RESUMO
Nas décadas finais do século XVIII, Paschoal José de Mello Freire dos Reis elaborou o primeiro código de direito público de Portugal, que não foi aprovado pela Junta da Censura e Revisão especialmente devido às críticas de António Ribeiro dos Santos. A disputa entre os autores em torno do significado e das matérias do direito público inseria-se no contexto de crise do Antigo Regime e nas tentativas de reelaborar a teoria e a prática política. Revela-se no debate que concepções distintas a respeito do que era ou deveria ser considerado público implicavam não só no sentido do direito público e seu papel na estrutura jurídica e social, como também no que seria pertinente a entrar ou não no código. O objetivo do texto, baseado nas propostas teórico-metodológicas da história conceitual, é observar como o conceito de público foi operacionalizado na conjuntura da disputa sobre o direito público, compreendendo como a sua estrutura semântica figurou no debate e como foi atualizada por ele.
público; século XVIII; história dos conceitos
ABSTRACT
In the final decades of the 18th century, Paschoal José de Mello Freire dos Reis elaborated Portugal’s first code of public law, which was not approved by the “Junta de Censura e Revisão”, especially due to criticism from António Ribeiro dos Santos. The dispute between the authors about the meaning and the subject of public law took place in the context of the crisis of the Ancien Régime and the attempts to rework political theory and practice. The debate revealed that different conceptions of what was or should be considered public implied not only the meaning of public law and its role in the legal and social structure, but also what would be relevant to include or not in the code. The objective of the paper, based on the theoretical and methodological proposals of conceptual history, is to observe how the concept of public was operationalized in this context of the dispute over public law, understanding how its semantic structure figured in the debate and how it was updated by it.
public; 18th century; conceptual history
Os conceitos de público e privado, atualmente, compõem o arsenal teórico de grande parte das democracias modernas, atuando como instâncias de legitimidade e/ou de justificativa das ações políticas. Ao mesmo tempo, atuam como forma de delimitação de campos ou esferas da política, da justiça, da economia e da vida social. A relação entre os conceitos é tratada como uma dicotomia na qual as “esferas”, “setores”, “espaços” públicos e privados são ou considerados como opostos, ou como âmbitos compostos por características e normatividades distintas.
Inúmeras abordagens contribuíram profundamente para pensar essa dicotomia (Arendt, 2007; Bobbio, 1989; Guerra, 1993; Habermas, 2003; Koselleck,1999). Grande parte das análises voltou-se para o papel desempenhado pela dicotomia público e privado na formação do capitalismo, dos estados modernos, ou, mais genericamente, da modernidade. Contudo, não obstante a importância dessas abordagens, o problema da relação público e privado ainda carece, a meu ver, de uma fundamentação histórica mais precisa. Em outras palavras, o debate sobre essa dicotomia poderia se beneficiar de perspectivas que buscassem historicizar esses conceitos de tal modo a entendê-los no seu próprio processo de formação histórica, dentro de realidades e temporalidades específicas.
A forma encontrada para buscar essa aproximação histórica foi a teoria e o método da história conceitual (begriffsgeschichte) (Koselleck, 2006). Por meio dela, procura-se argumentar que esses dois conceitos, tais como quaisquer conceitos políticos, foram instrumentalizados a partir das conjunturas históricas de que emanaram e para as quais se destinaram, ao mesmo tempo em que atualizaram e/ou recuperaram sentidos postos na estrutura semântica dos conceitos. Esse jogo entre conjuntura e estrutura é central nas análises da história conceitual. O pressuposto, portanto, é de que o processo histórico de construção da dicotomia público/privado não foi linear, homogêneo e isento de disputas. Uma vez que o sentido dos conceitos está atrelado à realidade de seu proferimento (atores, debates, projetos etc.), também a própria ideia de uma “dicotomia” precisa ser lida e interpretada nesse sentido, ou seja, precisa ser colocada na história e interpretada a partir dela, especialmente nos termos da historicidade.
Dessa forma, o objetivo mais geral deste artigo é discutir o processo de construção da dicotomia público e privado, mas a partir de uma realidade específica: Portugal no último quartel do século XVIII e, mais especificamente, a disputa entre dois juristas portugueses na construção inicial de uma ideia moderna de direito público. Apesar de tratar da relação entre o público e o particular no Antigo Regime, restringirei a preocupação ao primeiro termo. Por outro lado, como é característico de uma história conceitual, pretende-se intercalar a discussão localizada temporal e espacialmente com as estruturas semânticas de longa duração, buscando apresentar as mudanças, permanências e/ou novidades de sentido articuladas com um novo contexto histórico. Destaca-se, dessa forma, que este texto não tem por objetivo realizar uma discussão no campo da história do direito e nem tratar da história do direito público, mas olhar para esse objeto no intuito de compreender a forma como o conceito de “público” foi mobilizado nessa conjuntura histórica.
A importância do debate entre Paschoal José de Mello Freire (1738-1798) e Antônio Ribeiro dos Santos (1745-1818), para nosso propósito, reside nos diferentes usos do conceito durante a elaboração de um novo código de direito público e, igualmente, no contexto histórico português da segunda metade do XVIII. Estamos pensando, aqui, na crise do Antigo Regime e nas diversas possibilidades de reformulação da teoria e da prática política que emergiram desse cenário. Entender a mobilização conceitual de público nesse momento é fundamental, uma vez que esse conceito desempenhou um papel chave tanto nos processos de transição para as modernidades (Fernández Sebastián, 2014) quanto na construção dos estados modernos então em gestação (Hespanha, 1999; Seelaender, 2007). Busca-se, assim, alternar entre um olhar voltado à conjuntura com outro voltado às estruturas em que o debate se situa.
Considerando a grande quantidade de temas e problemas envolvidos ou relacionados ao conceito de “público”, definiu-se a discussão em torno do principal problema levantado pelo debate entre Mello Freire e Ribeiro dos Santos, que serve como eixo norteador do artigo. O texto está estruturado da seguinte maneira: em um primeiro momento, busquei oferecer uma explicação resumida acerca dos sentidos do conceito no Antigo Regime Ibérico (ao menos dos sentidos que se relacionam diretamente com o debate dos dois juristas); depois, procurei selecionar e definir um “contexto” que ajude a entender o debate; na terceira parte, analisei propriamente a forma como os dois autores lidaram com o conceito nas suas propostas sobre o direito público; por último, tentei apresentar algumas questões contemporâneas que podem ser discutidas por meio da análise histórico-conceitual do “público”.
A COMUNIDADE, O SOBERANO E O CORPO POLÍTICO: OS VÁRIOS SENTIDOS DO “PÚBLICO” NO ANTIGO REGIME
Antes de buscar entender o sentido do conceito de público nos debates jurídicos do século XVIII, é importante atentar-se para a estrutura semântica do conceito, no intuito de compreender efetivamente as novidades e as permanências nos seus usos. Ainda que de forma breve, pretende-se, aqui, estabelecer uma gama de possibilidades de sentidos prevalecentes no Antigo Regime ibérico para, posteriormente, apontar a forma como Mello Freire e Ribeiro dos Santos, em um contexto de mudanças intelectuais significativas, elaboraram conjunturalmente os seus significados.
A afirmação frequente de que no Antigo Regime os conceitos de público e privado “não se separavam” ou “não se distinguiam”, embora estejam corretas, precisam ser evitadas. O motivo para isso é que se configuram como afirmações teleológicas, isto é, buscam explicar o passado pela lógica da ausência – ainda não eram o presente. Além disso, o pressuposto dessa afirmação é que, no presente, o público e o privado foram devidamente separados. Não há dúvidas de que, do ponto de vista das elaborações teóricas, há uma clara tentativa de construir uma separação entre os dois. Porém, do ponto de vista prático, existem sérios questionamentos a respeito da possibilidade concreta de dividir a realidade em dois polos2. Basta lembrar das discussões de Norbert Elias (1994) sobre a sociedade e o indivíduo e a sua constatação acerca da relação entre os dois.
Embora os conceitos de público e privado não fossem utilizados no Antigo Regime português como duas instâncias radicalmente opostas e, embora o próprio conceito de Estado e de indivíduo tivessem sentidos diferentes do período moderno, isso não significa que os conceitos não eram mobilizados e nem que não desempenhavam um papel importante nas teorizações sobre a política e a sociedade. “Privado” era, usualmente, utilizado como verbo: privar-se ou ser privado de algo. Como substantivo aparecia, especialmente no mundo ibérico entre os séculos XVI e XVII, como equivalente de “valido”, “favorito”, “primeiro ministro”, “ministro singular”, “ministro maior”, entre outras designações do principal amigo do rei3. O conceito mais utilizado de forma relacionada ao “público” era, sem dúvida, o conceito de “particular”.
De modo geral, os conceitos de público e particular integravam o arcabouço intelectual das teorias corporativas de poder do Antigo Regime. Os autores jesuítas da Segunda Escolástica, sobretudo em Portugal e na Espanha, entre os séculos XVI e XVII, como Francisco Suárez (1548-1617), Azpilcueta Navarro (1592-1686), Juan de Mariana (1536-1624), Domingo de Soto (1595-1660) entre outros, tinham que responder a três desafios principais: como dar um sentido e enquadrar no esquema interpretativo político-teológico da realidade a “descoberta” do novo mundo e seus habitantes; como responder às críticas da reforma protestante; e como responder aos novos imperativos políticos elaborados pelas teorias da razão de Estado de Giovanni Botero e Maquiavel. Tais desafios foram resumidos por Elías Palti (2016) da seguinte maneira: como transformar a pluralidade em unidade? Como restaurar a unidade da comunidade europeia em meio à dissolução gerada pela reforma? As teorias corporativas elaboradas nesse período, portanto, em maior ou menor medida, atrelavam-se aos desafios daquele contexto histórico e orientavam a forma como os conceitos de público e particular eram utilizados4.
Transformar a pluralidade em unidade significava lidar com o problema da articulação das partes com o todo. O fim teológico do bem comum, dentro de uma concepção de comunidade universal católica, pressupunha a submissão das partes, ou particulares, ao bem geral definido pelas autoridades políticas e eclesiásticas. Particular e público serão conceitos utilizados dentro dessa tentativa de harmonia entre o específico e o geral, o particular e o universal. Essa harmonia não era garantida, ainda mais no contexto da contrarreforma, e talvez por isso mesmo os conceitos tenham adquirido uma importância central nas teorizações políticas, jurídicas e teológicas.
“Público”, portanto, era um conceito utilizado em três sentidos principais, ainda que não exclusivamente. Primeiro para se referir ao corpo político ou místico, uma “congregação moralmente una”, como nas palavras de Suárez (1918, T. I, p. 121)5. Ao mesmo tempo em que é uma unidade é também uma congregação, pois o corpo político, para o autor, depende da união entre a comunidade e o soberano. Somente quando a comunidade se submete ao soberano é que se forma o corpo político. Ele é “público” na medida em que se destina, unicamente, ao bem comum. Essa submissão da comunidade ao soberano é fundamental, visto que é apenas através de um “vínculo moral” e “sob uma cabeça” que uma comunidade pode tornar-se “comunidade perfeita”, podendo dar a si mesma as suas próprias leis. Uma comunidade sem soberano, para Suárez, não seria comunidade, seria apenas uma “multidão”. Vale destacar que essa submissão se efetua mediante um pacto no qual a comunidade, que recebe o poder imediatamente de Deus6, entrega “parcialmente” o poder ao soberano para que o exerça em seu nome, como discutirei mais à frente.
Em um segundo sentido, “público” aparecia vinculado às pessoas que representavam o rei — ocupantes de “cargos públicos” ou “ofícios reais”, chamados de “pessoas públicas”, mas, principalmente, vinculados ao soberano. Ao rei, como cabeça do corpo político, cuja tarefa era distribuir a justiça e garantir a harmonia das partes, cabia a função essencial de manter a unidade e encaminhar a comunidade em direção ao bem comum:
Frequentemente existem muitas coisas que são necessárias para o bem comum, que não são para os particulares; e ainda que sejam às vezes, não as procuram como comuns e sim como próprias; logo, na comunidade perfeita, é necessária a “potestade pública” a que pertence por ofício promover o bem comum e procurá-lo (Suárez, 1918, T. III, p. 11)7.
O rei era a potestas pública superior no temporal, mas na perspectiva jurisdicionalista da política e da sociedade, em que o respeito às autonomias das corporações era necessário para a manutenção da organização social, público era também um conceito que se distribuía pelas instituições, como irmandades, ordens religiosas, confrarias, governadores, câmaras, entre outras. Nesse sentido, “ser” público significa agir em direção à unidade e ao bem comum, tarefa que cabia primordialmente ao rei, mas que se espalhava pelas diferentes instituições que o representavam. Significativo da ideia de público como de direção ao bem comum é a afirmação de Suárez de que também o Sumo Pontífice representava uma potestas pública, mas no espiritual, pois, como devia encaminhar os homens para o “bem comum” por meio da “fé pública”, compunha-se como instância pública; dizia, ainda, que Deus era a potestas pública superior no temporal e no espiritual (Suárez, 1918, T. I, p. 147).
O terceiro sentido é bastante ambíguo. Trata-se da possibilidade de utilizar o conceito de público para designar a comunidade. Como afirmado, a comunidade apenas se formava a partir da doação do poder ao soberano, contudo, Deus não teria dado o poder a uma pessoa particular ou a uma “multidão” de homens. Pressupõe-se, portanto, que, antes da submissão ao soberano, não existia poder público, uma vez que “somente no príncipe ou no magistrado existe poder público que se ordene a ato público e verse sobre toda a comunidade e tenha eficácia de obrigar e forçar” (Suárez, 1918, T. III, p. 12)8. Dessa forma, como é possível pensar essa comunidade a partir do conceito de público? Em Suárez, essa acepção do conceito aparece de duas formas: na escolha do modo de governo e no caso da tirania.
No primeiro caso, a conceituação depende da forma como o autor pensa a transmissão do poder de Deus para os homens. Segundo ele, esse poder foi inserido na natureza humana e é manifestado apenas quando eles se juntam em uma comunidade.
Por ser de direito natural, cabe aos homens escolherem o modo de governo que desejam: monarquia, aristocracia ou democracia. A escolha do regime dependeria exclusivamente do arbítrio humano. Portanto, antes de se submeterem a uma potestas pública, já tem os homens, ao menos parcialmente, a “virtude” para formarem uma comunidade perfeita e utilizarem do seu poder para escolher a forma de governo. Nesse caso, a comunidade já pode ser vista como um público independente do soberano. No caso da tirania, afirmava o autor que:
Poderá a inteira república, com um conselho comum das cidades e dos nobres, depor o rei, tanto pela força do direito natural, pelo qual é lícito repelir a violência com a violência, quanto porque este caso necessário à própria conservação da república é entendido como exceção no pacto pelo qual a república transfere seu poder ao rei (Suárez, 2015, L. VI, p. 189).
A defesa do tiranicídio não era incomum entre os autores da segunda escolástica. O problema principal era definir quem poderia sentenciar a tirania do rei. Para Suárez, havia duas instâncias com tal autoridade: o Sumo Pontífice ou a república. Em relação ao primeiro, o Sumo Pontífice teria poder de jurisdição para condenar o rei em crimes de matéria espiritual, como a heresia, por meio de censura ou deposição. Se fosse reino cristão, poderia também julgar casos de matéria temporal, pois usava de um “poder indireto sobre as coisas temporais com vistas a um fim espiritual” (Suárez, 2015, L. VI, p. 190).
O ponto é que a declaração da tirania do soberano desfaz o corpo político, pois este deixa de contar com uma potestas9. Sem essa força coativa, imagina-se, a comunidade voltara a ser apenas uma multidão. Quem, portanto, sentencia o rei como tirano? Qual poder, no temporal, estaria acima dele e seria capaz de sentenciá-lo? Como nenhum particular pode ter esse poder, é preciso pressupor a existência de uma potestas pública na comunidade que seja independente do soberano. Como na citação acima: “um conselho comum das cidades e dos nobres”, ou em outro momento, quando afirma que cabe essa sentença a um “conselho público” ou a uma “comissão especial” da república que tenha declaradamente expressado a tirania do rei (Suárez, 2015, p. 186-187).
Dessa forma, a comunidade aparece enquanto um “público” independente do soberano em dois momentos: na formação e dissolução do corpo político. A fórmula utilizada por Suárez é a mesma defendida por outros autores, como Azpilcueta Navarro, Roberto Belarmino e Francisco Velasco Gouvêa. Para esses autores, o poder que a comunidade recebeu de Deus pode ser dividido em dois: o poder in habitu e o poder in actu. A doação que a comunidade faz do poder para o soberano é uma doação absoluta, mas apenas do exercício do poder, que fica in habitu nos povos, para que, em circunstâncias especiais relacionadas a sua conservação e defesa, possa reassumir o poder in actu.
Esse problema, no entanto, lida com as exceções ao pacto elaborado, pois, no geral (em tempos de paz e conservados na justiça), permanece a visão do “público” relacionada ao soberano e ao corpo político. A comunidade conserva-se como um “público” abstrato, universalizado e que depende de estar submetida ao “poder público” para garantir sua unidade. Ela aparece como um sujeito coletivo passivo, especialmente nas justificativas das ações do poder público, como destinatária dos ordenamentos, pareceres, mercês, regulamentos etc.; enquanto usufrutuária das ações destinadas ao seu bem: o “bem público”.
Os três sentidos de público aqui resumidamente expostos permitem visualizar a complexidade do pacto elaborado. Um pacto em que a comunidade (público) abdica de seu poder em favor do soberano (poder público) para a formação do corpo político (público). Esses usos dos conceitos, por vezes retóricos, atualizaram-se nos contextos subsequentes, derivando três outras formas ainda atuais: “público” podendo significar a sociedade, o estado e a nação. Sem dúvida com significados bem diferentes dos anteriores.
De todo modo, prevalecia em todos eles a perspectiva da integração com o particular. Suárez seguia de perto Aristóteles e Tomás de Aquino, reproduzindo o topos de que existe uma natureza que impele qualquer parte a se ordenar para o todo, tal como o imperfeito ao perfeito. Nesse sentido, a vinculação dos particulares ao público era uma necessidade relacionada à busca pela felicidade humana, e era isso que diferenciava a casa da república. A casa, portanto, era uma “comunidade imperfeita”, e o principal motivo era:
porque não se basta para procurar-se a felicidade humana do modo que se pode procurar humanamente, ou (para falar mais claro) as partes de tal comunidade não se prestam auxílio mútuo suficiente ou mútua ajuda de que necessita a sociedade humana para seu fim ou para sua conservação, e, portanto, tal comunidade se ordena quase naturalmente à comunidade perfeita, como a parte ao todo, e portanto, a potência legislativa não está em tal comunidade, mas somente na perfeita (Suárez, 1918, T. I, p. 124-125)10.
As pessoas singulares uniam-se em uma casa que, por não contar com auxílio mútuo suficiente, não podiam obter a felicidade. Para tanto, era preciso que as casas se ordenassem em direção à cidade e estas deviam se unir em prol do “bem do universo” (Suárez, 1918, p. 25). Conectando a ideia da integração do particular ao público por meio da lei, dizia Diogo Aboym: “é cada um dos cidadãos parte da República, e se a parte se deve conformar com todo o corpo; segue-se, que a lei, que obriga todo o corpo, obriga a parte; e daqui é que se chama Ley de ler-se; e de ligar; porque liga a quem a lê, obrigando a ser virtuoso” (Aboym, 1759, p. 183).
A dita integração entre o público e o particular era um ideal normativo. Podia ser defendida, por um lado, como uma relação de mútua dependência: o público depende dos particulares e os particulares dependem do público. Por outro lado, considerando a finalidade teológica da vida em comum, era preciso instituir uma assimetria nas forças em relação, que era também um dado natural da condição hierárquica dos corpos no período. Dessa forma, para atingir o “bem comum” e a “felicidade e beatitude” era preciso subordinar as partes ao todo. E esse é o movimento descrito por Suárez: a parte ordena-se ao todo como o imperfeito ao perfeito. Havia, assim, uma clara condenação da ação orientada apenas pelo bem particular, especialmente no âmbito da república. A busca pelo bem particular somente poderia ser aceita politicamente quando redundasse, direta ou indiretamente, no bem público. Essa era a justificativa e a defesa em torno da existência dos privilégios. Caso contrário, o “bem particular” vinculava-se negativamente com os vícios, interesses e paixões pessoais. Para Saavedra Fajardo (1655):
Se se consideram bem as caídas dos Impérios, as mudanças dos Estados, as mortes violentas dos Príncipes, quase todas nasceram da desobediência dos afetos e paixões à razão. Não tem o bem público maior inimigo, que a elas, e aos fins particulares (Saavedra, 1655, p. 46)11.
Da subordinação dos particulares dependia a própria permanência do Império, pois este era uma “união de vontades, na ‘potestad’ de um: se estas se mantêm em concórdia, vive e cresce; se se dividem, cai e morre: porque não é outra coisa a morte do que uma discórdia das partes” (Saavedra Fajardo, 1790, p. 167).
O que os usos do conceito no Antigo Regime revelam é que, independente da noção moderna de representação, “público” já era um conceito utilizado para se referir a um conjunto social e ao exercício do poder. A polissemia do conceito era um instrumento nas formulações teóricas, que visavam, em última instância, lidar com o problema da articulação da pluralidade de particulares em uma almejada unidade harmônica, cuja finalidade era o “bem comum” ou “público”. Isso significa que definir a comunidade ou o soberano como um “público” tinha implicações para a teoria política na medida em que tratava da posse e do exercício do poder. Depois de apresentar algumas questões do contexto português de meados do século XVIII, que ajudam a entender o debate entre Mello Freire e Ribeiro dos Santos, retornarei ao problema acima, buscando perceber o modo como essa estrutura semântica atuou na conjuntura de elaboração do código de direito público e como pode ter sido atualizada por ele em um novo contexto.
O CONTEXTO PORTUGUÊS NA METADE DO SÉCULO XVIII: AS REFORMAS POLÍTICAS E INSTITUCIONAIS
A crise do antigo regime abriu diferentes horizontes de expectativas. As velhas artes de governar foram questionadas em termos teóricos e práticos. Os novos imperativos políticos, econômicos, sociais e técnicos, em meados dos setecentos, demandavam redefinições dos conceitos básicos que buscavam capturar as experiências políticas e sociais.
A sensação de que os conceitos haviam perdido os sentidos ou a capacidade de atribuir significado às novas experiências em curso era reforçada pela percepção de um tempo acelerado, sintetizado na noção de progresso (Koselleck, 2006, 2013). Nesse processo, velhos conceitos foram ressignificados e novos conceitos emergiram: nação, cidadão/cidadania, constituição, indivíduo, direito, lei, liberdade, povo, estado, economia, sociedade, república, entre muitos outros.
Tratando de modo geral, o principal aspecto da desestruturação do Antigo Regime estava relacionado ao questionamento da ordem natural do funcionamento da política e da sociedade. Esse ordenamento era a cola que mantinha a unidade do corpo político. Estava baseado nos preceitos divinos definidos pela Igreja, pelos direitos românicos e canônicos, e pelos múltiplos costumes dos estados e corporações. Por um lado, esse questionamento derivava da laicização da teoria social, que buscava apreender os desígnios divinos por meio da razão e da observação empírica, separando as matérias da fé das aquisições intelectuais (Araújo, 2003; Hespanha; Xavier, 1994). Por outro, residia na “invenção” do indivíduo12, ou seja, na gradual substituição das “pessoas particulares” do Antigo Regime, compreendidas a partir das suas condições sociais, naturalmente desiguais e ligadas por um vínculo natural estabelecido por Deus, pela noção moderna de indivíduo nu, abstrato, igual, e ligado aos outros por sua mera vontade, reclamando para si os seus direitos inalienáveis.
Este paradigma individualista, como definido por António Manuel Hespanha e Ângela Barreto Xavier (1994), juntamente com a laicização da teoria social, mudava drasticamente a concepção sobre o poder:
a partir daqui, este não pode mais ser tido como fundado numa ordem objetiva das coisas; vai ser concebido como fundado na vontade. [...] Ou na vontade soberana de Deus, manifestada na Terra, também soberanamente, pelo Seu lugar-tenente – o príncipe (providencialismo, direito divino dos reis). Ou pela vontade dos homens que, levados ou pelos perigos e insegurança da sociedade natural ou pelo desejo de maximizar a felicidade e o bem-estar, instituem, por um acordo de vontade, por um ‘pacto’, a sociedade civil (contratualismo) (Hespanha; Xavier, 1994, p. 117).
Em outras palavras, a crise do Antigo Regime podia significar na ampliação dos discursos em prol do fortalecimento do poder da coroa e no esvaziamento do poder das cortes (como na concepção absolutista)13, ou na limitação do poder da coroa e ampliação dos direitos individuais (como no discurso liberal). Em ambos os casos, tratava-se da crise da ideia de ordem natural e sua substituição pela fundamentação da organização política e social por meio da “vontade” dos homens, permitindo abrir todas as cláusulas da união para escrutínio e negociação. Os “novos tempos”, os imperativos das novas “circunstâncias históricas”, tornaram-se recursos discursivos que tinham por objetivo justificar a necessidade de mudanças, temporalizando a própria política.
O mundo ibérico não passou ileso às transformações gerais pelas quais atravessava a Europa no século XVIII. O jusnaturalismo, as novas concepções a respeito da soberania, dos direitos individuais, da igualdade perante a lei, da tripartição dos poderes, foram gradualmente ocupando a cena da discussão pública em vários países. As concepções atrelavam-se às novas demandas impulsionadas pela criação de um sistema econômico mundial ao gradual processo de urbanização e ao surgimento de novos grupos sociais que dinamizavam a vida política, cultural e econômica.
No mundo luso-brasileiro, foi durante o governo pombalino que se ampliaram os discursos em prol da centralização política, indício da própria crise do Antigo Regime. O governo de Pombal buscava superar o “atraso” português em relação às novas potências europeias em ascensão (Inglaterra e França) e também afirmar o poder “absoluto” do rei com o objetivo de sobrepor a coroa à interferência da Igreja (combatendo o jesuitismo) e à ordem política estabelecida (a constituição do Reino e as limitações ao poder que impunham) (Hespanha; Xavier, 1994, p. 126-127).
Dessa forma, as reformas políticas e institucionais empreendidas no período pretendiam melhorar o ordenamento da sociedade e ampliar a autoridade monárquica ao dotar o governo de um caráter mais interventivo por meio do disciplinamento, regulação e racionalização da prática política.
Tais ideias fundamentavam-se nos tratados sobre a ciência da polícia, que vinham sendo discutidas na Europa desde antes do século XVIII14. Para José Subtil (2013), por exemplo, o modo mais adequado para caracterizar o sistema político de Portugal nesse período seria através da ideia de “Estado de Polícia”. Para António Manuel Hespanha (2005), posteriormente, esse Estado cederia lugar a um Estado propriamente “administrativo”, no qual se marcaria uma alteração efetiva no modo de governar: de um estado reativo, cuja função era meramente responder aos conflitos sociais por meio da distribuição da justiça, para um Estado “ativo” que não apenas responde aos conflitos, mas que atua diretamente na vida social a partir da regulação da administração com os particulares.
Ainda que tais reformas não tenham colocado fim à lógica jurisdicionalista que fundamentava a monarquia corporativa15, alguns de seus princípios e modos de realização não se adequavam à estrutura do Antigo Regime. As corporações, os costumes, as entidades religiosas e os poderes locais, antes responsáveis por determinadas atividades, competências e funções, foram sendo gradualmente substituídos por instituições que visavam centralizar, uniformizar e normatizar a organização social em termos “racionais” e a partir de critérios políticos, administrativos e econômicos (Silva, 2003)16. O Terremoto de 1755 foi outro fator que contribuiu para ampliar a discussão sobre a necessidade de derrogar os elementos do corporativismo, considerados como obstáculos para uma ação efetiva e direta do poder monárquico (Subtil, 2007, 2013).
Nos interessa aqui, de maneira particular, o modo como essas alterações estruturais afetaram as possibilidades de sentido do conceito de público. A expansão do poder central e sua ingerência em atividades antes realizadas pelas corporações teve dois significados iniciais: primeiro pelo atrelamento do conceito de público à coroa; segundo pela ampliação da sua participação na linguagem política, especialmente como um adjetivo que qualificava esse mesmo campo de expansão do poder. Palavras como saúde, higiene, educação, tranquilidade, sossego, segurança, ordem, necessidade, negócios, instrução, prosperidade, interesse, felicidade, entre muitas outras, passaram a ser adjetivadas por “públicas”. A adjetivação desses termos, portanto, é significativa do próprio processo de expansão da esfera de ação do governo. Ela permite demarcar a construção gradual do próprio âmbito do “político”17 e, admitindo um ponto de vista teleológico, o terreno onde o Estado “leviatã” irá se assentar (Hespanha, 1994).
As reformas que ampliavam a ação da coroa se firmaram através de um “decisivo combate de retaguarda”, como nas palavras de António Manuel Hespanha e Ângela Barreto Xavier (1994, p. 127), no qual se buscava “impor na consciência coletiva os fundamentos teóricos individualistas que suportavam as soluções prático-políticas propostas”. Obras de autores como José de Seabra e Silva (1732-1813), António Ribeiro dos Santos, Paschoal José de Mello Freire dos Reis, Francisco Coelho de Souza e Sampaio (17??-1820?), e Ricardo Raimundo Nogueira (1746-1827), buscavam criar essas condições, tematizando o poder e um programa que pretendia romper com a ordem institucional estabelecida.
Havia, dessa forma, uma consciência da necessidade de realizar profundas reformas também no ordenamento jurídico português, na qual seria indispensável a construção da imagem do monarca como legislador. Transformar a lei em um direito majestático e reduzir os direitos à lei possibilitou atrelar, de forma decisiva, o “interesse público” com o interesse da coroa e afirmar a sua superioridade em relação aos “interesses particulares”. Tanto o poder legislativo do monarca quanto a ingerência ampliada da coroa nos seus domínios através das medidas policiais foram se consolidando em um novo campo: o direito público.
Antes, porém, da tentativa de codificar o direito público, alterações já se processavam por meio da Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769. Esta ressaltava a exclusividade da vontade do monarca como fonte de direito e empenhava-se para solucionar a diversidade de fontes legais. Visava rever o papel de fontes subsidiária do Direito Romano, do Direito Canônico, das opiniões de Bártolo e das Glosas de Acúrsio, colocando acima delas as “Leis Pátrias” que deveriam guiar os juristas. Também o direito dos costumes foi afetado ao se definir que ele deveria estar de acordo com a boa razão e não exceder o tempo de cem anos.
Apesar da existência do ius publicum romano, o direito público que emerge nos séculos XVII e XVIII na Europa pode ser considerado como uma novidade. De acordo com Seelaender, ele é um “fenômeno histórico” da Idade Moderna e não uma “entidade eterna” (Seelaender, 2007, p. 254). Não é natural e perceptível em qualquer época histórica. Sua especificidade pode ser explicada em quatro pontos: a) as experiências romanas condensadas pela ideia de “direito público” apresentavam singularidades que não se perpetuaram no pensamento jurídico posterior; b) o direito público que desponta em Portugal no século XVIII se desenvolve em um contexto bastante diferente e com base em uma miríade de conceitos em pleno processo de alteração, atando-se também ao “Direito Pátrio” e às “Leis Nacionais” que surgiam; c) as elaborações sobre o direito público visavam, justamente, contrapor-se ao direito romano; d) o direito público no período era parte do novo direito natural, o jusnaturalismo, e trazia em si as novidades desse ordenamento suprapositivo18. Assim, o direito público é um fenômeno histórico amarrado às condicionantes sociais e políticas do período. Estava mais conectado ao processo de centralização política e às teorias sobre a polícia do que a uma suposta recuperação de uma divisão romana adormecida19.
No caso de Portugal, um indício claro dessa novidade do direito público são as discussões em torno da reforma do Estatuto da Universidade de Coimbra, publicado em 1772. Trata-se de um dos mais importantes centros de ensino da época, no qual se formaram grande parte dos legisladores do Império do Brasil. Era, igualmente, um espaço privilegiado de divulgação das novas formas de poder que alteravam as bases de sustentação da monarquia corporativa. Não será possível, neste texto, analisar a forma como as discussões em torno do Estatuto lidaram com o conceito de público20.
Cabe apenas apontar a vinculação efetuada no Estatuto entre a ideia de direito público com o conceito de cidadão, que, nesse contexto, não diferia muito de súdito ou vassalo, mas que terá uma importância posteriormente; e com o conceito de nação. Em relação ao segundo, embora não estivesse pressuposto no conceito nenhum tipo de “nacionalismo”, sendo as referências identitárias pautadas em critérios culturais, linguísticos, históricos ou territoriais estranhos àquele universo, a sua vinculação com a ideia de direito público permitia restringir a dimensão ampliada e relacionada à comunidade cristã universal e a sua promessa teológica do “bem comum” para estar associado às nações em desenvolvimento. Dizia o Estatuto:
lhes fará o professor bem manifesta a total insuficiência, e inutilidade do Direito Romano Público para satisfazerem aos importantíssimos objetos das Leis Públicas da Nação. Sobre o que lhes mostrará o feio, e torpíssimo erro, em que caíram os Glosadores, e Bartholistas; quando por desconhecerem de todo o Direito Público Universal, e o Público Particular Positivo de cada Nação, se afoitaram a quererem decidir, como decidiram, todas as questões, e causas dos mesmos Direitos Público pelas Leis do Código de Justiniano, em que se acha depositada a principal parte do sobredito Direito Romano Público, a qual, sendo própria do seu tempo, é nestes Séculos quase inteiramente inútil.21
A passagem acima permite observar como a construção moderna do direito público opunha-se, propriamente, ao direito romano e às fontes subsidiárias tradicionais do direito. A definição e o estabelecimento do direito público, de acordo com o Estatuto, deviam guiar-se pelo conhecimento das “Leis Públicas da Nação”. Contudo, ainda não havia, em Portugal, uma compilação atualizada em forma de código dessas leis. É nesse contexto político, institucional e teórico que se insere o debate entre Mello Freire e Ribeiro dos Santos.
MELLO FREIRE E RIBEIRO DOS SANTOS: O QUE É “PÚBLICO” NO “DIREITO PÚBLICO”
Foi somente no governo de d. Maria I (1777-1792) que se buscou criar um código de direito público em Portugal. Através do decreto de 31 de março de 1778, formou-se uma “Junta de Ministros”22 que tinha por objetivo apenas reestruturar e atualizar as disposições vigentes nos cinco livros das Ordenações. Ela devia limitar-se a averiguar “quais leis se acham antiquadas, pela mudança das coisas inúteis para o presente e o futuro”; “quais estão revogadas em todo, ou em parte”; “quais são as que na prática forense tem sofrido diversidade de opiniões na sua inteligência, causando variedade no estilo de julgar”; “as que pela experiência pedem reforma, e inovação em benefício público” (Silva, 1828, p. 164). O decreto ainda nomeava os responsáveis por cada livro. A ideia de somente “atualizar” as ordenações limitava, de certo modo, o quanto os autores dos projetos podiam avançar na sua elaboração. Essa questão foi importante no debate de Mello Freire e Ribeiro dos Santos, como veremos.
Os nomeados pelo decreto para atualizar o segundo livro das ordenações foram João Teixeira de Carvalho e Estanislau da Cunha Coelho. Estes, no entanto, não parecem ter realizado a tarefa, sendo chamado em março de 1783 Pascoal José de Mello Freire dos Reis (06/04/1738 – 24/11/1798)23. Nascido em Ansião, Mello Freire era filho de Belchior dos Reis, oficial que se distinguiu durante a Guerra de Sucessão Espanhola, e de Faustina Freire de Mello. Doutorou-se pela Faculdade de Leis da Universidade de Coimbra com 19 anos (03/05/1757). Depois de formado, atuou como professor substituto de algumas cadeiras. Colaborou, também, com a reforma do ensino universitário promovido por Pombal, sobretudo nos estudos jurídicos, onde passou a ocupar a cadeira de Direito Pátrio ainda na condição de substituto. Apenas em 1781 assumiu como docente proprietário da mencionada cadeira, tendo se jubilado em 1790. Ainda atuou como desembargador na Casa de Suplicação em 1785 e como conselheiro régio em 1793. É considerado um autor fundamental para o direito português devido às obras: História do Direito Civil Português (1788), Instituições de Direito Civil Português, tanto público como particular (1789) e Instituições de Direito Criminal Português (1789)24.
O Novo Código de Direito Público de Portugal, entregue por Mello Freire, não foi aprovado no período, sendo publicado pela primeira vez apenas em 1844. As críticas que recebeu da Junta da Censura e Revisão, principalmente de António Ribeiro dos Santos, pesaram contra sua publicação. De acordo com Kenneth Maxwell, o debate entre os dois autores é sintoma de “quando a crise do século XVIII relativa ao governo e à representação entrou em sua fase mais aguda e violenta, e esse debate iria dividir Portugal durante os primeiros trinta anos do século XIX” (Maxwell, 1996, p. 171).
O principal crítico ao projeto, António Ribeiro dos Santos (30/03/1745 – 16/01/1818), nasceu em Massarelos e era filho de Manuel Ribeiro de Sousa Guimarães e Josefa Maria de Jesus. Aos onze anos de idade, foi morar no Rio de Janeiro. Estudou filologia e humanidades com os padres que pertenceram à Companhia de Jesus do Seminário de Nossa Senhora da Lapa, regressando a Portugal com 19 anos (1764) para estudar Direito Canônico na Universidade de Coimbra. Recebeu o grau de Doutor em 1771 e nesse ínterim também participou das reformas do ensino jurídico da Universidade. Foi professor da Faculdade de Direito da mesma instituição, além de primeiro bibliotecário-mor da Real Biblioteca da Corte. Vale destacar que as desavenças entre Ribeiro dos Santos e Mello Freire eram mais antigas e remontavam à época da Universidade25.
O principal aspecto de discordância entre os autores se dava na compreensão sobre os direitos dos monarcas portugueses. Mello Freire não apenas defendia a transmissão direta do poder de Deus para os reis, como buscava sempre ressaltar e afirmar os poderes dos monarcas. Ribeiro dos Santos, por sua vez, entendia que a tradição das reuniões das Cortes e a existência das Leis Fundamentais deviam ser respeitadas, buscando, dessa forma, limitar os poderes do monarca. Essa oposição central atravessava várias das censuras realizadas e, o que é mais importante para o objetivo deste artigo, atuava na definição das matérias e do sentido do que era público no direito público.
Inicialmente, portanto, interessa averiguar como cada autor definia o próprio campo do direito público. Na introdução ao Código, Mello Freire afirmava que o direito público, seja universal ou particular, possuía dois objetos: “os direitos e ofícios do imperante e dos vassalos em relação à sociedade”. Cabia ao imperante regular a sociedade para garantir o seu fim, que era a segurança interna e externa. Para isso devia fazer leis, criar juízes, determinar penas e prêmios, e conceder honras e mercês aos beneméritos. Já aos vassalos competia “amar e obedecer ao soberano”, “servir aos cargos públicos”, e pedir proteção, graças e mercês em remuneração dos seus serviços (Reis, 1844a, p. iv-v).
A definição oferecida por Ribeiro dos Santos era mais ampla. Logo no início o autor lembrava que era “difícil assinalar” as matérias “que são próprias e privativas do Direito Público da nação”, sendo necessário ter em mente:
Que cada nação, pelo comum, além do Direito Público universal, que provém da mesma natureza da sociedade civil, que é comum a todos os impérios, e que contém em geral os direitos e obrigações recíprocas dos súditos e dos imperantes, tem de mais o seu Direito Público particular e próprio, por que umas se distinguem das outras, a que podemos chamar Direito Público nacional. Que este Direito Público nacional se estabelece, parte na convenção expressa e tácita entre o povo e o Príncipe, isto é, nas leis primordiais e fundamentais do Estado, parte nas leis públicas civis dos mesmos imperantes; e que por consequência consta de Direito Público pactício ou convencional, e de Direito Público civil; ou, pelo dizer assim, das leis do reino, e das leis do Rei. Que este Direito regula tão somente duas coisas: 1ª a constituição fundamental; 2ª o estado público da nação (Santos, 1844, p. 5- 6).
Os temas propriamente do direito público, portanto, eram aqueles relacionados à “constituição fundamental” e ao “estado público da nação”. Eram estes: formas do sumo império; regras de sucessão; modos de exercer os direitos de soberania; sistema da “administração pública, e organização das partes, de que ela se compõe”, dispondo sobre os poderes da cidade e da distribuição dos magistrados; os direitos particulares e ofícios recíprocos dos Príncipes e dos povos, “em razão das leis fundamentais e públicas”, e tratando não só das prerrogativas dos Príncipes, mas dos “foros, costumes, liberdades e privilégios, que devem os Príncipes guardar a seus povos”; as diversas ordens do Reino; as Cortes, ou “assembleias públicas da nação”; rendas da república; por fim, deve conter nesse direito público nacional as coisas que competem a “administração e ordem pública de todo o Estado”, tais como a “povoação, sustentação, religião, educação, opulência, polícia e segurança, e em outros grandes objetos da governança e economia política, em que se firma a conservação, perfeição e felicidade da república” (Santos, 1844, p. 6-7). Trata-se de uma visão bem mais ampliada daquela oferecida pelo Estatuto da Universidade de Coimbra ou por Mello Freire.
A defesa que Ribeiro dos Santos fazia das “leis fundamentais” visava incorporar no código os direitos dos vassalos. O autor censurava o trato breve e comedido de Mello Freire em relação a esse aspecto, reivindicando a inclusão de um artigo sobre os “direitos, foros e liberdade dos povos”. Para ele, a parte dedicada ao direito dos vassalos no projeto de Mello Freire era muito reduzida:
todos os direitos enunciados no dito Título parece que se reduzem ao único artigo de poderem pedir os vassalos ao Príncipe em recompensa de seus merecimentos as mercês e prêmios, que constam de doações dos bens e direitos da Coroa, e concessão de graças novas, e confirmação das antigas (Santos, 1844, p. 21, grifo nosso).
O erro de Mello Freire foi considerar os vassalos “como particulares, e não como corpo da nação”. Isso significava que, além de demarcar os direitos “que tem cada um deles em particular em razão de seus serviços feitos à Coroa”, era preciso demonstrar os direitos “que tem todos os vassalos em geral em razão das leis fundamentais, estilos, foros, usos e costumes dos nossos reinos” (Santos, 1844, p. 21). Assim, na perspectiva da lei fundamental, os vassalos possuíam certos direitos enquanto “corpo da nação”, outorgados em tempos “imemoriais” e que entraram na formação e constituição da monarquia. Em outras palavras, no ponto de vista do direito público, os vassalos deviam ser vistos como “público” e não como “particulares”.
Mello Freire era de opinião diferente. Em sua defesa, argumentava que as ditas “leis fundamentais” proclamadas por Ribeiro dos Santos eram inexistentes, talvez com a exceção da estabelecida nas Cortes de Lamego e que tratava especificamente da sucessão do reino26. O autor lembrava, nesse contexto, das “assembleias de França e suas consequências”. Segundo ele, era de se temer a “bulha” que se faria na Europa caso se formasse uma “assembleia geral da nação” ou que então fosse chamado “à capital do reino os povos para deliberarem sobre assunto tão perigoso” como era o de fazer ajustes capazes de “obrigar os sucessores do Trono” (Reis, 1844b, p. 65).
Em relação ao tratamento dos vassalos como “corpo da nação”, o autor apontava para uma possível contradição nas censuras de Ribeiro dos Santos, pois, ao mesmo tempo, este defendia que era preciso determinar os direitos dos três estados (clero, nobreza e povo) de modo específico, considerando-os, assim, como particulares. Independente disso, a ideia de Ribeiro dos Santos de tratar os vassalos como um “público”, para Mello Freire, significaria atribuir- lhes “direitos públicos invioláveis”, o que seria apenas um “sonho”.
Que sendo públicos, necessariamente hão de versar sobre a pessoa do Rei, e suas ações e procedimentos; sobre o modo e maneira de seu governo; sobre a forma e justiça das suas leis, impostos e subsídios; sobre o uso e abuso do seu poder, assim na paz, como na guerra; e outros semelhantes objetos públicos da mesma natureza (Reis, 1844b, p. 85).
Ainda complementava, dizendo que tratar os vassalos como “público” implicaria em dar-lhes direito de “sufrágio de intendência, ingerência, ou inspeção nos negócios que respeitam ao bem da sociedade e da nação inteira”; que eles poderiam “convocar Cortes” para fazer valer seu direito e recobrar sua autoridade; e que poderiam usar do direito da força contra a pessoa do rei que abusar do seu ofício e poder em prejuízo da nação e dos seus foros e privilégios. Em suma, e como fica claro em outra passagem, para Mello Freire, conceder direitos públicos é dar parte e “ingerência no governo do reino”27. Todos os privilégios, direitos, foros e liberdades do “corpo da nação” não existiam em Portugal, onde “os povos nunca tiveram parte no seu governo” (Reis, 1844b, p. 85). Dessa forma, Mello Freire negava a existência de qualquer “ajuste” ou “acordo” entre os reis de Portugal e os “povos”, concluindo que “o chamado pacto social é um ente suposto, que só existe na cabeça e imaginação alambicada de alguns filósofos” (Reis, 1844b, p. 88).
Os sentidos tradicionais do conceito eram, então, recuperados dentro de um novo contexto. A perspectiva de Ribeiro dos Santos assemelhava-se com as tentativas de Francisco Suárez, por exemplo, de equilibrar os dois sentidos do público: a comunidade e o soberano. Divisão esta que era recuperada com novos propósitos e a partir de outros referenciais. “Público”, para Mello Freire, consistia em competências exclusivas do monarca, desqualificando o caráter “público” da sociedade a partir do não reconhecimento de seus direitos como “corpo da nação” e, também, ao recusar atribuir a soberania aos povos, como intermediadores desse poder28.
A preocupação com o nome atribuído ao código e a percepção sobre a novidade do direito público ficava clara nas manifestações de Ribeiro dos Santos. Muitos artigos propostos pelo censor como necessários dentro de um código de direito público foram rejeitados por Mello Freire sob o argumento de que se tratava apenas de “atualizar” as ordenações e não de “fundar em Portugal uma monarquia nova, e uma nova forma de governo” ou, ainda, de “temperar e acomodar a atual aos seus desejos e filosofia” (Reis, 1844b, p. 84), como parecia ao autor as propostas do censor. Em sua tréplica, Ribeiro dos Santos insistia que se tratava apenas de atualizar as ordenações, então não podia receber o nome de Código de Direito Público. Para receber esse nome era preciso considerar as “leis do rei” e as “leis do reino”, isto é, parte de “leis públicas civis” do rei e parte de “leis fundamentais” expressas ou tácitas dos povos. A dupla condição do “público” era o critério utilizado para a existência do direito público segundo o autor.
Além disso, a inclusão ou não de determinados temas no código foi fundamental no embate entre os autores e dependiam, por sua vez, das compreensões distintas acerca do conceito. Os testamentos que nomeiam o sucessor do reino, as ordens que o compõe (clero, nobreza e povo), a cessão, reserva e renúncia do reino, a reversão à Coroa e o governo dos municípios, por exemplo, eram temas que, segundo Ribeiro dos Santos, deviam estar no código. Para Mello Freire eram temas que deviam se reger pelo direito particular. Sobre os governos dos municípios, Mello Freire argumentava que, por serem variados, não podiam fazer parte de um código público e universal29. “Público”, aqui, ainda está longe de designar o conjunto de aparelhos institucionais e administrativos para o exercício do poder, em níveis distintos, de uma entidade superior denominada “Estado”. Ainda se refere, em certo sentido, ao movimento da parte ao todo.
Em relação à cessão, reserva e renúncia do reino, e também à reversão à Coroa, a questão dependia do entendimento sobre a posse do reino pelos reis de Portugal. Como, para Mello Freire, os reis tinham “uma livre, geral e privativa administração sobre todos os bens e pessoas do Estado, e autoridade para tudo dispor”, era coerente que esses temas tivessem que se pautar pelos princípios gerais que regiam os contratos entre os particulares, “que permite a cada um ceder de seu direito a favor de quem, e como quiser” (Reis, 1844b, p. 80)30. O mesmo valia para as remunerações e privilégios. Ao contratar com um vassalo “como um particular”, dando ou vendendo seus bens, o rei devia se guiar pelas regras particulares. No entanto, ao negociar os bens da coroa, “de que não é senhor, mas administrador”, poderia desfazer-se dos contratos. Como apontam António Hespanha e Ângela Xavier, nessa nova configuração “o regime de irrevogabilidade contratual do direito comum não vigora quando os contratos têm por objeto direitos públicos e da coroa do reino” (Hespanha; Xavier, 1944, p. 143). O direito público, portanto, nesse caso, já surgia como um campo de exceção às limitações ao poder, reforçado posteriormente pelo surgimento do direito administrativo.
Ribeiro dos Santos também compreendia a necessidade de separar os bens de “uso público do império” daqueles destinados aos “usos privados do Príncipe”. No entanto, para ele, essa separação tinha por objetivo demarcar quais eram os “bens do reino”, “patrimônio público” ou “bens dos povos” (Santos, 1844?, p. 32-35). Novamente, sua intenção era limitar a ação da Coroa. Ambos, no entanto, entendiam a dupla condição do monarca, pública e particular, que era conhecida desde o período medieval (Kantorowicz, 1998). O problema não era em relação aos dois tipos de bens, mas a extensão que seria dada ao poder do monarca sobre os bens da Coroa.
O tema aqui dialoga outra vez com as “leis fundamentais”, os direitos, foros e privilégios dos vassalos. Igualmente, depende da disputa em torno do significado do “público”. Enquanto para Mello Freire o seu sentido está relacionado apenas ao campo de ação do soberano: “sendo públicos necessariamente hão de versar sobre a pessoa do rei e seus procedimentos”, Ribeiro dos Santos afirmava em relação às tenças que estas não eram “bens da Coroa do reino, mas públicos, isto é, do povo” (Santos, 1844?, p. 34). Isso significava que o rei não podia utilizá-los de modo arbitrário. Para ele, o patrimônio público e o patrimônio real possuíam naturezas, finalidades e aplicações distintas, devendo ser tratados individualmente no código de direito público.
A associação entre o conceito de público e a ação do monarca (em processo de expansão) fica ainda mais clara quando Mello Freire trata dos tributos:
A nós somente pertence o direito de impor todo o gênero de tributos novos, e de conservar, diminuir, ou aumentar os antigos, segundo a exigência da causa pública, entendida pelo nosso Real arbítrio, sem necessidade de concurso, ou dependência dos nossos vassalos, assim eclesiásticos, como seculares, e das câmaras das cidades e vilas dos nossos reinos (Reis, 1844a, p. 127, grifo nosso).
Um dos temas que mais mobilizava as antigas reuniões de Cortes era, justamente, a discussão sobre a tributação. O autor do código aqui é enfático em afirmar que a compreensão da “causa pública”, que justificaria a extinção, criação, aumento ou diminuição dos tributos era determinada pelo arbítrio do rei, sem “dependência dos nossos vassalos”. “Causa pública”, “utilidade pública”, “benefício público”, entre outros, serão instrumentalizados na justificativa de ampliação da autoridade monárquica, bem como na derrogação de privilégios e competências dos corpos do Antigo Regime. “Público”, gradativamente, foi se desvencilhando da ideia ampla de direção ao bem comum (que permitia qualificar uma série de instituições como “públicas”) para tratar apenas do campo de atuação do Estado em construção.
Evidencia-se, portanto, que a disputa em torno do sentido do conceito de “público” fazia parte do embate mais geral entre os projetos políticos que emergiam com a crise do Antigo Regime. Por outro lado, a escolha pelo conceito, nesse contexto histórico, estava muito provavelmente relacionada a sua longa trajetória na linguagem política. Nesse sentido, esses mesmos projetos que se opunham ao Antigo Regime construíam-se com conceitos que não se libertaram facilmente dos sentidos que possuíam anteriormente. Ainda que os vintistas portugueses, por exemplo, tenham recuperado Ribeiro dos Santos como um autor que supostamente antecipava o “liberalismo”, encontrando na defesa que fazia das “leis fundamentais”, a justificativa histórica da legitimidade da “constituição” (Seelaender, 2006, p. 216-217), muitas das premissas do autor estavam mais propriamente ligadas ao modo de funcionamento do Antigo Regime do que ao liberalismo.
Mello Freire, por sua vez, ao negligenciar a mínima associação entre o “público” e a “sociedade”, parecia romper de forma mais clara com os pressupostos do Antigo Regime. Ou seja, negava que a “comunidade”, baseada no ordenamento natural, cumpria uma função “pública”, como portadora de um “poder público” independente do soberano, principalmente nos casos de escolha do modo de governo e tirania. Por isso mesmo, posicionava-se contra as teorias do poder in habitu e do poder in actu.
[...] no que vinham claramente a dizer e confessar, que as Cortes não são superiores ao Rei; que nelas não reside o império, nem a majestade, nem habitual, nem actualmente; e que não podem fazer constituições, que obriguem ao Rei (Reis, 1844b, p. 89, grifo nosso).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dicionários contemporâneos sempre trazem dois sentidos possíveis para o conceito de público: 1) relativo ou pertencente a um povo, a uma coletividade; 2) relativo ou pertencente ao governo de um país, estado, cidade etc.31 “Público” talvez seja um dos poucos conceitos que guarde em sua capacidade de sentido a função de designar tanto a sociedade como o Estado. Claro que é preciso interpretar essa função dentro da história. Ao menos desde o século XIX essa função é atravessada pela noção de representação política. É por meio dela que se torna possível utilizar o conceito tanto para tratar da sociedade quanto do campo de atuação do Estado. Nesse sentido, o Estado é o poder público ou o representante do público, que permanece sendo, essencialmente, a sociedade.
Essa duplicidade do “público”, no entanto, não surgiu com a representação política moderna, como os seus usos anteriores revelam. É importante acompanhar, na história do conceito, a forma como diferentes contextos históricos lidaram com essa ambiguidade. O problema elaborado no Antigo Regime acerca da dependência da comunidade em relação ao soberano (responsável por tornar possível uma coisa pública) é atualizado no século XVIII em meio às mudanças do período. Nesse contexto, a disputa em torno daquilo que é público ou não adquiriu contornos diversos de acordo com propostas que buscavam fortalecer o poder real ou diminuí-lo. Para os primeiros, tratava-se de enfatizar o papel do rei como única autoridade pública, responsável por superar os particularismos do modelo corporativo, restringindo ao poder do centro o sentido do conceito32; para os segundos, tratava-se de conter a expansão do poder monárquico, afirmando que “público” era, essencialmente, a “sociedade civil”, conceito ainda emergente no discurso político. Nessa perspectiva, toda a atividade pública devia ter como início e finalidade a própria sociedade, limitando a ação monárquica por meio da reunião das cortes, das leis fundamentais e, posteriormente, da própria constituição.
Em 1824, Francisco de São Luiz Saraiva afirmava que “público” deve ser entendido “sempre debaixo da autoridade de um governo” (Saraiva, 1824, p. 204-205), retomando, ao que parece, um aspecto estrutural do conceito: esse jogo permanente de existência/submissão entre a comunidade e o soberano, entre a sociedade e o Estado, e o papel que cabe a cada um. Pensar no conceito de público é sempre ter em mente esse conjunto de qualificações, de relações, de intercurso entre dois âmbitos separados analiticamente, mas que, dentro do sentido do conceito, apenas podem ser tratados de forma relacionada. Em outras palavras, falar do conceito de público é falar simultaneamente do âmbito social e do âmbito político, pois trata sempre de um conjunto social e do exercício do poder.
A permanência dessa ambiguidade não está demarcada apenas nos dicionários, mas também nas discussões políticas e intelectuais, como demonstram as tentativas de cunhar a expressão “público não-estatal”, cuja principal referência é Luiz Carlos Bresser-Pereira e Nuria Cunill Grau (1999). Apesar dos autores avançarem sobre a constituição, delimitação e precisão exata do conceito, para os objetivos restritos deste artigo interessa-nos pensar exclusivamente na terminologia adotada e a forma como ela mantém aberta a disputa em torno do sentido do conceito. A ideia e a defesa de um “público não-estatal” só faz sentido quando se parte do pressuposto da vinculação efetuada ao longo da história do conceito de público com o Estado. Como vimos neste texto, essa ambiguidade, essa capacidade de se referir concomitantemente a um conjunto social e ao exercício do poder está presente na estrutura histórica (portanto dinâmica e mutável) do conceito. Reivindicar a não “estatalidade” do conceito é parte da disputa política e emerge como sinal do desejo de uma democracia mais direta, na qual os grupos sociais, como um “público”, possam agir também pelo interesse público.
O ponto é que a ambiguidade foi, muitas vezes, utilizada para tratá-lo como um conceito meramente retórico, errático, confuso, conotativo. Porém, talvez seja essa mesma ambiguidade que tenha o tornado tão importante no discurso moderno e tão disputado politicamente. As ideias de um governo representativo no início do século XIX transformaram o conceito de público em um conceito central na estrutura intelectual inventada para dar um sentido ao mundo político e social. Baseado na longa tradição da ambiguidade do conceito, ele parecia se adequar claramente aos objetivos da ficção política da representação.
Por outro lado, o questionamento acerca da duplicidade do público permite abrir a própria noção de representação ao escrutínio, de tal modo a potencializar a participação real e efetiva da sociedade, no sentido de uma democracia mais direta e, portanto, “pública”. Ainda assim, nem o Estado e nem a sociedade monopolizam o sentido do conceito, que parece ter sido pensado justamente para interseccionar os dois campos. Isso possibilita evitar o estabelecimento de um governo independente da sociedade (não eletivo, ditador ou totalitário) e também proteger a sociedade da assimetria de poder que existe na hierarquia dos interesses particulares (que, dentro do capitalismo, significa riqueza econômica). De certo modo, é nessa ambiguidade do conceito, nesse jogo permanente, que reside o seu potencial democrático. Diferente, portanto, de um “público não-estatal” ou, o que daria no mesmo, de um “público não-social”.
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Texto derivado e adaptado da tese de doutorado intitulada: “Público e privado: construção conceitual e política no Brasil (sécs. XVII – XIX)”.
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Diferentes autores têm questionado a validade da dicotomia público e privado para dar conta da natureza múltipla e complexa da realidade, especialmente nos dias atuais. Mimi Sheller e John Urry, por exemplo, afirmam que: “apesar dos heroicos esforços das teorias normativas do século XX para salvar a divisão, as várias distinções entre o domínio público e o privado não podem sobreviver” (Sheller; Urry, 2003, p. 113). Peter Berger, já em uma etapa da sua trajetória considerada como neoconservadora, dizia que a crise da sociedade moderna era resultado de um pensamento dicotômico entre o público e o privado, defendendo a institucionalização de instâncias mediadoras entre os dois, como a Igreja, a família, a vizinhança e a associação voluntária (Berger; Neuhaus, 1996). Por outro lado, vários autores insistem que a separação entre o público e privado é uma premissa necessária para as democracias modernas, ou porque os interesses públicos (estatais) estão sendo corroídos pelos interesses privados (mercado), ou, como na consideração dos autores liberais, de que é o mercado e os interesses privados que estão sendo corroídos pelos poderes dos estados nacionais. A diversidade nacional de cada formação histórica e cultural também sugere a incapacidade dos conceitos de lidarem com as experiências concretas. No caso da Índia, Aryama argumenta que, devido à instituição e prática do sistema de castas como eixo organizador da estrutural social, essa divisão entre público e privado deveria ser redefinida ou abandonada. No entanto, também compreende as consequências negativas que esse abandono pode ter para a democracia indiana, considerando, especialmente, o elevado nível de corrupção no país (Aryama, 2006).
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Sobre a prática e a importância das discussões sobre o valimento. Ver: Dantas, (2009); Elliott (1999); Escudero López (2009, p. 665-680); Feros (2001, p. 49-84); Oliveira (2004, p. 217-238, 2005); Reis (2020, p. 1-51, 2021); Tomás; Valiente (1990).
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Sobre a segunda escolástica, também no contexto da América Portuguesa. Ver: Villalta (1999).
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A explicação dos conceitos de público e particular nessa parte seguirá de perto as obras de Francisco Suárez (1548-1617). Trata-se de um dos mais importantes jesuítas na entrada do século XVII que atualizou, a partir do seu próprio contexto histórico, o conhecimento da filosofia e da teologia antiga e medieval. Suárez lecionou em Ávila e Segóvia, Valladolid, Roma, Alcalá, Salamanca e, por último em Coimbra, de 1597 até 1615, falecendo dois anos depois em Lisboa. Para uma discussão mais detalhada sobre estes conceitos no Antigo Regime e em outros autores. Ver: Reis (2021).
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Trata-se, como já afirmava Paulo Merêa, da discussão sobre a origem do poder civil: Ver: Merêa (1917).
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Trad. livre do autor: “y frecuentemente hay muchas cosas que son necesarias para el bien común, que no lo son para los particulares; y aunque lo sean a veces, no las procuran como comunes sino como propias; luego en la comunidad perfecta es necesaria la potestad pública a la que pertenece por oficio intentar el bien común y procurarlo”.
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Trad. livre do autor: “porque sólo en el príncipe o magistrado hay potestad pública que se ordene a acto público y verse cerca de toda comunidad y tenga eficacia de obligar y forzar”.
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Fundamental para entender a legitimidade do tiranicídio é o que afirma o autor a respeito da condição do tirano. Para Suárez, quando o rei se torna tirano ele perde a condição de rei ou príncipe: “o argumento, portanto, é que então não se está matando o rei ou o príncipe, mas um inimigo da república” (Suárez, 2015, L. VI, p. 184).
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Trad. livre do autor: “porque no se basta para procurarse la felicidad humana del modo que puede procurarse humanamente, o (para hablar más claro) las partes de tal comunidad no se prestan mutuamente suficiente auxilio o mutua ayuda de que necesita la sociedad humana para su fin o para su conservación, y, por tanto, tal comunidad se ordena cuasi naturalmente a la comunidad perfecta, como parte al todo, y por tanto, la potestad legislativa no está en tal comunidad, sino sólo en la perfecta”.
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Trad. livre do autor: “Porque si se consideran bien las caídas de los Imperios, las mudanzas de los Estados, las muertes violentas de los Príncipes, casi todas han nacido de la inobediencia de los afectos, y pasiones a la razón. No tiene el bien publico mayor enemigo, que a ellas, y a los fines particulares”.
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Segundo Hespanha e Xavier (1994), a gestação da ideia de indivíduo remete à escolástica franciscana quatrocentista e à “questão dos universais”, discutida por autores como Guilherme d’Ockham.
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“Absolutismo” utilizado, aqui, no sentido restrito de fortalecimento do poder central. É preciso evitar a incorporação dos juízos de valor dos liberais do século XIX, que vincularam a ideia de absolutismo com expressões de caráter negativo, como “tirania” e “despotismo”. Estas eram, muitas vezes, consideradas como opostas ao sentido do “poder absoluto” por seus defensores. Além do mais, esse fortalecimento do poder central na Europa durante a metade do XVIII se efetuou somente por negociações permanentes com as elites locais e regionais, tendo que lidar com os foros, liberdades, costumes e as ditas “leis fundamentais” que restringiam uma possível ação absolutamente arbitrária do príncipe. Ver: Henshall (2000); Seelaender, (2006).
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Desde o início dos setecentos as ideias de polícia vinham sendo discutidas pela Europa, com especial destaque para Nicolas De La Mare (Traité de la Police, 1703-1719) e Jean Bodin (Les six livres de la republique, 1576) na França; Johannes Von Justi (Grundsatze der Polizeiwissenschaft, 1759) na Alemanha; e Juan de Santa Maria (Tratado de República, y Policia Christiana, 1619) e Tomás Valeriola (Idea General de la Policía o Tratado de Policía..., 1798-1805) na Espanha. Sobre as ideias de polícia em Portugal. Ver: Catroga (2013).
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Para alguns autores, as ideias de polícias deveriam ser vistas mais como uma etapa da monarquia corporativa do Antigo Regime do que como um indício prévio da construção do Estado moderno, por exemplo. Ver: Lempérière (2013).
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Sobre o caráter de ruptura ou continuidade das reformas e de Portugal ao longo da segunda metade do XVIII, ver a discussão entre Nuno Monteiro, José Subtil e António Manuel Hespanha, cuja síntese foi feita pelo próprio Hespanha. Ver: Hespanha (2007, p. 1-9).
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Analisando o conceito de “ordem pública” na obra de Gaetano Filangieri (La scienza della legislazione, 1784), François Godicheu afirma o seguinte: “Esta multiplicación del adjetivo ‘público’, tautológica por carencia de definiciones, es una afirmación bastante enfática de que existe un ámbito de lo público, como una instancia única vinculada a la constitución política – el orden político –; es un ejemplo del poder performativo de la teoría política. Esta fuerza le viene de la novedad del esfuerzo definitorio, de la poca costumbre de emplear la expresión orden público en ese momento y del carácter de la obra, que se quería fundadora de una ciencia jurídica moderna” (Godicheau, 2013. p. 118).
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18
O direito natural anterior era o direito concreto das corporações, baseado na “diversidade e historicidade da organização jurídico-política das comunidades humanas”. O “jusnaturalismo” como um “sistema”, no período moderno, significava uma normatização “supra-positiva”, válida para qualquer comunidade humana, independente de ordens jurídicas concretas, ou seja, “direitos criados por lei geral ou até por normas universais de caráter pré- positivo” (Hespanha, 1982. p. 315-316).
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Sobre a novidade do direito público no período moderno ver os trabalhos já citados de Airton Cerqueira-Leite Seelaender e, também: Stolleis (2018).
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Algumas questões foram discutidas em: Reis (2021, p. 1-51).
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21
PORTUGAL. Estatutos da Universidade de Coimbra. Coimbra: Universidade de Coimbra, vol. 2, 1772. T. VI, C. II, §7, p. 456.
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A Junta foi presidida pelo Visconde de Villa Nova de Cerveira (Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino) e fizeram parte dela: Doutor José Ricalde Pereira de Castro (Conselheiro da Rainha e Desembargador do Paço), Doutor Manoel Gomes Ferreira (Desembargador dos Agravos da Casa de Suplicação), Doutor Bartholomeu José Nunes Cardozo Giraldes de Andrade (Conselheiro da Rainha, Desembargador do Paço e Procurador da Fazenda Real), Doutor Gonçalo José da Silveira Preto (Conselheiro da Rainha e Procurador da Fazenda do Ultramar) e o Doutor João Pereira Ramos de Azevedo Coutinho (Procurador da Coroa).
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23
De acordo com informações do sobrinho de Mello Freire, chamado Francisco Freire de Mello. MELLO, Francisco Freire de. Discurso sobre delictos e penas, e qual foi a sua proporção nas diferentes épocas da nossa jurisprudência: principalmente nos três séculos primeiros da Monarchia Portugueza. Londres: Impresso por T. C. Hansard, 1816. p. 55-56.
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24
Sobre Mello Freire: Ver: Soares (2013); Ornelas (2015).
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25
Sobre Ribeiro dos Santos: Ver: Pereira (2005); Soares (2013).
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26
Sobre o mito das Cortes de Lamego e seus usos posteriores nos debates políticos, tanto nos setecentos para limitar o poder do rei como durante o vintismo para justificar as características “históricas” da Constituição que se firmava. Ver: Hespanha (1982, p. 368-369).
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27
“Mas, posto que aos eclesiásticos não fossem concedidos alguns direitos públicos, isto é, parte, e ingerência no governo do reino, sempre eles foram tidos em grande monta e consideração na mesma ordem civil e política” (Reis, 1844b, p. 92).
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28
Trata-se da defesa do direito divino dos reis. Outros autores regalistas nesse contexto também defendiam a transmissão direta do poder de Deus aos reis, como é o caso de Francisco Coelho de Souza e Sampaio. Ver: Sampaio (1793; 1805).
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29
Em seu livro anterior publicado no mesmo ano (Instituições de Direito Civil Português, tanto público como particular de 1789), o governo dos municípios foi incluído no direito particular, especificamente ao tratar de uma das divisões entre os homens: os cidadãos e os estrangeiros (L. II, T. II, §VII-X). Em relação às coisas, Mello Freire as dividia em comuns, públicas, da universidade e particulares. O termo universidade era utilizado para designar uma cidade ou povoação, portanto as coisas pertencentes ao domínio das cidades municipais “de nenhum modo se devem dizer públicas”, uma vez que “não pertencem a todo o povo” (L. III, T. I, §VIII) (Reis, 1967, p. 46-47).
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30
Mello Freire recusava-se a dizer que o reino era propriedade do rei, mas dizia que ele pertencia ao seu livre império e administração: “Que o reino de Portugal, como não veio ao Rei por doação, ou translação dos povos, mas pelo direito do sangue e da conquista, ficou desde o princípio pertencendo ao seu livre império e administração. Não venho com isto a adotar a célebre distinção entre os reinos patrimoniais e usufrutuários, nem a dizer que o reino está no domínio e propriedade do Rei, e que pode usar e abusar dele como qualquer senhor particular do que é seu; mas só que o Rei tem uma livre, geral e privativa administração sobre todos os bens e pessoas do Estado, e autoridade para de tudo dispor, segundo a exigência da causa pública, como mais abaixo se dirá” (Reis, 1844b. p. 66).
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Como no Oxford Languages, Dicionário Michaelis, Priberam, entre outros.
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Claro que esse sentido do conceito, parte da sua estrutura semântica, pode ser recuado para outros contextos. Quentin Skinner demonstra, por exemplo, que para muitos autores italianos dos séculos XII e XIII o principal problema das cidades-repúblicas italianas era o facciosismo ou particularismo. A solução encontrada por esses autores era subordinar os interesses particulares e individuais ao coletivo, à cidade, e para tal propósito eram utilizados os conceitos de “bem comum”, “bem público”, “interesse coletivo”, entre outros. A defesa retórica da liberdade, portanto, voltava-se para a atribuição de poder a um governante nobre (cujo critério de nobreza seria a virtude) que suprimiria as facções garantindo as liberdades (Skinner, 1996. p. 62-69).
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Editor responsável:
Ely Bergo de Carvalho
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
15 Jun 2024 -
Revisado
12 Out 2024 -
Aceito
14 Out 2024