procedimento compositório antigo utilizado nas músicas populares e eruditas que consiste na aposição discricionária de várias peças, todas de tipo coreográfico. O que caracteriza a suíte, que Mario encontra em todas as danças dramáticas brasileiras, é que ela não forma unidades em que se desenvolvem um só tema ou ideia. Existe nela um núcleo básico recheado de vários temas apostos que, no limite, privam o próprio episódio nuclear de sua importância e equalizam-no com os episódios acessórios. Em Macunaíma, o princípio da suíte é verificado na incapacidade dos episódios nucleares – a perda e a busca da muiraquitã e o arco narrativo de Vei – “se impor[em] com exclusividade, vendo-se eclipsado[s] permanentemente pela multiplicação incessante dos episódios secundários” (Souza, 2003, p. 15).

A variação, por sua vez, consiste em repetir uma melodia modificando, a cada repetição, um ou mais elementos constitutivos de modo que “apresentando uma fisionomia nova, ela permanece sempre reconhecível na sua personalidade” (Andrade, 1963, p. 334 citado por Souza, 2003, p. 18). Frequentemente a variação opera segundo dois recursos que Mario identifica com os conceitos de Charles Lalo como nivelamento e desnivelamento, isto é, respectivamente, a alçada de um gênero popular ao nível superior da arte erudita e o processo contrário. O autor de Macunaíma tem como modelos do uso da variação os cantadores nordestinos, como indica em sua carta aberta à Raimundo Moraes. Gilda de Melo e Souza descreve da seguinte maneira o processo de “tirar o canto novo” dos cantadores de coco nordestino, identificado por Mario de Andrade:

o processo de ‘tirar o canto novo’ do cantador de coco nordestino é um curioso mecanismo inventivo que joga concomitantemente com [...] o nivelamento e o desnivelamento. 1) Inicialmente, o cantador canta uma melodia que não é sua e que decorou com falhas de memória. 2) Sobre essa melodia tece uma série de variações inconscientes. 3) Enquanto a reproduz vai aos poucos empobrecendo-a até torná-la fácil, esquemática, vulgar (etapa do desnivelamento). 4) Só então recomeça a fantasiar sobre ela, agora conscientemente, com a intenção de variar e enfeitar (etapa da elevação de nível). Portanto: é a partir de uma preparação preliminar bastante complexa que se inicia o momento propriamente criador, quando a riqueza das variações, atuando sobre o núcleo central, torna a enriquecê-lo, transfigurando-o e fazendo-o ascender de novo ao nível superior da arte (Souza, 2003, p. 23).

Essa descrição de um complexo procedimento de “traição da memória” – como o chama Mario – demonstra que o cantador não é “um artista iluminado que encontra suas soluções de improviso; é um profissional que se prepara longamente para a prova” (Souza, 2003, p. 23). Esse é o procedimento que Mario de Andrade emula na feitura de Macunaíma, obra que consiste, quisesse ele ou não, em “sintoma da cultura nacional” (Andrade, 2017, p. 194), ou, nas palavras de Souza (2003, p. 27), “ato falho, a traição da memória do seu período nacionalista” que dá corpo, em uma brincadeira, no acúmulo de uma década de perseguição à diferença brasileira.

O método mítico andradiano pressupõe uma memória traída, limitada, insuficiente. Desse modo, ao evocar os diferentes passados que coexistem e concorrem na formação brasileira, o cantador modernista vê-se livre do imperativo do realismo mimético e habilitado a dar conta daqueles episódios que “não podem ser simplesmente esquecidos e removidos da mente, mas que também não podem ser adequadamente relembrados” (White, 1996, p. 20), sejam eles os eventos modernistas whiteanos, sejam eles os passados recalcados pelo processo civilizatório colonial. Vejamos como isso aparece no texto de Macunaíma.

MITO E IRREALIZAÇÃO MODERNISTA EM MACUNAÍMA

Qualquer um que tenha se aventurado a ler Macunaíma não tardou a encontrar uma série de dificuldades. O livro não é fácil. Não apenas sua linguagem é complexa, cheia de regionalismos, marcas de oralidade e extensiva referência a nome de plantas e animais desconhecidos para a maior parte dos leitores; a rapsódia andradiana também é vazada por uma indeterminação temporal e geográfica, por um acúmulo excessivo de episódios narrativos secundários – que na maior parte das vezes nem sequer agregam ao enredo dos núcleos narrativos principais – e recheada de personagens “imprecisos e descaracterizados”, todos eles “sujeitos a uma espécie de oscilação semântica que os envolve num halo de indeterminação, obrigando o leitor a confrontos frequentes e reverificação de sentido” (Souza, 2003, p. 32). Um caso exemplar é do antagonista (que nem é tão antagônico assim, como o próprio Mario sugere em um dos prefácios) Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã, que é também o regatão peruano. O sobrenome Pietro Pietra sugere origem italiana, assim como Mario faz em uma passagem do capítulo Carta para as Icamiabas ao chamá-lo de “doutor Venceslau Pietro Pietra, súbdito do Vice-Reinado do Peru, e de origem francamente florentina” (Andrade, 2017, p. 81). Já seu cognome, gigante Piaimã, remete ao mesmo tempo às personagens malévolas do folclore europeu e ao imaginário indígena, que Mario reforça no decorrer da obra com duas informações suplementares: “a) o gigante é casado com a Caapora”, entidade da mitologia tupi-guarani associada a vida da floresta, também às vezes chamada de velha Ceiuci, e “b) tem os pés voltados para trás; ora esses dois traços são atributos da entidade malévola da floresta, o Currupira”. Indígena, europeu, italiano e sul-americano, o gigante é “um símbolo complexo e sobrecarregado, que pode ser lido de várias maneiras”, sempre representando “o Outro, contra o qual se atira a energia frágil mas sempre renovada do Mesmo” (Souza, 2003, p. 34).

A “embrulhada geográfica proposital de fauna e flora” (Andrade, 2017, p. 193), por sua vez, alinha-se ao projeto nacionalista em que Mario estava empenhado no momento de feitura do livro e que escapa como ato falho em Macunaíma, como sugere Gilda de Melo e Souza (2003, p. 31). Em Clã do Jabuti (1927) – vale lembrar a equação presente em um dos prefácios: “Amar, verbo intransitivo + Clã do jabuti = Macunaíma” (Andrade, 2017, p. 193) – Mario de Andrade já expressara seu desejo de estabelecer uma identidade comum entre os irmãos rico do Sul e pobre seringueiro do Norte. Fez recurso a procedimentos míticos de representação espacial que encontrou também nos bailados populares brasileiros e produziu uma identidade por meio de uma geografia lendária partilhada. Dos recursos utilizados por Mario de Andrade para produzir tal efeito, chamo atenção para a passagem em que o herói Macunaíma, transformado em francesa, foge do cão Xaréu – que tinha “nome de peixe não ficar hidrófobo” (Andrade, 2017, p. 57) – e em um espaço de três páginas viaja para Guarajá Mirim, Itamaracá, Barbacena, atravessa o Paraná, passa pelos pampas, pela cidade de Serra, no Espírito Santo, Ilha do Bananal e de volta em São Paulo, onde come uma fritada de sururu de Maceió e um pato de seco de Marajó, molhando a janta com mocororó antes de ir dormir.

Outro recurso utilizado pelo autor é o emprego frequente da expressão “légua e meia”, expressão muito vaga para se referir a uma distância já ou ainda não percorrida. A expressão faz parte de um conjunto de expressões relativamente comuns no português brasileiro (Cavalcanti Proença lembra de “palmo e meio”, “para safado, safado e meio”, “perdido por mil, perdido por mil e quinhentos” e “volta e meia”), em que o “e meio” tem valor aumentativo, mas também altamente impreciso. Mario pode ter se inspirado, segundo Proença (1974, p. 21), no cantador Anselmo Vieira, que empregou tal formação em uma louvação de autoria própria (“Vou louvá sua senhora / Tão bonita linda e bela / Distância de légua e meia / Mecê sente o cheiro dela”). São vinte e seis ocorrências distribuídas ao longo de todo o livro3.

Já em relação ao tempo, Mario de Andrade também o retrata de maneira indeterminada, como um espaço de coexistência de diferentes épocas. Isso aparece também no uso de uma expressão frequente: “outro dia”, que pode significar amanhã ou, simplesmente, qualquer dia que não o atual. São 51 ocorrências4 dessa locução ao longo de todo o texto. Esse é apenas um indício da cronologia difícil e imprecisa que se encontra em Macunaíma, onde é possível localizar-se apenas num tempo da trama, urdida pelas ações inconsequentes e imprevisíveis do herói sem nenhum caráter. Nesse tempo, coexistem inumeráveis entidades mitológicas indígenas e personagens históricos. Macunaíma encontra-se com figuras do início da colonização portuguesa na América como o bacharel da Cananeia (aparece na cena da fuga da cabeça de Capei; Andrade, 2017, p. 33), misterioso comerciante radicado na vila de São Vicente, e João Ramalho (no episódio do retorno ao Uraricoera; Andrade, 2017, p. 162-163), lendário colonizador português; encontra-se também, assumindo o lugar do próprio Mario de Andrade, com Jayme Ovalle, Dodô, Manuel Bandeira, Blaise Cendrars, Raul Bopp e outros modernistas no final do capítulo sétimo, Macumba. Por meio de tais recursos, o autor de Macunaíma

substitui o conceito de vir-a-ser pela categoria temporal essencial de coexistência. Todos coexistem no mesmo tempo homogêneo, sem passado ou futuro, sem divisão de horas separando o trabalho do ócio, sem períodos de apogeu que contrastem com as épocas de decadência. O tempo primordial destruiu as contradições e restabeleceu a justiça, nivelando os momentos de penúria à abastança, a civilização técnica do Sul à cultura agrária e arcaica do Nordeste (Souza, 2003, p. 32).

Existe devir em Macunaíma; o devir só não leva a nada. Macunaíma, o herói, nasce e morre sem nenhum caráter; valho-me da brilhante analogia de M. Cavalcanti Proença (1974, p. 10) que diz que o herói da nossa gente é um hipodigma, conceito zoológico que designa um indivíduo hipotético que reúne todas as características possíveis de uma determinada espécie e que, justamente por ter todos os caráteres, não tem nenhum. Ao substituir o vir-a-ser pelo coexistir, Mario de Andrade implode o pilar mais fundamental do fortuito ato de sincronização temporal que é a ideia moderna de história: a progressividade cronológica. Esses procedimentos somam-se aos métodos de composição que Mario emula dos cantadores nordestinos para formar um método mítico capaz de produzir um canto de personagens ambíguos, enredo parcamente determinável e com eventos desrealizados – significações sempre provisórias e, às vezes, inúteis.

Creio ser necessário fazer um último apontamento sobre a extensão da ressonância do canto andradiano com a economia histórica e temporal do modernismo vanguardista. É certo, e o próprio Mario de Andrade não hesita em admitir, que a brasilidade emerge em Macunaíma. Emerge inclusive, como defendemos na esteira de Gilda de Melo e Souza, na emulação do método de composição popular brasileiro e no ato falho de traição da memória nacionalista do autor. A rapsódia andradiana foi gestada em um solo criativo profundamente brasileiro. Mas Mario de Andrade também nos lembra que os princípios da suíte e da variação não são brasileiros, apesar de presentes também no cancioneiro e na dança popular brasileira. O mesmo para os procedimentos lendários de representação do espaço e tempo: encontram-se, igualmente, nas danças que estuda Mario, mas consistem num “processo imemorial [...] empregado pelo teatro indiano, chinês e medieval” (Souza, 2003, p. 31). “O próprio herói do livro que tirei do alemão de Koch-Grünberg, nem se pode falar que é do Brasil. É tão ou mais venezuelano como da gente [...]”, adverte Mario de Andrade (2017, p. 195). E diz de maneira muito clara:

Agora: não quero que imaginem que pretendi fazer deste livro uma expressão de cultura nacional brasileira. Deus me livre. É agora, depois dele feito, que me parece descobrir nele um sintoma de cultura nossa. Lenda, história, tradição, psicologia, ciência, objetividade nacional, cooperação acomodada de elementos estrangeiros passam aí. Por isso que malicio nele o fenômeno complexo que o torna sintomático (Andrade, 2017, p. 195).

Macunaíma é, portanto, sintoma. “Os valores nacionais que o animam são apenas o jeito dele possuir o ‘Sein’ de Keyserling a significação imprescindível ao meu ver, que desperta empatia”. E lembra: “Uma significação não precisa ser total para ser profunda. E é por meio do ‘Sein’ [...] que a arte pode ser aceita dentro da vida” (Andrade, 2017, p. 195). O Brasil anima a obra, mas a obra não é sobre o Brasil – ou pelo menos não foi sobre o Brasil que Mario escreveu quando a escreveu. Ora, sobre ou para que então é Macunaíma? Mario de Andrade (2017, p. 197) responde no final enigmático do segundo prefácio do livro:

Nas épocas de transição social como a de agora é duro o compromisso com o que tem de vir e quase ninguém não sabe. Eu não sei. Não desejo a volta do passado e por isso já não posso tirar dele uma fábula normativa. Por outro lado o jeito de Jeremias me parece ineficiente. O presente é uma neblina vasta. Hesitar é sinal de fraqueza, eu sei. Mas comigo não se trata de hesitação. Se trata duma verdadeira impossibilidade, a pior de todas, a de nem saber o nome das incógnitas. Dirão que a culpa é minha, que não arregimentei o espírito na cultura legítima. Está certo. Mas isso dizem os pesados de Maritain, dizem os que espigaram de Spengler, os que pensam por Wells ou por Lenine e viva Einstein!

Mas resta pros decididos como eu que a neblina da época está matando o consolo maternal dos museus. Entre a certeza decidida que eletrocuta e a fé franca que se recusa a julgar, nasci pra esta. Ou o tempo nasceu por mim... (Andrade, 2017, p. 197).

Ao escrever a brincadeira Macunaíma, o poeta paulista estava respondendo a um chamado de época; um chamado que não poderia ser respondido pela simples volta ao passado, pela profecia (primeiro em tom de advertência e depois de resignação, “o jeito de Jeremias”) ou no “consolo maternal dos museus”. Para responder ao chamado do tempo, Mario volta-se com “a fé franca que se recusa a julgar” para o Sein e para a historicidade existencial por meio da janela do mito – cujo tempo é aquele antes da angústia da certeza, tempo de possibilidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acredito que este ensaio, em larga medida, confirma aquilo que grande parte dos estudos modernistas já afirmaram sobre as vanguardas históricas, sem necessariamente terem se debruçado em casos periféricos da grande economia do modernismo planetário, como é o da obra de Mario de Andrade. A principal contribuição deste texto, a meu ver, é sua ênfase em demonstrar a existência de conexões mais profundas entre evento modernista, crise do sistema de representação realista-mimético, historicidade e mito, o que aponta para outros caminhos potencialmente frutíferos para a investigação da obra de Mario de Andrade e do modernismo vanguardista brasileiro, de maneira mais ampla.

Um desses caminhos seria precisar qual é, exatamente, a leitura do passado nacional que podemos tirar de Macunaíma. Neste ponto, existe uma série de trabalhos que divergem substancialmente em sua interpretação do texto. Gilda de Melo e Souza (2003) e Carlos Eduardo Ornellas Berriel (1987), por exemplo, leem na jornada macunaímica uma história decadente marcada pelo esforço inútil e pela incapacidade do protagonista (que encarna, nessa leitura, a cultura brasileira) de sustentar projetos, resultado de sua opção pela Europa. Eduardo Sterzi (2022), por outro lado, dá ênfase justamente na abertura da futuridade operada por Mario de Andrade a partir de sua reabilitação de passados recalcados. Em ambos os casos, o espectro do passado colonial opera como modelo contra o qual se determina as inadequações e insuficiências da cultura nacional (suas faltas e excessos) e que a obra andradiana visa superar – e supera, como defenderemos em um próximo esforço.

Encerro esse texto com a expectativa de ter demonstrado o valor que podem ter estudos aprofundados das obras de autores do modernismo vanguardista brasileiro a partir do instrumental da teoria e da filosofia da história. A opção por essa abordagem parte da convicção de que a literatura é também uma maneira complexa e potente de articular historicidade – não apenas a historicidade de uma determinada obra ou época, mas a historicidade existencial, que a historiografia reconhece como seu próprio núcleo constitutivo, mas que ainda se furta de investigar em sua linguagem própria.

AGRADECIMENTOS

Sou muito grato a Taynna Marino, Breno Mendes, Walderez Ramalho, Augusto de Carvalho, Wojciech Sawala e Mirosław Loba pelo apoio – intelectual e afetivo – durante a escritura desse texto. Agradeço também a Patrícia Reis, André Jobim e Clarissa Mattos, organizadores do dossiê que esse artigo compõe; ao corpo editorial da Varia História; e aos pareceristas desse artigo por suas valiosas e muito gentis contribuições para esse trabalho, que muito me honram.

REFERÊNCIAS

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    » https://doi.org/10.1080/13642529.2020.1835127
  • 1
    Para uma análise mais atenta ao processo da figuração, que é o núcleo da reflexão whiteana sobre o assunto, ver: Trindade, 2018, Wiśniewski 2020 e Muchowski, 2023.
  • 2
    Muitos estudiosos de Macunaíma – a exemplo de Souza (2003, p. 61), que citamos amplamente ao longo do texto – notaram no livro a recorrência de figurações do hibridismo, seja na caracterização ambígua dos personagens, no uso da linguagem ou em passagens como aquela em que Macunaíma e seus irmãos se banham em uma piscina de água benta formada por uma pegada do gigante Sumé e ficam um branco, um preto e um marrom ou avermelhado. Essa famosa passagem que se adapta surpreendentemente bem ao mito das três raças brasileiro foi retirada quase integralmente de uma lenda recolhida por Lindolfo Gomes e publicada em Contos Populares Brasileiros (1918). O diagnóstico da dualidade estrutural do pensamento brasileiro é mais antigo e, na crítica literária, aparece já bem delineado nos estudos de Antonio Candido sobre a obra de Manuel Antônio de Almeida e de Roberto Schwarcz sobre Machado de Assis. Mais recentemente, Diana Klinger e Wojciech Sawala (2024, p. 10) chamaram atenção para o caráter emancipatórios das figuras híbridas, ambíguas e paradoxais na literatura latino-americana contemporânea, “cujas funções se estendem no escopo entre o sutil subterfúgio das normas constrangedoras e a radical esperança de poder desejar e exigir justiça utópica total, mesmo apesar da sua aparente impossibilidade. Muitas vezes o paradoxo se apresenta, assim, revestido de valor emergencial, constituindo uma intervenção epistemológica urgente na situação liminar de um mundo em plena catástrofe, um mundo cheio de ruínas, marcado pelas ondas de extinção e desertificação. Isso torna-se tanto mais relevante, quanto o contexto catastrófico-apocalíptico em que vivemos nos impõe a tarefa de imaginar futuros eles mesmos paradoxais: ora futuros sem nós, que nós mesmos preparamos, ora futuros em que teremos de viver em um mundo após o fim do mundo.”
  • 3
    Na edição de 2017 publicada pela editora Ubu, que utilizo nesse artigo, ocorre nas páginas 16, 18, 23, 31, 33 duas vezes, 35, 59, 61, 112 duas vezes, 117, 122, 125 duas vezes, 135, 138, 142, 143 três vezes, 153, 154, 157 duas vezes, 159 e 167 duas vezes. Cavalcanti Proença (1974, p. 23), no Roteiro, diz serem vinte e duas ocorrências.
  • 4
    Na edição de 2017 publicada pela editora Ubu, que utilizo nesse artigo, ocorre nas páginas 9, 10 duas vezes, 11, 14, 15, 19, 27 duas vezes, 30, 31, 32, 35, 39, 44, 48, 53, 61 duas vezes, 77, 100, 101, 104, 106, 113, 120, 121, 123, 130, 132, 133 duas vezes, 134 duas vezes, 136, 138, 142, 151, 162 duas vezes, 163, 164, 165, 166, 167, 170, 172, 177, 207, 209. Cavalcanti Proença (1974, p. 23), no Roteiro, diz serem quarenta e seis ocorrências.
  • FINANCIAMENTO:
    Esse trabalho foi realizado no âmbito do projeto TEAM “Core concepts of Historical Thinking”, da Fundação para a Ciência Polonesa (FNP) (Acordo n. POIR.04.04.00-00-5C1E/17-00).
  • Editor responsável:
    Ely Bergo de Carvalho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Mar 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2024
  • Revisado
    28 Set 2024
  • Aceito
    27 Set 2024
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Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: variahis@gmail.com
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