Acessibilidade / Reportar erro

Direito à terra no Brasil: a gestação do conflito

RESENHA

Carmen Alveal

Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes, Campus Universitário, BR-101, KM 01, CCHLA, sala 229 Lagoa Nova, Natal, RN, 59078-970, carmenalveal@uol.com.br

Márcia Maria Menendes Motta. Direito à terra no Brasil. A gestação do conflito. 1795-1824. São Paulo: Alameda, 2009, 286 p.

A autora, professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, consolida-se como historiadora do direito em uma obra que se baseia na discussão dos juristas portugueses e nos textos produzidos pelos memorialistas sobre a crise da agricultura em Portugal, mas percebendo a relação desta discussão com as colônias lusitanas, sobretudo a América Portuguesa. A partir dessa documentação, são analisadas as propostas levantadas sobre o sistema de sesmarias em áreas coloniais, tendo como recorte o período mariano, mais especificamente o alvará de 1795 e a Constituição brasileira de 1824, com a consolidação da idéia de propriedade da terra, apenas regularizada na Lei de Terras de 1850, alvo de seu estudo anterior Nas Fronteiras do Poder, já em sua segunda edição.

Assim, para fazer uma análise da gênese dos conflitos de terra no Brasil, Márcia Motta volta sua atenção para o final da época colonial, dando um enfoque especial à instituição da sesmaria, tema tratado sempre de maneira superficial pelos colonialistas. Contribuindo para aprofundar o debate, crê que nesse sistema se localiza o cerne da questão dos primeiros conflitos agrários, pela complexidade do sistema, tendo em vista o seu fundamento principal, a obrigatoriedade do conflito, mas atrelado a um procedimento burocrático complicado e as diversas interpretações da lei.

A Lei de Sesmarias foi criada em 1375 por D. Fernando, como uma medida para combater a crise do século XIV, sendo que sua principal, porém não única intenção, era solucionar o problema de abastecimento existente no reino oriundo, em parte, pelo êxodo rural que se verificou em Portugal nessa época. Muitas pessoas detentoras de terras não as cultivavam, e aí que a lei incidia, pois pretendia obrigar o cultivo nessas áreas condicionando a propriedade ao cultivo efetivo da mesma.

Embora criado para resolver um problema conjuntural, a legislação de sesmarias acabou durando quase 500 anos em Portugal e pouco mais de 300 no Brasil. Contudo, em Portugal o sistema não mais existia na prática desde o século XVIII. Por isso, não causaria estranheza que durante o século XVIII "a ideia de decadência e a necessidade de reformas foram sentimentos compartilhados pela inteligência portuguesa", levando-os a discutir a questão das sesmarias. Dentro dessa corrente Motta destaca os trabalhos dos memorialistas que promoveram um debate sobre desenvolvimento e reforma agrícola. A autora nos brinda, no primeiro capítulo, com uma análise dos documentos deixados por esses homens letrados, como Domingos Vandelli, que dedicaram atenção especial às questões agrárias.

Estes memorialistas identificavam como causas dos problemas agrários a demora nas demandas jurídicas que prejudicavam o pequeno lavrador, a falta de uma técnica mais aprimorada no trato da terra, a existência de pastos comuns por – que inibiriam o lavrador de investir na propriedade e aumentar a produção devido à existência de mais de um dono por – e a inexistência de um mercado de terras. Assim, travava-se um debate sobre desenvolvimento e reforma agrícola, e para tanto defendiam a privatização e repartição das terras abandonadas, a extinção dos pastos comuns por – que impediam o desenvolvimento por não possuir um dono fixo por – e criticavam a demora das demandas jurídicas, que impediam que o lavrador assegurasse seu direito à terra.

Vandelli ainda aponta causas morais para essa decadência como o desprezo pelos lavradores e a resignação destes com seu estado de inferioridade e miséria. Vandelli cita como alguns dos fatores da decadência no campo a técnica ultrapassada, usada pelos lavradores portugueses, os terrenos incultos, os tributos e os privilégios concedidos a alguns senhores.

Embora considerada uma lei "boa", a lei de sesmarias era vista como um entrave ao desenvolvimento lusitano. Assim, os memorialistas apontavam como solução estabelecer os fundamentos de uma propriedade plena e individual, demarcação e cadastro das propriedades, construção de caminhos e revitalização de rios no sentido de possibilitar uma infra-estrutura.

Os jurisconsultos defendiam a elaboração de leis claras que estabelecessem limites para a concessão e a demarcação de sesmarias, pois a inexistência dessa legislação contribuía para o adensamento do problema gerado pela concessão de uma mesma sesmaria a mais de uma pessoa. A autora credencia essa idéia baseando-se em Mello Freire, um dos maiores jurisconsultos portugueses. A autora destaca o interessante fato que nessas demandas de terras as partes procuravam usar a carta de sesmaria como título legítimo de ocupação.

Ainda tratando da questão das sesmarias, em seu segundo capítulo, a autora nos mostra as ilações de Francisco Maurício de Souza Coutinho, governador do Pará. Para esta autoridade havia a necessidade de se adequar a Lei das Sesmarias à realidade colonial, criticando a concessão de grandes áreas de terras, que impossibilitavam o cultivo da área total da propriedade devido ao cabedal que isso exigia; acreditava na impossibilidade de se aplicar o mesmo procedimento a todas as regiões da colônia, devido a existência de títulos falsos.

O governador defendia a necessidade da demarcação e medição das terras doadas, para se evitar contendas oriundas de uma demarcação imprecisa, porém não esconde as dificuldades existentes para se levar a cabo essa tarefa, onde dois dos grandes empecilhos eram a falta de pessoal habilitado para executá-la com a precisão necessária e o custo desse procedimento. Ademais consagrava a posse pelo cultivo como forma de ocupação, defendendo que se concedessem sesmarias a quem de fato cultivasse as terras.

Uma importante discussão que Márcia Motta traz à tona é sua defesa da ideia de que a concessão de sesmarias era antes uma concessão política, que atuava para efetivar o domínio da Coroa sobre seus vassalos. Nesse contexto ela nos mostra, ainda baseando-se nas ilações de Francisco Maurício de Souza Coutinho, que os litígios de terra atuavam em favor do poder real, na medida em que os senhores reconheciam e procuravam nele o poder régio para resolver esses conflitos, complexificando o debate sobre as relações entre centro e periferia ou poder local versus poder central.

A autora foca bastante o alvará de 1795, mas que foi revogado um ano depois, criticando sobretudo a falta de atenção dedicada a este documento. Contudo, as preocupações presentes sobre demarcação e medição das sesmarias no alvará eram recorrentes desde o século XVI, o que pode ser visualizado nos muitos alvarás e ordens régias que trataram do sistema sesmarial, sobretudo no governo de Dom Pedro II, analisados no capítulo posterior a este. Uma ordem régia de 1753 também evidencia claramente o descontentamento da Coroa com as grandes extensões de terras concentradas na mão de poucos sesmeiros, chegando a citar nominalmente aqueles que o rei considerava como grandes problemas para o bem da República. Assim, embora sejam citadas ordens régias do início do século XVIII, o livro privilegia o período final de vigência do sistema, embora seja no período mariano que houve, de fato, um aumento substancial na concessão de sesmarias. Talvez aí evidenciando com mais ênfase os conflitos que, na verdade, existiram bem anteriormente.

Ao mesmo tempo, Márcia Motta corrobora para uma visão das reformas pombalinas como impactantes em Portugal e suas colônias, embora já haja na historiografia recente debates questionando tal impacto. Da mesma forma, a autora apóia-se mais em estudiosos do Direito do que em outras fontes para evidenciar o uso da Lei da Boa Razão, publicada em 1769, no tocante aos problemas fundiários na América portuguesa do século XVIII e a uma suposta consolidação da posse como costume, legitimação que também já se observava em períodos anteriores. Entretanto, a discussão travada entre os juristas acerca da lei, realizada pela autora, torna-se relevante ao perceber transições mais evidentes no Direito português já que tornava obrigatório o uso do direito pátrio, em detrimento do romano.

No terceiro capítulo, dedicado mais à América portuguesa do que a Portugal, Motta analisa as confirmações de sesmarias. É digno de nota que esse é o primeiro estudo publicado que apresenta dados extraídos das cartas de sesmarias. Antes deste, apenas Célia Freire havia escrito o verbete Sesmarias do Brasil, no Dicionário História de Portugal, organizado por Joel Serrão, de 1971, quando foram apresentados dados sobre as sesmarias de Pernambuco. Assim, as cartas de sesmarias são retomadas como importante documento para se pensar o rural, não apenas por meio de análises quantitativas, mas também qualitativas. Além disso, este estudo abarca o Brasil inteiro, mostrando especificidades regionais, historicizando-os.

Ao trazer a público os casos de Ignácio Pamplona e Garcia Paes Leme, o leitor é brindado com uma história social pela luta da terra no Brasil colônia, saindo-se da aridez dos discursos jurídicos e números, e entrando no cotidiano dos sesmeiros e dos meios por eles utilizados para garantir não somente a posse, mas o aumento de sua extensão, tentando garantir patrimônio através de título legítimo. Em alguns casos, as concessões refletiam o jogo de poder entre os potentados de um região, contribuindo para o aumento de posses de algumas famílias.

No quarto e último capítulo, a historiadora retorna aos autores portugueses, questionando porque tamanho interesse no sistema sesmarial e se o mesmo já não era praticado em Portugal. Contudo, a autora relaciona este debate com a própria necessidade de consagrar a propriedade plena e individual trazida pelos ventos liberais que assolavam a Europa. Pesquisando as Cortes portuguesas, inclusive com a participação de representantes brasileiros, são analisadas as propostas de intervenção na estrutura fundiária, ainda que jamais tenham sido implementadas. O princípio da obrigatoriedade do cultivo finalmente havia sido abolido juridicamente.

O livro é de fundamental importância, não apenas por abordar tema tão importante que é o problema fundiário brasileiro, mas sobretudo por historicizar um processo de gestação dos conflitos de terra que é por demais complexo e em cujo terreno poucos se aventuram a estudar. Mérito a quem se propôs a fazê-lo, contribuindo para o entendimento da luta contínua dos lavradores sem terra.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2010
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: variahis@gmail.com