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Mais humor, menos política: Uma certa tendência no drama contemporâneo brasileiro

More Humor, Less Politics: A Certain Tendency in Brazilian Contemporary Drama

Resumo

A partir do estudo de adaptações teatrais e televisivas realizadas nos últimos anos, o artigo procura investigar uma tendência existente no drama contemporâneo brasileiro: a atualização de obras escritas por autores oriundos do Teatro de Arena, voltadas originalmente para a centralidade da crítica ideológica, a partir do esvaziamento da contestação política e da ampliação do humor por meio da comédia de costumes. Com o intuito de defender essa hipótese de leitura, vista como um dos modos possíveis de apropriação das heranças do engajamento artístico no tempo presente, o texto concentra-se na análise de uma remontagem da peça Eles não usam black-tie, dirigida por Dan Rosseto em 2011, e na nova versão do programa A grande família, produzida pela rede Globo entre 2001 e 2014. Trata-se, sobretudo, de verificar uma linha conversadora de recuperação das obras outrora realizadas por Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho.

Palavras-chave
drama contemporâneo brasileiro; Eles não usam black-tie; A grande família

Abstract

By approaching the study of theatrical and television adaptations, which were accomplished in the past years, the paper investigates a trend in the Brazilian contemporary drama. This tendency draws upon revamping plays originally written by authors of the Arena Theatre (Teatro de Arena of São Paulo), and recently rewritten towards the center of the ideological criticism, emptying the political debate, and enlarging humor by way of the comedy of manners. In order to defend this hypothesis of reading, seen as one of the possible ways of appropriation of the heritage of an artistic engagement at the time, the text discusses analyses of the adaptation of the play Eles não usam black-tie (They Don't Wear Black Tie), directed by Dan Rossetto in 2011, and the new version of the television sitcom A grande família (The Big Family ), produced by TV Globo Broadcast network between 2001 and 2014. Above all, this paper aims to verify a conservative view in recuperating works by Gianfrancesco Guarnieri and Oduvaldo Vianna Filho.

Keywords
Brazilian contemporary drama; They Don't Wear Black Tie; The Big Family

No ano de 2011, mais precisamente entre os meses de março e julho, uma nova encenação da peça Eles não usam black-tie esteve em cartaz na cidade de São Paulo. O projeto de remontar o texto escrito por Gianfrancesco Guarnieri em 1956, uma das obras mais significativas da emergência do teatro moderno no Brasil, foi assumido por Flávio Guarnieri, filho mais velho do dramaturgo, e pelo diretor teatral Dan Rosseto, que três anos antes havia levado aos palcos uma versão da peça Quando as máquinas param (1967), de Plínio Marcos. Em clima de homenagem ao talento de Gianfrancesco como autor que se filiou a uma tradição nacional-popular de drama, a nova montagem de Black-tie foi atualizada e dirigida por Rosseto, que trabalhou cerca de quatro meses para ajustar partes da peça ao contexto histórico dos anos 2010, e contou com a participação de Flávio não apenas como produtor associado, mas também como integrante de um elenco composto por atores que tiveram passagens pelo cinema e pela televisa.1 1 Além de Flávio Guarnieri, que interpretou o personagem Tião, a nova versão de Black-tie contou com os seguintes atores: Flávio Dias (como Otávio), Sônia Loureiro (Romana), Lia Antunes (Maria), Rodrigo Duarte (Chiquinho), Greta Antoine (Terezinha), Paulo Gabriel (Jesuíno), Laila Brass (Dalva), Vagner Valério (João) e André Luis/Osvâneo Ferreira (alternando o papel de Bráulio). Apesar de encenada em uma sala convencional de teatro, diferentemente da primeira montagem de Black-tie, que em 1958 ocorreu em um palco com formato de arena, a versão de 2011 aparentava, à primeira vista, uma grande fidelidade em relação ao espírito presente no projeto original.

Em cartaz num pequeno espaço situado dentro do Museu Brasileiro da Escultura (MuBE), a nova montagem contava não somente com uma economia de cenário próxima à da encenação original, reduzido a uma mesa com algumas cadeiras, mas inclusive mantinha a proposta de uma teatralidade realista voltada para os dramas particulares e sociais de personagens pertencentes à classe popular. A sensação de continuidade com o projeto realizado no final da década de 1950 se completava a partir da presença de Flávio Guarnieri entre os atores: se no passado o personagem Tião fora interpretado por Gianfrancesco, agora era seu filho, então com 51 anos, quem assumia o papel um dia pertencente ao pai. A despeito dessa impressão de fluxo contínuo, reforçada pelo respeito diante da figura histórica e paterna de Gianfrancesco,2 2 Propondo uma homenagem a Gianfrancesco, a nova versão de Black-tie começava com uma citação extradiegética ao dramaturgo. Antes do início da encenação propriamente dita, o espectador se deparava com a projeção em vídeo de um texto contendo uma breve fala proferida pelo autor. A frase relembrava o seu compromisso com uma teatralidade vinculada à classe popular brasileira. algo mais profundo parecia ter se modificado entre as versões encenadas em 1958 e 2011. Embora a aparência fosse de fidelidade, com técnicas realistas de montagem que lembravam a mise-en-scène original, havia ali um evidente descompasso em comparação ao projeto de dramaturgia formulado inicialmente pelo autor de Black-tie. Era perceptível, por parte de Dan Rosseto e Flávio Guarnieri, a intenção de operar um fastamento em relação à essência ideológica e ao comprometimento político contidos no texto escrito por Gianfrancesco.

Eles não usam black-tie, como é bem conhecido, foi a primeira peça criada por Gianfrancesco Guarnieri. À época com 21 anos, muito influenciado pelas narrativas políticas presentes no neorrealismo cinematográfico italiano e no filme Rio, quarenta graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, o dramaturgo se lançou ao desafio de deslocar para o palco personagens populares, de origem operária, raramente encontrados até então na História do teatro brasileiro.3 3 Retirei estas informações da entrevista que Guarnieri concedeu ao Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP), em 30 de agosto de 1994, para o projeto Memória da teoria e da prática cinematográfica. O depoimento, aliás, ajuda a resolver uma confusão geralmente associada à origem de Black-tie: a peça foi de fato escrita no ano de 1956 e encenada pelo Teatro de Arena apenas em 1958. A entrevista com o dramaturgo, nunca publicada, pode ser consultada na Midiateca do MIS-SP. GUARNIERI, Gianfrancesco. Entrevista (Memória da teoria e da prática cinematográfica). São Paulo: Museu da Imagem e do Som, 1994. Acervo: midiateca do MIS-SP. Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), assumindo a aposta de que o campo artístico poderia se consolidar como um dos principais espaços poéticos para o engajamento político, Gianfrancesco escreveu Black-tie com a intenção, sobretudo, de construir uma dramaturgia de denúncia contra as condições de pobreza e de opressão enfrentadas pela classe popular no contexto desenvolvimentista dos anos 1950. Ao se aproximar de uma tradição artística identificada com o realismo crítico, em um período de ascensão do pensamento marxista no país, o autor partia da expectativa de que sua peça, uma vez encenada, poderia contribuir para a conscientização ideológica dos espectadores em relação aos dilemas sociais existentes, principalmente, nas favelas do Rio de Janeiro.

Do ponto de vista do jovem Gianfrancesco, compartilhado por outros artistas que naquele momento também pertenciam aos quadros do PCB, a exemplo de Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha) e Leon Hirszman, o fazer criativo, ao expor as causas e as consequências da miséria no Brasil, estimularia no público não apenas a reflexão em torno das perversidades do capitalismo nacional, mas inclusive o desejo de se engajar em um movimento de práxis pela transformação libertária da sociedade. Dentro de uma condição histórica que favorecia a supervalorização do campo cultural como "instrumento" para a mobilização política, como mediação para um projeto alternativo de modernidade, a peça Black-tie nascia da confiança de que a arte poderia fornecer parte da crítica e da experiência poética necessárias para o avançar de um movimento revolucionário com bases socialistas. Anos antes do golpe civil-militar de 1964, da implantação de uma ditadura no Brasil, o dramaturgo flertava com uma dimensão idealista própria a boa parcela de sua geração: o fazer teatral, para além da pesquisa estética modernista, estava marcado pelo compromisso inadiável e incontornável do despertar das consciências.4 4 Sobre o compromisso dessa geração com a arte política e o despertar das consciências, aspecto que evoco apenas brevemente neste artigo, consultar RIDENTI, 2000; 2010.

Com uma carpintaria dramática bem elaborada e de progressão linear do enredo em três atos, Black-tie foi escrita por Gianfrancesco Guarnieri com o intuito de ser facilmente acessível para o público, comprometendo-o emocionalmente com um conjunto de personagens populares atravessado por rupturas de ordem afetiva e política. No decorrer da narrativa, o desenvolvimento da peça localiza-se principalmente nos conflitos existentes entre os dois protagonistas da trama, homens de gerações diferentes, mas integrantes de um mesmo núcleo familiar. De um lado há a figura paterna, Otávio, um experiente líder sindical comunista para quem a razão do existir encontra-se na militância ao lado da classe popular e do meio operário. Do outro há o filho, Tião, um jovem de tendências individualistas que coloca a sua perspectiva de ascensão social acima da luta coletiva do povo. Quando uma greve explode no terceiro e último ato da peça, a cisão ideológica entre os dois, que vinha se ampliando no decorrer da trama, torna-se irreversível. Diante da gravidez indesejada da namorada Maria e temendo perder o emprego, Tião resolve boicotar a paralisação promovida pelos operários contra a exploração fabril. Já Otávio, após ser violentamente reprimido pela polícia e descobrir a traição do próprio filho à greve, decide expulsá-lo de casa, esperando que no futuro o jovem adquira consciência política e, quiçá, reencontre os vínculos perdidos com a sua comunidade.

Embora Black-tie contivesse alguns momentos de comicidade em meio às tensões dramáticas crescentes, um humor secundário espalhado entre o primeiro e o segundo ato da obra, o seu peso mais decisivo localizava-se nas disputas que levariam às rupturas definitivas no interior da família operária. A despeito do espectador deparar-se com duas visões de mundo em choque, podendo entrar em contato com os pensamentos que justificavam as ações de Otávio e de Tião, a peça propunha uma evidente adesão à figura do velho líder sindical, personagem que carregava em si a certeza em um projeto político para a transformação do mundo. Mesmo que o filho fura-greve não fosse tratado no texto como um vilão, e sim como um sujeito ingênuo e encantado com as falsas promessas do capitalismo, era no pai que a comunidade depositava a crença em um futuro melhor associado à luta coletiva do povo. Na balança política presente na versão original de Black-tie, em um contexto histórico marcado pela forte confiança no ideário comunista, Otávio era composto por traços de uma heroicidade a sacrificar afetos em nome do projeto mais amplo de emancipação popular.

Décadas após a primeira encenação de Black-tie, diante da opção em remontar uma peça inicialmente pensada como um projeto realista para a conscientização do espectador, Dan Rosseto e Flávio Guarnieri partiram do pressuposto de que seria necessário realizar ajustes na dramaturgia do texto, atualizando-o para um contexto histórico distante daquele anterior ao golpe civil-militar de 1964. Na avaliação compartilhada por ambos, exposta em depoimento concedido por eles no ano de 2011,5 5 Realizei uma entrevista com Rosseto e Flávio Guarnieri em 27 de junho de 2011. A versão completa do depoimento pode ser consultada a partir do link: https://drive.google.com/file/d/0B6-MEbjz_JTzTzNGQ2owcjdXaG8/view?pli=1; Acesso em: 10 nov. 2015. As citações às falas de ambos, presentes na primeira parte deste artigo, referem-se todas a essa conversa. ROSSETO, Dan; GUARNIERI, Flávio entrevistados por Reinaldo Cardenuto, São Paulo, 27 jun. 2011. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/0B6-MEbjz_JTzTzNGQ2owcjdXaG8/view?pli=1; Acesso em: 10 nov. 2015. a dimensão política presente na peça original de Gianfrancesco, que implicava uma adesão ideológica e afetiva ao engajamento comunista do personagem Otávio, não faria mais sentido em um Brasil no qual o ideal revolucionário, tendo perdido a sua condição hegemônica anterior, encontrava-se pulverizado ou deslocado para as margens do pensamento artístico-intelectual. Nas entrelinhas de suas falas, a contemporaneidade é vista como uma época de desligamento dos projetos políticos e culturais de esquerda: se houve um período no qual a arte viu-se impregnada pelo compromisso inadiável da militância, a ponto de uma geração lançar-se às pesquisas estéticas de estímulo à práxis de engajamento, esse período já teria desaparecido, restando do passado a memória de um idealismo não mais possível de ser recuperado no tempo presente.

Para Rosseto e Flávio, o apagamento da antiga política de esquerda no contemporâneo resultaria em um processo de "abertura" do campo cultural que, destituído da obrigação ideológica e da perspectiva da denúncia social, poderia favorecer o conceito de um teatro voltado principalmente para o divertimento e para a comoção emocional do espectador. Pensar em uma nova montagem de Black-tie implicava, portanto, retirar-lhe uma carga de engajamento considerada excessiva para o presente histórico, ampliando na peça as situações narrativas que beneficiassem, sobretudo, o humor e a comédia de costumes. Embora não houvesse como escapar da questão política existente na peça de Gianfrancesco, afinal é a partir dela que se desenvolve o drama em torno da família operária, o ponto de partida seria reduzi-la em importância, privilegiando a dimensão ético-comportamental que mobiliza as trajetórias dos personagens Otávio e Tião.

Como explicou Dan Rosseto durante uma fala esclarecedora,

quando tive a ideia de montar o Black-tie, meu interesse foi menos a política e mais a ética. Porque eu penso que hoje em dia o brasileiro, talvez o ser humano, esteja lidando de uma forma diferente com o viver, com o dividir. Ao adaptar a peça - encenada em 1958 para politizar, denunciar - pensei que deveria me afastar de certo ranço esquisito para os tempos de hoje. O mundo mudou e não me parece que é através daquela militância que você vai atingir as pessoas. Embora o público me pareça mais rancoroso, a arte ainda consegue promover um pouco de mudança, consegue tocar em um ponto no qual os indivíduos promovem uma catarse e se libertam. Não é à toa que as comédias românticas, estes roteiros mais emocionais, acabam estimulando as pessoas a irem ao cinema. (...). Eu penso que Black-tie tem uma comicidade farsesca. É um texto pesado, denso, e eu senti que precisava aliviar um pouco. Percebi isso durante o ensaio. Por que a opção por ampliar o cômico? Porque eu achava fundamental aproximar a plateia da peça, usar o humor como alívio para que o drama ganhasse mais força (...). Como minha ideia era realmente diminuir [a] questão política, substituí-la por um traço ético, não fiquei muito preocupado em pesquisar o universo da greve. Minha opção foi o lado mais emocional. (Rosseto, 2011).

A perspectiva de Rosseto e de Flávio, em essência distante daquilo que mobilizara Gianfrancesco no final dos anos 1950, levou os responsáveis pela nova versão de Black-tie a realizar mudanças significativas no tom e na dramaturgia do texto original. Apesar das alterações propostas não terem sido drásticas a ponto de reformular a estrutura narrativa presente na peça - que prosseguiu realista, com duração de três atos e envolvendo os personagens no dilema da greve -, o fato é que os ajustes sutis pensados para a montagem de 2011 acabaram por operar um afastamento decisivo em relação ao projeto de militância artística outrora articulado por Gianfrancesco. A máxima mais humor, menos política, implícita na fala de Rosseto, estimulou o diretor teatral a realizar modificações no modo como os personagens são retratados e compostos na peça Black-tie, em especial na forma como o núcleo dramático jovem aparece no decorrer da trama.

Na versão de 2011, um dos ajustes mais evidentes envolveu a presença em cena do casal de adolescentes Chiquinho e Terezinha. Se no texto escrito em 1956 o filho mais jovem de Otávio e sua namorada já eram os responsáveis pelos principais diálogos de alívio dramático, ocupando um espaço cômico secundário que gerava alguns momentos de descontração em meio às tensões políticas e geracionais, na "adaptação" proposta por Rosseto o lugar concedido aos personagens ampliou-se significativamente. Interessado principalmente em localizar e expandir os traços de humor existentes na peça original de Gianfrancesco, vendo nesse processo um caminho para a consolidação do espetáculo teatral, Rosseto optou por realizar alterações em Chiquinho e Teresinha, deslocando-os para um espaço mais central na narrativa. Mesmo que tais mudanças por vezes tenham sido sutis, a exemplo de acréscimos de sensualidade na relação adolescente entre os dois, o fato é que a dilatação de seus diálogos em cena favoreceu uma atualização de Black-tie não em direção ao componente explicitamente político, mas sim rumo a uma presença maior e mais impactante dos episódios relacionados à comédia de costume. A escolha em privilegiar a leveza associada ao comportamento juvenil, sublinhando mais a descontração do que o embate ideológico, é perceptível no segundo ato da versão de 2011. Durante a festa de anúncio do noivado de Tião e Maria, um baile que ocorre no terreiro da casa de Otávio e Romana, a nova montagem de Black-tie amplia o jogo de sedução cômica envolvendo Chiquinho e Teresinha. O primeiro vive uma crise de ciúmes porque a namorada se interessa pelo vizinho João, cujas falas foram reescritas por Rosseto para dotá-lo de uma timidez galante, enquanto a segunda se incomoda com a presença de Dalva na festa, personagem que adquiriu uma sensualidade inexistente no texto original de Gianfrancesco.

A mudança de rota promovida por Rosseto também é perceptível em relação ao casal Tião e Maria. Ao privilegiar o ajuste em direção à comédia de costumes, o diretor teatral resolveu ampliar as situações de intimidade envolvendo dois personagens que, mesmo inquietos diante da gravidez indesejada, projetam no futuro casamento grandes expectativas de felicidade. Na versão mais recente de Black-tie, a criação de novos episódios relacionados à vida privada de Tião e Maria, assim como o acréscimo de humor e de lirismo em sequências já existentes no texto de 1956, convidam o público a vivenciar uma identificação emocional muito mais intensa com os noivos que acabarão rompendo o relacionamento amoroso em decorrência de cisões ideológicas. Tais alterações de tom são evidentes em diversas passagens da encenação de 2011: para além dos diálogos em que Tião pede Maria em casamento, nos quais houve por parte de Rosseto um investimento maior no efeito melodramático, um acréscimo significativo ocorre no desenvolvimento da peça quando é permitido ao espectador acessar a intimidade da noiva que, junto da costureira Dalva, experimenta o vestido a ser utilizado na noite de núpcias. Entrar em contato com o encantamento experimentado por ela, que partilha seus sentimentos de alegria com uma amiga que originalmente não aparecia no segundo ato de Black-tie, torna-se um modo de detalhar, pela comoção emocional, o percurso alquebrado vivido pelo jovem casal.6 6 É curioso notar a escolha de Rosseto em ampliar a presença de Dalva em cena. Personagem secundária no texto original de Gianfrancesco, dona de brevíssimas falas, ela passou a ocupar um espaço bem mais central na encenação de 2011. Com o ajuste em direção à comédia de costumes, Dalva se tornou mais fogosa (provocando ciúmes em Teresinha) e transformou-se em costureira e confidente de Maria. Em contrapartida a essa opção, Rosseto excluiu da peça o violeiro Juvêncio. O personagem que antes sintetizava uma espécie de romantismo políticocultural da classe popular, alegoria do lirismo comunitário da favela carioca, foi suprimido em nome de uma atualização a privilegiar o humor. Na versão de Rosseto, adentrar nesses momentos íntimos, que no texto original de Gianfrancesco ocupavam uma escala menor na narrativa, estimula um adensamento das particularidades dos dois personagens: ao público é dada a chance de adquirir maior empatia por ambos, uma vez que é possível ver com intensidade os seus desejos, sonhos, esperanças, angústias e frustrações.

Alçado à condição de protagonista na nova montagem de Black-tie, dono de um espaço maior na trama, Tião é aquele que concentra as grandes simpatias. Malandro, bem-humorado e amoroso, o personagem carrega uma jovialidade, um lirismo, uma comicidade e um desejo de futuro que a qualquer instante podem se diluir em decorrência da greve operária. Na encenação de Rosseto, o ponto de vista ideológico de Tião, em defesa da ascensão social individualista, é menos condenável do que no texto de 1956. Uma vez que o diretor teatral lhe oferece o lugar central da narrativa, ampliando os seus efeitos cômicos e detalhando aspectos de sua vida íntima, ele se torna o personagem mais completo e sedutor da peça.7 7 Ademais, Flávio Guarnieri, ao interpretar Tião em 2011, optou por um estilo bem malandro de atuação. O seu personagem arrancava gargalhadas do público, ampliando mais ainda o efeito de identificação pela chave da comédia. Esse ajuste no tom, embora não gere uma mudança no desfecho de Black-tie, mantendo-se a ruptura familiar provocada pelo fato do personagem furar a greve, tem como consequência ampliar a solidariedade que o espectador sente diante do percurso de Tião. Logo ele, o mais simpático e emocionante, o único que durante a encenação desce do palco e partilha o espaço do público,8 8 Na montagem de 2011, na sequência de encerramento do primeiro ato, uma quebra na quarta parede era realizada por Flávio Guarnieri. Interpretando Tião, no momento em que o persona-gem explicita pela primeira vez seu desentendimento maior com a militância política do pai, o ator descia do palco furioso e caminhava em direção ao público. Esse recurso dramático, longe de operar distanciamentos críticos, implicava um convite para a ampliação do compromisso emocional do espectador em relação ao personagem. será abandonado por todos e perderá a chance de encontrar a felicidade ao lado de Maria. A impressão provocada pela versão mais recente da peça parece ser, em conclusão, a seguinte: cheio de vida, humor e lirismo, portando uma ingenuidade própria à juventude, o erro do "novo protagonista" não resulta tão intenso a ponto de sua namorada deixá-lo e de seu pai expulsá-lo de casa. O comprometimento emocional com Tião, substancialmente ampliado, resulta em vê-lo como vítima da própria falta de maturidade e da incompreensão de seus familiares. Como afirmou Rosseto,

em 1958, o Tião era como um vilão. Hoje não. Me parece que o público consegue compreender melhor o ponto de vista do personagem (...). Pensei que seria interessante retomar o Tião de Black-tie, pois ele convive com nove personagens que o tempo todo estão colocando para ele questões não resolvidas. Ele acaba enlouquecendo durante o processo. E há três pontos que me interessam bastante: religiosidade, sexualidade e morte. Não apenas a morte física, mas a morte dos relacionamentos. Para mim, Black-tie trabalha este último aspecto de forma muito intensa. O Tião vive a morte de todos os seus relacionamentos. Ele se transforma, amadurece na dor. (Rosseto, 2011).

A simpatia construída em torno de Tião é ainda favorecida pelo evidente esvaziamento da questão política na nova montagem de Black-tie. Se a pesquisadora Iná Camargo Costa, com a acuidade de uma grande analista brechtiana, já demonstrou que o texto escrito por Gianfrancesco continha um limite de alcance em relação às representações políticas, pois ao invés de encenar as atividades operárias e grevistas no palco as evocava indiretamente por meio dos diálogos particularizados dos personagens (Costa, 1996COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. São Paulo: Graal, 1996.), a versão da peça realizada por Rosseto deslocou o universo social do trabalho e da militância sindical para mais distante ainda da centralidade da trama. Coerente com a sua proposta de salientar a comédia de costumes, priorizando o humor e o lirismo pertencentes ao núcleo dramático jovem, a opção do diretor teatral foi reduzir em importância aquilo que originalmente, em Black-tie, voltava-se para a apresentação/celebração do discurso ideológico de Otávio. Embora fique claro que não houve, por parte de Rosseto, um "desrespeito" pela visão de mundo de Otávio, e ele prossiga sendo um sujeito realmente preocupado com o bem-estar da família e com a luta da classe popular, o fato é que na montagem de 2011 a dimensão do engajamento, empurrada com maior afinco para as margens, surge sobretudo como um fundo social pouco debatido a provocar consequências sobre a vida particular dos personagens. A partir da redução dos diálogos acerca da militância operária, o vigor pertencente a Otávio, outrora o do homem experimente e líder comunitário que se sacrifica pelo popular, desloca-se para as cenas nas quais ele lamenta a morte prematura da filha Jandira e reafirma a sua paixão pela esposa Romana. Da expressividade do político passa-se à expressividade do melodrama. No palco, os momentos mais memoráveis do novo Otávio não estão vinculados à crença em um projeto libertário de mundo: são, na verdade, cenas inexistentes no texto de 1956, nas quais o pai desmonta emocionalmente ao deparar-se com a fotografia emoldurada de sua filha desaparecida.

Em tudo diferente da adaptação cinematográfica de Black-tie realizada por Leon Hirszman em 1981, na qual o cineasta suprimiu o humor da peça e posicionou o drama político no centro da narrativa, seja como denúncia contra o regime militar ou pela confiança na manutenção do engajamento comunista,9 9 Para uma análise da versão cinematográfica de Black-tie, incluindo a sua comparação com a peça de 1956, consultar CARDENUTO, 2014. a montagem dirigida por Rosseto atribui pesos diferentes à balança ideológica originalmente proposta por Gianfrancesco. Pela soma das alterações propostas, ampliando a comédia de costume e deixando de celebrar a dimensão política de resistência, o diretor teatral convida o público a experimentar um reajuste no jogo dramático das adesões. Uma vez que o mundo operário e o projeto de engajamento adquirem um lugar ainda mais secundário na narrativa, destituindo Otávio de sua antiga potência de classe, da força que o tornava agente transformador da História, torna-se menos verossímil concordar que a expulsão de Tião seja de fato necessária para o aprendizado moral do personagem. E tendo em vista o protagonismo sedutor de Tião, entre acréscimos de humor e de lirismo, torna-se difícil não vê-lo como vítima, como um jovem cuja vivacidade é apagada pela insistência paterna no engajamento. É justamente essa impressão de foco invertido que a atualização de Rosseto transmite. Pensada como uma "adaptação" comercial de Black-tie, que em princípio caísse no gosto do público contemporâneo, a nova montagem se realizou, sobretudo, por meio da ampliação das potencialidades cômico-afetivas presentes no texto de 1956. Tendo como fonte de inspiração a refilmagem da série A grande família, produzida pela rede Globo entre 2001 e 2014, Rosseto pensou que o seu Black-tie poderia reproduzir uma estrutura próxima àquela contida nesse programa televisivo, privilegiando "a relação de família, uma pitada de humor, o núcleo jovem, a questão amorosa...". Mais humor, menos política, eis o norte do trabalho realizado pelo diretor teatral. Uma perspectiva, ao que tudo indica, também assumida como ponto de partida da Globo ao propor a nova versão da série A grande família, originalmente roteirizada por Vianinha durante a primeira metade dos anos 1970.

Oduvaldo Vianna Filho, como Gianfrancesco Guarnieri um dramaturgo que também integrou o Teatro de Arena durante os anos iniciais de sua trajetória, teve uma breve, mas impactante passagem pela televisão. Originalmente um homem com atuação nos palcos - militante do PCB, liderança cultural nos anos 1960 e um dos principais articuladores do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE) -, Vianinha foi roteirista de programas da rede Globo no período entre 1972 e 1974. No início da década de 1970, em um momento no qual o teatro nacional enfrentava uma das piores crises de sua História, em parte devido à censura do regime militar e ao refluxo de investimentos financeiros na área,10 10 Sobre o assunto, consultar GOMES, 1968, p.1-17. o artista encontrou na televisão um espaço de acolhimento em que poderia dar continuidade ao seu ofício como dramaturgo voltado para leituras críticas da sociedade brasileira. Enfrentando grandes dificuldades para conseguir sustento apenas com o trabalho teatral e proibido pela ditadura de encenar algumas de suas melhores peças, a exemplo de Papa Highirte (1968), uma alegoria de resistência antiautoritária, Vianinha deslocou-se para a televisão, em boa medida, graças à possibilidade de garantir uma inédita segurança econômica em sua vida.

Para a rede Globo, que o contratou por influência de Dias Gomes, outro dramaturgo comunista que já atuava nessa emissora desde 1969, ter em seus quadros um dos principais artistas da geração Arena era bem vantajoso: em um contexto no qual esse meio de comunicação buscava afirmar-se como indústria cultural, afirmar-se socialmente como lugar de entretenimento e de informação, contratar talentos do cinema, do rádio e da televisão gerava expectativas não apenas de desenvolvimento da linguagem televisiva, mas também de que o público responderia bem a nomes conhecidos do campo artístico. Já para Vianinha, o atrativo não era somente financeiro: além de poder dar prosseguimento a uma criação narrativa voltada para questões em torno da classe média brasileira, algo que havia começado a fazer sobretudo com a peça A longa noite de cristal (1970), ele via na TV um lugar novo que talvez lhe oferecesse, com o tempo, a chance de finalmente atingir um amplo número de espectadores a partir de uma ficcionalidade com dimensões críticas. Não que o dramaturgo fosse ingênuo a ponto de encarar esse espaço como uma alavanca para o processo revolucionário que o estimulou fortemente na juventude, como uma brecha para a resistência política e cultural em meio aos piores anos do regime militar, mas o animava a perspectiva de encontrar um veículo no qual pudesse manter sua filiação à arte política, mesmo que isso implicasse realizar ajustes e encarar diversas limitações.11 11 Levando-se em consideração que Vianinha transitou continuamente entre a dramaturgia teatral e a televisiva, realizando no início dos anos 1970 obras tanto políticas quanto comerciais, a análise proposta no decorrer deste artigo, sobre a sua trajetória na TV e a realização do programa A grande família, insere-se com propriedade no dossiê proposto para este número da revista Varia História, acerca das relações entre História e Teatro.

A partir dessa confluência de fatores, que também serviu de estímulo para outros artistas do campo teatral de esquerda entrarem na televisão, dentre eles Guarnieri e Paulo Pontes, Vianinha atuou na rede Globo até julho de 1974, quando infelizmente foi acometido por uma doença que o matou aos 37 anos de vida. Durante a breve passagem por essa emissora, tempo no qual escreveria mais de vinte roteiros, o dramaturgo teria a oportunidade de ocupar na grade de programação um lugar reservado, em pequena parte, à pesquisa de novas linguagens televisivas. Se as novelas já haviam estabelecido um modelo de folhetim que firmara um forte pacto emocional com os espectadores, sendo os maiores sucessos de público destinados ao espaço nobre das 19h e 20h, a exemplo de Irmãos coragem (1970-1971) e Selva de pedra (1972-1973), em outros horários, de audiência menos impactante, a Globo tinha o costume de experimentar padrões ainda timidamente produzidos pela televisão no Brasil. Especialmente às 21h, em dias específicos e entre uma novela e outra, a emissora se abria às tentativas de realizar outros formatos de teledramaturgia, caso dos seriados de exibição semanal em torno de um eixo temático constante.12 12 As afirmações presentes nestes três parágrafos foram construídas, sobretudo, a partir de informações contidas em BETTI, 1997; MEMÓRIA GLOBO, 2003 e MORAES, 2004. Sobre a presença de autores comunistas na televisão, questão que apenas evoco neste artigo, boas análises podem ser encontradas em RIDENTI, 2000; SACRAMENTO, 2011 e SILVA, 2015. A leitura dessa bibliografia, além da consulta aos depoimentos concedidos pelo dramaturgo, PEIXOTO, 1999, levam-me a considerar que a sua entrada na Globo se deveu à conjunção dos vários fatores expostos no corpo do texto.

Na rede Globo, Vianinha transitou principalmente entre dois programas televisivos, quase sempre exercitando a escrita de roteiros nos quais concentrava-se em situações dramáticas e personagens vinculados à baixa ou à alta classe média. O primeiro deles, exibido geralmente às 21h ou 22h, era intitulado Caso Especial e tinha por finalidade adaptar textos da literatura e do teatro, atualizando-os para o Brasil dos anos 1970. Diferentemente das novelas, cujos capítulos eram interligados e poderiam percorrer meses de duração, o programa Caso Especial possuía episódios fechados de 60 minutos, independentes entre si, com mudanças de atores e de corpo técnico a cada nova edição. Para esse trabalho, com exceção de alguns títulos como Turma, doce turma (20 nov. 1974),13 13 As datas colocadas entre parênteses, após os episódios da série Caso Especial, referem-se aos dias em que foram exibidos pela rede Globo. As informações estão presentes em MEMÓRIA GLOBO, 2003, p.417-443. um texto original de Vianinha, o dramaturgo adaptaria livros e peças que permitissem propor uma reflexão sobre inquietações contemporâneas à sociedade brasileira. Privilegiando nesses roteiros um tom melancólico, com narrativas em torno de personagens inadaptados às transformações do tempo presente e distantes da euforia modernizante em voga no país do regime militar, o autor foi responsável pela atualização televisiva de clássicos como A dama das Camélias (27 dez. 1972), romance de Alexandre Dumas Filho, Noites brancas (6 fev. 1973), livro escrito por Fiódor Dostoiévski, Medeia (14 fev. 1973), peça de Eurípedes;14 14 Considerada por Vianinha como o trabalho que mais o gratificou na televisão, a adaptação de Medeia, com roteiro seu e direção de Fábio Sabag, deslocou a peça de Eurípedes para um conjunto habitacional no subúrbio do Rio de Janeiro, atualizando a tragédia da mulher que, traída por seu companheiro, comete suicídio após envenenar os filhos. VIANINHA. A televisão como expressão (uma entrevista). In: PEIXOTO, Fernando (org.). Vianinha. São Paulo: Brasiliense, 1999, p.156. p.154-158. A importância desse programa não reside apenas na busca de Vianinha por um texto que propusesse críticas à realidade social brasileira, pois ele via na tragédia um gênero universal capaz de olhar "nos olhos os grandes problemas da nossa vida, da nossa existência, da condição humana" (VIANINHA. Entrevista a Ivo Cardoso. In: PEIXOTO, Fernando (org.). Vianinha. São Paulo: Brasiliense, 1999, p.182. p.174-187.), mas também no fato de que essa adaptação inspiraria Chico Buarque e Paulo Pontes, meses depois, a escrever a peça Gota d'água (1975), um dos grandes marcos da dramaturgia teatral durante o regime militar. Para uma análise de Gota d'água, consultar HERMETO, 2010. e Ratos e homens (11 abr. 1973), do norte-americano John Steinbeck. A despeito de também ter roteirizado algumas comédias para o Caso Especial, a exemplo da peça Mirandolina (26 out. 1972), de Goldoni, a tendência assumida por Vianinha nesse programa foi a de realizar, sobretudo, uma dramaturgia crítica e realista que salientasse descompassos socioexistenciais em meio às propagandas triunfalistas da ditadura.15 15 Os três últimos parágrafos, a despeito de possuírem informações inéditas obtidas por meio de novas pesquisas, são uma síntese do artigo "A sobrevida da dramaturgia comunista na televisão dos anos 1970: o percurso de um realismo crítico em negociação", publicado anteriormente por mim. Para o leitor interessado em um estudo aprofundado da participação de Vianinha na série Caso Especial, sugiro, portanto, a leitura de CARDENUTO, 2013, p.85-106.

No entanto, o trabalho mais significativo do dramaturgo na rede Globo, aquele para o qual dedicaria um empenho e um tempo muito maiores, esteve relacionado ao desenvolvimento de outra série televisiva semanal, o sitcom A grande família. No decorrer de sua trajetória como escritor teatral, entre os anos 1950 e 1970, Vianinha foi um artista que constantemente apostou na construção de uma obra ficcional que flertasse com técnicas dramatúrgicas vinculadas à comédia. Reconhecendo no humor um elemento-chave não apenas para a possível ampliação do diálogo com o espectador, mas também como um procedimento satírico e irônico capaz de estimular leituras críticas acerca de questões relacionadas à (de)formação da sociedade brasileira, Vianinha foi autor de uma série de peças que se apropriaram do cômico para a elaboração de uma teatralidade política. Durante a juventude, aliás, esse foi um dos aspectos mais marcantes de seu projeto autoral. Na passagem entre as décadas de 1950 e 1960, quando esteve vinculado ao Teatro de Arena e ao CPC, alguns de seus melhores trabalhos caminharam exatamente nesse sentido. Em peças como Chapetuba Futebol Clube (1959), A maisvalia vai acabar, seu Edgar (1960) e Auto dos noventa e nove por cento (1962), essa última escrita em parceria com Armando Costa, a presença da ironia, em diálogo evidente com o teatro brechtiano, operava um distanciamento crítico a expor, via didatismo epicizante, as estruturas de poder e de mercadoria a agir sobre as relações humanas, o mundo do trabalho e o meio universitário. Posteriormente, reafirmando o papel fundamental do humor em sua escrita teatral, embora já distante da influência de Brecht, ele ainda faria obras como o show Opinião (1964), de autoria coletiva, Dura Lex Sed Lex - no cabelo só gumex (1968) e Rasga coração (1974).

Autor, portanto, de um teatro com recorrências cômicas, Vianinha encontraria na rede Globo uma oportunidade para prosseguir em seu flerte. Obviamente, sendo um entusiasta do humor com disposição crítica, o dramaturgo procuraria, dentro de uma emissora sempre disposta a investir em comédia, elaborar roteiros nos quais tentaria problematizar a situação social vivida pela classe média. Foi nesse compasso, aliás, que ele adaptou uma de suas peças para a série Caso Especial, um episódio autobiográfico intitulado Enquanto a cegonha não vem (29 mai. 1974). Com direção de Daniel Filho, o programa narrava as dificuldades financeiras de um jovem casal, ele professor e ela guia de museu, diante das inseguranças provocadas pela iminente chegada do primeiro filho.16 16 O roteiro desse programa foi inspirado na gravidez de Maria Lúcia, esposa de Vianinha. Tanto que Lúcia é o nome do personagem interpretado por Renata Sorrah em Enquanto a cegonha não vem. Na chave da comédia de costumes, tradição à qual pertenceriam todos os roteiros de humor desenvolvidos por Vianinha na TV, o programa aliava divertimento com certa crítica social relacionada às dificuldades cotidianas da pequena burguesia. Junto ao tratamento bem-humorado das complicações enfrentadas pelo casal, que tenta equilibrar-se diante dos ajustes a serem feitos e das inúmeras contas a pagar, advém uma dimensão crítica, inevitavelmente amena, que tem por mérito espelhar desacertos sociais provavelmente próximos daqueles vividos pelo público. Aliar a comédia de costumes a um olhar político, mesmo que composto nas sutilezas do humor, parece ter sido o projeto mais substancial de Vianinha durante o período no qual atuou na Globo.

Tal perspectiva, no entanto, ganharia maior expressividade na realização da série A grande família, exibida pela emissora às quintas-feiras, no horário das 21h, entre 26 de outubro de 1972 e 27 de março de 1975. Versão brasileira de um popular sitcom norte-americano intitulado All in the family (1971-1979), A grande família começou a ser roteirizada por Vianinha a partir de abril de 1973, quando o dramaturgo foi convidado por Paulo Afonso Grisolli, diretor do programa, a integrar o corpo técnico da série. Como a primeira temporada do sitcom não havia atingido o sucesso esperado pela rede Globo, em princípio devido à pouca identificação do público com personagens pertencentes a uma família de alto padrão econômico, a emissora resolveu convidar Vianinha para reelaborar a proposta do programa, ajustando-o a padrões dramatúrgicos que estimulassem um aumento de sua audiência. Com toda a sua experiência como escritor de peças carregadas de humor e tematicamente relacionadas ao contexto social, o autor desenvolveu uma mudança estrutural na série televisiva, transformando-a em um programa no qual o núcleo dramático principal passou a ser composto por personagens vinculados à pequena burguesia carioca.

A mesma família, os Silva, que nos capítulos iniciais morava em um bairro nobre, foi deslocada por Vianinha para um conjunto habitacional suburbano, localizado no fictício Jardim Bela Vista, onde teve que se adaptar a uma nova realidade marcada por limitações e problemas financeiros. No primeiro episódio roteirizado pelo dramaturgo, intitulado Papai é o maior (5 abr. 1973),17 17 As datas referentes às exibições dos episódios originais de A grande família, aqui apresentadas entre parênteses, foram retiradas de SILVA, 2015. o grupo de personagens, composto por sete integrantes, chegava de mudança à residência no subúrbio, bem menor do que a anterior, encarando a complicada tarefa de aceitar a nova condição social e de dividir os cômodos existentes na pequena casa. Transitando pela comédia de costumes, a partir de um humor a ressaltar as dificuldades enfrentadas pela classe média, o autor operou uma mudança de foco em A grande família, tornando-a um sitcom no qual os espectadores viam representadas questões mais próximas ao seu próprio cotidiano. Tudo leva a crer que finalmente caía no gosto da audiência as trapalhadas e inquietações vividas pelo casal Lineu (veterinário e funcionário público) e Nenê (boa esposa e dona de casa), pelo avô aposentado seu Floriano, pelo genro malandro Agostinho e pelos irmãos Bebel, Júnior e Tuco. Conforme afirmou Vianinha durante uma entrevista para Marisa Raja Gabaglia, publicada no jornal O globo, em 22 de março de 1973,

A grande família proletarizou-se por um problema de identificação com o público. O fascínio [da série] é o cotidiano. Vou manter a linha da comédia, uma visão bem-humorada da família. Poderá haver momentos pungentes, mas nunca o dramático vai ser o tom dominante. No fundo, A grande família é a autogozação das nossas dificuldades (...). É acima de tudo a crônica de uma família saudável.18 18 VIANINHA. A televisão como expressão (uma entrevista). In: PEIXOTO, Fernando (org.). Vianinha. São Paulo: Brasiliense, 1999, p.155. p.154-158.

Para a sua versão de A grande família, Vianinha optou por uma dramaturgia realista que representasse a pequena burguesia não apenas em seus costumes e inquietações cotidianas, mas que também propusesse uma dimensão crítica a ressaltar oportunismos e desvios de conduta pertencentes a essa classe social. Nos episódios roteirizados pelo autor, escritos durante um ano de trabalho, a vida suburbana dos Silva, de dificuldades econômicas em meio às promessas do "milagre econômico", foi narrada a partir de uma perspectiva a mostrar aspectos comportamentais da família brasileira no início dos anos 1970. Os eixos temáticos dos capítulos, que volta e meia repetiam-se a cada semana, concentravam-se sobretudo em questões de fundo moral presentes em um Brasil urbano que passava por profundas transformações. Com humor dinâmico, o tempo todo ritmado por alfinetadas irônicas, o sitcom apresentava situações tipicamente reconhecíveis no interior de uma vida familiar que se dividia entre manter o conservadorismo moral ou aderir às mudanças de comportamento decorrentes do mundo moderno. Em diálogo com problemáticas atuais àquele contexto histórico, os episódios giravam em torno, por exemplo, do papel a ser assumido pela mulher (a de ser apenas dona de casa ou adquirir autonomia), das escolhas profissionais dos jovens (entre uma carreira que garantisse segurança econômica ou uma opção mais livre) e das expectativas em relação à própria vida (entre assumir um trabalho com carteira assinada ou sobreviver de bicos e de empregos temporários). Embora esses temas gerassem desarmonias na convivência familiar, discussões que muitas vezes salientavam as diferenças geracionais entre pais e filhos, os capítulos de A grande família, por meio de uma comédia de costumes aprazível, acabavam quase sempre com os personagens entrando em acordo e reafirmando fraternidades. Um quê de redenção que se verifica, sem dúvida, no episódio A família vai bem, obrigado (19 jul. 1973), no qual Tuco, ao dirigir um curta-metragem amador sobre os parentes, resolve retratá-los como um grupo de pessoas "caretas", submetidos à lógica burguesa e preocupados com a sua imagem social. Se de início o jovem hippie quer transformar seu filme em leitura demolidora da família, pois ali ninguém partilha de seu jeito "deslocado", ao término da narrativa acaba se arrependendo e reconhecendo o erro de querer impor sua visão de mundo sobre os outros.19 19 Escrever sobre televisão no Brasil é sempre complicado. Por motivos que mereceriam um estudo à parte, relacionados em boa medida ao desejo de controle sobre a própria memória, as emissoras criam para o pesquisador uma série de empecilhos: ou simplesmente impedem o acesso aos programas que realizaram ou cobram pequenas fortunas para que vejamos fragmentos incompletos de seus materiais. Devido a isso, redigir este texto sobre a primeira versão de A grande família implicou assumir um lado estrategista. Além do visionamento de três episódios da série, dois deles adquiridos com colecionadores, recorri a partes de roteiros e informações presentes em livros, teses e dissertações citados nas referências bibliográficas. As linhas sobre o capítulo A família vai bem, obrigado só se tornaram possíveis graças à pesquisa desenvolvida em SILVA, 2015. Embora não seja uma questão central para o artigo aqui proposto, há de levar em consideração a existência de uma outra dificuldade relacionada aos estudos de dramaturgia televisiva: por vezes, entre a leitura do roteiro e o visionamento da versão gravada de um programa, diferenças crucias podem ser encontradas. Para uma reflexão sobre o problema, consultar ANZUATEGUI, 2012.

A sagacidade de Vianinha, no entanto, foi que a esse tom de comédia aprazível, à apresentação de dilemas relacionados ao comportamento moral, ele acrescentou uma camada dramatúrgica capaz de mostrar desvios ideológicos pertencentes à classe média. Se por um lado o autor assumia uma espécie de solidariedade em relação à família Silva, "uma autogozação das nossas dificuldades", por outro também fazia de seus roteiros textos nos quais o espectador poderia reconhecer-se criticamente no oportunismo dos personagens. Na série televisiva, o humor não funcionava apenas como retrato ameno e afetivo da família, mas incluía momentos de desestabilização que permitiam enxergar naquele núcleo um complicado modus operandi de funcionamento ideológico. Ao meu ver, era justamente essa a camada política buscada por Vianinha em A grande família: uma exposição crítica, mesmo que atravessada por solidariedades, do modo de agir da pequena burguesia. Em boa parte de seus roteiros, um dos esforços do dramaturgo foi tratar das deformações de caráter existentes na sociedade brasileira.

Um exemplo disso, aliás, localiza-se no capítulo intitulado O primeiro ordenado do meu genro (31 jan. 1974). No início desse episódio, o personagem Agostinho, casado com Bebel e malandro que vive às custas de Lineu, parece finalmente ter entrado nos eixos. Diante da gravidez da esposa, que em alguns meses terá uma filha chamada Chiquinha, ele arrumou um emprego fixo e traz para casa o seu primeiro salário. No entanto, viciado em corridas de cavalo, Agostinho quer convencer Bebel a apostar metade do ordenado em páreos nos quais ele tem certeza da vitória. Em poucos minutos, passando de homem responsável para desajuizado, o personagem é repudiado por toda a família. Após sofrer acusações, algumas bem agressivas, ele sai de casa batendo a porta e reafirmando que utilizará o seu dinheiro no jogo. Na opinião dos parentes, esse comportamento é a gota d'água: um pai de família não tem o direito de se arriscar na instabilidade do azar e abrir mão da segurança financeira. Acontece, porém, que a intuição de Agostinho era certeira. Através do rádio de Seu Floriano, de onde se ouve a locução das corridas, a família descobre que os cavalos escolhidos por ele ganharam as provas. Com exceção de Lineu, todos passam a vangloriar Agostinho, agora um possível milionário. Quando ele retorna à residência, descobrimos que o peso na consciência o impediu de fazer as apostas.

No episódio O primeiro ordenado do meu genro, Vianinha exercitou um equilíbrio fino entre a comédia de costumes e o realismo de disposição crítica. Sem pender demais para cenas relacionadas à vida íntima e afetiva dos personagens, centralizando a narrativa na alteração do ponto de vista familiar em relação a Agostinho, o dramaturgo fez do humor e da ironia um caminho para a reflexão sobre uma tendência crônica da sociedade brasileira: o abandono de referenciais éticos, inicialmente assumidos como incontornáveis, diante de uma situação de favorecimento social e econômico. A partir dessa permanência da chave política de leitura, obviamente amena se comparada a uma experiência estética mais radical de contestação, Vianinha procurava desenvolver na televisão um tipo de comédia que também problematizasse dimensões ideológicas mais amplas. Não à toa, contrapondo-se ao preguiçoso Tuco, que representava na série uma caricatura da alienação e do movimento hippie, ele construiu o personagem Júnior, um jovem universitário de esquerda responsável por diálogos que explicitavam tanto o oportunismo da classe média quanto alguns problemas sociais existentes no Brasil da ditadura. Embora também tivesse contradições, e por vezes fosse conservador em relação ao papel social desempenhado pelas mulheres, a presença de Júnior em cena gerava uma camada didática a evidenciar para o público a dimensão crítica proposta em A grande família. Na série televisiva de Vianinha havia como que um morde e assopra constante: ser sensível às dificuldades, mas não abdicar de um espaço possível de contestação.

Décadas após a realização desse programa humorístico, agora em um contexto histórico no qual a rede Globo triunfou no Brasil como uma das maiores empresas de comunicação social, a emissora televisiva resolveu retomar o projeto antes assumido por Vianinha, produzindo a partir do ano de 2001 uma versão atualizada da série A grande família. A cargo do núcleo Guel Arraes, inicialmente com direção geral de Mauro Mendonça Filho e roteiros de Bernardo Guilherme, Cláudio Paiva e Marcelo Gonçalves, o novo programa recuperou quase todos os personagens pertencentes à família Silva, mantendo a proposta de representar uma típica classe média brasileira envolvida em dilemas morais e dificuldades financeiras. Prosseguindo com uma abordagem realista, também na chave da comédia de costumes, os profissionais por trás da versão mais recente de A grande família, pelo menos durante a primeira temporada da série, procuraram manter uma grande fidelidade em relação aos eixos temáticos outrora definidos por Vianinha. Nos primeiros 36 capítulos do novo programa semanal, exibidos nas noites de quinta-feira, entre 29 de março de 2001 e 23 de janeiro de 2002, os roteiristas optaram por atualizar vários episódios originalmente criados pelo autor, a exemplo de Insista no dentista, além de transitar por questões como o desemprego, a malandragem, o papel das mulheres, a condição da velhice ou as escolhas da juventude.

A proximidade com a série produzida no passado, entretanto, não significava reproduzi-la do mesmo modo como foi realizada na década de 1970. Entre os responsáveis pela versão atual, como aliás não poderia deixar de ser, havia o consenso de que a dramaturgia do seriado, deslocada para um Brasil diferente daquele do regime militar, precisaria ser ajustada em direção a conteúdos e padrões formais que fossem mais "condizentes" com o público televisivo dos anos 2000. Em parte, essa adaptação implicava repensar aspectos da narrativa e das estruturas dramáticas pertencentes ao gênero cômico. A partir de um humor bem mais ágil se comparado aos textos originais de Vianinha, o que gerou uma redução dos episódios da média de 45 para 30 minutos, os novos roteiristas propuseram mudanças cruciais na constituição de alguns personagens, como foi o caso do preguiçoso Tuco, que de hippie "paz e amor" passou a músico "descolado" e entusiasta do funk. Flertar com a atualidade, aspecto constante na teledramaturgia e já presente nos roteiros anteriores de A grande família, faria com que os autores do novo programa dialogassem o tempo todo com assuntos prementes à sua própria contemporaneidade. Na primeira temporada, por exemplo, vários episódios se voltariam para a necessidade de economizar energia doméstica, em especial um intitulado Apagão, não! (5 jul. 2001),20 20 As datas referentes à exibição dos novos episódios de A grande família foram retiradas do site Memória Globo, em especial a partir do link: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/humor/a-grande-familia-2-versao/ano-de-2001.htm; Acesso em: 08 nov. 2015. articulando uma clara referência à crise hídrica enfrentada pelo Rio de Janeiro naquele momento.

As alterações propostas para a nova edição de A grande família, no entanto, não se resumiriam apenas aos ajustes relacionados às dinâmicas da narrativa ou às atualidades referentes aos assuntos históricos. Entre os integrantes da equipe técnica responsável pelo programa havia a concordância de que o projeto original de Vianinha, em essência uma aposta na problematização política pela chave do humor, deveria sofrer mudanças em decorrência de padrões televisivos mais contemporâneos da comédia de costumes. De acordo com informações presentes no site Memória Globo e no Dicionário da TV Globo (2003), um livro com verbetes acerca dos programas de dramaturgia e entretenimento realizados pela emissora desde 1965, verifica-se que os idealizadores da versão atual de A grande família desejavam, como ponto de partida para a série, operar um afastamento em relação ao espaço anteriormente concedido por Vianinha para as críticas de origem ideológica. Se décadas atrás, ao experimentar um formato cômico ainda pouco usual na televisão brasileira, o autor optara pela escrita de roteiros centralizados na leitura política da classe média, por vezes pendendo para uma explicitação de nossas deformações sociais, no ano de 2001, dentro de um contexto no qual a Globo teria desprendido a sua dramaturgia das narrativas mais politizadas, não faria sentido resgatar essa dimensão pertencente à série original. Há tempos, o humor dramatúrgico produzido pela emissora, com sucessos de audiência que incluíam programas como Sai de baixo (1996-2000) e Os normais (2001-2003), esquivara-se de um repertório composto por contundências ideológicas. Na opinião dos profissionais que atuavam no núcleo Guel Arraes, recuperar A grande família significava, portanto, depurá-la em direção ao modelo de comédia de costumes que se tornara predominante na Globo, padrão promovido pela emissora em um filme cinematográfico como A partilha (2001), dirigido por Daniel Filho.

Tendo em vista essa perspectiva de ajuste, a privilegiar uma atualização na chave do mais humor, menos política, os roteiristas da nova série propuseram alterações que deslocaram o tom outrora presente no projeto original de Vianinha. Na primeira metade dos anos 1970, quando o autor se tornou o principal redator dos episódios de A grande família, ele desenvolveu duas figuras dramáticas antagônicas que representavam, em sua leitura, polos ideológicos distintos da juventude brasileira. Exercitando na televisão algo que também faria no teatro, sobretudo na peça Rasga coração, Vianinha comporia uma dramaturgia a salientar desajustes políticos e cômico-afetivos entre personagens detentores de visões opostas de mundo. Na sua versão da série, esse desalinhamento era evidenciado, principalmente, a partir das situações envolvendo Tuco e Júnior, irmãos que eram obrigados a compartilhar uma beliche na pequena residência da família Silva. Enquanto o primeiro assumia um hipismo em recusa ao padrão burguês de sociedade, aparecendo como um sujeito preguiçoso a procrastinar a entrada na vida adulta, o segundo era um responsável estudante de medicina, jovem com sensibilidade política a quem eram reservados os diálogos mais críticos de A grande família. Com tendências de esquerda, embora não fosse explicitada qualquer militância de fato, Júnior trabalhava como professor particular e concentrava falas a racionalizarem os equívocos da classe média. Na opinião dos responsáveis pela edição atual da série, um personagem com essas características, a conter discursos ideológicos, já não cabia no modelo teledramatúrgico: visto como um "estudante rebelde", "ferramenta que Oduvaldo Vianna Filho (...) usava para dar voz à crítica social numa época de ditadura militar", ele seria "considerado anacrônico para o contexto da nova versão do seriado".21 21 Estas aspas se referem a um texto oficial da rede Globo sobre a nova versão de A grande família. O seu conteúdo pode ser lido em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/humor/a-grande-familia-2-versao/formato.htm; Acesso em: 08 nov. 2015. No esforço em atualizar o programa para a década de 2000, acreditando que o público não encontraria identificação com leituras mais politizadas, os novos roteiristas optaram pela supressão completa do personagem Júnior. Para eles, uma vez que a questão do engajamento teria se tornado marginal na sociedade brasileira, incluindo o seu esvaziamento entre os jovens universitários, a depuração da comédia de costumes deveria caminhar no sentido de limpar possíveis "excessos" ideológicos encontrados no projeto original de Vianinha.

Reduzir aquilo que era considerado excessivo para o tempo presente, embora verossímil no passado distante, acabaria operando uma alteração no equilíbrio proposto por Vianinha entre o humor e a dimensão política. Conforme discutido em parágrafos anteriores, A grande família original foi uma série na qual o dramaturgo, mesmo solidário às dificuldades sociais da pequena burguesia, procurou salientar problematizações referentes às camadas ideológicas da classe média. Nos episódios por ele roteirizados, é nítido o esforço em concentrar-se nas situações que envolviam os oportunismos ou as incorreções de caráter dos personagens, sendo que as sequências relacionadas ao lirismo e à vida íntima da família Silva eram assumidos sobretudo, mas não unicamente, como suporte para uma leitura de viés político. Essa tendência exercitada por Vianinha, sem dúvida em diálogo com a sua escrita teatral, passaria por um ajuste na nova versão de A grande família. Já na primeira temporada da série atual, em que foi evidente a proximidade entre as edições dos anos 1970 e 2000, verifica-se um sutil mas importante redimensionamento da estrutura dramatúrgica. O trabalho realizado pelos novos roteiristas, dentro do pressuposto assumido em torno do que seria a comédia de costumes no contemporâneo, implicou modificar o balanceamento existente nos textos anteriores. Deixando de ocupar um espaço central nos capítulos, a crítica ideológica acabaria empurrada para o segundo plano da narrativa, privilegiando-se em seu lugar um desenvolvimento maior das situações relacionadas, entre outras, à intimidade de Lineu e Nenê, aos namoros de Tuco e de Floriano ou aos desajustes matrimoniais envolvendo Agostinho e Bebel. Mesmo que a chave política de leitura permanecesse viva na versão atual de A grande família, a despeito do seu esvaziamento mais progressivo a partir da terceira temporada, o fato é que se optou por diluí-la em nome da ampliação dos traços afetivos e particulares referentes à cada personagem. Embora o público ainda tivesse a chance de ver espelhada na televisão as dificuldades financeiras e trabalhistas da classe média, além de certos equívocos morais que lhe são constituintes, o afastamento da postura crítica mais incisiva levou ao privilégio de um humor aberto principalmente ao palatável e ao aprazível.

Essa mudança de tom, aliás, é perceptível quando são comparadas as diferentes versões do episódio Insista no dentista. Nos dois capítulos, o primeiro exibido em 8 de março de 1974 e o segundo em 24 de maio de 2001, o arco dramático central dos roteiros é o mesmo. Enfrentando uma dor insuportável nos dentes, seu Floriano decide marcar um atendimento odontológico com o doutor que há anos atende a família Silva. No entanto, na iminência de agendar a consulta urgente, o idoso é impedido por Agostinho. Com muita lábia, o malandro o convence a aguentar firme por mais algumas horas: como o primo de seu chefe é dentista, "um dos maiores especialistas brasileiros na área", ele marcará um atendimento exclusivo para seu Flor, aproveitando a situação para aproximar-se estrategicamente do empresário e buscar uma promoção salarial. Mesmo incorrendo no desvio de utilizar a dor do outro em seu benefício, dividindo a família entre aderir ou não ao plano, Agostinho tenta garantir um caminho para a ascensão social por meio da troca de favores e das ligações afetivas com os poderosos. Embora a estratégia do personagem seja frustrada ao término dos dois episódios, pois Floriano acaba procurando ajuda médica após o dentista indicado por Agostinho cancelar várias consultas, o tratamento dramático conferido por Vianinha ao capítulo é bem diferente daquele proposto pelos novos roteiristas em 2001.

No texto escrito pelo dramaturgo, no qual o humor possui uma ironia bem maior, a narrativa tem por eixo central, inclusive de modo redundante, as consequências provocadas pelo desvio ideológico de Agostinho: a crítica ao seu comportamento é realçada não apenas pela presença de Júnior em cena, cujos comentários expõem deformidades, mas inclusive pelo fato da grande maioria das cenas explicitarem situações envolvendo a tentativa do personagem em se dar bem. Já no episódio atual, articulando um reequilíbrio entre a comédia e a postura crítica, os novos roteiristas tratam do desvio de Agostinho com um humor mais brando e sem colocá-lo na centralidade da trama. O "jeitinho" do malandro divide espaço com o desenvolvimento maior das particularidades de outros personagens, a exemplo das crises de ciúmes de Bebel ou da insistência de Lineu em exibir-se como chefe da família. Na versão recente, a esperteza do genro compartilha lugar idêntico com o temor de Bebel em ser traída pelo marido. Ao término dos capítulos, a impressão é de que o primeiro convocou uma abordagem crítica bem mais contundente do que o segundo.

A partir do cotejo desses episódios, que também poderia ser estendido aos diferentes roteiros do capítulo Pesadelos de uma noite de verão,22 22 Foi uma opção de recorte não incluir, no corpo do texto, uma análise apurada dos roteiros antigo e recente de Pesadelos de uma noite de verão. Isso se deve ao fato do capítulo original, exibido no dia 20 de março de 1975, não ter sido escrito por Vianinha, morto em julho do ano anterior. No entanto, a cargo dos dramaturgos Armando Costa e Paulo Pontes, ambos filiados à tradição artística de esquerda, os roteiros da temporada final da série prosseguiriam com um humor claramente centralizado na crítica política. Refilmado em 2001, com exibição no dia 26 de abril, o episódio que tratava do endividamento da classe média, encantada com o acesso ao consumo a partir das compras a prazo, perderia muito da postura crítica anterior. não tenho por objetivo qualificar o programa original de Vianinha como melhor que a versão recente de A grande família. Do meu ponto de vista, colocá-los um ao lado do outro, exercitando um estudo comparativo, permite entrar em contato com duas das melhores séries humorísticas produzidas pela rede Globo no decorrer de sua trajetória. A qualidade de ambas surpreende, permitindo ao pesquisador uma análise crítica sobre algumas das mudanças de estilo exercitadas pela emissora em relação à herança televisiva da comédia de costumes. Tal qual ocorrera na adaptação realizada por Dan Rosseto da peça Eles não usam black-tie, verifica-se uma certa tendência na dramaturgia brasileira contemporânea: projetos de linha claramente comercial, seja no teatro ou na TV, recuperando e atualizando obras de dramaturgos engajados a partir do pressuposto mais humor, menos política. Trata-se, sem dúvida, de um modo de apropriação por meio do esvaziamento político, de uma releitura daquilo que em outra temporalidade foi assumido, sobretudo, como experiência estética para contestações possíveis. O humor presente nos originais, enveredando em direção à crítica social mais pungente, desloca-se no contemporâneo para formas "bem-comportadas" de entretenimento.

Como nos faz recordar Jorge Luis Borges, em um belíssimo ensaio intitulado "Os tradutores das mil e uma noites", presente no livro Histórias da eternidade, todo processo de adaptação artística, de atualização de um texto do passado para novas temporalidades, implica um movimento no qual traços da obra anterior acabarão deixados de lado em nome de mudanças relacionadas a questões existentes em outros contextos históricos e sociais. Para os adaptadores de um texto literário ou dramatúrgico, pessoas que geralmente se encontram em um período diferente daquele no qual uma obra foi inicialmente produzida, o desafio do ajuste não leva somente à supressão de partes do original, à eliminação de algo que é analisado como inverossímil para certa contemporaneidade, mas também ao acréscimo de novos aspectos que seriam mais "condizentes" com o "espírito" de outro tempo. Os responsáveis pelas atualizações, sujeitos que possuem seu próprio lugar no mundo, seja ele mais ou menos institucionalizado, são "tradutores" que constroem versões alternativas do original a partir de uma posição ideológica e de um repertório cultural que lhes é caro. No fundo, a eles cabe determinar as escolhas a serem assumidas em uma adaptação, para tanto mobilizando uma visão de mundo que implica adesões e recusas face às inquietações de uma contemporaneidade específica. Em se tratando dos casos estudados no decorrer deste artigo, a despeito do primeiro estar situado no teatro e o segundo na televisão, ambos referem-se a pessoas que compartilham de uma disposição idêntica em relação à esfera artística. Privilegiando a dramaturgia como espetáculo, na linha de uma arte sobretudo comercial, são adaptadores que acreditam na "depuração" das narrativas ficcionais do passado a partir do esvaziamento de conteúdos e formas políticas, lendo o presente como um tempo no qual a militância por meio do campo cultural já não faria mais sentido para o espectador. Assim, ao retomarem peças e programas televisivos originalmente realizados por autores engajados, por artistas cuja trajetória teve início no Teatro de Arena, os seus esforços caminharam na direção de reajustá-las de acordo com suas apostas, nelas realçando não a dimensão contestatória, mas sim o humor através da comédia de costumes. A Dan Rosseto coube suprimir a militância comunista de Eles não usam black-tie ; aos articuladores da edição recente de A grande família, reduzir o espaço dramático antes reservado às críticas e aos comentários políticos.23 23 A atualização pela chave do mais humor, menos política também parece ter sido a tendência presente na remontagem da peça Murro em ponta de faca, realizada por Paulo José em 2011. O texto original de Augusto Boal, encenado pela primeira vez em 1978, pelas mãos do mesmo diretor, ao que tudo indica foi retomado a partir de uma ampliação do jogo cômico e de uma redução das técnicas brechtianas de distanciamento crítico. Levando-se em conta que vi a nova versão apenas uma vez, no teatro do SESC Belenzinho, em São Paulo, optei por incluí-la neste texto apenas como nota indicativa.

A tendência aqui observada, forte em adaptações voltadas especialmente para o mercado, não deve, no entanto, ser encarada como o único modo contemporâneo de releitura das dramaturgias provenientes de autores brasileiros engajados. Seria um equívoco, uma generalização perigosa, considerar que textos escritos por artistas oriundos da geração Arena tenham sido, desde a virada do século, atualizados apenas na chave do mais humor, menos política. Um autor como Vianinha também tem recebido nos últimos anos, por parte do campo teatral, um tratamento que procura preservar na atualidade o espírito crítico presente em suas peças. Em encenações recentes de Rasga coração, dirigida em 2007 por Dudu Sandroni, e Mão na luva, montada em 2010 com produção do grupo Tapa, não pesaram negociações comerciais que se apropriassem das narrativas originais a partir de uma redução significativa das dimensões políticas e dos desentendimentos afetivos. Especialmente a primeira peça, contendo um humor a celebrar resistências na tradição comunista, não retornaria aos palcos diluída na ampliação da comédia de costumes ou destituída de uma carga mais contundente de contestação. Pelo visto, a tendência analisada neste artigo, a despeito de sua ampla circulação social por meio da televisão, está longe de ser o viés exclusivo de releitura da arte outrora concebida como ato de engajamento. Distante portanto de constituir-se como movimento único, tornando-se uma das inclinações possíveis em relação às nossas heranças de dramaturgia militante, a ela coube (e cabe) um projeto de linha conservadora: reescrever no contemporâneo as narrativas compostas por integrantes da geração Arena, nelas esvaziando cargas de contestação e apagando traços de uma memória de luta antes central na constituição do campo cultural brasileiro.

  • 1
    Além de Flávio Guarnieri, que interpretou o personagem Tião, a nova versão de Black-tie contou com os seguintes atores: Flávio Dias (como Otávio), Sônia Loureiro (Romana), Lia Antunes (Maria), Rodrigo Duarte (Chiquinho), Greta Antoine (Terezinha), Paulo Gabriel (Jesuíno), Laila Brass (Dalva), Vagner Valério (João) e André Luis/Osvâneo Ferreira (alternando o papel de Bráulio).
  • 2
    Propondo uma homenagem a Gianfrancesco, a nova versão de Black-tie começava com uma citação extradiegética ao dramaturgo. Antes do início da encenação propriamente dita, o espectador se deparava com a projeção em vídeo de um texto contendo uma breve fala proferida pelo autor. A frase relembrava o seu compromisso com uma teatralidade vinculada à classe popular brasileira.
  • 3
    Retirei estas informações da entrevista que Guarnieri concedeu ao Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP), em 30 de agosto de 1994, para o projeto Memória da teoria e da prática cinematográfica. O depoimento, aliás, ajuda a resolver uma confusão geralmente associada à origem de Black-tie: a peça foi de fato escrita no ano de 1956 e encenada pelo Teatro de Arena apenas em 1958. A entrevista com o dramaturgo, nunca publicada, pode ser consultada na Midiateca do MIS-SP. GUARNIERI, Gianfrancesco. Entrevista (Memória da teoria e da prática cinematográfica). São Paulo: Museu da Imagem e do Som, 1994. Acervo: midiateca do MIS-SP.
  • 4
    Sobre o compromisso dessa geração com a arte política e o despertar das consciências, aspecto que evoco apenas brevemente neste artigo, consultar RIDENTI, 2000RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da tv. Rio de Janeiro: Record, 2000.; 2010.
  • 5
    Realizei uma entrevista com Rosseto e Flávio Guarnieri em 27 de junho de 2011. A versão completa do depoimento pode ser consultada a partir do link: https://drive.google.com/file/d/0B6-MEbjz_JTzTzNGQ2owcjdXaG8/view?pli=1; Acesso em: 10 nov. 2015. As citações às falas de ambos, presentes na primeira parte deste artigo, referem-se todas a essa conversa. ROSSETO, Dan; GUARNIERI, Flávio entrevistados por Reinaldo Cardenuto, São Paulo, 27 jun. 2011. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/0B6-MEbjz_JTzTzNGQ2owcjdXaG8/view?pli=1; Acesso em: 10 nov. 2015.
  • 6
    É curioso notar a escolha de Rosseto em ampliar a presença de Dalva em cena. Personagem secundária no texto original de Gianfrancesco, dona de brevíssimas falas, ela passou a ocupar um espaço bem mais central na encenação de 2011. Com o ajuste em direção à comédia de costumes, Dalva se tornou mais fogosa (provocando ciúmes em Teresinha) e transformou-se em costureira e confidente de Maria. Em contrapartida a essa opção, Rosseto excluiu da peça o violeiro Juvêncio. O personagem que antes sintetizava uma espécie de romantismo políticocultural da classe popular, alegoria do lirismo comunitário da favela carioca, foi suprimido em nome de uma atualização a privilegiar o humor.
  • 7
    Ademais, Flávio Guarnieri, ao interpretar Tião em 2011, optou por um estilo bem malandro de atuação. O seu personagem arrancava gargalhadas do público, ampliando mais ainda o efeito de identificação pela chave da comédia.
  • 8
    Na montagem de 2011, na sequência de encerramento do primeiro ato, uma quebra na quarta parede era realizada por Flávio Guarnieri. Interpretando Tião, no momento em que o persona-gem explicita pela primeira vez seu desentendimento maior com a militância política do pai, o ator descia do palco furioso e caminhava em direção ao público. Esse recurso dramático, longe de operar distanciamentos críticos, implicava um convite para a ampliação do compromisso emocional do espectador em relação ao personagem.
  • 9
    Para uma análise da versão cinematográfica de Black-tie, incluindo a sua comparação com a peça de 1956, consultar CARDENUTO, 2014CARDENUTO, Reinaldo. O cinema político de Leon Hirszman (1976-1981): engajamento e resistência durante o regime militar brasileiro. Tese (Doutorado em Ciências) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014..
  • 10
    Sobre o assunto, consultar GOMES, 1968GOMES, Dias. O engajamento: uma prática de liberdade. Revista civilização brasileira, Caderno especial n. 2, p.7-17, jul. 1968., p.1-17.
  • 11
    Levando-se em consideração que Vianinha transitou continuamente entre a dramaturgia teatral e a televisiva, realizando no início dos anos 1970 obras tanto políticas quanto comerciais, a análise proposta no decorrer deste artigo, sobre a sua trajetória na TV e a realização do programa A grande família, insere-se com propriedade no dossiê proposto para este número da revista Varia História, acerca das relações entre História e Teatro.
  • 12
    As afirmações presentes nestes três parágrafos foram construídas, sobretudo, a partir de informações contidas em BETTI, 1997BETTI, Maria Silva. Oduvaldo Vianna Filho. São Paulo: EDUSP, 1997.; MEMÓRIA GLOBO, 2003MEMÓRIA GLOBO. Dicionário da TV Globo, vol. 1: programas de dramaturgia & entretenimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. e MORAES, 2004MORAES, Dênis de. Vianinha - cúmplice da paixão. Rio de Janeiro: Record, 2004.. Sobre a presença de autores comunistas na televisão, questão que apenas evoco neste artigo, boas análises podem ser encontradas em RIDENTI, 2000RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da tv. Rio de Janeiro: Record, 2000.; SACRAMENTO, 2011SACRAMENTO, Igor. Depois da revolução, a televisão: cineastas de esquerda no jornalismo televisivo dos anos 1970. São Carlos: Pedro & João editores, 2011. e SILVA, 2015SILVA, Roberta Alves. A grande família: intelectuais de esquerda, Rede Globo e censura durante a ditadura militar (1973-1975). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2015.. A leitura dessa bibliografia, além da consulta aos depoimentos concedidos pelo dramaturgo, PEIXOTO, 1999PEIXOTO, Fernando (org.). Vianinha. São Paulo: Brasiliense, 1999., levam-me a considerar que a sua entrada na Globo se deveu à conjunção dos vários fatores expostos no corpo do texto.
  • 13
    As datas colocadas entre parênteses, após os episódios da série Caso Especial, referem-se aos dias em que foram exibidos pela rede Globo. As informações estão presentes em MEMÓRIA GLOBO, 2003MEMÓRIA GLOBO. Dicionário da TV Globo, vol. 1: programas de dramaturgia & entretenimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003., p.417-443.
  • 14
    Considerada por Vianinha como o trabalho que mais o gratificou na televisão, a adaptação de Medeia, com roteiro seu e direção de Fábio Sabag, deslocou a peça de Eurípedes para um conjunto habitacional no subúrbio do Rio de Janeiro, atualizando a tragédia da mulher que, traída por seu companheiro, comete suicídio após envenenar os filhos. VIANINHA. A televisão como expressão (uma entrevista). In: PEIXOTO, Fernando (org.). Vianinha. São Paulo: Brasiliense, 1999PEIXOTO, Fernando (org.). Vianinha. São Paulo: Brasiliense, 1999., p.156. p.154-158. A importância desse programa não reside apenas na busca de Vianinha por um texto que propusesse críticas à realidade social brasileira, pois ele via na tragédia um gênero universal capaz de olhar "nos olhos os grandes problemas da nossa vida, da nossa existência, da condição humana" (VIANINHA. Entrevista a Ivo Cardoso. In: PEIXOTO, Fernando (org.). Vianinha. São Paulo: Brasiliense, 1999, p.182. p.174-187.), mas também no fato de que essa adaptação inspiraria Chico Buarque e Paulo Pontes, meses depois, a escrever a peça Gota d'água (1975), um dos grandes marcos da dramaturgia teatral durante o regime militar. Para uma análise de Gota d'água, consultar HERMETO, 2010HERMETO, Miriam. 'Olha a gota que falta ': um evento no campo artístico-intelectual brasileiro (1975-1980). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2010..
  • 15
    Os três últimos parágrafos, a despeito de possuírem informações inéditas obtidas por meio de novas pesquisas, são uma síntese do artigo "A sobrevida da dramaturgia comunista na televisão dos anos 1970: o percurso de um realismo crítico em negociação", publicado anteriormente por mim. Para o leitor interessado em um estudo aprofundado da participação de Vianinha na série Caso Especial, sugiro, portanto, a leitura de CARDENUTO, 2013CARDENUTO, Reinaldo. A sobrevida da dramaturgia comunista na televisão dos anos de 1970: o percurso de um realismo crítico em negociação. In: CZAJKA, Rodrigo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá; NAPOLITANO, Marcos (orgs.). Comunistas brasileiros: cultura política e produção cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p.85-106., p.85-106.
  • 16
    O roteiro desse programa foi inspirado na gravidez de Maria Lúcia, esposa de Vianinha. Tanto que Lúcia é o nome do personagem interpretado por Renata Sorrah em Enquanto a cegonha não vem.
  • 17
    As datas referentes às exibições dos episódios originais de A grande família, aqui apresentadas entre parênteses, foram retiradas de SILVA, 2015SILVA, Roberta Alves. A grande família: intelectuais de esquerda, Rede Globo e censura durante a ditadura militar (1973-1975). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2015..
  • 18
    VIANINHA. A televisão como expressão (uma entrevista). In: PEIXOTO, Fernando (org.). Vianinha. São Paulo: Brasiliense, 1999PEIXOTO, Fernando (org.). Vianinha. São Paulo: Brasiliense, 1999., p.155. p.154-158.
  • 19
    Escrever sobre televisão no Brasil é sempre complicado. Por motivos que mereceriam um estudo à parte, relacionados em boa medida ao desejo de controle sobre a própria memória, as emissoras criam para o pesquisador uma série de empecilhos: ou simplesmente impedem o acesso aos programas que realizaram ou cobram pequenas fortunas para que vejamos fragmentos incompletos de seus materiais. Devido a isso, redigir este texto sobre a primeira versão de A grande família implicou assumir um lado estrategista. Além do visionamento de três episódios da série, dois deles adquiridos com colecionadores, recorri a partes de roteiros e informações presentes em livros, teses e dissertações citados nas referências bibliográficas. As linhas sobre o capítulo A família vai bem, obrigado só se tornaram possíveis graças à pesquisa desenvolvida em SILVA, 2015SILVA, Roberta Alves. A grande família: intelectuais de esquerda, Rede Globo e censura durante a ditadura militar (1973-1975). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2015.. Embora não seja uma questão central para o artigo aqui proposto, há de levar em consideração a existência de uma outra dificuldade relacionada aos estudos de dramaturgia televisiva: por vezes, entre a leitura do roteiro e o visionamento da versão gravada de um programa, diferenças crucias podem ser encontradas. Para uma reflexão sobre o problema, consultar ANZUATEGUI, 2012ANZUATEGUI, Sabina Reggiani. O grito de Jorge Andrade: a pesquisa dos roteiros televisivos. Cadernos de pesquisa do CDHIS, vol. 25, n. 2, p.395-404, jul./dez. 2012..
  • 20
    As datas referentes à exibição dos novos episódios de A grande família foram retiradas do site Memória Globo, em especial a partir do link: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/humor/a-grande-familia-2-versao/ano-de-2001.htm; Acesso em: 08 nov. 2015.
  • 21
    Estas aspas se referem a um texto oficial da rede Globo sobre a nova versão de A grande família. O seu conteúdo pode ser lido em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/humor/a-grande-familia-2-versao/formato.htm; Acesso em: 08 nov. 2015.
  • 22
    Foi uma opção de recorte não incluir, no corpo do texto, uma análise apurada dos roteiros antigo e recente de Pesadelos de uma noite de verão. Isso se deve ao fato do capítulo original, exibido no dia 20 de março de 1975, não ter sido escrito por Vianinha, morto em julho do ano anterior. No entanto, a cargo dos dramaturgos Armando Costa e Paulo Pontes, ambos filiados à tradição artística de esquerda, os roteiros da temporada final da série prosseguiriam com um humor claramente centralizado na crítica política. Refilmado em 2001, com exibição no dia 26 de abril, o episódio que tratava do endividamento da classe média, encantada com o acesso ao consumo a partir das compras a prazo, perderia muito da postura crítica anterior.
  • 23
    A atualização pela chave do mais humor, menos política também parece ter sido a tendência presente na remontagem da peça Murro em ponta de faca, realizada por Paulo José em 2011. O texto original de Augusto Boal, encenado pela primeira vez em 1978, pelas mãos do mesmo diretor, ao que tudo indica foi retomado a partir de uma ampliação do jogo cômico e de uma redução das técnicas brechtianas de distanciamento crítico. Levando-se em conta que vi a nova versão apenas uma vez, no teatro do SESC Belenzinho, em São Paulo, optei por incluí-la neste texto apenas como nota indicativa.

Referências bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    19 Nov 2015
  • Revisado
    22 Jan 2016
  • Aceito
    28 Jan 2016
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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