O historiador inglês Edward Thompson, ao defender a história contra acusações de ser um saber impreciso, argumentou que essa disciplina possui, sim, padrões rigorosos na construção do conhecimento. Segundo esse autor, um verdadeiro tribunal de recursos da lógica histórica funciona sem interrupção, agindo por meio de avaliações e debates sobre a pertinência e o caráter factível ou não das análises dos historiadores, que seguem assinalando suas falhas mutuamente (Thompson, 1981, p.49).
A escrita da história possui, inegavelmente, uma série de particularidades em relação às práticas de outros campos do saber. Há muito os historiadores –estudiosos das sociedades humanas no tempo – abdicaram da pretensão de lidar com verdades absolutas, atentos à complexidade presente na construção das narrativas históricas, elas próprias realizadas no devir de diálogos intensos com o passado e o futuro, mas também com desafios e inquietações do tempo presente. Essa é a delicada e estimulante condição humana do saber histórico, cuja prática é quase uma arte.
A tarefa dos periódicos acadêmicos de veicular a melhor produção do conhecimento histórico de seu tempo realiza-se no coração desse “tribunal de recursos”. O julgamento por pares é a prática fundadora do dia a dia das revistas. Sem aquele, estas velejariam ao sabor das ondas das idiossincrasias, das preferências e antipatias pessoais. A publicação sem revisores desfavorece o saber inovativo, aquele que desafia as certezas estabelecidas e interesses arraigados de grupos bem alojados no conforto de gabinetes, alimentados com elogios negociados, ou mesmo aquele conhecimento produzido por pessoas que iniciam sua carreira, não ocupam posição de prestígio, mas já trazem uma contribuição brilhante.
A despeito do seu papel decisivo, o revisor é quase sempre uma figura obscurecida para os leitores de uma revista. Ali estão muito explícitos os papéis dos leitores, autores, editores, conselheiros. Os revisores quase sempre permanecem anônimos, mesmo que sua atuação se reflita em cada um dos textos presentes, beneficiando autores, leitores e o próprio periódico pelas suas contribuições ativas a tudo que ali se encontra publicado.
Ao aceitar atuar como parecerista, o pesquisador exerce um ato de extrema generosidade. Trabalhará no anonimato. Um bom parecer demandará tempo considerável, sem que isso tenha um valor muito grande nos relatórios de atividades para suas instituições de origem ou agências de financiamento. Seu papel é dar sugestões para que outro pesquisador, cujo nome ele não sabe, melhore seu texto, aprimore seu argumento, consolide sua documentação. Por vezes, o parecerista tem a difícil mas importante tarefa de sinalizar ao autor que ele precisa investir muito mais, e que seu texto ainda não representa uma contribuição expressiva. Muitos artigos realmente crescem em qualidade e rigor após um processo editorial bem conduzido, e tudo isso resulta num texto final muito mais estimulante e bem fundamentado. Só o editor saberá, entretanto, que ali houve a contribuição segura de um revisor experiente.
Ser revisor, entretanto, é também um exercício de poder. O parecerista ajuda a definir o que será ou não publicado. Seus pontos de vista guiam diretamente a divulgação de pesquisas, a inclusão de bibliografias, a exigência de diálogo com certas tradições historiográficas. Mas esse exercício de poder não se dá no vazio, ele decorre da autoridade acadêmica do revisor, construída por uma carreira de boas e inovadoras investigações, assim como de sua reputação ética no meio acadêmico, ele próprio sob a constante avaliação do tribunal de recursos da história. A escolha do revisor pelos editores da revista é tarefa complexa e envolve uma série de considerações que levam em conta sua expertise, a isenção e inexistência de conflitos de interesse. No aprimoramento constante das práticas de julgamento por pares, pareceristas são também avaliados segundo o trabalho oferecido às revistas. Cada editor chefe poderia dizer: “dize-me como realizas um parecer, e eu te direi quem és”. Mas também cabe ao editor a total discrição sobre essas atuações, sob pena de cometer um grave deslize ético.
A tarefa do revisor envolve qualidades refinadas: ele precisa ser rigoroso, mas também delicado e elegante, tratando com respeito o trabalho do colega anônimo. A pontualidade na entrega do trabalho será essencial para que a revista possa cumprir suas obrigações junto aos leitores e autores, com regularidade e ritmo na divulgação dos artigos. Revisores devem estar abertos à criatividade, saber relativizar suas certezas e preferências arraigadas, e abrirem-se à novidade trazida por um artigo. Nesse caso, o revisor terá a sorte de ser um leitor em primeira mão de uma pesquisa pioneira, mas deverá ser ético para guardar consigo a novidade até que os resultados sejam efetivamente públicos.
Os revisores são essenciais, portanto, para a qualidade de um periódico. Por isso, devem também ser respeitados pelo editor: as revistas recebem material em excesso para avaliação, e cabe ao editor e aos conselheiros decidirem, por uma primeira leitura e debate, o que pode ser imediatamente devolvido, levando aos pareceristas apenas o material que realmente se apresentar como especialmente promissor. Afinal, o tempo do parecerista é precioso e não pode ser desperdiçado.
Todavia, entre a generosidade e a autoridade do parecerista, cabe ao editor um papel essencial no processo de julgamento por pares. Sua observação atenta é imprescindível para proteger os autores de possíveis abusos de autoridade ou mesmo da apropriação de suas ideias. O editor deve ser uma espécie de guardião, cúmplice comprometido com os autores sobre a originalidade de sua pesquisa, que precisa ser garantida, seja qual for o resultado final do processo editorial. Nesse sentido, o editor é uma testemunha em potencial.
Neste momento comemorativo da Varia Historia pelos seus 30 anos de existência ininterrupta, gostaria aqui de manifestar nosso agradecimento aos pareceristas que atuaram diretamente para a qualidade de nossa revista. Dotados de excelência acadêmica, colaboraram com autores e leitores para a produção e divulgação de um conhecimento histórico mais rigoroso, de maior qualidade. Todas essas práticas ajudam a disciplina histórica a executar sua grande pretensão de compreender os homens no tempo. Tal ambição é legítima, mas deve ser bem equilibrada pela consideração de que a verdade histórica é complexa como a vida, e por isso não deve se acomodar a certezas estáticas. Para tanto, o exercício da crítica rigorosa e ética como prática positiva e construtiva tem sido um indispensável recurso para a comunidade de historiadores. E viva o julgamento por pares!
Agradecimentos
Agradeço ao Tom pelo diálogo, e ao Armando Olivetti pela revisão.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Ago 2015