RESUMO
Certa tradição da história literária localiza o século XVIII como ponto de inflexão para a investigação acerca da delimitação especificamente moderna do gênero romanesco e da redefinição do estatuto da ficção. Nesse período, o romance (novel) é apresentado e afirmado como forma narrativa nova, ao mesmo tempo que é, porém, justificado pelos seus praticantes, na disputa com outros gêneros, como maneira mais eficaz de cumprir com os propósitos pedagógicos da longeva “instituição retórica”: educar e deleitar. É como parte desse duplo movimento que pretendemos investigar duas narrativas ficcionais desse período, que têm como tema a castidade feminina: uma inglesa, Roxana (1724), de Daniel Defoe, na qual a virtude é sacrificada à necessidade e à vaidade; e uma do genebrino Jean-Jacques Rousseau, que responde, a sua maneira, à discussão sobre o romance, com a pintura da devota protagonista Júlia em A nova Heloísa (1761). O artigo pretende mostrar como as duas formas distintas de retratar a mulher (como pintura do vício ou da virtude, respectivamente) correspondem a duas estratégias narrativas opostas que partilham uma mesma finalidade: a de aperfeiçoar moralmente o público feminino.
Palavras-chave
Daniel Defoe; Jean-Jacques Rousseau; romance moderno
ABSTRACT
A certain tradition of literary history locates the 18th century as the turning point for research into the specifically modern delimitation of the genre of the novel and the redefinition of the status of fiction. During this period, the novel was presented and affirmed as a new narrative form, but at the same time, it was justified by its practitioners, in a dispute with other genres, as the most effective way of fulfilling the pedagogical purposes of the long-standing “rhetorical institution”: to educate and delight. It is as part of this double movement that we intend to investigate two fictional narratives from this period, which have female chastity as their theme: an English one, Roxana (1724), by Daniel Defoe, in which virtue is sacrificed to need and vanity; and one by the Geneva-born Jean-Jacques Rousseau, who responds in his own way to the discussion about the novel , with the painting of the devout protagonist Julia in The New Heloise (1761). The article aims to show how the two different ways of portraying women (as paintings of vice or virtue, respectively) correspond to two opposing narrative strategies that share the same purpose: to morally improve the female audience.
Keywords
Daniel Defoe; Jean-Jacques Rousseau; modern novel
Este artigo é sobre textos em prosa de ficção, ou “romances”, produzidos no século XVIII na Inglaterra e na França. Acompanhamos a crítica especializada em considerar que esse tipo de literatura vive um período particularmente fértil no século XVIII e que esses espaços linguístico-culturais são a ponta de lança do desenvolvimento da forma no período. Entendemos também que o século XVIII é um momento igualmente intenso em transformações histórico-sociológicas e que o romance participa dessas mudanças, não como sintoma ou reflexo, mas como meio privilegiado de reflexão sobre tais transformações. Interessa-nos, particularmente, discutir aqui o modo como o romance, como forma literária em processo de afirmação e consolidação no período, elabora certas questões relacionadas às definições de gênero.
Nessa direção, assumimos uma dupla perspectiva teórica sobre a forma romanesca moderna, igualmente pertinentes, como pretendemos mostrar, à análise das duas narrativas ficcionais consideradas ao longo do trabalho. A primeira, defendida por Franco Moretti, entende o romance, a partir do setecentos, como uma “forma simbólica” (2020), e considera a maneira pela qual a ficção moderna participa dos embates ideológicos da realidade, figurando, por um lado, contradições fundamentais da cultura burguesa e, por outro, ofertando-lhes resoluções conciliatórias e pacificadoras. O segundo ponto de vista acerca do romance moderno convive, mas concorre com o primeiro: supomos que, pela própria natureza do gênero, isto é, por sua intenção de encenar e processar ficcionalmente a experiência do real, incluindo sua temporalidade cotidiana e sua heterodiscursividade, a forma romanesca extrapola a intencionalidade autoral, fazendo emergir uma potencialidade crítica e dissonante.
Para tanto, vamos examinar de forma comparativa dois textos especialmente interessantes no que concerne a esses temas, quais sejam: Roxana (1724), de Daniel Defoe; e Júlia ou A nova Heloísa (1761), de Jean-Jacques Rousseau. Assim como muitos outros dos primeiros romances canônicos do século XVIII, Roxana e A nova Heloísa realizam aquilo que Madeleine Kahn (1991, p. 6) chamou de “travestismo narrativo”, projetando um self masculino numa voz e experiência femininas imaginadas. Esse recurso, pelo qual “autores masculinos exploram, no corpo metafórico do texto, as possibilidades ambíguas da identidade e do gênero [, é] uma parte integral da investigação radical e desestabilizante do romance emergente sobre como um indivíduo cria uma identidade e [...] uma identidade de gênero”. Escritos em lugares e momentos diferentes, a Inglaterra da década de 1720 e a França de 1760, esses romances testemunham a fecundação cruzada entre os espaços, tão importante para o desenvolvimento da forma nesse período decisivo da história do romance, ao mesmo tempo que tratam de forma crítica temas candentes relacionados à construção da identidade feminina, suas atribuições e espaços de atuação, como o casamento, a maternidade, o adultério etc.
ROXANA: MEER-WOMAN / MAN-WOMAN
Roxana é a última de sete narrativas autobiográficas ficcionais escritas entre 1719 e 1724 atribuídas a Daniel Defoe (1660-1731). Alguns desses textos, como Robinson Crusoé (1719), Moll Flanders (1722), Um Diário do Ano da Peste (1722) e a própria Roxana (1724), integram hoje o cânone da literatura ocidental. Ironicamente, no momento de sua publicação e por muito tempo depois, com exceção de Robinson Crusoé, sequer receberam atenção crítica, a despeito de seu sucesso comercial. Mesmo seu autor não parece tê-las tido em alta conta. Crescentemente populares e lucrativos, embora ainda carecessem de status literário, os romances vinham ganhando espaço no pujante mercado de impressos do início do século XVIII, acompanhando o gosto do público por novidades. Escritor profissional avant la lettre, Defoe experimentou talvez mais do que qualquer outro as possibilidades de ganhar dinheiro nesse mercado, tendo publicado copiosamente nos mais variados gêneros e formatos. No entanto, o “autor [do poema satírico] The True Born Englishman”, como gostava de se intitular, teria certamente rejeitado o epíteto de “romancista”. Com efeito, seus romances foram publicados sem o seu nome na folha de rosto — e alguns, como Roxana, só terão sua autoria confirmada no início do século XIX. Além de sintoma do baixo, ou inexistente, valor literário do romance nessa etapa do seu desenvolvimento, a exclusão do nome próprio do autor é também indício de um esforço de dissimulação de sua ficcionalidade.
Todos os romances publicados por Defoe, sem exceção, apresentam-se como histórias verídicas, distintas das “estórias romanescas (romances)” ou “romances (novels)” em voga por se basearem “na verdade dos fatos” (truth of fact) (Defoe, 2008). De acordo com Catherine Gallagher (2006), no início do século XVIII, o conceito de “ficção”, no sentido de categoria discursiva de pleno direito, não havia ainda se consolidado; o que só viria a acontecer com a consagração das narrativas em prosa de ficção verossímeis – mais tarde denominados “romances realistas” –, a partir da segunda metade do século. Então relativamente raros, textos como Robinson Crusoé, Moll Flanders ou Roxana desafiavam as convenções estabelecidas dos gêneros e careciam de um espaço definido dentro do campo literário. Demasiado sérios para comédias, demasiado prosaicos para tragédias e epopeias, demasiado particularizados em sua ação e personagens para confundirem-se com alegorias, fábulas, contos de fadas, romances de cavalaria e outras narrativas imaginárias, eram recebidos com perplexidade.
Essa ambiguidade foi plenamente explorada por Defoe. Seus romances são histórias de vida de indivíduos precisamente circunscritos histórica e socialmente, narrados na primeira pessoa do singular — motivo pelo qual foi classificado pela crítica anglo-americana como um dos precursores do “realismo” oitocentista. No caso de Roxana, a narradora é uma mulher, filha de refugiados huguenotes estabelecidos em Londres no final do século XVII, que, em sua maturidade, conta em pormenor os eventos de sua vida pregressa. Ao longo da narrativa, ouvimos apenas a sua voz, num monólogo contínuo, sem interrupções. Mas, no Prefácio, quem fala é o suposto “editor” (relator), que atesta a veracidade da narrativa: trata-se “não de uma estória (story), mas de uma história (history)” (Defoe, 2008, p. 490). Seu trabalho teria consistido apenas em “vesti-la” em linguagem apropriada e em substituir os nomes verdadeiros por inventados para evitar a identificação das pessoas envolvidas. Dizendo ter conhecido pessoalmente alguns dos personagens, o editor apresenta-se, ainda, como testemunha de que o relato merece o “crédito” do leitor.
Ainda mais importante do que autenticar a narrativa era justificar sua utilidade. Qualquer narrativa, verídica ou não, estava sujeita à injunção neoclássica de ser proveitosa. Da perspectiva da tradição poético-retórico de matriz clássica, uma história deveria ensinar por meio de seus exemplos, levando à imitação da virtude e à evitação do vício. Desse ponto de vista, o prazer da leitura ou mesmo a veracidade da história concorriam para o fim pedagógico. Por isso o suposto editor de Roxana insiste, ainda no prefácio à narrativa, que suas partes são “apropriadas à instrução e ao aperfeiçoamento do leitor” (2008, p. 49). Essa instrução se dá, em Roxana, pela apresentação não de um modelo de virtude, mas de vício: a vida de uma prostituta. Instiga-se, nesse caso, à imitação não da conduta da heroína durante os incidentes narrados, mas sim de seu arrependimento e autocensura manifestados retrospectivamente, no tempo da narração.
O suposto editor indica que a história deve ser lida de forma correta para que seja moralmente proveitosa. Tal forma é designada pela própria protagonista, “na maneira pela qual contou sua história”: sem jamais se justificar ou recomendar sua conduta, mas, ao contrário, censurando e condenando sua própria prática pregressa, Roxana “guia-nos a reflexões apropriadas” (2008, p. 50). Seriam, afinal, os comentários morais da protagonista, articulados a partir da posição distanciada da consciência rememorante e arrependida, que justificam a publicação do relato de uma vida viciosa. Se ações perversas (wicked) são representadas, no relato, defende o suposto editor, é apenas para que sejam expostas e condenadas. Afinal a pintura do vício em suas “cores depreciadas (low-priz’d)” serve “não para fazer as pessoas por ele se apaixonarem, mas para denunciá-lo”. E caso o leitor faça mau uso de tais imagens, “a perversidade é sua própria” (2008, p. 51).
Embora perfeitamente de acordo com as expectativas moralizantes da tradição literária clássica, tais profissões de moralidade soam suspeitas. Afinal, sabemos que o apelo da história junto ao público decorria de sua natureza escandalosa. No final do século XVII e início do XVIII, o romance seiscentista francês, em seus vários formatos, era bem conhecido do público inglês (Reed, 2016). Em particular, as nouvelles, chroniques escandaleuses e romans à clef, com seus enredos libertinos de sedução, amores ilícitos e suas aristocráticas heroínas espirituosas e de moralidade duvidosa, eram traduzidos, adaptados e reinventados com considerável sucesso por, entre outras, escritoras como Aphra Behn, Delarivier Manley e Eliza Haywood (Cf. Ballaster, 1992). Roxana é claramente inspirada nessas formas populares, embora infames, do romance francês. Por outro lado, é bem verdade que a estrutura de enredo da obra, com sua dinâmica de pecado, culpa e arrependimento, assim como a da maior parte dos romances de Defoe, provém do gênero devoto das autobiografias espirituais, tão populares no mundo protestante (Cf. Starr, 1965).
Irrelevante porquanto indecidível, a questão da sinceridade do editor como persona do autor implícito, sua venalidade dissimulada ou autêntica piedade, interessa-nos aqui apenas como sintoma de uma tensão entre exigências espirituais (e morais) e apelos mundanos, tensão que perpassa este e outros romances de Defoe, bem como sua biografia. Boa parte de seus heróis e heroínas vive de forma dilacerante o conflito entre a tradição e a ambição aventuresca, tipicamente moderna, de conquista do mundo, ou seja, entre valores religiosos e morais tradicionais e a autoafirmação individual. Em Roxana, o antagonismo se dá sobretudo entre a independência, liberdade e o prazer proporcionados pela riqueza, luxo e posição social e seus deveres sociais como esposa e mãe. Desse modo, o romance figura um conflito simbólico típico da experiência moderna entre liberdade individual e exigências sociais, e se esforça para oferecer uma solução favorável ao segundo pólo.
A história de Roxana é uma história de ascensão e queda de uma prostituta. Abandonada, no começo da narrativa, por um marido “belo e alegre”, porém “tolo” (fool), ela e seus cinco filhos logo se veem reduzidos à miséria. Porém, graças a sua beleza e extraordinário engenho, e ao auxílio de Amy, sua fiel criada, a protagonista logra, após muitas peripécias e amantes, acumular uma vastíssima fortuna e ascender socialmente a ponto de, ao final da história, angariar um título nobiliárquico. Movida de início pela necessidade e, em seguida, pela ambição e vaidade, Roxana troca sua virtude pela fortuna — Fortunate Mistress (Amante Afortunada) é, afinal, o título original do livro. A partir de certo ponto, porém, sua sorte muda. Perseguida por seu passado na forma de uma filha abandonada que a reconhece, termina desgraçada e arrependida.
Esse enredo simples de virtude sacrificada à necessidade e à vaidade, de pecado e arrependimento, baliza uma narrativa que traz à baila uma série de temas candentes de uma sociedade em meio a profundas transformações. Refiro-me à complexa e difícil transição, em andamento na Inglaterra do início do século XVIII, de uma sociedade agrária de Antigo Regime, com seus valores hierárquicos e tradicionalistas, para a modernidade burguesa, com seus corolários habituais: secularização, urbanização, individualismo, mercantilização etc. Evidentemente, a associação entre a “ascensão do romance” e a emergência da vida burguesa moderna é bem conhecida, e Defoe, com sua prosa rápida, direta e chã, costuma ser tratado pela crítica anglo-americana tanto como um dos inventores do romance realista quanto como uma espécie de cronista apologético do individualismo e do capitalismo nascentes (Watt, 2010 [1957]). Sem querer pôr em questão essa leitura, nosso interesse no romance, e nesse romance em particular, reside menos em seu caráter de sintoma, registro, ou mesmo defesa, de determinado estado de coisas, do que em sua capacidade de tematizar e problematizar sua situação histórica. Ao contrário de críticos como Roland Barthes (2004) ou Franco Moretti (2009), não vemos o romance, e o romance realista especificamente, como uma forma exclusiva e francamente “conservadora”, cujos dispositivos característicos — discurso indireto livre, primado da descrição (ou catálise) etc. — teriam função de mera sustentação da ideologia burguesa. Sugerir o contrário seria igualmente redutor. Reconhecemos, entretanto, que a forma, justamente por suas especificidades, tais como seu engastamento na temporalidade cotidiana e sua polifonia, possui um elevado potencial de reflexividade crítica, ainda que seu sentido seja ambivalente.
No que segue, gostaríamos de ressaltar essa reflexividade, em Roxana, na maneira pela qual os temas do matrimônio e da autonomia feminina, ou seja, do lugar da mulher em uma sociedade que, embora patriarcal, estava experimentando uma inquietante redefinição de lugares e papeis sociais, aparecem no texto. Embora ubíquos no romance, esses temas são explicitamente discutidos pela protagonista em algumas passagens.
A primeira é um diálogo entre Roxana e um pretendente seu, o honesto comerciante holandês. O diálogo acontece em Roterdã, onde os dois se reencontram, logo após o holandês tê-la ajudado a fugir de uma situação perigosa na França, mais ou menos no meio do livro. Nesse ponto da história, Roxana já é uma mulher rica, tendo acumulado um considerável cabedal de seus amantes anteriores. No entanto, sabe que sua fortuna e, provavelmente, sua vida só estão seguros graças ao auxílio de seu benfeitor holandês, o que a coloca numa situação de obrigação para com ele. Ela lhe oferece uma larga quantia para quitar sua dívida, mas o comerciante recusa, pois sua intenção é desposá-la. Temendo perder o controle de seu patrimônio, Roxana rejeita suas propostas de casamento. Desesperado, o holandês adota o seguinte curso de ação: aproveita-se de uma oportunidade para deitar-se com ela, de modo a forçá-la, em nome da honra, a tomá-lo como esposo. Roxana, que não tem nenhuma objeção em ser sua amante, aceita suas investidas sexuais, e os dois deitam-se por várias noites. Não obstante, para completa surpresa do holandês, continua irredutível em relação ao matrimônio. Frustrado e confuso, o holandês pede uma justificativa e ouve o seguinte discurso:
Eu lhe disse que talvez tivesse noções acerca do matrimônio diferentes daquelas que o costume recebido nos deu; que eu pensava que uma mulher era um agente livre, assim como um homem, e que nascia livre, e que, se ela se conduzisse (manage) adequadamente, poderia desfrutar dessa liberdade com tanta resolução quanto os homens o fazem; que as Leis do Matrimônio eram de fato diferentes, e a humanidade naquela época agia de acordo com outros princípios; tais que uma mulher se alienava inteiramente de si mesma (gave herself entirely away from herself), no casamento, e capitulava apenas para ser, na melhor das hipóteses, um serviçal mais graduado (upper-servant), [...] Que a própria natureza do contrato de casamento era, em suma, nada mais do que abrir mão da liberdade, da propriedade, da autoridade e de tudo mais, para o homem, e, depois disso, a mulher era de fato uma mera mulher (meer-woman) para todo sempre, isto é, uma escrava (Defoe, 2008, p. 220).
Além da eloquência, chama atenção, na passagem, a mobilização do vocabulário do Direito Natural, cuja importância no discurso político da época era crescente. Completamente desconcertado (confounded), o holandês denuncia a novidade das noções de Roxana — a despeito de posições semelhantes já terem sido defendidas publicamente (Cf. p.ex., Rovere, 2019) —, ao mesmo tempo que reconhece a força de seus argumentos: “ele respondeu que eu havia começado algo novo no mundo; que, embora eu pudesse apoiá-lo com raciocínios sutis, era uma forma de argumentar contrária à prática comum” (Defoe, 2008, p. 227). Ou ainda: “você segue noções diferentes de todo o mundo; e embora argumente com tamanha força que um homem mal sabe o que responder, ainda assim devo admitir que há algo aí chocante à Natureza” (Defoe, 2008, p. 230). Além de apelar aos costumes e à natureza, o holandês, incapaz de refutar os argumentos jusnaturalistas de Roxana, recorre também à religião e às leis do país (Defoe, 2008, p. 224), i.e., às figuras tradicionais de autoridade. Particularmente incompreensível e chocante lhe parece o fato de Roxana demonstrar não se importar com a criança que traz no ventre, cujo destino, como filho bastardo, “é carregar o eterno opróbrio (reproach) daquilo de que não tem culpa”. Caso possuísse “a afeição comum de uma mãe”, diz ele, Roxana jamais consideraria não realizar justamente aquilo que permitiria “nivelá-la com o resto do mundo” (Defoe, 2008, p. 230).
A discussão é encerrada sem um ganhador. O holandês não consegue convencer Roxana a se casar, nem essa o convence a permanecerem juntos como amantes. O holandês retorna a Paris, e ela parte para Londres disposta a conquistar a polite society inglesa com sua fortuna, aparência e talentos. Já estabelecida em uma residência luxuosa, na parte elegante da cidade, Roxana aproxima-se de um conhecido financista londrino, Sir Robert Clayton, que lhe dá conselhos sobre como administrar seu patrimônio. Em uma conversa, Sir Robert lhe sugere casar-se com algum “comerciante de boa estirpe (truebred)”, o que lhe traria estabilidade e conforto. Embora a narradora, na figura da Roxana arrependida, reconheça em retrospecto a justeza da sugestão, a jovem imprudente a recusa em nome da independência, repetindo o discurso igualitarista que fizera ao holandês:
Isso certamente estava certo; e tivesse eu seguido seu conselho, teria ficado muito feliz; mas meu coração estava voltado para a independência da fortuna; e eu lhe disse que não conhecia nenhum estado de matrimônio, se não o que era, na melhor das hipóteses, um estado de inferioridade, se não de submissão (bondage); que eu não tinha conhecimento disso; que eu vivia agora uma vida de liberdade absoluta; era tão livre quanto quando nasci e, tendo uma fortuna abundante, não entendia que coerência as palavras honrar e obedecer tinham com a liberdade de uma mulher livre; que eu não conhecia nenhuma razão que os homens tivessem para açambarcar (engross) toda a liberdade da raça e para submeter as mulheres, a despeito de qualquer disparidade de fortuna, às leis do casamento, leis de sua própria criação; que era minha desdita ser mulher, mas estava decidida a não torná-la pior pelo sexo; e vendo que a liberdade parecia ser propriedade dos homens, eu seria um mulher-homem (man-women); pois como nasci livre, assim morreria (Defoe, 2008, p. 247).
Ao destacar esses diálogos, nossa intenção não é sugerir que o romance, ou que sua protagonista, sejam “feministas”, o que seria não apenas anacrônico como flagrantemente contrário às declaradas intenções morais do texto. Da perspectiva da moldura moral que circunscreve a literatura e a sociedade inglesas do período, o comportamento de Roxana é aberrante, e o fato de que a protagonista empregue tamanha eloquência para defendê-lo só o torna mais repulsivo. Como coloca John Richetti, “nos termos do início do século XVIII, Roxana é um monstro libertino” (2005, p. 289). Seus argumentos não passam de sutilezas casuísticas com as quais a consciência pecaminosa procura iludir a si mesma. Não nos enganemos: o que se representa ali é o vício em suas “cores depreciadas”. Essa é a interpretação correta, segundo a voz autorizada, a voz da narradora arrependida, em seu juízo conclusivo sobre o episódio:
Assim, cega pela minha própria vaidade, joguei fora a única oportunidade que tive então de firmar minhas fortunas, assegurando-as para este mundo; e eu sou um memorial para todos que lerem minha história; um monumento permanente da loucura e do desassossego (distraction) aos quais o orgulho e as paixões do inferno nos levam; de quão mal nossas paixões nos guiam; e de quão perigosamente agimos, quando seguimos os ditames de uma mente ambiciosa (Defoe, 2008, p. 236).
Não obstante, e este é o nosso ponto: é difícil para o leitor não se deixar impactar pelos argumentos igualitaristas de Roxana, justamente porque são os argumentos da protagonista, cuja vida viemos acompanhando em pormenor desde o início da narrativa. A centralidade da individualidade no romance realista e sua natureza como indivíduo ficcional particular, porém “não referencial” (Gallagher, 2006), favorecem uma nova prática de leitura, ou de engajamento com o texto, que viria a se tornar dominante com a consolidação cultural do romance, a partir de meados do século: a leitura empática, que estimula a identificação com as personagens (cf. Watt, 2010; Gallagher, 2006; Hunt, 2009). A personagem é tão complexa, tão matizada, tão viva, e ao mesmo tempo incompleta e lacunar, que acabamos profundamente interessados em seu destino, torcendo por seus sucessos e sofrendo com seus fracassos.
À medida que a ação e as circunstâncias da Roxana pecadora se tornam o foco da atenção do leitor em detrimento das lições da Roxana arrependida, a narrativa extrapola sua função didática e parece funcionar em oposição às intenções morais do romance. Na introdução escrita para uma edição crítica recente de Conjugal Lewdness – tratado sobre moralidade sexual no casamento publicado originalmente por Defoe em 1727 –, Liz Bellamy, analisando os casos ficcionais usados pelo autor para ilustrar seus preceitos, nota uma semelhante tensão entre os requisitos didáticos e narratológicos da obra. Enquanto o texto enfatiza a culpa e a imoralidade da protagonista, nossa expectativa ficcional, baseada em sua centralidade dramática, nos encoraja a identificá-la como heroína.
Quanto mais detalhes ficcionais são fornecidos para dar corpo ao relato, mais os leitores são encorajados a compreender e empatizar com a personagem errante, solapando seu papel cautelar. [...] A evocação dramática da complexidade do comportamento e motivação humanos está em contraste com a mensagem moral inequívoca, e essa ambivalência se torna mais pronunciada nas narrativas estendidas dos romances. Enquanto preceitos morais podem ser claros e simples, a motivação individual é bem mais difícil de desenredar e julgar (Defoe, 2006, p. 17).
A ambivalência resultante dessa tensão entre didatismo e narrativa é reforçada pelo final abrupto e inconclusivo do texto. Após oito anos vivendo em grande estilo em meio à sociedade elegante londrina como a célebre “Lady Roxana”, anfitriã de bailes de máscaras, dançarina à la turque e amante de grandes personagens — entre os quais, sugere-se, o próprio Rei Carlos II —, Roxana, já cansada do vício e considerando-se suficientemente rica, decide aposentar-se de seu ofício e operar uma “completa e perfeita mudança de aparência e circunstâncias” (Defoe, 2008, p. 292). Com a ajuda de Amy, abandona sua luxuosa residência, seu séquito, criados e carruagem e muda-se para uma parte remota da cidade, onde ninguém a conhece. Toma residência incógnita na pensão de uma viúva quaker e adota os hábitos modestos dessa seita. Nessa nova condição, reencontra o comerciante holandês, que logo renova a proposta de casamento. Dessa vez, tendo conquistado tudo o que queria, exceto um título nobiliárquico — que o casamento, convenientemente, proporcionará —, Roxana, esquecendo-se de sua revolucionária argumentação anterior, entrega-se ao outro sexo.
Terminasse aí a narrativa teríamos uma comédia. Porém o ápice da carreira dessa picaresca cortesã, mestre dos disfarces e do self-fashioning, é também o início de sua ruína. Prestes a embarcar de vez para a Holanda, com seu novo marido, com sua fiel Amy, com sua inacreditável fortuna e o recém adquirido título de condessa, Roxana é reconhecida por uma de suas filhas, uma dos cinco que havia abandonado no início da história, e cujo nome, Susan, é o mesmo de batismo de sua mãe (que só agora nos é revelado). A despeito das tentativas de suborno e das ameaças de Amy, a moça, que se recusa a ser esquecida pela mãe, passa a persegui-la implacavelmente, ameaçando revelar a verdadeira identidade de Roxana e a “história secreta de sua vida pretérita” (Defoe, 2008, p. 431). Até então excepcionalmente audaciosa e engenhosa, Roxana fica paralisada, tomada pelo medo e pelo remorso. Amy, espécie de alter ego maquiavélico da protagonista, vem em seu socorro, propondo assassinar a filha inconveniente. Roxana rejeita veementemente a proposta e dispensa Amy. Susan, porém, desaparece misteriosamente. Sem conseguir encontrar a filha, nem contactar Amy, Roxana acaba por prosseguir com o seu projeto de fixar residência na Holanda. Nesse ponto, a história termina abruptamente. Em uma última frase, a narradora relata apenas que, na Holanda, ter-lhe-ia sobrevindo, como “um golpe do céu”, uma reversão de fortuna, sumariamente descrita como “um curso terrível de calamidades” que a teria reduzido novamente à miséria e, finalmente, ao arrependimento (Defoe, 2008, p. 435-436).
O final do romance é perturbador não apenas pela sugestão de assassinato, mas também pela forma lacônica com que nos informa sobre a penitência da protagonista, em contraste com a prolixidade com que são narradas suas peripécias pecaminosas. Não sabemos o que efetivamente aconteceu com Susan, tampouco com Amy ou mesmo Roxana. Que terá ocorrido na Holanda para que ela finalmente se arrependesse? Que calamidades lhe terão sobrevindo? Aliás, sequer podemos estar seguros de que esse arrependimento é verdadeiro, i.e., que não é simplesmente contingente e superficial, mas sim fruto de uma “conversão”, de uma autêntica “heart-humiliation” (Bunyan, 2008), como é esperado em uma autobiografia espiritual, e como reconhecemos, p.ex., em Robinson Crusoé e Moll Flandres. Não testemunhamos a transformação da Roxana pecadora em Roxana redimida, de modo que a cisão entre elas permanece aberta. Não há fechamento, não há “sentido de fim”.
Esse final é tão perturbador que acabou modificado, nas várias edições que foram publicadas ainda no século XVIII. Por ser um romance sem autoria, os editores não tinham escrúpulos em oportunisticamente alterá-lo de acordo com o que intuíam serem as expectativas do público leitor. De um modo geral, essas modificações — que acabam sendo um bom índice da recepção do romance — procuraram mostrar uma Roxana verdadeiramente transformada no final, o que envolvia detalhar o “curso de calamidades” indicado na versão original (tais como abandono pelo marido, morte de Amy por doença venérea, bancarrota e aprisionamento por dívida) e até narrar, com o auxílio de uma testemunha fidedigna, sua morte como devota penitente. De acordo com John Mullan (Defoe, 2008, p. 14), a maioria dessas versões de Roxana “apagou a possibilidade de que a filha pudesse ter sido assassinada, e fez a protagonista descobrir algum sentimento materno que ela escandalosamente falhara em exibir [...] no curso de sua história”. Especialmente, a partir de meados do século, com a voga do romance sentimental e a consolidação de padrões burgueses de decoro feminino, uma protagonista como Roxana, masculinizada, ambiciosa e independente, e sobretudo desprovida da “afeição comum de uma mãe”, nas palavras do comerciante holandês, era demasiado desconcertante. Nesse sentido, uma edição expurgada de 1775, oportunamente rebatizada de “A Nova Roxana”, traz a protagonista completamente reconciliada com os filhos. Em contraste com a desalmada aventureira da versão original, que vai se desfazendo de seus rebentos à medida que a ambição a conduz, e apenas raramente, com algum remorso e apreensão, lembra-se deles, essa versão mostra uma personagem sentimental e consciente de seus deveres maternos. Em vez do final sombrio e inconclusivo, a nova Roxana recebe um final feliz, em que cinco casamentos são consumados: “cinco mulheres em uma família, cada uma com um bom marido, é uma felicidade que raramente se encontra” (apudDefoe, 2008, p.16).
Enquanto esses novos finais pacificavam ansiedades relativas à liberdade feminina e garantiam tranquilidade à ascendente cultura patriarcal burguesa, em que a feminilidade era cada vez mais identificada à domesticidade e à maternidade, perdia-se a ambiguidade da versão original. Esta que, em contraponto às intenções moralizantes do texto, abria a possibilidade de imaginar um modelo de feminilidade autônoma e de sociedade igualitária.
A NOVA HELOÍSA (1761): UM PAÍS DE QUIMERAS POSSÍVEIS
Quando Jean-Jacques Rousseau publica, em 1761, o romance epistolar Júlia ou A nova Heloísa, ele já é uma pessoa pública, conhecida entre grande parte da intelectualidade europeia como um ferino polemista, autor, na década de 1750, de dois controversos discursos. Seu primeiro romance encontra, portanto, um público preparado para receber de determinada forma seus escritos. No entanto, a obra, que alcança enorme sucesso, altera o modo pelo qual viria a ser reconhecido: seu legado como polemista é gradativamente matizado, dando lugar à imagem quase exclusiva de um autor sentimental (cf. Brix, 2001; Auerbach, 2010 [1946]). Partindo da interpretação, de uma parcela da fortuna crítica de Rousseau, de que sua obra é dotada de uma unidade teórica em que os dois lados, polemista e sentimental, convivem de forma tensa (cf. Carnevali, 2012; Starobinski, 2011 [1957]; Cassirer, 2010 [1932]), pretendemos apresentar de que modo o conflito que estrutura a obra rousseauniana — a oposição entre o indivíduo e a sociedade ou, para sermos mais precisos, entre o estado de natureza e o estado civil —, é encenado de maneira particular em A nova Heloísa, condensando-se em uma forma sentimental. Se o conflito propriamente filosófico é a base comum de onde partem suas investigações — inclusive a ficcional —, é uma intenção domesticadora dos afetos femininos, paradoxal em relação a seus intentos polêmicos, que prevalece em sua prosa de ficção. Finalmente, embora sua retórica polêmica esteja presente em suas considerações sobre a literatura em seu primeiro Discurso (2020 [1750]) e no paratexto do romance, dando a ver o caráter radical de suas propostas em franca oposição à prática ficcional da época, a linguagem dos sentimentos que conforma as cartas dos amantes, Júlia e Saint-Preux, apazigua os conflitos nascentes das transformações sociais operadas no contexto setecentista. Assim, a obra se torna, como veremos, uma eficaz “forma simbólica”, no sentido que Franco Moretti (2020) usa a expressão. Ou seja, ao contrário de Roxana, em que, como vimos, a ficção opera no sentido de aprofundar tensões sociais, contrariando a intenção moralizante professada pelo suposto editor no paratexto e pela narradora arrependida, A nova Heloísa inverte essa disposição. Rousseau configura polêmica e ficcionalmente a tensão apenas para resolvê-la na forma sentimental, reforçando a ideologia patriarcal.
O prêmio concedido pela Academia de Dijon, em 1750, ao Discurso sobre as ciências e as artes, traz a Rousseau uma celebridade repentina, tirando-o permanentemente do “submundo literário” ao qual estava relegado até então (Lilti, 2017, p. 437). A pergunta a ser respondida pelos candidatos ao concurso era a seguinte: “Contribuiu o restabelecimento das ciências e das artes para purificar os costumes?” A resposta do autor é um categórico “não”, contrariando a opinião corrente na época, que via em geral com entusiasmo a possibilidade de que o progresso técnico-científico promovesse também progresso moral. Para o autor, os avanços nessas áreas, ao contrário, apenas sufocavam as disposições verdadeiras — e, por conseguinte, moralmente boas — do coração humano. Arte e ciência teriam apenas uma falsa utilidade moral: apresentar aos homens a aparência do bem.
Com isso, além de recusar à arte e às ciências uma posição de purificadora dos costumes, Rousseau, de forma mais contundente, alega que elas são responsáveis por agravar os vícios dos indivíduos. De um lado, os homens empregam-nas visando exclusivamente a aprovação do outro e, na pior das hipóteses, da opinião pública, sendo mais importante (ou útil) parecer bom aos olhos dos outros do que ser efetivamente virtuoso. De outro (e pior) lado, ciência e arte ensinam ao público a se acostumar à submissão aos costumes, à moral e à moda; e a amar essa restrição de sua liberdade, impedindo-o inteiramente de olhar para o que realmente importa. O progresso do conhecimento, embora aparente ser uma expansão do humano, na verdade cria uma “alienação” do indivíduo, de si para consigo mesmo, o que implica uma distância do núcleo natural, moralmente bom.
Nesse texto — que oferece, pela primeira vez os termos do conflito que marcam a obra de Rousseau, a saber, a oposição entre natureza humana (boa) e a sociedade (responsável por desviar as inclinações naturais) —, o escritor defende que a única forma de purificar os costumes é por meio de uma ignorância voluntária. O percurso dos indivíduos que desejassem se conduzir de modo virtuoso deveria ser invertido: eles teriam que se despojar da arte e da ciência, aprendidas no mundo social, para acessar a bondade da natureza humana.
Rousseau, contudo, apresenta, ainda nesse texto, uma alternativa tímida ao dilema do papel das artes, que será desenvolvida e levemente modificada em suas obras dos anos seguintes: ele acredita que, embora ciência e arte se introjetem nos indivíduos, desviando-os do caminho da felicidade, a bondade que reside no fundo do coração não se alteraria, ela seria apenas encoberta. Por isso, seria possível usar o mal para combater o mal: conceber uma arte que fizesse o indivíduo se despojar das camadas sociais acrescentadas artificialmente, desenvolvendo nele a capacidade de olhar para seu interior e apreender os princípios que ainda estariam gravados no coração, tornando-os seu guia moral.
O mesmo tema volta de maneira mais propositiva nos dois prefácios escritos por Rousseau ao romance epistolar de 1761, A nova Heloísa. Nesses mais de dez anos que separam sua estreia no meio letrado e a publicação de seu primeiro romance, o autor passa a ser uma figura pública de grande visibilidade, manejando seu estilo de vida de modo a conformá-la aos princípios defendidos em seu sistema: ele torna-se, publicamente a vida exemplar que assegura sua filosofia (cf. Lilti, 2017). Isso cria uma série de expectativas no público que, nessa altura, identificava-se com (ou repudiava) não somente suas ideias, mas a encarnação delas, a própria pessoa do Rousseau. A nova Heloísa reforça algumas qualidades que serão atribuídas ao escritor nesse momento, ao mesmo tempo que as dota de um sentido específico.
Assim como Defoe, Rousseau, no paratexto de seu romance, joga com as ambiguidades da ficcionalidade de sua obra, em um momento, contudo, em que esse jogo já tinha se tornado uma espécie de convenção da forma romanesca. Após confessar a autoria de seu livro, assinando-o com seu nome próprio e dizendo ter “feito tudo” — atitude já bem distante daquele ocultamento praticado por Defoe —, Rousseau coloca a pergunta acerca da ficcionalidade daquelas cartas que compõem o romance, respondendo de maneira imediata e indicando a seus leitores e críticos que certamente é “uma ficção para vós” (Rousseau, 2006 [1761], p. 23). Em vez de negar ou atestar a veracidade das epístolas, o autor concentra-se em asseverar o caráter excepcional das personagens que as escreveram, frente às expectativas do que seria o real para o público. Para Rousseau, aquelas personalidades do romance devem ser tomadas por sua extraordinariedade tanto em contraste com as personagens típicas figuradas na ficção do período, quanto com os indivíduos daquele mundo social. Essa excepcionalidade é reconhecida no modo pelo qual seus protagonistas empregam um estilo incomum (sentimental, verborrágico, empolado, enfático etc.), falam de um assunto não usual (seus sentimentos verdadeiros) e demonstram seus afetos de maneira invulgar, com transparência (Rousseau, 2006, p. 23). A um público não habituado, desprovido de um caráter virtuoso similar, esses personagens não poderiam existir de fato, não diante de seus olhos viciados e viciosos.
Em “O afastamento romanesco”, Starobinski (2011) fala de um deslocamento do lugar do fictício na vida e na obra de Rousseau. A princípio, o espaço do imaginário teria servido como um modo de compensação da realidade, uma forma de fuga da experiência, vivida de forma tão conflituosa por Rousseau, em direção àquele fundo do coração — seu núcleo interior —, mencionado no primeiro Discurso. Contudo, lentamente, Rousseau contempla a possibilidade de transposição desse imaginário para a realidade. Para que esse processo de transposição pudesse ocorrer, ele precisou negociar um meio do caminho entre dois mundos: o espaço do fictício teve que se “rebaixar” o suficiente para se tornar plausível no mundo terreno; assim como o mundo terreno teve que se elevar à excepcionalidade de seu imaginário ideal. Desse modo, Rousseau já trabalha com aquele princípio que a prosa ficcional de Defoe havia contribuído para estabelecer na produção literária europeia do século XVIII: a exigência da verossimilhança realista.
Como romancistas anteriores a ele, especialmente os do espaço de língua inglesa, Rousseau exclui o fabuloso e o fantástico de sua prosa ficcional e localiza sua narrativa em um espaço preciso (Vevey e Clarens, na Suíça), tornando sua história consistente e plausível. Seus personagens, contudo, parecem seres “de outro mundo” (Rousseau, 2006, p. 25), não exatamente pelos feitos que realizam, mas por seu caráter virtuoso. É como se o impossível (ou o inverossímil), expulso das novels setecentistas (Cf. Gallagher, 2006), tivesse sido realocado no interior das personalidades de suas criaturas fictícias.
O mundo romanesco de Rousseau, portanto, não entra em contradição com a realidade. Todavia, ele é tão distante do universo social que o cerca que serve como dispositivo polêmico, como “crítica implícita” (Starobinski, 2011, p. 470) à ordem simbólica do real: a conduta virtuosa desses personagens imaginários entra em tensão com a realidade moral na medida em que o romancista coloca em cena, por intermédio de suas criaturas ficcionais, outra concepção de natureza humana, mais pura, que rivaliza com o princípio realista normalizador dos vícios do indivíduo, como o orgulho, a vaidade, o desejo de ser superior etc. O autor, com efeito, atribui, em sua filosofia, essas paixões humanas ao convívio social, particularmente desenvolvidas e intensas na sociedade parisiense.
No segundo prefácio escrito ao romance de 1761, Rousseau expõe o diálogo entre dois personagens, referidos apenas pelas iniciais N e R. Nessa conversa, R submete a discussão sobre a ficcionalidade das correspondências entre os protagonistas do romance à finalidade purificadora, quando descarta a relevância de se estabelecer a veracidade ou não de sua narrativa. Assumindo uma perspectiva inteiramente moral, Rousseau — para parafrasear a pergunta proposta pela Academia de Dijon — estaria interessado somente se seu romance contribuiria para purificar os costumes do público. O Rousseau que escreve A nova Heloísa parece, portanto, vislumbrar um caminho para que as artes possibilitem a efetiva regeneração de seus leitores já socialmente corrompidos.
Aceitando o imperativo da utilidade para a arte, mas submetendo-o a seus fins pedagógicos particulares, Rousseau negocia abertamente com outra convenção do romance, a que dizia respeito à necessidade de o enredo entremear uma série de imprevistos, desencontros e acasos na narrativa. O autor declara inverter o predicado corrente: em vez de contar episódios fortuitos e incomuns externos que desviam a ordem dos acontecimentos, são os personagens, pelo seu olhar interno, que dotam de extraordinariedade e inverossimilhança o mundo externo comum. O que dá à (longa) história sua vivacidade não são as peripécias: elas, com efeito, são bem raras em sua ficção. É, ao contrário, o estilo que se irradia em todas as cartas e a vivacidade das mudanças subjetivas que têm a tarefa de proporcionar ao leitor o prazer atrelado à novidade narrativa.
O enredo do romance epistolar A nova Heloísa é relativamente simples: ele conta a história da impossibilidade do amor entre uma jovem aristocrata, Júlia d’Étange, e seu preceptor Saint-Preux. Apaixonam-se no início do romance, mas Júlia acaba por se casar com o pretendente que seu pai escolheu, o senhor de Wolmar. Em vez de viver em contradição em relação à escolha de seu pai e se ressentir por sua paixão socialmente não sancionada, a personagem, após sofrer uma espécie de experiência mística no dia de seu casamento, decide tornar seu destino imposto uma escolha. Nesse momento, ocorre uma verdadeira conversão na narrativa (na carta XVIII, do livro 3), quando a personagem assume e incorpora, ao longo de dois livros da segunda metade do romance, o papel de uma devota esposa e uma admirável mãe. No sexto e último livro, porém, após se lançar em um lago para salvar seu filho que estava se afogando, ela cai doente e morre. A história termina com uma carta póstuma a Saint-Preux, muito curta se comparada às demais, entregue a ele por intermédio do viúvo de Júlia, na qual a protagonista confessa seus sentimentos reprimidos pelo seu antigo preceptor.
A narrativa começa em media res, com a troca de cartas entre os dois personagens que se tornarão amantes: Saint-Preux dá início à correspondência, enviando três cartas, uma atrás da outra, declarando seu amor por Júlia. Entende-se muito rapidamente que esse amor é proibido, mas é só um pouco mais adiante que conhecemos o motivo: a diferença de nascimento entre os dois e a inflexível objeção de seu pai em permitir a união com um pretendente socialmente inferior. Depois de resistir um pouco às investidas de Saint-Preux, que comunica enfática e abertamente todos os seus sentimentos e inseguranças, Júlia termina por ceder e, na primeira das seis partes do romance, vemos a luta interior, expressa em suas cartas, entre o desejo de viver a paixão, inclusive fisicamente, e seguir as regras da virtude — conflito que permeia toda a narrativa. Vemos, portanto, novamente, uma contradição simbólica, tipicamente moderna, encenada no enredo ficcional: dois personagens que sofrem subjetivamente a sanção social de seu desejo um pelo outro.
Apesar desse embate entre o amor dos protagonistas e a sociedade, o clima do romance não exibe aquele mal-estar que caracteriza a sociabilidade em diversos dos textos teóricos de Rousseau. Pelo contrário, a inclinação de seus personagens para a virtude espraia-se por toda a ambiência moral: é como se o caráter extraordinário dessas criaturas, pelo poder de resistir aos piores vícios e males proporcionados pela sociabilidade, invadissem o entorno, transformando a atmosfera do convívio social em um verdadeiro idílio. A natureza que envolve o lugar onde se passa a maior parte da ação do mundo ficcional de Rousseau — Clarens — é descrito pelo seu brilho, capaz de iluminar e dar contorno a todos os elementos da paisagem. As cores e as formas são acentuadas — como se tudo pudesse ser visto plenamente. A natureza, então, é o reflexo exato do ideal rousseauniano da “transparência”: a possibilidade de os indivíduos não dissimularem sua própria verdade e, com isso, comunicarem-se plenamente, imediatamente (cf. Starobinski, 2012).
Os sujeitos, porém, dissimulam a verdade, escondem o que sentem, em razão das exigências sociais — tal qual o romance inicialmente secreto dos dois amantes. A desigualdade de suas origens sociais impede a união e cinde, a princípio, as suas interioridades: os protagonistas confessam entre si o amor que sentem um pelo outro; ao mesmo tempo que escondem-no de sua família, mantendo-o sob um véu. Essa cisão entre um “eu verdadeiro para consigo” e um “eu social” é tópico comum dos textos de Rousseau: ela é sempre resultado do mal que a sociedade faz ao homem.
No Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de 1755, que se constitui como sua obra estrutural, Rousseau descreve o processo hipotético pelo qual o homem sai de seu estado de natureza (ideal) em direção ao estado civil (atual). No primeiro estado, o indivíduo estaria em perfeita comunhão com a natureza, por ser movido apenas por um impulso vital: sua autoconservação. Semelhante aos animais, o homem direcionaria seu ser às coisas apenas na medida de suas necessidades mais básicas: comer/beber e se reproduzir. Assim, ele não sentiria nenhuma falta: seria um com ele mesmo e com seu entorno. Só sentiria uma paixão: o amor-de-si, paixão que o conduziria apenas à satisfação imediata (cf. Carnevali, 2012).
Por um conjunto de circunstâncias fortuitas, porém, o homem é obrigado a sair do estado de natureza, quando suas necessidades deixam de se satisfazer imediatamente. Rousseau descreve o processo longamente, mas, para nossos propósitos, basta dizer que visando a se autoconservar, os homens pouco a pouco formam alguns grupos — o que lhes proporciona, pela convivência, as primeiras percepções das relações. Reconhecendo o outro e comparando-se ao outro, o sujeito perde o que Rousseau chama de “sentimento de sua existência” (Rousseau, 2012 [1755], p. 23), sentimento esse totalmente autorreferenciado e absoluto, aquele impulso vital que permitia a comunhão com a natureza. Em razão da sociabilidade com o outro, os homens passam a desviar esse sentimento inicial: sua percepção de si é agora mediada pelo “olhar” do outro. Em vez de amor-de-si, esse homem é tomado pela paixão do amor-próprio.
Ao medir-se e mediar-se pelo outro, o sujeito sofre uma dispersão de seu desejo, uma incapacidade de olhar para dentro de si e compreender sua necessidade originária: ele mede seu interesse pelo que imagina ser o desejo do outro, criando o que Carnevali (2017) compara a um jogo de espelhos. É esse o processo que caracteriza a primeira parte das cartas entre Saint-Preux e Júlia d’Étange: o primeiro sofre uma perturbação em sua alma, tomando a opinião de Júlia como uma significação de sua existência. Não sabe se vai embora, se será mandado embora, se é inadequado diante de Júlia, não sabe como reagir a sua frieza depois da primeira carta. Até que Júlia lhe responde: ela admite também o seu amor. Os dois amantes são então obrigados a viver em segredo frente à família, mas em transparência um diante do outro: como se entre os dois reinasse uma comunicação extrassocial.
O sigilo perante os outros, porém, os consome: Saint-Preux se afasta; Júlia sofre. Em determinado momento do romance, a senhora d’Étange descobre o segredo, mas, em vez de condenar abertamente sua filha pelo caso com um homem de estrato social mais baixo, oculta a verdade de seu marido, o pai de Júlia, que se opunha veementemente ao amor dos protagonistas. Algum tempo após, a mãe de Júlia morre, o que provoca na protagonista um profundo remorso. É, porém, apenas mais tarde que Júlia sente-se coagida a casar-se com o sr. de Wolmar, quando seu pai cai em lágrimas diante dela, explicando que devia honrar o acordo feito com o seu amigo de casar com ele a sua filha. É no dia de seu casamento, sob a atmosfera da Igreja, que ela narra sua conversão:
Não sei que terror veio apoderar-se de minha alma nesse lugar simples e augusto, totalmente preenchido pela majestade daquele que lá é servido. [...] Julguei ouvir a voz da providência e ouvir a palavra de Deus no ministro que pronunciava gravemente a santa liturgia. A pureza, a dignidade, a santidade do casamento, tão ardentemente expostas nas palavras da escritura, seus castos e sublimes deveres, tão importantes para a felicidade, a ordem, a paz, a conservação do gênero humano, tão doces de cumprir por si mesmos, tudo isso causou-me uma tal impressão que julguei sentir interiormente uma revelação súbita. Um poder desconhecido pareceu corrigir de repente a desordem de minhas afeições e restabelecê-las segundo a lei do dever e da natureza. O olhar eterno que tudo vê, dizia a mim mesma, lê agora no fundo de meu coração, compara minha vontade oculta à resposta de minha boca: o Céu e a terra são testemunhas do compromisso sagrado que assumo, sê-lo-ão ainda de minha fidelidade em observá-lo. Que direito pode respeitar entre os homens quem quer que ouse violar o primeiro de todos?
[...] Encarei o santo laço que ia formar como um novo estado que devia purificar minha alma e devolvê-la a todos os seus deveres. Quando o pastor perguntou-me se prometia obediência e fidelidade perfeita àquele que aceitava por esposo, minha boca e meu coração o prometeram. Mantê-lo-ei até a morte (Rousseau 2018 [1761], p. 312-313, grifos próprios).
Júlia não se casa com o senhor de Wolmar por obrigação. O destino decretado por seu pai é tornado uma escolha da protagonista. A revelação interior que ocorre no fundo de seu coração, por uma voz misteriosa, traz consigo o fim de seu sofrimento, encerrando a perturbação interior e o conflito que experimentava desde que conhecera Saint-Preux.
Nesse trecho, Júlia estabelece uma correspondência entre a lei do dever e a lei da natureza, alegando com isso que sua inclinação mais íntima e profunda, verdadeira, está de acordo com o dever do casamento ou da virtude, consequência do compromisso perante Deus — como se, afinal, a paixão por Saint-Preux, vivida até aquele momento, fosse equivocada do ponto de vista da natureza. Não é, porém, seu amor por Saint-Preux, em si mesmo, que é o problema: é o fato de a protagonista ter que sacrificar a virtude para vivê-la. O casamento com o senhor de Wolmar traz paz a seu coração porque encerra a sua vida viciosa. O que a carta a Saint-Preux exibe de maneira evidente é que, diante da “revelação súbita”, sentida como uma intervenção da graça divina, Júlia pode se despojar de toda mediação social e acessar verdadeiramente a voz de seu coração, de sua natureza primeira, seu sentimento de existência primordial, entrando assim em acordo consigo mesma por intermédio do casamento. A carta encerra a cisão interior da qual Júlia havia sido vítima desde o seu apaixonamento por Saint-Preux.
Existe um aparente paradoxo entre a filosofia de Rousseau e as palavras de Júlia nessa carta: a sociedade, ao menos nesse momento da narrativa, deixa de cumprir o lugar de um obstáculo que desvia o sentimento de existência primordial, seu desejo, para ser o meio de sua realização plena. Essa contradição é ainda mais notável pelo desenvolvimento da narrativa nos dois livros que se seguem após a conversão: Júlia não deixa de amar Saint-Preux, ela apenas purifica sua paixão por meio do casamento com outro homem. O que era um segredo se torna visível a todos, inclusive a seu marido. Em certa altura do romance (especialmente no livro cinco), o desejo entre os dois apaixonados deixa de ser mediado socialmente, por ter sido plenamente revelado para os habitantes de Clarens. Tudo ocorre como se esses sujeitos permitissem uma comunicação tão clara, aberta, sem segredos, que o mal social teria sido, enfim, remediado. Parece haver, nesse momento, uma completa comunicação entre consciências: como se a diferença entre eles, suas particularidades, tivesse desaparecido — como se eles tivessem tido acesso a uma linguagem verdadeiramente universal, que suprimiria a ininteligibilidade da diferença. Na pequena comunidade, reinou, por um breve período, uma confiança absoluta, como se Rousseau tivesse idealizado enfim um paraíso terreno, capaz de contornar a alienação da qual os homens foram vítimas na história (cf. Starobinski, 2012).
A contradição é aparente, na verdade, porque essa purificação e superação do amor-próprio, do conflito entre o eu e a sociedade, são realizadas pela protagonista feminina, não por Saint-Preux. O personagem masculino, embora se conforme às regras sociais da comunidade idílica, nunca passa por uma conversão: pelo contrário, enquanto Júlia vive como esposa devota e, posteriormente, como mãe, vemos Saint-Preux experimentando o conflito, enviando cartas em que se recusa a aceitar a decisão de Júlia plenamente. Vemos, também, sua desordem interior, a oscilação frequente de suas opiniões. Ele tenta de tudo para apaziguar sua subjetividade perturbada, mas nunca se une à virtude, como Júlia. Na verdade, a virtude como lei social não é o caminho natural do homem; para o indivíduo do sexo masculino, ela só pode ser experimentada como uma imposição, como um obstáculo. A saída masculina, como podemos perceber em outras obras de Rousseau, é em geral a autarquia proporcionada pelo isolamento, tal como no processo pedagógico de Emílio, que tem por modelo, por um lado, a educação espartana, que cria independência material e física; e, por outro, a estoica, exemplo de desenvolvimento de autonomia moral (Rousseau, 2017 [1762]). As mesmas regras não se aplicam à educação feminina proposta no Emílio.
Em seu tratado sobre a educação, Rousseau dedica-se, após desenvolver ao longo de quatro partes a instrução ideal do personagem que dá título ao livro, a encontrar uma esposa para seu, agora adulto, aluno fictício. É no livro V, consagrado à educação feminina, que o filósofo demonstra que, diferentemente do homem, a mulher não compartilha da natureza primeira, autorreferida e absoluta, como aquela descrita no estado de natureza do segundo Discurso.1 A natureza feminina, pelo contrário, é necessariamente relativa e mediada, já que depende naturalmente dos indivíduos do sexo masculino:
Assim, toda a educação das mulheres deve ser relativa aos homens. Agradar-lhes, ser-lhes útil, fazer-se amar e honrar por eles, educá-los quando jovens, cuidar deles quando grandes, aconselhá-los, consolá-los, tornar suas vidas agradáveis e doces; eis os deveres da mulher em todos os tempos e o que lhes deve ser ensinado desde a infância (Rousseau, 2017, p. 527).
Em todos os tempos, a mulher não só deve, como quer agradar ao homem, desde que esse seja amável e dotado de certos méritos: essa é sua inclinação natural.
O pensador, na verdade, cria um equilíbrio muito afinado às mudanças sociais e culturais, já aludidas, pelas quais o espaço europeu estava passando nesse período, a passagem de um mundo aristocrático-cortesão para uma sociedade aburguesada. O casamento gradativamente deixava de cumprir a função social de uma aliança mais pragmática (como era entre famílias aristocráticas) e passava a ser um acordo feito de livre escolha: o matrimônio se convertia em uma perfeita “metáfora do contrato social” (Moretti, 2020, p. 53), isto é, uma escolha, de livre e espontânea vontade, de se conformar socialmente. Ao mesmo tempo, portanto, que Rousseau, em A nova Heloísa, exalta a importância da escolha, inclusive a da mulher, ele também restringe seu destino social. Júlia ressente-se do casamento com o sr. de Wolmar enquanto esse é uma imposição, um acordo realizado em virtude do preconceito social de seu pai. Quando ela mesma, porém, ouve sua inclinação natural, o desejo de ser esposa de um marido com muitos méritos (como descreve longamente na carta XX, do livro 3) e de ter com ele filhos, conforma-se perfeitamente ao caminho que se apresenta para a sua felicidade. É a sociedade, mais uma vez, que cria um ruído, um desvio, desse sentimento primordial: ela leva as mulheres a acharem que desejam ser que nem homens, viver que nem o sexo oposto (Rousseau, 2017, p. 528) — não é esse o caso, afinal, de personagens como a Roxana de Defoe?
Júlia só parece viver em conflito, em perturbação mental e física, quando age contrariamente a sua virtude, já que afinal a mulher “não pode, sem má-fé, recusar sua aprovação ao sentimento interior que a guia, nem desconhecer o dever na inclinação que ainda não se alterou” (Rousseau, 2017, p. 558). Ela, porém, não age de má-fé: interpreta-se retrospectivamente como uma mulher “culpada (coupable), mas não depravada (dépravée)” (Rousseau, 2018, p. 304). Sua culpa advém do fato de ser um indivíduo social: ela sofre os desvios de seu sentimento interior, por depender simultaneamente “de sua própria consciência e das opiniões dos outros”. Por isso, Júlia, como todas as mulheres virtuosas, deve aprender a “comparar essas duas regras, a conciliá-las e a só dar preferência à primeira quando as duas estiverem em oposição”. É exatamente esse o caso da narrativa da protagonista feminina de Rousseau: não é que seu amor por Saint-Preux seja errado, o problema é que ele a leva a ir na direção contrária de sua virtude. Aprender, porém, a ponderar, a “remontar a sua fonte” é um trabalho de cultivo de seu espírito e de sua razão (Rousseau, 2017, p. 559). É papel da educação feminina, ensinada pelas mães, fazer as mulheres amarem a vida tranquila e doméstica. É, também, o papel pedagógico do romance de Rousseau: ele oferece às leitoras de sua ficção uma resolução simbólica a uma experiência contraditória compartilhada empaticamente pela leitura.
Lilti (2017) analisa algumas cartas recebidas por Rousseau após a publicação de A nova Heloísa, cartas que mostram a eficácia pedagógica de seus procedimentos. Mais do que apenas um sinal de seu prodigioso sucesso, as reações das leitoras à protagonista dão a ver o que Franco Moretti teoriza como o papel do romance na modernidade, seu poder de ser uma “forma simbólica” (2020). Para o crítico italiano, o romance tem o papel de penetrar nas inquietações mais profundas do público leitor e dar a elas um sentido, sentido esse relacionado a um apaziguamento dos conflitos sociais e culturais de cada indivíduo com o universo moral-simbólico que o cerca. Assim, as cartas recebidas por Rousseau dizem respeito tanto ao choque e ao impacto emocional de seus leitores, como ao desejo de “toda mulher” de querer “ser como Júlia”, vocalizado pela jovem Princesa Czartoryska (apud Lilti, 2017).
Rousseau, com efeito, ao conceber aquele tênue equilíbrio entre imaginário e realidade, submetido ao imperativo da purificação moral dos costumes, desenvolve um apelo a seu público: é preciso habitar sua linguagem, apresentada no romance, para passar por aquela revelação interior que ocorre com Júlia (cf. Starobinski, 2011). É abrindo-se para a interioridade mostrada nas cartas dos protagonistas (percebida como uma identificação com a própria pessoa do Rousseau), por intermédio de uma linguagem não polida, verborrágica, enfática — especificamente dos sentimentos —, que a arte pode tornar seus leitores melhores, proporcionar o correto despojamento dos costumes sociais impostos. A leitura do romance deve ser, portanto, uma experiência moral e espiritual: ela permite a descoberta dos encantos da virtude, como nenhuma ficção que pinta os vícios poderia proporcionar. Rousseau cria a medida certa de uma identificação dos leitores com os dilemas morais postos ali em jogo para movê-los emocionalmente (cf. Lilti, 2017), fazê-los desejar aquelas soluções ficcionais.
O final do romance, contudo, parece resistir a nossa interpretação. Para Starobinski, o final provaria que a conversão feminina, e o paraíso terreno resultante desse gesto, não é plenamente possível e que a alienação social é absolutamente incontornável (cf. Starobinski, 2011). Já para Martin, o final mostraria que o desejo feminino não é diferente do masculino: ele não se conforma e triunfa no final da narrativa, na palavra última, ainda que póstuma, de Júlia (cf. Martin, 2019). A tensão subsiste pela necessidade de sufocar o desejo criado nas primeiras páginas do romance: a lembrança da paixão reaparece no espírito dos dois, de modo que a transparência — a linguagem dos sentimentos supostamente sem mediações e extrassocial —, possibilitada pela comunidade idílica criada em torno de Júlia, não alivia inteiramente o desespero da impossibilidade social da paixão entre os amantes. Por isso, ao final das epístolas, o conflito intrínseco à sociedade reapareceria, como se ele não tivesse efetivamente, em momento algum, sido resolvido.
Não pretendemos contradizer completamente essas perspectivas; só matizá-las. Propõe-se, enfim, criar uma brecha tanto na interpretação, defendida mais longamente nesta parte, de que A nova Heloísa é exclusivamente uma eficaz forma simbólica por conseguir domesticar, pela via ficcional, os afetos femininos; como na leitura de Starobinski e Martin, apresentada acima, que, ao igualar o papel da protagonista feminina aos modelos masculinos na obra do genebrino, torna o final do romance o ponto central a partir do qual se pode determinar o sentido da narrativa, sentido esse tenso e polêmico em relação à ordem simbólica do real. Procuramos, enfim, recuperar mais uma vez a dimensão reflexiva própria ao gênero romanesco, mas por um caminho diferente do proposto por esses dois autores: em vez de enfatizar o sentido do fim, visamos chamar atenção, na construção ficcional de Rousseau, para a dignidade do meio.
Seguindo a interpretação de Gabrielle Radica (2021), não acreditamos que o final de A nova Heloísa seja o único ponto a partir do qual a narrativa ganha seu pleno sentido, embora seja sim um dos significados discursivos dados à história de amor de Júlia por Saint-Preux. O princípio de realidade que rebaixa o imaginário deve ser considerado aqui mais uma vez: ele se apresenta também na forma pela qual o tempo cotidiano se intromete na narrativa rousseauniana. Longe de ser mera duração externa aos personagens, a temporalidade do romance é um tempo vivido, causa transformações subjetivas, de modo que o caráter dos personagens muda com o avanço da história, assim como o ponto de vista a partir do qual suas decisões são tomadas.
O fator temporal é especialmente visível na transformação da protagonista feminina de A nova Heloísa. A forma romanesca encena de maneira singular o princípio que também já regia o segundo Discurso: a plasticidade e possibilidade de aperfeiçoamento individual como efeito da sociabilidade e da história. No caso do Discurso, porém, esse aperfeiçoamento é apresentado apenas em tonalidades negativas: ele é a causa e o sintoma da alienação do sujeito de sua própria natureza. A história de Júlia, ao contrário — talvez precisamente por ser protagonizada por uma mulher —, expõe, de modo mais interessante, o conflito estruturante da obra de Rousseau. Em vez de ilustrar suas posições morais mais inflexíveis, o romance diminui sua rigidez e possibilita a ponderação sobre o espaço de negociação com as circunstâncias sociais. Diante de imposições sociais, Júlia, com efeito, não postula, como o protagonista masculino, seu eu autárquico. Ela, por outro lado, avalia as normas morais, estabelece uma relação reflexiva com elas, entende quando as regras da sociabilidade não se dobrarão a sua vontade e aposta em escolhas que poderão, imagina, garantir um futuro relativamente mais feliz.
As inúmeras escolhas de Júlia tomadas ao longo da narrativa mostram, com efeito, o que Radica considera como um cálculo constante: enquanto ainda pensa ser possível viver com Saint-Preux, a protagonista não abdica de seu desejo, chegando a considerar a possibilidade de engravidar de seu amado para que o casamento seja inevitável. No entanto, ela muda com o curso dos acontecimentos e perde a esperança, restando apenas vislumbrar uma saída de seu sofrimento. É nessa hora que a personagem conforma narrativamente — reescreve efetivamente — a cadeia de eventos que a levaram até determinado ponto de virada, mudando a perspectiva a partir da qual ela pode considerar seu passado e abrindo algumas possibilidades novas para o seu futuro.
Esse gesto de conformação e reconformação é estratégia frequente nas cartas de Júlia. Não havendo um narrador externo à história e nem distante temporalmente, as memórias só podem ser reelaboradas de uma perspectiva discursiva, sempre portanto contingente. O fim, assim, só pode ser compreendido em sua marca temporal, como uma das conformações de Júlia, já que não parece haver, na visão rousseauniana, uma concepção de ordem imanente à realidade. É um ato narrativo que possibilita Júlia negociar com suas próprias paixões e formular escolhas que serão vividas por algum tempo. O seu casamento com o senhor de Wolmar, sua conversão, assim como sua confissão amorosa em carta póstuma a Saint-Preux, são escolhas frente às transformações que Júlia consegue ver em si mesma e nas circunstâncias.
CONCLUSÃO
Estamos diante de duas narrativas ficcionais com alegados propósitos pedagógicos. Ambos os romances, em paratexto ou na própria narrativa, expressam a finalidade de aperfeiçoar moralmente, pela via ficcional, um público especificamente feminino, ainda que por caminhos diferentes. Enquanto Defoe aposta na pintura do vício (no plano da história) e na narração (em segundo plano) do arrependimento e da autocensura; Rousseau acredita que apresentar o vício é o mesmo que fazer desejar uma vida em pecado, propondo ao contrário o exemplo de uma protagonista desde sempre virtuosa — “culpada”, sem dúvida, mas nunca “depravada” ou irremível. A finalidade moral é concebida, nos dois autores, de modo a responder a determinadas expectativas sociais do público, especialmente feminino, da época: é o momento de transição de uma sociedade hierárquica e nobiliárquica para a modernidade burguesa, no qual valores como os da aventura, da liberdade, da individualidade e da autodeterminação entram em tensão com costumes e a religiosidade tradicionais, enquanto os lugares e papeis atribuídos aos gêneros experimentam um processo de redefinição.
Por um lado, os casos trabalhados neste artigo podem ser vistos, no sentido de Franco Moretti, como “formas simbólicas”, operando como dispositivos apaziguadores dos conflitos nascentes em uma sociedade em transformação, ao satisfazer suas necessidades simbólicas; por outro, extrapolam sua função domesticadora. Negociando as convenções poético-retóricas ainda vigentes com a exigência de verossimilhança realista cada vez mais premente para o gênero romanesco, ambas as prosas ficcionais, cada uma a seu modo, ultrapassam sua intencionalidade normativa manifesta, na medida em que o recurso ao real como matéria transposta em romance transtorna uma concepção monológica de discurso. Assim, em vez de entendermos a forma romanesca apenas como unidade autônoma dotada de um sentido monolítico, seguimos a compreensão de Bakhtin (2015, p. 29) que vê a possibilidade de o gênero se apresentar como um fenômeno “pluriestilístico, heterodiscursivo, heterovocal”, que faz conviver vários planos de linguagem e diversas unidades linguísticas relativamente independentes.
No que concerne à narrativa de Roxana, de Defoe, essa dimensão da heterodiscursividade é patente: embora haja uma voz narradora, distante no tempo, que aspira à unificação dos discursos da protagonista ao longo da história, ela perde a força frente às enunciações dissonantes que dominam, com considerável autonomia, alguns momentos do enredo, apresentando-se de modo “concreto, rico em conteúdo e acentuado como enunciação individual” (Bakhtin, 2015, p. 42). Já no caso de Rousseau, essa dimensão é muito menos pungente, visto que a unidade não é conquistada apenas pelo recurso a uma voz narradora esclarecedora: é a própria linguagem dos sentimentos, compartilhada em todas as cartas, que uniformiza o estilo e domina a dimensão concreta heterogênea da realidade. A subordinação discursiva operada em A nova Heloísa, nesse sentido, faz com que seu romance satisfaça uma função simbólica mais eficaz. Mesmo assim, a intromissão do tempo, no entanto, em toda sua dignidade, permite uma brecha interpretativa: ela possibilita que o traço intransigente, mais perene da filosofia de Rousseau, seja revisto, ainda que apenas pela forma limitada que o autor compreende o destino e o papel do gênero feminino naquele contexto. A contingência dos atos discursivos de Júlia descortina, no mínimo, uma desconfiança em relação ao poder de determinar o sentido da história. De uma forma ou de outra, como veículos apaziguadores ou por sua criticidade, ambos os romances se apresentam como meios privilegiados de reflexão acerca das transformações da sociedade setecentista.
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No segundo Discurso, Rousseau equipara o estado de natureza do homem e da mulher, estabelecendo que indivíduos de ambos os sexos se inclinariam ao isolamento. O papel da mulher apresentado no Emílio, contudo, é mais alinhado à perspectiva de Rousseau em seu romance epistolar. Ambos foram escritos na época em que o pensador se dedicava a equilibrar sua perspectiva polemista com as exigências sociais.
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Editor responsável:
Ely Bergo de Carvalho
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
28 Abr 2024 -
Revisado
08 Nov 2024 -
Aceito
24 Set 2024