Open-access Formas textuais da narrativa histórica escrita por estudantes para o jornal Correio do Colegial (1938 – 1959)

Textual forms of the historical narrative written by students for the newspaper Correio do Colegial (1938 – 1959)

RESUMO

Neste artigo, investigamos o jornal estudantil Correio do Colegial, impresso vinculado ao colégio Jackson de Figueiredo, instituição de ensino localizada na cidade de Aracaju, em Sergipe. A partir dessa fonte, buscamos evidenciar as formas textuais de narrativas históricas produzidas por estudantes dos cursos primário e secundário. Nosso recorte compreende os anos de 1938, momento da publicação da primeira edição, e 1959, quando diminuem os escritos com viés historiográfico. A análise dos dados revela que os artigos de conteúdo histórico publicados no impresso se caracterizavam por uma abordagem nacionalista, com ênfase nos fatos políticos e na presença de personalidades consideradas como heróis nacionais, em temas que demarcam uma formação cívica, moral e patriótica. Ainda que sejam produções estudantis, os textos estavam suscetíveis à ação da lógica e da estética discursiva. Neles, foi possível identificar fatores de coerência espacial e temporal, além de um “fator artístico” que incidia sobre o “sentido de obviedade” experimentado pelos leitores. Por meio da lógica e da estética, os estudantes buscavam construir relatos baseados em estruturas persuasivas capazes de transformar uma realidade imaginada em narrativa histórica.

Palavras-chave
narrativa histórica; jornal estudantil; estética

ABSTRACT

In this article, we investigate the student newspaper Correio do Colegial, printed in connection with Jackson de Figueiredo School, an educational institution located in the city of Aracaju, in Sergipe. From this source, we seek to highlight the textual forms of historical narratives produced by students in primary and secondary courses. Our analysis covers the years 1938, the time of the publication of the first edition, to 1959, when there is a decrease in writings with a historiographical bias. The analysis of the data reveals that the articles of historical content published in the newspaper were characterized by a nationalist approach, with emphasis on political events and the presence of personalities considered as national heroes, in themes that mark a civic, moral, and patriotic formation. Although they are student productions, the texts were susceptible to the action of logic and discursive aesthetics. In them, it was possible to identify factors of spatial and temporal coherence, as well as an “artistic factor” that impacted the “sense of obviousness” experienced by the readers. Through logic and aesthetics, students sought to construct narratives based on persuasive structures capable of transforming an imagined reality into historical narrative.

Keywords
historical narrative; student newspaper; aesthetics

A escrita em periódicos estudantis adquiriu, historicamente, significado sociocultural, sendo um meio de integração da comunidade escolar, de desenvolvimento da leitura e da escrita, e de circulação de informações, ideias e conhecimentos gerados no contexto educacional. A esse conjunto de coisas, podemos considerar a escrita para jornais estudantis como um elemento constitutivo da cultura escolar e da cultura histórica de determinada época.

Este artigo se ocupa em analisar narrativas históricas presentes no jornal estudantil Correio do Colegial, vinculado ao Colégio Jackson de Figueiredo,1 situado na cidade de Aracaju, no Sergipe. De modo mais específico, busca compreender, em uma perspectiva histórica, a forma e o estilo dos textos que constituem o elemento estético nas narrativas históricas publicadas nesse jornal entre 1938 e 1959.

No que se refere ao campo das pesquisas sobre a imprensa escrita por estudantes, destacam-se autoras como Martineli e Machado (2021), entre outros(as) pesquisadores(as)2 que tomam os jornais como fonte e objeto de pesquisa ao se debruçarem sobre os discursos produzidos por estudantes, na relação com as práticas curriculares e o cotidiano escolar ou mesmo sobre suas organizações autônomas.

Martineli e Machado (2021) consideram os periódicos escritos por estudantes a partir de duas categorias, segundo o lugar de produção: imprensa escolar e imprensa estudantil. Para as autoras, “a imprensa escolar era aquela redigida por estudantes dentro da escola, como uma atividade escolar. Por ser uma atividade solicitada na escola, havia a mediação, o direcionamento ou o cerceamento do adulto no processo”. Já a imprensa estudantil “era realizada por iniciativa dos estudantes, desvinculada da instituição de ensino que seus redatores frequentavam.” (Martineli; Machado, 2021, p. 6).

Assim, pelas evidências expressas no próprio jornal Correio do Colegial, entendemos que essa fonte constitui a categoria “imprensa escolar”, por ser produzida no contexto escolar com a mediação dos(as) professores(as), possivelmente como resultado das atividades curriculares desenvolvidas nas aulas de História a partir da apropriação dos conteúdos presentes nos manuais escolares. Isso corrobora com o que trata Bastos (2013), ao afirmar que o jornal escolar se apresenta como uma instituição complementar, associada e auxiliar das atividades escolares, estimulada pelos princípios da Escola Nova no início do século XX.

Os estudos sobre jornais escolares podem remontar ao século XIX, quando são encontrados vestígios dessa fonte. Contudo, vale destacar os desafios desse tipo de pesquisa, haja vista a raridade de acervos, além das lacunas temporais nas escassas coleções encontradas (Bastos, 2013, p. 9). Isso faz do Jornal Correio do Colegial uma exceção, uma vez que todas as edições se encontram preservadas junto ao acervo da Biblioteca Pública Epifânio Dória, em Aracaju. Além disso, todas as edições publicadas foram recentemente digitalizadas no âmbito do Projeto “Os jornais estudantis de Sergipe (1874-1959): práticas educativas pela ótica dos discentes do secundário”, permitindo, assim, diferentes olhares sobre o periódico, que se constitui em diversificado conteúdo e forma textual.3

O referido jornal,4 que esteve em circulação entre os anos de 1938 e 1973, abarcava uma ampla gama de conteúdos, compreendendo relatórios sobre o desempenho escolar dos(as) estudantes, ensaios sobre valores éticos e modelos comportamentais que disseminavam a ideia do(a) aluno(a) ideal, textos que exploravam vivências escolares, anedotas, receitas de culinária, além das narrativas de conteúdo histórico, entre outros. Foi criado por iniciativa dos professores e direção do educandário, “com o intuito de fazer com que os(as) alunos(as) aperfeiçoassem sua escrita e ao mesmo tempo informassem as notícias da escola e do Estado” (Pimentel, 2014, p. 103).

O recorte temporal da pesquisa justifica-se pelo fato de que, entre 1938, na primeira edição do jornal, e 1959, o Correio do Colegial trouxe à tona uma série de textos relacionados à História do Brasil, sendo registrados 188 artigos envolvendo narrativas sobre algum evento histórico. Posteriormente, entre 1960 e 1973, ano da última edição do jornal, foram identificados apenas 17 artigos com conteúdo histórico. Diante da especificidade dos contextos históricos, optamos por analisar as matérias publicadas no primeiro período, de 1938 a 1959, produzidas por estudantes dos ensinos primário e secundário do Colégio Jackson de Figueiredo.

Os artigos de conteúdo histórico publicados caracterizam-se por uma abordagem nacionalista, com ênfase nos fatos políticos e na presença de personalidades consideradas como heróis nacionais, em temas que demarcam uma formação cívica, moral e patriótica. Assim, sobram exemplos de narrativas históricas que favorecem a política de Estado, as sequências temporais e a exposição detalhada de eventos que, além de atrair a atenção do leitor, buscava aproximá-los às ações dos agentes históricos. Sendo, portanto, a forma e o estilo desses textos o que buscamos explorar ao problematizarmos a estética das narrativas como estratégias de produção de sentido.

Ainda que sejam produções estudantis, os textos estavam suscetíveis à ação da lógica e da estética discursiva (Topolski, 2016). Neles, foi possível identificar fatores de coerência espacial e temporal, além de um “fator artístico” que incidia sobre o “sentido de obviedade” experimentado pelos leitores. Por meio da lógica e da estética, os estudantes buscavam construir relatos baseados em estruturas persuasivas capazes de transformar uma realidade imaginada em narrativa histórica.

A discussão conceitual, ao tratarmos de tais questões, está centrada no aporte teórico de autores como Jerzy Topolski e Jörn Rüsen. Embora não estejam vinculados a uma mesma escola teórico-filosófica, consideram que é possível ponderar que fatores artísticos e poéticos contribuem para a escrita da História, com caráter acadêmico e científico, desde que mediados pela racionalidade histórica.

Sabemos que as produções do Correio do Colegial não tinham pretensão de construir um discurso científico, não sendo decorrentes de pesquisa empírica. Entretanto, assim como o trabalho do historiador, as narrativas aqui analisadas transmitiam determinada interpretação do passado, pautada no conhecimento historiográfico, mas com espaço para a ativação da “habilidade de recriar” os acontecimentos passados.

O ESTILO DAS NARRATIVAS HISTÓRICAS QUE CIRCULAVAM NO CORREIO DO COLEGIAL

A escrita dos(as) estudantes para o jornal Correio do Colegial possui um conjunto de elementos que permite caracterizá-las pela objetividade da historiografia tradicional, que destaca a política estatal, a cronologia dos acontecimentos e os protagonistas históricos, em uma produção textual de minuciosa exposição dos fatos pretéritos. O estilo de escrita das narrativas captura a atenção do leitor ao aproximá-lo das ações dos agentes históricos, aguçando a imaginação sobre as cenas do evento, em uma versão precisa e única sobre o passado.

Essa construção textual, própria da história tradicional desde a metade do século XIX – conforme discute White (2011) ao tratar da narrativa histórica –, pautava-se em abordagens que não se ocupavam em explicar a razão dos eventos históricos relatados no enredo, não contemplando o motivo de terem ocorrido, quando, onde e como. “Depois de o historiador ter descoberto o que verdadeiramente ‘aconteceu’ e representá-lo com acuidade em uma narrativa, poderia abandonar o modo narracional de falar e, dirigindo-se ao leitor, falando em sua própria voz” (White, 2011, p. 442). Assim, poderia apresentar em detalhes, em um modo dissertativo de escrita, a natureza dos acontecimentos e os processos sociais, políticos ou econômicos imbricados. Contudo, “suponha-se que a forma do que se contava era indispensável à forma do enredo, sancionada pelos agentes históricos” (White, 2011, p. 443). Ou seja, a narrativa era uma forma de discurso e essa forma era em si um conteúdo.

Considerando tal perspectiva historiográfica, entrevemos nas narrativas produzidas para o jornal Correio do Colegial a construção de uma “totalidade”, isto é, uma estrutura complexa e persuasiva que favorece a ligação entre enunciados e conteúdo (Topolski, 2016). A produção estudantil tinha como referência aquilo que Topolski (2016, p. 61) chamou de “informação básica”, um conjunto de “enunciados particulares escolhidos de fontes analisadas criticamente”. Para o intelectual polonês, um enunciado é considerado básico quando “exige um nível relativamente elevado de consenso por parte dos historiadores quanto ao seu conteúdo formativo” (Topolski, 2016, p. 62). De fato, ao comparar as narrativas produzidas para o impresso com a literatura didática do período, percebemos um consenso entre as ideias dos(as) estudantes e a abordagem historiográfica de manuais e compêndios que circulavam em âmbito nacional. Assim, é possível inferir a relação entre as aulas de história do educandário, resultantes em um conjunto de “informações básicas”, e a escrita dos(as) estudantes para o jornal escolar.

Mesmo que se tratasse de produções estudantis e não de produções historiográficas propriamente, os textos publicados no Correio do Colegial representam “totalidades narrativas” e, desse modo, estavam suscetíveis à ação da lógica e da estética discursiva. O primeiro aspecto foi evidenciado na inteligibilidade dos escritos, ordenados em “fatores de coerência como, por exemplo, o espaço e o tempo” (Topolski, 2016, p. 61). Resultante de um “fator artístico”, o segundo aspecto permitia aos autores recorrerem à sua própria imaginação para lidar com o “sentido de obviedade” experimentado pelos leitores. Por meio da lógica e da estética, os(as) estudantes buscavam construir relatos baseados em estruturas convincentes, capazes de transformar uma realidade imaginada em narrativa histórica de versão única. Como ocorre nos textos que tratam do ato de Independência do Brasil, declarado no dia 7 de setembro de 1822, narrado por diversos(as) estudantes, em diferentes edições do jornal, a exemplo dos três artigos que seguem:

Independência do Brasil 7 de setembro

D. Pedro I imperador do Brasil achava-se perto do riacho Ipiranga, quando avistou, ao longe, uns botis fazendo sinal para que êle parasse. Os homens traziam uma carta, comunicando, que tudo o que êle fizesse estaria nulo. Êle, ficou irritado, arrancou então o laço azul e branco (pois estas eram as cores da bandeira de Portugal) e colocando amarelo e verde gritou: “independencia ou morte”. Isto é, ou o Brasil ficava independente ou havia derramamento de sangue. Desta data em diante Brasil conservou-se liberto do jugo português.5

7 de setembro

A cavalo, ia um príncipe com seu séquito passando por uma estrada. Ao passar pelas margens dum riacho, vêm ao seu encontro emissários, que lhe entregaram uma carta. O príncipe começa a leitura da carta, e, à proporção que a vai lendo, sua fisionomia se vai transformando, com surpresa dos que o rodeiam. Com visíveis sinais de uma cólera mal contida, ao terminar a leitura, descobre-se de repente e brada, com energia: ‘Independência ou Morte!’ A êsse grito, o cortejo imita o príncipe, e o mesmo brado reboa pelo espaço. Esse príncipe era D. Pedro, filho de D. João VI. Tendo ficado no Brasil, em lugar do pai, teve que lutar com toda a sorte de dificuldades para governar.6

SETE

Foi nesse mesmo dia, que há anos, muitos anos, numa estrada longa, ladeada de florestas verdejantes e áureos matagais, vinham cavalgando cavaleiros de uma comitiva real. Na frente dêles, sobressaía garbosamente em belo cavalo pardo, um jovem príncipe português, enlevado pela beleza da natureza virgem daquela terra, que seu país mantinha sob o meu jugo.

Foi nesse mesmo dia, no ano longínquo, porém inesquecível de 1822, que esse mesmo jovem príncipe deu o brado, que nos libertou do jugo da própria pátria!7

Os três textos tratam de um mesmo acontecimento, o que é demarcado pela coerência temporal e espacial; as narrativas dizem sobre um personagem histórico e seu “ato de bravura”, ocorrido “perto do riacho Ipiranga”, “numa estrada longa, ladeada de florestas verdejantes e áureos matagais”. Há fatores de “coerência lógica” nas narrativas, ou seja, o ato de proclamação da Independência do Brasil é resultado de uma notícia inesperada trazida por uma carta e da reação do príncipe, que toma uma atitude definitiva contra a Coroa portuguesa. Em tal abordagem não há lugar para desdobramentos analíticos, a narrativa apresenta o motivo para a decisão do príncipe e o resultado do seu ato de bravura, que faz com que “desta data em diante o Brasil conservou-se liberto do jugo português.”8

O conteúdo histórico dos artigos, escritos pela estudante Virgínia e pelos estudantes Olímpio e Gilson, é facilmente observado em manuais didáticos de história que circulavam nas décadas de 1940 e 1950, sendo certamente o resultado da apropriação da leitura dessas obras e da abordagem do conhecimento histórico apresentado em aula. Contudo, o que buscamos destacar é justamente o ato de recriação da narrativa, que está permeada pela imaginação da autora e dos autores. Isso resulta em um estilo de narrativa que, ao descrever o cenário e a ação dos envolvidos no evento histórico, convida o leitor a reportar-se à cena, sendo esse elemento de criação estética um aspecto recorrente nos artigos publicados no jornal Correio do Colegial.

Assim, consideramos que, a partir da historiografia escolar que discorre sobre o “grito do Ipiranga”, um conjunto de “informações históricas básicas” foi preservado, ao tempo em que a cena do episódio histórico foi recriada em detalhes na escrita estudantil. Corroborando com o que bem sugere Topolski (2016, p. 60): “Minha experiência indica claramente que uma mesma fonte de informação pode ser usada para construir vários relatos históricos de qualquer fragmento do passado”.

Na construção narrativa do estudante Olimpio de Santana Filho, a descrição da cena sobre o momento em que o príncipe lê a carta é marcada pelo realismo das ações que se colocam: “O príncipe começa a leitura da carta, e, à proporção que a vai lendo, sua fisionomia se vai transformando, com surpresa dos que o rodeiam.”.9 É possível aos leitores a idealização dos personagens e suas expressões faciais, aproximando-se do que é sentido pelo príncipe que, “com visíveis sinais de uma cólera mal contida”, “brada, com energia: ‘Independência ou Morte!’”. O mesmo ponto é observado no texto escrito por Gilson Canuto dos Santos, que destaca o momento em que o príncipe simbolicamente troca Portugal pelo Brasil, ao arrancar as cores azul e branco do laço: “Êle, ficou irritado, arrancou então o laço azul e branco (pois estas eram as cores da bandeira de Portugual) e colocando amarelo e verde gritou: “independência ou morte”.10

A narrativa produzida pela estudante Virgínia parte do princípio de que os leitores conhecem os fatos ocorridos no dia 7 de setembro de 1822. Assim, a “coerência lógica” dos acontecimentos é preterida em relação à estética discursiva. O texto esbanja da recorrência de adjetivos para descrever o cenário e o personagem histórico envolvido na cena, empregando termos como: em “florestas verdejantes e áureos matagais”, cavalgava em “um belo cavalo pardo, um jovem príncipe”, “enlevado pela beleza da natureza virgem”, “nos libertou do jugo da própria pátria”.11 As palavras destacadas exemplificam a poética que envolve a reconstrução do cenário perfeito produzido pela autora, provocando a imaginação dos leitores para lidar com o “sentido de obviedade” do evento histórico. Assim, nos três artigos tomados como exemplo, são notórios os elementos estéticos utilizados para constituir e oferecer significado e sentido às narrativas históricas.

Para Rüsen (2016b), o elemento estético já estaria presente na obra de Leopold von Ranke, historiador alemão que introduziu o método científico na pesquisa histórica. Semelhante à retórica – recurso linguístico esquecido pela historiografia pós-moderna –, a “habilidade de recriar” seria um elemento por meio do qual o conhecimento histórico adquire vivacidade. De maneira mais específica:

a retórica preenche o conhecimento histórico com ideias do curso do tempo compreendendo o passado, o presente e o futuro em uma completa unidade de sentido, significação ou significado que orienta a ação para interpretar o mundo e a humanidade na vida humana (Rüsen, 2016b, p. 93).

A partir dessa ideia, podemos entender que a retórica das narrativas produzidas pelos estudantes do Colégio Jackson de Figueiredo se constituía não apenas como mera “inserção de elementos ficcionais” ou “truques linguísticos” para persuadir o leitor. Ela representava, também, uma “condição necessária para uma compreensão histórica do passado” que, por meio de “padrões básicos de significação”, preenchia e concretizava as “aspirações políticas” de seus autores (Rüsen, 2016b, p. 93-94). O texto escrito por António Vivaldo de Azevêdo, publicado na edição de novembro de 1945, do Correio do Colegial, pode ilustrar esse conjunto de intenções ao tratar da Proclamação da República brasileira, conforme transcrição:

Proclamação da República

A República foi proclamada no dia 15 de novembro de 1889.

D. Pedro criou um ministério e o povo não estando satisfeito com êste ato resolveu proclamar a República. Os membros desta eram: Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e Benjamim Constant.

Na manhã do dia 15, Deodoro saiu com um comando e dirigiu-se para o campo de Sant’Ana, em frente da secretaria de guerra, onde tomou posições.

O ministério sabedor disto pediu demissão e telegrafou ao imperador que se achava em Petrópolis. O Ajudante-General assistindo a êste ato, mandou abrir o portão passando então Deodoro, que foi muito aclamado. Depois uma salva de 21 tiros de artilharia anunciava que a República estava pois organizada.

Em seguida, mandou Deodoro um memorandum a D. Pedro, impondo lhe a retirada dentro de 24 horas.

E foi assim que o imperador foi exilado. Êle que tudo fizera pelo bem do Brasil.12

Tais aspirações políticas ficavam evidentes, por exemplo, quando mencionava “O Ajudante-General assistindo a êste ato, mandou abrir o portão passando então Deodoro, que foi muito aclamado”, ou, ainda, “a República estava pois organizada”. Os termos utilizados apresentam uma sucessão de ações pacíficas e aceitas como necessárias para o Estado brasileiro, deixando ainda evidente que, ante a imprescindível alteração do regime político, o imperador deveria ser referenciado com benevolência: “Êle que tudo fizera pelo bem do Brasil.”.13 Assim, também em outras narrativas, é possível entrever “fatores intencionais da vida prática” que fazem referência ao modo como “os atos de governos aparecem, bem como aos atributos que caracterizam as ações e os atores políticos” (Rüsen, 2016b, p. 94-95). Como observa-se no excerto do texto escrito pelo estudante Elio Araujo Faro, intitulado “Transmigração da família Real para o Brasil”.

[Chegando aqui, não tendo casas suficientes para as pessoas, á noite êles punham na porta “P. R.” que queria dizer <Príncipe Regente>, <Predio Roubado>, e < Ponha-se na Rua> [sic.]. Quando os moradores levantavam-se iam ver se tinham o “P.R”. O morador surprehendido por estas iniciais tinha que se ausentar dentro de 24 horas. D. João trouxe muitos beneficios para o Brasil.

O jardim botanico, a Escola Medico-Cirurgica, a fabrica de polvora, a imprensa Regia, a Biblioteca Pública, a Academia de Marinha, O Banco do Brasil, a Escola de Belas Artes, etc..14

O texto trata da chegada da família real ao Brasil, discorrendo sobre o ato de despejo aos moradores locais pela Coroa portuguesa, que exigia a liberação de casas em 24 horas para uso da comitiva recém-chegada. Ainda no mesmo parágrafo, a frase “D. João trouxe muitos benefícios para o Brasil” indica para a significação política da sentença, que lembra os benefícios resultantes de tal sacrifício da população. Isso é reforçado no conjunto de sentenças do próximo parágrafo, que cita as instituições criadas por D. João.

Nesse sentido, Topolski (2016) alerta para a necessidade de considerar as totalidades narrativas, considerando os elementos, as estruturas e as regras de coerência, o que é definido pelo autor como “ligação com o conteúdo”. Haveria, ainda, uma estrutura vertical da narrativa, que conjuga informação e retórica; seria justamente a retórica que inclui os instrumentos “de persuasão que permanece encoberto, incluindo figuras de palavras e figuras de pensamento. [...] Em suma, pode-se dizer que a narrativa histórica é uma estrutura persuasiva” (Topolski, 2016, p. 64). Ao tratar desse assunto, o autor está se referindo à produção historiográfica, o que não descarta a possibilidade de aproximação com a interpretação histórica de estudantes que narram o passado, munindo o texto de elementos retóricos e estéticos que permitem estabelecer significação política para a construção narrativa.

Além de orquestrar as concepções políticas de um autor, retórica e estética são elementos que contribuem para a atribuição de sentidos à experiência humana no tempo. Por meio desses recursos, a narrativa fundamenta a “consciência histórica”, operação mental em que o sujeito estrutura uma experiência temporal para atender suas necessidades de orientação na vida prática. A narrativa histórica, vale ressaltar, tem a peculiaridade de: relacionar-se à mediação da memória; unir as dimensões temporais pelo conceito de continuidade; e estabelecer identidades de autores e ouvintes. Essas especificidades nos permitem distinguir suas diferentes formas de compreensão, identificadas por tipologias (Rüsen, 2016a).

O CONTEÚDO HISTÓRICO EM FORMA DE POESIA E CARTA

Outro aspecto a ser observado diz sobre como as narrativas estudantis publicadas no Correio do Colegial compreendiam uma estética nacionalista, pautada em eventos políticos e heróis nacionais. Entretanto, caso pudéssemos compará-las às produções historiográficas então vigentes, perceberíamos uma contradição, já que a forma como tais escritos eram produzidos não levava em consideração apenas os dados empíricos revelados pelas fontes. Ao contrário, as narrativas produzidas pelos(as) estudantes primários e secundaristas do Jackson de Figueiredo poderiam conformar-se em uma “historiografia poética”, trazendo à tona uma ferramenta capaz de preencher as lacunas encontradas nas fontes ou referências históricas que os jovens teriam acesso (Medeiros, 2014).

Como já destacado, ao longo do século XIX os estudos históricos buscavam um distanciamento dos chamados discursos ficcionais, aqueles que “fingiam dizer o que realmente aconteceu no passado” (Rüsen, 2016b, p. 87). Com argumentos “antirretóricos”, a historiografia reivindicava para si uma racionalidade metodológica que pudesse lhe atribuir um caráter acadêmico ou científico. Essa ideia visava à ascensão da História ao patamar de uma disciplina autônoma nas humanidades. Nesse sentido, a obra de Leopold von Ranke constituiu-se como um paradigma que representou o desenvolvimento da historiografia: “de literatura, ela virou ciência” (Rüsen, 2016b, p. 88).

Contudo, nem mesmo Ranke compartilhava de uma visão radical em relação à historiografia. Para esse intelectual, um dos fundadores da historiografia científica, o princípio científico da história residia na pesquisa, o que não invalidaria os princípios artísticos ou poéticos encontrados na escrita da história. Na concepção de Ranke, a história seria uma ciência distinta, já que, amparada pela força intelectual da filosofia e pela força poética da arte, ativa a “habilidade de recriar”, favorecendo, assim, a “reprodução da vida” (Rüsen, 2016b, p. 89).

Mesmo que não fosse a intenção, afinal, tratava-se de estudantes, os/as jovens escritores(as) do jornal Correio do Colegial brincavam com os elementos que, na concepção historicista, definiriam a ciência de Clio: a pesquisa, que demonstraria um passado como “realmente” foi; e a arte, que dispensando as regras ou princípios reflexivos, simplesmente “ocorria no ato da escrita” (Rüsen, 2016b, p. 91). É o que entrevemos nas publicações que visavam abordar temas históricos e, para tanto, apresentavam narrativas com caráter mais poético, conforme o exemplo:

Figura 1
: Poema Independência

No excerto, um dos temas mais recorrentes do Correio do Colegial, a independência do Brasil, foi apresentado em forma de poesia. Nessa narrativa, o estudante Milson Barreto apresenta elementos de uma história factual, tais como a data tópica (margens do Ipiranga), a data cronológica (7 de setembro), o protagonista (D. Pedro) e a consequência (coroação do imperador). Todavia, entre um elemento e outro, o jovem escritor recorria à imaginação para recriar os fatos e atribuir sentidos ao acontecimento abordado. Assim, a Independência ocorreu em uma “tarde linda e branda”, quando D. Pedro fez ecoar “aquele brado tão forte” e, em seguida, retornou ao Rio de Janeiro sob “um céu de anil” para ser coroado imperador.

Como postulado por Rüsen (2016b, p. 91), “a virada antirretórica da historiografia não aboliu simplesmente a retórica, mas a modificou, deu-lhe um novo caráter, uma nova forma de falar para seu público”. Percebemos isso quando, nos escritos biográficos, os estudantes utilizaram-se da arte para produzir imagens idealizadas dos chamados heróis nacionais:

Figura 2
: Poema Tiradentes

No soneto dedicado a Tiradentes, José de Fortunato Pinto escolheu um momento específico da trajetória do “inconfidente mineiro”: a sua execução. Recorrendo à imaginação, o jovem escritor recriou, artisticamente, um ambiente de violência desproporcional, quando um injustiçado caminhava em direção à forca, sendo escoltado por “quase mil soldados”. Como uma figura exemplar, seu personagem seguia corajosamente, com um semblante “varonil”, “fitando a imagem do crucifixo” para, finalmente, “cumprir satisfeito a sua sina” e tornar-se um “mártir”. Esta característica, inclusive, é a tônica da poesia escrita pelo estudante Belmiro Silva que também traz uma homenagem ao “herói da inconfidência”:

Figura 3
: Poema Tiradentes

Nessa poesia, Belmiro Silva não está preocupado em descrever um evento histórico específico. Buscando ressaltar as qualidades do seu biografado, o estudante lança mão da retórica para preencher o curso do tempo e, então, “chora de mágoa e saudades” por um passado, “levanta a fronte” no presente e projeta um futuro de “igualdade” e “liberdade soberana”. Com essa estrutura narrativa, “o conhecimento histórico torna-se uma parte da vida prática, de efetiva orientação da atividade e do sofrimento humanos no curso do tempo” (Rüsen, 2016b, p. 93).

O conteúdo histórico publicado no jornal também se apresentava na forma de carta, ou melhor, em formato de uma hipotética carta direcionada a uma menina. Uma escrita que demonstra ter por objetivo informar sobre a longa história econômica do Brasil, ao dirigir-se a uma “menina” que um dia estudaria de forma mais aprofundada todos os feitos econômicos da nação. A suposta garota seria a leitora visada,15 uma dentre tantas meninas para as quais o conhecimento acerca da experiência histórica do país poderia servir de base para a interpretação e orientação da vida prática no presente. Assim, o leitor do jornal receberia, a partir desse texto, que não possui o padrão linguístico dos livros “sisudos feitos por homens cultos” (conforme os termos usados na escrita da carta), uma narrativa cronológica, linear, e pontual, em tom de aconselhamento sobre a importância do desenvolvimento econômico brasileiro nos últimos três ou quatro séculos. No excerto a seguir, é possível observar algumas características do referido texto:

Menina,

Quando você crescer, ficar moça e bonita, ha de descobrir nos livros sisudos feitos por homens cultos, a história do Brasil econômico. Você vae gostar de lêr tudo o que os nossos avós fizeram em tres ou quatro séculos de trabalho como êles povoaram a terra, penetrando sertão a dentro, para criar o gado, para buscar o ouro escondido no leito dos rios ou nas montanhas longínquas.

Em 1532 se inicia com Ana Pimentel, espôsa de Martins Afonso, nas fraldas do Cubatão, a agricultura do Brasil. A dama portuguêsa semeou o primeiro arroz e plantou a primeira cana em nossa terra. Dahi a indústria do açucar e da aguardente que cresceu, cresceu… Depois vieram o milho, a mandioca, o algodão, o cacau e o fumo.

Até o século XVII é o açúcar o principal recurso [...]

[...]

Os livros de amanhã lhe dirão, menina, quando você crescer, que os nossos-patrícios precisam pensar seriamente no Brasil, amá-lo com serenidade e respeita-lo com patriotismo.

Não bastam ao país os seus rios, aos seus montes que lhe fazem moldura.

Ele carece do trabalho honesto de cada brasileiro, menina.

Gostou da história? Uma carta sua a Chiquinha Rodrigues dar-lhe-á oportunidade de receber muitas e muitas historias como esta.16

O texto é longo, descreve as fases econômicas da história do Brasil, da expansão agrícola do século XVI à relevância de Visconde de Mauá para a modernização do país, no século XIX. O estilo da escrita, ao referir-se diretamente à figura da menina, e os termos utilizados nas sentenças demonstram a intencionalidade de aproximação com a “leitora menina”, que aprenderá com os livros quando crescer, mas que desde então precisa saber sobre o necessário amor para com o país, que “carece do trabalho honesto de cada brasileiro”. A carta é finalizada com o chamamento à possibilidade de envio de uma carta-resposta à “Chiquinha Rodrigues”,17 para que novas histórias sejam publicadas. O texto parece ter a intenção de abrir espaço para o diálogo com o leitor do jornal, que poderá enviar novas questões sobre a história do Brasil e receber informações históricas, a exemplo do referido texto.

O que parece ser evidente é o fato de que a escrita criativa era uma premissa ao trato de assuntos históricos, como alternativa ao formato “sisudo dos livros escritos por intelectuais”. Assim, havendo um leitor visado por autores(as) (estudantes) e por editores (professores), e uma intencionalidade de produção de sentidos, ocorria a busca por parâmetros de produção dos textos, a exemplo do que é discutido por Galvão e Jinzenji (2011, p. 19): “Em função do leitor-modelo, autores e editores, em condições materiais contextualizadas, definem as temáticas, a linguagem a ser utilizada, a sequência e a forma de apresentação dos fatores e ideias”.

Portanto, ao analisar as narrativas elaboradas pelos estudantes no periódico Correio do Colegial durante o período de 1938 a 1959, é possível perceber que o Colégio Jackson de Figueiredo, referência em educação em Aracaju, tendo como público-alvo os(as) filhos(as) da elite local e regional, buscava formar cidadãos patriotas, adotando abordagens excessivamente nacionalistas. Isso é evidenciado pelos temas mais frequentes presentes nos 188 artigos publicados no período. Com destaque para eventos políticos, tais como “Independência do Brasil”, “Inconfidência Mineira”, “Guerra do Paraguai”, “Proclamação da República”, associados a “heróis” nacionais, a exemplo de Dom Pedro I, Dom Pedro II, Tiradentes e Duque de Caxias. Com um caráter ufanista e patriótico, as narrativas apresentam cenas de um passado marcado por manifestações “gloriosas”, das quais deveríamos sentir orgulho e tomar como exemplo. Assim, o tema, o estilo da narrativa e o formato dos textos cumpriam determinado objetivo, que estava relacionado aos princípios de formação da identidade nacional.

Como bem considera Abud (1998), a História tem sido historicamente a disciplina formadora dos cidadãos, aquela sobre a qual incidem os interesses do Estado. Desde o início do século XX, a formação da nacionalidade e identidade nacional brasileira tornou-se um tema recorrente na produção intelectual e política do país. O desenvolvimento de uma identidade nacional perpassava os princípios de formação de uma “consciência nacional” (Abud, 1998), papel atribuído aos intelectuais brasileiros que, ao educarem a elite, direcionariam também o povo a um sentimento de nacionalidade.

Os órgãos de instrução teriam um papel fundamental na formação da consciência nacional. E dentre seus elementos, destacavam-se os objetivos que competiam à História. A História tem sido considerada por excelência a disciplina formadora dos cidadãos. François Furet nos lembra que, no momento de sua introdução como disciplina escolar, interessava formar com seu ensino uma ciência social geral, que desse aos alunos a noção da diversidade das sociedades do passado e o sentido de sua evolução. Cabia às forças dirigentes a escolha do passado, de acordo com seus interesses. A disciplina deveria ser o estudo da mudança e, já no final do século XIX, era um método científico e uma concepção de evolução. O homem caminhava rumo ao Progresso e à Civilização, guiado pela Nacionalidade, por isso a História se revelaria como a genealogia da nação, procurando identificar as bases comuns, formadoras do sentimento de identidade nacional. Assim, a História se desenvolveu buscando o fortalecimento do Estado, conformação material da Nação (Abud, 1998, s/p).

“Cabia às forças dirigentes a escolha do passado”, dos acontecimentos pretéritos que serviriam de guia para as ações do presente, as quais incidiriam no futuro da nação. Nessa perspectiva, as narrativas publicadas nesse jornal nos possibilitam uma aproximação com a cultura histórica em circulação à época, ou seja, o modo pelo qual os(as) estudantes apropriavam-se do passado via disciplina escolar de História, em processos de produção, transmissão e recepção do conhecimento histórico (Rüsen, 2016a). De igual modo, as tipologias das narrativas históricas, empregadas por Rüsen (2016a), ajudam-nos a construir um perfil conceitual sobre os textos publicados no Correio do Colegial em seu aspecto formal.

Ao caracterizar as funções de uma narrativa histórica, as tipologias preenchem as condições necessárias para orientação da vida humana. A primeira condição é satisfeita a partir da “afirmação” dos padrões culturais prévios, encontrados na narrativa “tradicional”. Esse é um tipo de narrativa que nos revela como as origens “constituem os sistemas atuais de vida” e “constroem a continuidade como permanência dos sistemas de vida constituídos originalmente” (Rüsen, 2016a, p. 49), tal como encontramos no texto em forma de carta, publicado no Correio do Colegial, em agosto de 1940. O texto, ao tratar do desenvolvimento econômico do país, afirma que a menina “vae gostar de lêr tudo o que os nossos avós fizeram em tres ou quatro séculos de trabalho”, pois assim será possível compreender “que os nossos-patrícios precisam pensar seriamente no Brasil, amá-lo com serenidade e respeitá-lo com patriotismo.”18 A narrativa tradicional sustenta-se nas origens da ação humana para a continuidade dos modos de vida que orientam o presente.

A segunda condição capaz de orientar a vida humana é encontrada na “regularidade” da narrativa “exemplar”. De maneira predominante, essa tipologia apresenta-se nos escritos do Correio do Colegial demonstrando não só “a validade de regras e princípios em casos individuais”, como também “aplicações de regras gerais de conduta” (Rüsen, 2016a, p. 50-51). As demais condições necessárias para a orientação no tempo são a “negação” e a “transformação”, satisfeitas, respectivamente, pelas narrativas “crítica” e “genética” (Rüsen, 2016a). Embora não apareçam com frequência nos escritos do Correio do Colegial, vale lembrar que todas estas tipologias (tradicional, exemplar, crítica e genética) “não se excluem, mas estão estritamente conectadas”, e podem ser encontradas em “qualquer texto histórico”, ainda que haja a predominância de um modelo (Rüsen, 2016a, p. 53-54).

As narrativas, tradicional e exemplar, são evidenciadas com importante frequência nos artigos publicados no Correio do Colegial, que intencionam oferecer orientação para a vida prática ao cumprir com os princípios de formação histórica para a consciência nacional. Sendo assim, ainda que buscassem generalizar as experiências do tempo para atender às regras de conduta impostas por um Estado autoritário e nacionalista, as narrativas tradicionais e exemplares também poderiam conferir espaço para a existência de outras tipologias simultaneamente.

O que é possível destacar, para além da tipologia das narrativas, é o fato de que a escrita permitiu, aos(as) estudantes autores(as), “a experiência fascinante de saída do tempo, de abandono de seu regime de historicidade, de temporalidade, para experimentar outros regimes de historicidade e de temporalidade” (Albuquerque Júnior, 2019, p. 218). A produção dos artigos levou os(as) estudantes a imaginarem o passado, a recriarem, a construírem cenas e cenários, a narrarem com encantamento e poética a experiência humana, por certo com a intencionalidade de comover, de despertar atenção e emoções.

Sendo, portanto, narrativas construídas na escola, que resultam de uma cultura histórica e escolar, torna-se relevante considerar o potencial estético de textos que tinham como principal objetivo fortalecer o “patriotismo” e a identidade nacional. A cultura histórica constitui-se das dimensões estética, cognitiva e política, entre outras, que respondem a aspectos da percepção, da interpretação e da orientação, sendo dimensões complementares. (Rüsen, 2015). A estética, contudo, é justamente a dimensão do sentir, que atua entre a sensibilidade e a razão, “pensa-se aqui na capacidade de tal apresentação de falar ao espírito e à sensibilidade de seus destinatários” (Rüsen, 2015, p. 231). Para o autor, no que se refere ao caráter narrativo, a dimensão estética resulta em uma coerência narrativa na forma de apresentação do conhecimento histórico. Nesse sentido, a aprendizagem histórica estaria condicionada também à forma narrativa da experiência histórica, o que, por certo, esteve contemplado nos projetos de ensino do educandário Jackson de Figueiredo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dimensão estética presente nas narrativas publicadas no jornal Correio do Colegial, há algumas décadas, nas quais os(as) estudantes produziam narrativas históricas por meio da lógica e da “habilidade de recriar”, leva-nos a questionar a relevância dessa dimensão para a aprendizagem histórica. Ao mesmo tempo, leva-nos refletir sobre a ausência ou a rarefação do elemento estético na construção narrativa dos textos históricos que são levados às salas de aula contemporâneas. Haveria espaço para a imaginação e o desenvolvimento do “fator artístico” nas práticas de Ensino de História atuais? A racionalidade histórica, a criticidade em relação aos processos históricos e as abordagens relacionais, que fogem à percepção de uma versão única do passado, não guardariam espaço para a “imaginação e o recriar” da experiência histórica?

Como lembrado por Albuquerque Júnior (2019, p. 217), “a história está nos currículos escolares não mais para ensinar o amor à pátria e a seus heróis”. Não obstante, permanece o compromisso de cidadania, sobretudo no sentido de “preparar o aluno para conviver com o diferente, com o distante, com o estranho, com a alteridade, com a descontinuidade, com a mudança” (Albuquerque Júnior, 2019, p. 217). Dessa forma, seria interessante aproveitarmos a ampliação dos cenários investigativos proporcionados pelas novas abordagens historiográficas para promover a estética na sala de aula e, assim, atribuirmos novos sentidos à experiência humana no tempo.

Considerando a perspectiva apresentada por White (2011), entendemos que, ao alterar a forma do discurso, por exemplo, de uma lista cronológica de eventos para uma construção narrativa dos mesmos eventos históricos, não se altera necessariamente a informação sobre os acontecimentos, mas certamente modifica os sentidos produzidos sobre tais eventos. Assim, a forma narrativa, em suas apresentações, pode influenciar profundamente a experiência do leitor e, por conseguinte, potencializar a aprendizagem histórica.

Compreendemos, então, que é necessário certa dose de criação estética nos processos de aprendizagem que envolvem a experiência histórica, a interpretação e a orientação para a vida prática, além da necessária problematização dos temas selecionados, das ideias políticas a serem discutidas e dos argumentos que devem ser cotejados, para que a racionalidade histórica seja sensível e sensibilize sobre o agir e o sofrer de “si mesmo” e do “outro”, ou seja, sobre a “identidade histórica” (Rüsen, 2010, p. 156). Como expressa Rüsen (2015, p. 231): “a dimensão estética, mediante o pensamento histórico, abre chances de humanização ausentes das demais dimensões”.

REFERÊNCIAS

  • ABUD, Katia Maria. Formação da Alma e do Caráter Nacional: Ensino de História na Era Vargas. Revista Brasileira de História, v. 18, n. 36, p. 103-114, 1998.
  • ALFLEN, Mara Inês. Jornal Escolar: Um herói do Brasil nas páginas do Correio do Colegial (Sergipe, 1938-1959). 58p. Monografia (Licenciatura em História) - Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2023.
  • ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Regimes de Historicidade: Como se alimentar de narrativas temporais através do ensino de história. In: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. O tecelão dos tempos: Novos ensaios de teoria da história. São Paulo: Intermeios, 2019.
  • BASTOS, Maria Helena Câmara. Escritas estudantis em periódicos escolares. História da Educação, v. 17, n. 40, p. 7-10, maio/ago. 2013.
  • CUNHA, Maria Teresa Santos; SILVA, Cristiani Bereta da. Jornais escolares: Arautos de ensinamentos patrióticos e pacifistas (Santa Catarina/Brasil/1940-1960). Sarmiento, n. 24, p. 127-159, 2020.
  • DOMINGOS, Dáleth Monte. O enfeite ao lado do trono: A representação histórico-feminina no Jornal Correio do Colegial (1938-1960). Monografia (Licenciatura em História) - Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2023.
  • ECO, Umberto. Lector in fabula. São Paulo: Perspectivas, 1986.
  • GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; JINZENJI, Mônica Yumi. A quem se destinava o Boletim Vida Escolar? In: GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; LOPES, Eliane Marta T. Boletim Vida Escolar: Uma fonte e múltiplas leituras sobre a Educação no início do século XX. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
  • MANKE, Lisiane Sias; REIS, Aaron Sena C. Narrativas históricas produzidas por estudantes secundaristas para o jornal estudantil Correio do Colegial (1949 – 1959). In: OLIVEIRA, João Paulo Gama et al. Escritas Estudantis na Imprensa Periódica da Educação (séculos XIX e XX). São Paulo: Paco, 2024.
  • MARTINELI, Laís Pacifico; MACHADO, Maria Cristina Gomes. A produção periódica estudantil oitocentista. Revista Educação em Questão, v. 59, n. 60, p. 1-29, abr./jun. 2021.
  • MEDEIROS, Tito Barros Leal de Pontes. Poetizando a História nacional: Ficcionalização da História e método historiográfico em José de Alencar. Tese (Doutorado em História) - Universidade de Lisboa, Lisboa, 2014.
  • OLIVEIRA, João Paulo Gama; MANKE, Lisiane Sias; OLIVEIRA, Roselusia Teresa de Morais; RODRIGUES, Simone Paixão. Escritas Estudantis na Imprensa Periódica da Educação (séculos XIX e XX). São Paulo: Paco, 2024.
  • PIMENTEL, Carmen Regina de C. "Instruir e Educar": Práticas de formação no Colégio "Jackson de Figueiredo" (1938-1980). Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Sergipe, São Cristóvão, 2014.
  • RÜSEN, Jörn. Razão histórica: Teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2010.
  • RÜSEN, Jörn. Narração histórica: fundações, tipos, razão. In: MALERBA, Jurandir (org.). História e narrativa: A ciência e a arte na escrita histórica. Petrópolis: Vozes, 2016a. p. 45-58.
  • RÜSEN, Jörn. Retórica e estética da história: Leopold von Ranke. In: MALERBA, Jurandir (org.). História e narrativa: A ciência e a arte na escrita histórica. Petrópolis: Vozes, 2016b. p. 85-103.
  • RÜSEN, Jörn. Teoria da História: Uma teoria da história como ciência. Curitiba: Editora UFPR, 2015.
  • SANTOS, Suelen Maria Andrade. Representações da Segunda Guerra Mundial em Aracaju a partir do jornal escolar Correio do Colegial (1939-1945). Monografia (Licenciatura em História) - Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2023.
  • TOPOLSKI, Jerzy. O papel da lógica e da estética na construção de totalidades narrativas na historiografia. In: MALERBA, Jurandir (org.). História e narrativa: A ciência e a arte na escrita histórica. Petrópolis: Vozes, 2016. p. 59-74.
  • WHITE, Hayden. A questão da narrativa na teoria da História contemporânea. In: NOVAIS, Fernando A.; SILVA, Rogério F. A Nova História em perspectiva. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 438-483.
  • 1
    O educandário foi criado por Benedito de Oliveira e sua esposa, Judite de Oliveira, na cidade de Aracaju, Sergipe, em 1938. Benedito havia sido auxiliar na direção de outro colégio, o Tobias Barreto, além de diretor do Grupo Escolar General Valadão. Após casar-se com Judite, idealizaram e implantaram o Colégio Jackson de Figueiredo. A instituição escolar, de origem particular e não confessional, funcionava como internato, semi-internato e externato, inicialmente exclusiva para o público masculino, mais tarde também feminino na modalidade externato. Apesar de apresentar-se como uma instituição não confessional, os proprietários da escola eram católicos fervorosos e deixavam evidente que, por meio da religião, poderiam elevar o nível espiritual e moral de seus alunos (Pimentel, 2014).
  • 2
    Para saber mais sobre pesquisas da “Imprensa Estudantil”, consultar: Bastos (2013); Cunha e Silva (2020); Oliveira et al. (2024).
  • 3
    Integrantes do Projeto “Os jornais estudantis em Sergipe (1874-1959): práticas educativas pela ótica dos discentes do secundário”, têm analisado o impresso Correio do Colegial sobre diversas perspectivas, como em estudos produzidos por: Alflen (2023); Domingos (2023); Santos (2023); Manke e Reis (2024).
  • 4
    No que se refere ao formato, o jornal era impresso em páginas de 24 cm de largura por 32 cm de altura, com variação de quatro a oito páginas. O número de páginas oscilava conforme a periodicidade da publicação. Inicialmente, sua frequência era mensal durante o ano letivo, de março a novembro, mas ao longo dos anos essa regularidade diminuiu, resultando em apenas três ou menos edições anuais.
  • 5
    Acervo da BIBLIOTECA PÚBLICA EPIFÂNIO DORIA (BPED), Aracaju. SANTOS, Gilson Canuto dos, Independência do Brasil 7 de setembro. Jornal Correio do Colegial, Aracajú, n. 13, abr. 1940. p. 4.
  • 6
    SANTANA FILHO, Olimpio de. 7 de setembro. Jornal Correio do Colegial, Aracaju, n. 65, ago. 1948. p. 4. (BPED).
  • 7
    RIBEIRO, Virgínia Augusta Rocha. SETE. Jornal Correio do Colegial, Aracaju, n. 79/80, nov. 1952. p. 2. (BPED).
  • 8
    SANTOS, Gilson C. Independência do Brasil 7 de setembro. Jornal Correio do Colegial, Aracajú, 1940, n. 13, abr. 1940. p. 4.
  • 9
    SANTANA FILHO, Olimpio de. 7 de setembro. Jornal Correio do Colegial, Aracaju, n. 13, abr. 1940. p. 4. (BPED).
  • 10
    SANTOS, Gilson Canuto dos, Independência do Brasil 7 de setembro. Jornal Correio do Colegial, Aracaju, n. 13, abr. 1940. p. 4. (BPED).
  • 11
    RIBEIRO, Virginia Augusta Rocha. SETE. Jornal Correio do Colegial, Aracaju, n. 79/80, nov. 1952. p. 2. (BPED).
  • 12
    AZEVÊDO, António Vivaldo de. Proclamação da República. Jornal Correio do Colegial, Aracaju, n. 58, nov. 1944. p. 6. (BPED).
  • 13
    AZEVÊDO, António Vivaldo de. Proclamação da República. Jornal Correio do Colegial, Aracaju, n. 58, nov. 1944. p. 6. (BPED).
  • 14
    FARO, Elio Araujo. Transmigração da família Real para o Brasil. Jornal Correio do Colegial, Aracaju, 1938, n. 1, ago., p. 3. (BPED).
  • 15
    Tomamos o conceito de “leitor visado” ao compreender que a escrita de um texto assume como princípios norteadores um determinado público leitor, no mesmo sentido que discute Umberto Eco, ao tratar do “leitor-modelo” (Eco, 1986, p. 40).
  • 16
    Jornal Correio do Colegial, Aracaju, n. 18, ago. 1940, p. 4-5. (BPED).
  • 17
    Em consulta ao arquivo do colégio Jackson de Figueiredo, não foi localizado nenhum nome correspondente a Chiquinha Rodrigues, ou mesmo Francisca Rodrigues. Desse modo, supõe-se que seja uma personagem criada pela equipe editorial, para interlocução por intermédio do jornal. O referido texto não é assinado, diferentemente dos demais, não havendo evidências sobre a autoria.
  • 18
    Jornal Correio do Colegial, Aracaju, n. 18, ago. 1940, p. 4-5. (BPED).
  • FINANCIAMENTO:
    Este texto integra as investigações vinculadas ao projeto “Os jornais estudantis em Sergipe (1874-1959): práticas educativas pela ótica dos discentes do secundário”, com sede na Universidade Federal de Sergipe, que conta com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Chamada CNPQ/MCTI/FNDCT Nº 18/2021 – UNIVERSAL.
  • Editor responsável:
    Ely Bergo de Carvalho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Mar 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    25 Abr 2024
  • Revisado
    13 Dez 2024
  • Aceito
    14 Out 2024
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Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: variahis@gmail.com
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