RESUMO
Os conceitos de “liberdade”, “ordem” e “revolução” são centrais ao léxico político brasileiro do período de desagregação do sistema sociopolítico da Primeira República até o Estado Novo varguista, organizando leituras da conjuntura e planos de ação de diferentes correntes políticas. O artigo analisa a mobilização dos três conceitos pelo catolicismo reacionário, com destaque para seu líder, Alceu Amoroso Lima, pelo escritor fascista Otávio de Faria e por Sérgio Buarque de Holanda, em textos publicados entre 1928 e 1936, destacando instâncias de inovação conceitual e procurando estabelecer a especificidade de seus usos e de sua performance discursiva na esfera pública.
pensamento político brasileiro; fascismo; catolicismo
ABSTRACT
The concepts of “liberty”, “order,” and “revolution” are central to the political lexicon in Brazil from the breakdown of the socio-political system of the First Republic though Getúlio Vargas’s Estado Novo, organizing the political outlooks and action plans of various currents. This article analyzes the mobilization of these three concepts by reactionary Catholicism, with emphasis on its leader, Alceu Amoroso Lima, by the fascist writer Otávio de Faria, and by Sérgio Buarque de Holanda in texts published between 1928 and 1936. It demonstrates instances of conceptual innovation, seeking to establish the specificity of their uses and their discursive performance in the public sphere.
brazilian political thought; fascism; catholicism
Para Marcelo Jasmin
A nossa carta sois vós, [...] escrita não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo: Não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne do coração (2 Cor 3, 2-3).
APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA
Em sua versão de 1936, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, formulava uma interpretação do Brasil e um argumento político perpassados por diálogos com diversos autores, brasileiros e estrangeiros, normalmente classificados como autoritários e antiliberais. Isso tem levado, desde estudos seminais, como os de Waizbort (2011) e Feldman (2016), a uma reavaliação da leitura amplamente disseminada do livro como uma defesa vigorosa da democracia contra proposições antidemocráticas aparecidas no mesmo contexto. De fato, a primeira edição do texto revela uma intensa e frequentemente positiva interlocução com autores como Oliveira Vianna, Friedrich Nietzsche, Carl Schmitt, Oswald Spengler, Alberto Torres e o Thomas Mann da fase mais conservadora.1
O diálogo de Sérgio Buarque com o escritor fascista Otávio de Faria, que retoma uma resenha de 1933 do ensaio Maquiavel e o Brasil – livro hoje esquecido, mas que alcançou, na época, difusão bem maior que o hoje clássico ensaio de Sérgio –, apresenta um problema para a interpretação do debate político da época. Há um apreciável grau de convergência entre a agenda e as linhas argumentativas dos dois textos. Ambos apresentam proposições políticas relacionadas à identificação de determinados problemas que se apresentam a partir de interpretações da história política do Brasil, criticando duramente as formações políticas de inspiração liberal e vislumbrando a possibilidade de uma transformação social que realizasse a singularidade civilizacional do Brasil. À distância de quase um século, as divergências podem parecer de pouca monta. Entretanto, não apenas a atitude de Sérgio Buarque diante das posições de Faria é ostensivamente polêmica, como uma análise da primeira recepção de Raízes do Brasil revela que integralistas e filofascistas não tardaram a identificar no autor um adversário ideológico (ver Martins, 2022, p. 14).
Otávio de Faria aparece, numa nota ao capítulo intitulado “Nossa Revolução”, como o principal representante intelectual do fascismo no Brasil. A situação da referência no texto é funcional na exótica – mas veemente – argumentação com que Sérgio Buarque procura afastar do horizonte brasileiro a perspectiva de um Estado de tipo fascista. Há, como irei demonstrar, uma disputa ideológica pela forma como determinados conceitos, temas e topoi, sedimentados na linguagem política, podem ser mobilizados. Uma disputa referente à imaginação política, na qual uma constelação de temas relativos à interpretação da modernidade e à (re)organização da sociedade é acionada a partir dos conceitos de liberdade, ordem e revolução.
Esse vocabulário insere-se em uma continuidade da tradição do pensamento político brasileiro, mas é conjunturalmente conformado pela agenda e pelo repertório do movimento da direita católica liderado por Alceu Amoroso Lima, que tinha, na revista A Ordem, seu meio principal de discussão e difusão. No que se segue, examino textos dos três autores, de alguns de seus colaboradores ideológicos, e de algumas de suas referências, tendo em vista, para além do interesse intrínseco da polêmica, contribuir para uma melhor compreensão da linguagem política dos anos 1930 e das práticas letradas a ela conectadas.
QUESTÕES DE MÉTODO
A “Revolução” comanda intensidade apelativa como talvez nenhum outro conceito político da modernidade. Reinhart Koselleck (2006, p. 61) a caracteriza como “uma dessas expressões empregadas de maneira enfática, cujo campo semântico é tão amplo e cuja imprecisão conceitual é tão grande que poderia ser definida como um clichê”. Numa espécie de duplicação tautológica que aumenta sua eficácia ideológica, Koselleck (2006, p. 62) sugere, ainda, que a palavra mesma carrega uma “força revolucionária capaz de fazer com que a expressão se dissemine continuamente e seja capaz de conter em si o mundo todo”. Nem sempre esse foi o caso. A “revolução”, tal como modernamente compreendida, transfigura e transvalora elementos ideacionais hauridos de experiências históricas que se articularam, até a Revolução Francesa, no conceito de “guerra civil”, no qual, acrescenta Koselleck (2006, p. 65), “se cristalizaram [...] as paixões e as experiências das fanáticas guerras religiosas”. Se, na “guerra civil”, aspirações de supremacia de correntes político-religiosas se associavam aos conteúdos experienciais negativos da guerra, a Revolução integra-se, ao longo do século XVIII, com uma visão da história como âmbito de mudanças sociais planejáveis que, associadas à noção de progresso, conferem, na forma das modernas filosofias da história, um “resseguro” retórico capaz de elidir a responsabilidade política dos agentes históricos (ver Koselleck, 1999, p. 111-161).
Munida de tal “resseguro”, mobilizado de forma “elástica e flexível”, com intensidade crescente partir de 1789, a noção de “Revolução” passa, no vocabulário político progressista, a justificar o emprego de todo tipo de expediente pela direção progressiva de uma concepção salvífica da história. Nessa concepção, a revolução é figurada como “constante meta-histórica [...] capaz de manter um título permanente de legitimidade” (Koselleck, 2006, p. 76). Elaborado em antítese aos conteúdos associados ao conceito de revolução, o de reação também terá grande fortuna na modernidade política, integrando uma “transformação estrutural” da esfera política e da sua articulação na qual, paradoxalmente, contribui para a irreversibilidade das mudanças sociais do período pós-1789, sendo, eventualmente, ainda mais “revolucionário” do que a revolução (Koselleck, 2006, p. 137).
Se a fundamentação metodológica da abordagem histórico-conceitual de Koselleck, bem como a direção política que se pode identificar como subtexto de algumas de suas posições, estão sujeitas a contestações, parece menos controversa a noção de que inovações ideológicas são capazes de abrir novos “horizontes de expectativas”, e de que “a relação entre as palavras e seu uso é mais importante para a política do que qualquer outra arma” (Koselleck, 2006, p. 77). Quentin Skinner (2002, p. 7) exprime um ponto de vista parecido quando afirma que “o que os registros históricos nos sugerem enfaticamente é que ninguém está acima da luta, porque só existe a luta”.2 A abordagem de Koselleck converge com a de Skinner no postulado de que é na linguagem política que se formulam os horizontes de expectativas possíveis e os cursos de ação articuláveis em resposta aos acontecimentos; por meio de sua reconfiguração, esses mesmos horizontes podem se alterar.
No debate político, proposições persuasivas são capazes tanto de definir uma agenda de temas e problemas como, de modo mais sutil, criar ou transformar valores. Num insight nietzschiano, Skinner propõe que a história intelectual dedique especial atenção a formas especificamente “retóricas” de mudança conceitual:
[Mudanças conceituais retóricas] se originam quando uma ação ou estado de coisas é descrito por meio de um termo valorativo que não seria usado normalmente nas dadas circunstâncias. O objetivo é persuadir um público de que, a despeito das aparências, o termo pode ser adequadamente aplicado – em virtude do seu significado ordinário – ao caso em questão. O efeito de exitosamente persuadir alguém a aceitar tal julgamento será levá-los a ver o comportamento em questão em uma nova luz moral (Skinner, 2002, p. 182).3
O uso moderno do conceito de Revolução não somente efetua uma tal operação de transvaloração como, voltando a Koselleck (2006, p. 233-246), rotiniza na linguagem a noção da “disponibilidade da história”, que implica um novo horizonte de perfectibilidade do mundo social. A história das ideias, formulada a partir do estudo das linguagens políticas, revela que é nos conceitos e repertórios argumentativos e simbólicos a eles associados que as aspirações políticas dos diferentes grupos ganham corpo e forma. Nesse sentido, a política dá plausibilidade a uma concepção da linguagem como “forma de vida”, por oposição à ideia de que ela seria um “código” no qual se podem formular enunciados referenciados numa realidade que lhes seria externa. Conceitos e, eu acrescentaria, tópicas e narrativas a eles associadas, especialmente aquelas que se associam a constelações de valores e comandam expectativas e afetos, não são simplesmente “reflexos”, mas também “motores” do processo histórico.
Como observa Skinner, inovadores ideológicos empenham-se tanto em desafiar crenças convencionais quanto em “forçar os limites” de uma linguagem moral preexistente (Skinner, 2002, p. 178-179).4 “Intenções” políticas inovadoras podem levar à tentativa de revisão de valorações correntes pela manipulação ou criação de conceitos morais, mas precisam ganhar corpo na linguagem disponível. Penso que isso também pode ser dito sobre as formações da imaginação política, que podem ser caracterizadas como mitológicas, como visões do passado e expectativas de cunho utópico ou salvífico.
A proliferação de perspectivas inovadoras que transformaram a imaginação política, o arcabouço conceitual e os padrões de ação de agentes políticos e culturais no Brasil durante a década de 1930 tem sido notada desde análises pioneiras da história do pensamento político brasileiro, como as de Guerreiro Ramos (1955, p. 101), Wanderley Guilherme dos Santos (2017 [1970], p.103) e Antonio Candido (1995 [1969], p. 9), nas quais a Revolução de 1930 é apontada como um ponto de inflexão.
Muitos pensadores brasileiros respondem à desagregação do sistema de forças subjacente à Primeira República, que abria a perspectiva de um redesenho institucional e social do país, com uma verdadeira obsessão pelo conceito de Revolução. No contexto da indefinição característica do governo Vargas anterior a 1937, a reorganização, figurada como Revolução, reveste-se amiúde no pensamento político de um páthos apocalíptico, tornando-se objeto de sistemática especulação e, eventualmente, de propaganda, com conteúdos ideológicos bastante diversificados. É viva a percepção de que os quadros de referência conhecidos já não se adequam propriamente ao novo ritmo da vida nacional – nesse sentido, as indagações sobre a Revolução estão ligadas ao desafio de repensar a inscrição do tempo nas formas de inteligibilidade da experiência.
Alberto Torres, pensador que parte da geração seguinte teria como referência pelo diagnóstico da debilidade da ordem política e social republicana, escrevera, ainda em 1914: “Quem atravessa uma crise revolucionária, sem ter temperamento revolucionário, é vítima de todos os seus embates” (Torres, 1982, p. 10). Pouco antes de 1930, Paulo Prado (1928) prevê a revolução no “Post-Scriptum” ao seu Retrato do Brasil, equiparando-a à guerra, num lance retórico reminiscente de manifestações estéticas futuristas influentes no modernismo paulista. A Psicologia da Revolução (1933), de Plínio Salgado (1934, p. 20), vincula o conceito ao projeto político integralista, compreendendo-o como uma categoria de eventos da história geral tendente à harmonização das contradições. Em O Brasil na crise atual (1934), de Azevedo Amaral, a Revolução é o próprio “método” que preside uma reforma social orquestrada pelo Estado. Numa torção conceitual surpreendente para uma tendência política historicamente fundada no conceito de reação, pensadores associados ao laicato católico, sugestionados pelo fascismo italiano, ressignificam a revolução como a forma mais oportuna disponível para uma reconstrução reacionária da sociedade. Isso é demonstrado na análise da mobilização do conceito em veículos da reação católica realizada por Paulo Henrique Cassimiro (2025).
De um lado, cresce o anseio por uma reforma da organização institucional que respondesse adequadamente ao desafio representado pela sociedade brasileira, com seus costumes e formas de sociabilidade próprios, aos quais a constituição de 1891 e o sistema político sobre ela edificado são percebidos como inadequados. De outro, as transformações sociais, políticas, culturais e tecnológicas dos países centrais permitem entrever o surgimento de uma nova fase histórica, ou, para usar a expressão de Marcelo Jasmin (2007, p. 232), de uma “nova modernidade”. À percepção dessa descontinuidade temporal corresponderia um novo horizonte de voluntarismo político, permitindo uma reforma do Estado que o adequasse tanto às particularidades locais quanto às mudanças temporais.
Em pensadores autoritários, como Azevedo Amaral e Francisco Campos, um acesso supostamente privilegiado à “realidade”, afirmado polemicamente contra o “idealismo” das ideologias políticas liberais, transfigura-se, pelo mimetismo da nação que o texto constitucional efetua, em prescrições sobre a organização política (Jasmin, 2007, p. 238). Nesse tipo de esquema retórico, a letra da lei, ao mesmo tempo, representa, consagra e realiza o espírito do lugar, do povo e da época. A fundamentação teórica, em ambos os casos, envolve uma apropriação seletiva e criativa de teorias sociais e políticas formuladas nos países centrais (o bergsonismo, a noção soreliana de mito e o pragmatismo norte-americano), que são adaptados à “realidade” à qual se aplicam.
Quando se estuda a linguagem política brasileira dos anos 1930, é preciso ter cautela ao catalogar autores e textos em categorias estanques e, sobretudo, abrir mão do pressuposto de que a recepção de tendências políticas estrangeiras obedeceria, aqui, a sua lógica de interação com suas concorrentes no seu local de origem. Na interpretação de Cassimiro (2025), o que se verifica é que, na conjuntura anterior ao Estado Novo, há uma fronteira muito tênue entre as posições do laicato católico, de intelectuais associados à Ação Integralista Brasileira, e de autores, como Otávio de Faria, que, sem aderir totalmente a nenhum dos dois grupos, identificam no fascismo italiano um modelo possível de ação no cenário político brasileiro. Para aquilatar a convergência de tendências a princípio rivais num conceito de “revolução como reação”, o autor examina um conjunto de textos curtos de intervenção em periódicos associados ao laicato católico, “lances” jogados numa arena pública de discussão na qual o tempo mais acelerado da formulação de proposições e respostas permite uma observação mais palpável da valência dos conceitos e das inflexões que adquirem à medida que são mobilizados de formas inovadoras. Para o autor,
a adequada compreensão de certos autores e debates em seu contexto só é possível se partirmos de uma compreensão ‘híbrida’ de como as linguagens políticas são recepcionadas, apropriadas e reformuladas para dar conta dos problemas políticos colocados aos autores/atores (Cassimiro, 2025, p.7).
Se compreendo o argumento, quando fala em compreensão híbrida, Cassimiro reconhece uma necessária tensão entre análise semântica (desvendar qual seria o significado autêntico dos textos) e pragmática (compreender os efeitos pretendidos e alcançados das proposições dos autores – na linha skinneriana, inspirada por Wittgenstein, tendo em vista os “jogos de linguagem” nos quais estão inseridos). Além disso, há o problema, que requer um trabalho suplementar de mediação, da recepção de ideias num contexto diferente daquele de sua formulação – noutras palavras, da “importação” de ideologias europeias em contexto periférico, ou, conforme denominação mais atual, no Sul Global. Em artigo anterior, Cassimiro (2018, p. 157) afirma, sobre o estudo de expressões do pensamento político brasileiro que recepcionaram o fascismo europeu, que “o exercício mais fecundo nos parece ser procurar como a presença de determinadas linguagens políticas articulam-se e modificam concepções centrais para a compreensão dos conceitos políticos modernos”.
Neste artigo, analiso textos de Alceu Amoroso Lima, Sérgio Buarque de Holanda e Otávio de Faria. Sem abandonar inteiramente a abordagem “internalista” e semântica, procuro acompanhar de perto sua dimensão performativa e dialógica, compreendendo a interação entre as suas diferentes proposições, a mobilização de conceitos, tópicas e argumentos como um jogo de lances no debate público. Busco atentar também para a armadura simbólica que dá corpo às intervenções e para as formas como recorrem a artefatos culturais sem inscrição ostensiva no “político”, pois entendo que elementos simbólicos funcionam simultaneamente nos textos como ferramentas de disputa política e elementos constitutivos de agendas e visões de mundo. A meta da pesquisa é um entendimento integrado da produção desses autores, que conjuga a intervenção política com o “literário” e o “cultural” de maneiras mais do que incidentais.
REVISITANDO A JEUNESSE DORÉE
Num estudo pioneiro sobre a história das ideias políticas no Brasil, Alberto Guerreiro Ramos (1955), resenhando causticamente obras de Alceu Amoroso Lima, Otávio de Faria e Afonso Arinos de Melo Franco, aplicou a esses autores o sugestivo e divertido rótulo de jeunesse dorée – com o qual, na verdade, eles mesmos se identificavam (ver Lima, 1973, p. 229). Embora a caracterização tenha, como observaria Wanderley Guilherme dos Santos (2017, p. 75 [1970]), seu tanto de “polêmica e fácil”, penso que vale relembrar o que escreveu o sociólogo baiano, porque seu argumento atinge um ponto que merece maior exploração. A caracterização da “visão de mundo dorée” depende, em última análise, de uma atribuição da produção ideológica ao lugar social de sua formulação:
por sua própria condição existencial [i.e. abastança, formação cultural considerável e falta de convívio com a realidade social concreta], esses intelectuais são levados a um certo esteticismo diante de si mesmos e da vida, tentando a perfeição interior pela autoanálise, pelo esclarecimento, pelo exercício do domínio da vontade e, além disto, a uma concepção do homem e da sociedade, em termos preponderantemente psicológicos (Ramos, 1955, p. 102).
Na visão de Ramos, o ideólogo doré pensa como pensa porque sua vivência do mundo está centrada numa “‘cultura’” (entre aspas no original) de tipo “ocioso e extravagante”, formada “quase exclusivamente pela leitura”. As fricções decorrentes das mudanças sociais, que dão razão a uma disposição geralmente angustiada, são codificadas, na interpretação da realidade, em termos de extravio mental, a ser remediado com um receituário basicamente espiritual – recristianização, primado das elites letradas, melhoria do caráter nacional (Ramos, 1955, p. 102).5
Alberto Torres aparece, na caracterização da mentalidade dorée, como contraexemplo de pensador político mais “objetivo” (Ramos, 1955, p. 103). De fato, em autores como ele, não encontramos a mesma visão da história que privilegia exclusivamente o confronto entre as aspirações espirituais da individualidade e um mundo degenerado. Ainda assim, a oposição merece ser matizada, inclusive no caso de Alberto Torres, que não é estranho à interpretação da desorganização nacional como resultado de uma elite política intelectualmente extraviada por fantasmagorias ideológicas. Numa passagem do primeiro ensaio do Problema nacional brasileiro, Torres escreve:
O romantismo e o demagogismo da França – credo de melancolia e de ceticismo, um, e simples anelo de entusiasmo reformador, o outro, foram, súbito, deslocados pelo realismo e pela confusão científica, filosófica e política espalhada pelo surto do evolucionismo e do positivismo e pelo estudo e crítica das teorias liberais. Ao positivismo, forte pela união, e pela integridade que sugere aos espíritos, as outras escolas não juntaram nenhuma fundação estável. Tudo isto deu às inteligências, quase em branco, do nosso país sem cultura, essa atitude de erudição vacilante [...], sempre de objeção em riste, em que ideias filosóficas e leis científicas, temas de artigos e discursos, confundem-se nas memórias com provérbios e noções populares, correntes como as moedas de troco, e fatos, coisas e dados concretos, baralham-se com anedotas, imagens e ficções (Torres, 1987, p. 33).
O trecho de Torres pode ser caracterizado como próximo do estilo de pensamento doré, tal como caracterizado por Ramos. Paradoxalmente, porém, ele pode ser lido na chave de uma crítica a essa mesma atitude, na medida em que apresenta um motivo que voltará a aparecer em páginas célebres do pensamento social e político brasileiro, o da “perdição pela leitura”. Em todos os casos (inclusive o de Ramos), a vulnerabilidade à influência da leitura, que afasta o indivíduo da realidade, é articulada como categoria de acusação preferencial.
Para ficar no período entreguerras, citemos a vituperação de Paulo Prado ao romantismo como disposição predominante da intelectualidade brasileira no Retrato do Brasil (1928), a denúncia do doré Otávio de Faria (1933, p. 170) à influência deformadora da leitura na formação do brasileiro – “o grande erro não é a falta de cultura primária, […] a desgraça não é a grande maioria não saber ler, mas haver uma minoria que só sabe ler” –, e a identificação, por Sérgio Buarque (1936, p. 130), de um “bovarismo nacional grotesco e sensaborão”. O destaque da literatura de ficção (e, com notável frequência, do romantismo ou de movimentos identificados como dele tributários, como o surrealismo) nesse diagnóstico merece exploração adicional. A esse respeito, a diferença entre as posições de Ramos e as demais parece estar no fato de que estas estão dispostas a disputar uma dimensão que a crítica à ideologia doré pretende reprimir como prejudicial à política e ao esforço de compreensão do mundo.
Recalcada por Guerreiro Ramos, a interface do político com formas de expressão artística e literária normalmente dele distinguidas e mesmo repelidas, nas quais aspectos simbólicos do discurso se exprimem sem maior pudor, era percebida com muito maior naturalidade por pensadores anteriores à Segunda Guerra Mundial – e como mais do que mera “ideologia”. O ambiente ideológico pós-1945 impôs uma desqualificação sistemática a discursos diretamente engajados na produção ou manipulação de formações simbólicas como modalidade de intervenção política – a ponto de esse tipo de expediente ter sido identificado como uma das causas, se não a principal, do êxito dos totalitarismos.6
Se, depois da guerra, o emprego da fantasia na linguagem política passa a ser visto como um elemento de desvirtuamento da esfera pública,7 na década de 30, diante da ascensão do fascismo e da falta de entusiasmo pelo liberalismo, ao contrário, multiplicavam-se tentativas de compreender, quando não de controlar a inscrição do simbólico na política. O recurso à cultura livresca pode ser classificado como esforço de distinção social e índice de uma visão estetizante da vida, como sugerido por Guerreiro Ramos. No entanto, essa compreensão precisa ter presente o enquadramento desse fenômeno num contexto de inovação ideológica, no qual artefatos simbólicos são instrumentais tanto na formulação das ideias como na criação de espaços e formas de atuação política, bem como topoi importantes na configuração eficaz da persona autoral dos intelectuais. Esse é o caso de noções como a de uma alternativa trágica entre política e letras e a da militância intelectual como “apostolado”.
No contexto em tela, esse florescimento relaciona-se com estímulos estéticos modernistas8 e com as práticas de sociabilidade e expressão de dois movimentos emergentes à época: o laicato católico e formas locais de recepção do fascismo, que se relacionam de forma polivalente. A seguir, analiso posições do movimento católico liderado por Alceu Amoroso Lima, destacando a produção de uma interface entre “política” e “cultura” que conformará as posições de Otávio de Faria e Sérgio Buarque de Holanda.
Para Otávio de Faria, o laicato católico configurou-se como uma espécie de aliado tático com o qual convinha dialogar, fosse por oportunidade pessoal, fosse por afinidade intelectual. Para Sérgio Buarque, a visão de mundo católica era uma adversária preferencial na formulação de proposições. Cada um teve no laicato um ponto de referência importante na constituição da sua persona de autor e agente na esfera pública. No caso de Sérgio, o inverso também é verdadeiro: Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, serviu-se dele para moldar sua imagem como intelectual-apóstolo da retomada do catolicismo no Brasil.9
LIBERDADE E DESORDEM N’A ORDEM
No Vaticano, o período correspondente à Primeira República brasileira foi de formulação de uma nova estratégia institucional para a Igreja. Em 1891, Leão XIII publicava a encíclica Rerum novarum, de enorme influência no catolicismo moderno. Nela, a Santa Sé manifestava, pela primeira vez, uma posição sistemática sobre as mudanças sociais resultantes da Revolução Industrial, concentrando-se na questão operária. O documento era ambíguo, na medida em que sua crítica à modernidade capitalista como época de primado da competição e do individualismo, valores anticristãos e, no limite, antissociais, prestava-se tanto à nostalgia antimoderna de correntes reacionárias como a incentivar o surgimento de movimentos de reivindicação para o melhoramento das condições de vida dos trabalhadores (Conway, 1997, p. 23-24).
Institucionalizando posições reacionárias surgidas a partir de 1789, o diagnóstico da Igreja sobre a modernidade do final do século XIX vê nos princípios do Estado liberal causas importantes da miséria do mundo. A separação entre Igreja e Estado, em particular, é identificada como uma causa de desagregação do corpo social. A noção de liberdade é diretamente atacada em termos que procuram resgatar o que seria a coesão social do mundo anterior à Reforma. O individualismo moderno, que tem em Lutero seu grande avatar, é identificado como forma corrompida da liberdade, que afasta o homem das verdades eternas de que a Igreja é a portadora terrena. Na encíclica Immortale Dei, de 1885, encontramos um repertório argumentativo que terá grande ressonância. O exercício da liberdade de consciência inaugurado com a Reforma é tomado como abertura para a exposição do intelecto a todo tipo de sedução extraviadora, corrompendo a sociedade. O “pernicioso e deplorável gosto de novidades que o século XVI viu nascer”, dizia o papa, “depois de primeiro haver transtornado a religião cristã, em breve, por um declive natural, passou à filosofia, e da filosofia a todos os graus da sociedade civil”. Adiante, articulava-se uma noção de liberdade oposta à do individualismo moderno: “a liberdade de pensar e publicar os próprios pensamentos, subtraída a toda regra, não é por si um bem de que a sociedade tenha que se felicitar; mas é antes a fonte e a origem de muitos males”. Elemento de perfeição do homem, a liberdade “deve aplicar-se ao que é verdadeiro e ao que é bom”; caso contrário, quando “a inteligência adere às opiniões falsas” e “a vontade escolhe o mal e a ele se apega”, as duas “decaem da sua dignidade nativa e se corrompem” (Leão XIII, s. d. [1885]).
O agnosticismo, a dúvida e a crítica como atitudes intelectuais, opostos à obediência ao dogma, são tomados como expressões de falta de vontade diretora, assim como seu prolongamento na vida pública, o pluralismo. Essa constelação de estilos de pensamento, vista em luz moral positiva na cultura moderna liberal e secular, será identificada como ausência de ordem e direção, estímulo poderoso para a dissolução dos vínculos sociais e entrega dos indivíduos pretensamente livres à perdição espiritual. Visões da sociedade de mercado como essencialmente antissocial e da modernidade como civilização “suicida” fundamentam o repertório da crítica cultural católica. Ainda que a Rerum Novarum vá temperar esse diagnóstico com uma visão menos unidimensional da história, o ataque veemente à liberdade, à curiosidade e à autonomia intelectual como esteios diabólicos da degeneração da sociedade será uma tônica das intervenções católicas na esfera pública. Falsamente fundamentado na noção liberal de soberania popular, de uma ordem política e social criada pelos homens e não por Deus, o liberalismo institui uma falsa civilização com um Estado fundado em falsos princípios de Direito (Koerner, 2020, p. 492).
Renunciando a tentativas de tomada direta do poder, os papas Leão XIII e Pio XI apostaram na restauração da autoridade espiritual como caminho para o retorno da ordem divina ao mundo, sendo a afirmação da família como célula básica da sociedade sob autoridade paterna na Rerum novarum central a essa reformulação das linhas de atuação da Igreja. Conforme observa Andrei Koerner (2020, p. 492), as encíclicas de Leão XIII “implicavam um ethos dos católicos para o governo de si mesmos e dos outros e uma forma de subjetivação política”, identificando como causa da crise da modernidade a cisão entre o mundo temporal e o espiritual. No contexto do papado Pio XI, em especial a partir da encíclica Quadragesimo Anno, de 1931, a doutrina do corporativismo torna-se o “ponto focal” da Igreja, que reconhece o papel de um Estado forte na criação de uma sociedade coesa e capaz de conciliar os antagonismos de classe decorrentes da urbanização e da industrialização, com a Igreja empenhada em produzir mudanças culturais de longo prazo de regeneração espiritual e conciliação da sociedade (Koerner, 2020 p. 502).
No Brasil, a recepção dessa mudança de rumos da Igreja era condicionada pela ausência de uma classe operária organizada, pelo ressentimento diante da derrota representada pela Constituição de 1891, de forte pendor laicista, e por um ambiente intelectual de aderência das camadas dominantes a visões de mundo anticlericais e liberais, o que propiciou a articulação de um movimento católico tendencialmente elitista e reacionário. A preocupação com a coesão e com o perigo representado pelas forças dissolventes da organização socioeconômica (a sociedade de mercado capitalista) e seu correlato político (a democracia liberal) não inclinam o movimento, a princípio, para nenhum partido ou tendência definida, mas, como escreverá um católico no segundo ano do governo Vargas, diante da alternativa entre o “partido da desordem” e o “partido da ordem”, cumpria sempre optar por este último (Torrend, 1932, p.30).
A partir da institucionalização do laicato católico, sob a liderança de Jackson de Figueiredo, e com a fundação do Centro Dom Vital e o primeiro Congresso Eucarístico Nacional, em 1922, a presença do catolicismo organizado na política brasileira entrou numa curva ascendente. Ainda que o movimento viesse a conquistar vitórias políticas importantes e exercer considerável influência no governo Vargas (sobretudo na política educacional), a estratégia de intervenção tinha como prioridade a criação de um sistema cultural católico a partir do qual se pudessem formar agentes orientados pelos princípios da fé. Como observa Pinheiro Filho (2007, p. 37),
[a] tomada direta do poder interessa menos que a garantia de que a organização do Estado e da sociedade se dê em obediência aos preceitos religiosos conforme a nova elite em preparação os entende, em todos os setores da vida. [A] reação católica implica a invenção de um lugar e de um modo de tomar posição inclusive nas questões nacionais que não se dirige diretamente aos concorrentes no mercado religioso (que não têm peso nesse momento, ou, ao menos, têm força menor que a anárquica devoção católica popular).
Com a morte de Jackson Figueiredo, em 1928, a liderança do laicato passa a Alceu Amoroso Lima, normalmente referido, à época, pelo pseudônimo Tristão de Athayde. Membro da elite carioca (à diferença de seu antecessor, sergipano e de classe média baixa). Alceu declara, ao assumir a editoria do órgão do movimento, a revista A Ordem, num editorial reveladoramente intitulado “Obedecendo”, que ela perderá o caráter político e que, adequando-se à sua própria personalidade, passará a um projeto mais orientado para a “cultura geral”, “visando mais a inteligência do que os acontecimentos” (Athayde, 1929a, p. 6). Sem que essa caracterização seja propriamente inadequada, o que ocorre é que A Ordem frequentará uma vasta gama de assuntos, com ênfase naqueles “culturais”, sem, contudo, deixar de publicar textos de reflexão abertamente política, produzindo uma “cultura” católica militante que é, ela própria, uma forma de projeto político, e que se construirá em torno da liderança carismática de Alceu/Tristão.
Essa operação na qual o político se transfigura em discurso sobre a cultura salta aos olhos na “conversão” composta com virtuosismo estilístico por Alceu, anunciada no primeiro número da revista sob sua direção. Trata-se de uma “carta aberta a Sérgio Buarque de Holanda”, que o autor intitulará “Adeus à disponibilidade” (Athayde, 1929b, p. 54). O texto mobiliza motivos e argumentos bastante representativos do ativismo católico de Alceu e de outros autores de A ordem, merecendo exame detido.
A escolha de Sérgio Buarque como adversário é retoricamente eficaz na medida em que, pela caracterização de Sérgio como esteta e cultor da liberdade de pensamento, Alceu plasma, por contraste, sua própria persona de intelectual-apóstolo. Colaboradores de A Ordem passarão a tratar Alceu com a deferência que se presta a um santo.10 O “adeus” cria, também, por efeito de dispositivos retóricos habilmente posicionados, um espaço para uma interlocução com setores culturais e políticos que uma postura mais agressiva interditaria. Sérgio representa um tipo de intelectual com formação cultural e trânsito em círculos artísticos vanguardistas, que, imagina-se, poderia aderir ao movimento, mas que, para isso, teria de renunciar a um estilo de vida individualista tipicamente encarnado pelo espírito anárquico das manifestações artísticas vanguardistas dentro e fora do Brasil, pela “eterna recusa aos compromissos” e pela “irresponsabilidade do diletantismo” (Athayde, 1929, p. 55).
Temos aqui uma instância do motivo católico do ódio à liberdade, que Alceu estiliza a partir do extenso cabedal crítico acumulado ao longo dos anos 1920, em contato com as expressões das vanguardas artísticas brasileiras e europeias. No texto em discussão, a liberdade aparece sob o aspecto em que se exprime na obra do escritor francês André Gide, que flerta com o cristianismo, mas, conforme o ensaio crítico de Sérgio Buarque sobre o escritor, publicado em 1925, “escolhe na doutrina do Evangelho ‘o que lhe agrada’”, vendo como “nocivas as interdições do Decálogo” (Holanda, 1996a, p. 172-173). É dessa “disponibilidade gidiana”11 identificada em Sérgio Buarque que Alceu se despede com alarde.12
Contudo, o “adeus” identificará, no próprio repertório estético de Sérgio, os elementos para a adesão à fé. Alceu dirá que Sérgio já teria mostrado possuir, “como raros, o verdadeiro sentido cristão da vida” (Athayde, 1929b, p. 56), mas estaria ainda “impregnado de cartesianismo e kantianismo”, de “ceticismo moderno”, de “individualismo absoluto”. “Separando o Espírito da Terra, [...] o homem dos nossos dias divinizou [...] o seu próprio espírito” e, tendo perdido “o sentido das hierarquias do real”, caminha para a “servidão” (Athayde, 1929b, p. 57). Mobilizando a tópica do sofrimento como etapa necessária à conversão, Alceu vê, no ensaio de Sérgio sobre Thomas Hardy, a compreensão do elemento trágico inerente à “Verdade”, e, citando-o, emenda: “Somente o caminho do Mal e a experiência da Dor podem nos transferir para um mundo mais elevado”. O fecho da carta: “Quem escreveu essas linhas [i. e., Sérgio] é que compreendeu [...] até onde vai a sombra da Cruz. E é por lá que nos encontraremos” (Athayde, 1929b, p. 59). Alceu despede-se da disponibilidade, da ilusória liberdade de consciência venerada pelo liberalismo, e encontra a ordem, a resolução, o espírito ativo e edificador do catolicismo.
A liberdade não é, aqui, apenas um conceito político entre tantos, mas o termo aglutinador de uma interpretação da modernidade como progressiva desorganização da sociedade, a partir do ceticismo, da dúvida como método, do espírito crítico. No fundo disso está o antropocentrismo moral, político e epistemológico denunciado como “autodivinização do homem”. Os mesmos motivos são articulados no conceito de “individualismo” de Jacques Maritain, construído a partir da distinção tomista entre “indivíduo” e “pessoa”. Em Três reformadores: Lutero, Descartes, Rousseau, livro que alcançaria grande influência em meios católicos brasileiros, Maritain (1925, p. 19) localiza “o surgimento do Eu” no “egocentrismo metafísico” de Lutero, que faz do “fundo incomunicável” de sua experiência de “criatura” o “centro de gravitação de todas as coisas”. Maritain identifica a origem do individualismo e da liberdade moderna no “livre exame” das Escrituras:
a reforma desenfreou o “eu” humano na ordem espiritual e religiosa, como a Renascença [...] desfreou o “eu” humano na ordem das atividades naturais e sensíveis. Depois que Lutero decidiu recusar a obediência ao Papa e romper com a comunhão da Igreja, seu “eu”, apesar de suas angústias interiores, que só aumentaram até o fim, ficou dali em diante acima de tudo. Toda regra exterior, toda “heteronomia”, como dirá Kant, torna-se desde então uma ofensa insuportável à sua “liberdade cristã” (Maritain, 1925, p. 20).13
Enquanto hereges anteriores partiam de um “erro dogmático”, de um “desvio da inteligência” que os levava a sustentar um sistema equivocado de crenças, a “doutrina” luterana não chega a ser um sistema, mas uma sucessão de teses formuladas para socorrer as inquietações de seu “eu”, um “transbordamento” da sua “individualidade”, um procedimento essencialmente “romântico”, que prenuncia Rousseau (Maritain, 1925, p. 20-21). A expressão máxima desse egocentrismo é o dogma da certeza da salvação, no qual o “eu” se tornou a finalidade da teologia (p. 22). Lutero é a primeira aparição da equiparação indevida, característica do mundo moderno, entre o indivíduo e a pessoa. No elenco de manifestações exemplares dessa confusão, encontramos o kantismo, o protestantismo, Nietzsche, Freud, o surrealismo e um “discípulo do sr. Gide que se contempla com doloroso fervor no espelho de sua gratuidade”, todos em busca de uma personalidade que não encontram (Maritain, 1925, p. 26-27)14.
O indivíduo, conceito também aplicável a outros animais e plantas, refere-se ao homem tomado enquanto unidade material finita que ocupa uma posição e tem uma quantidade determinada no mundo, uma parte do universo apartada de todas as outras, sendo o princípio da individuação um princípio de divisão. O conceito de pessoa refere-se a substâncias dotadas de espírito e que são, cada uma por si mesma, um mundo superior a toda ordem de corpos. O último conceito refere-se às “substâncias que, ao escolherem seu fim, são capazes de se determinar elas mesmas aos meios, e de introduzir no universo, pela sua liberdade, séries de eventos novos” (Maritain, 1925, p. 28). O santo é o homem que se eleva ao plano da personalidade por renunciar ao seu “eu” (Maritain, 1925, p. 37). O individualismo, traduzido na organização social, redunda na destruição da sociedade:
Que é o individualismo moderno? Um mal-entendido [...]: a exaltação da individualidade camuflada como personalidade, e o aviltamento correlato da verdadeira personalidade. Na ordem social, a cidade [cité] moderna sacrifica a pessoa ao indivíduo; ela dá ao indivíduo o sufrágio universal, a igualdade de direitos, a liberdade de opinião, e ela entrega a pessoa, isolada, nua, sem nenhuma armadura social que a sustente e proteja, a todos os poderes devoradores que ameaçam a vida da alma, às ações e reações impiedosas dos interesses e dos apetites em conflito, às exigências infinitas da matéria de fabricar e de utilizar. [...] É uma civilização homicida (Maritain, 1925, p. 29-30).15
O diagnóstico de Maritain sobre os efeitos funestos do individualismo será seguido de perto entre católicos brasileiros. Oscar Mendes, colaborador ocasional de A Ordem e publicista ativo em Minas Gerais, em artigo intitulado “O liberalismo no Brasil sob o ponto de vista católico” (1932), lembra como Lutero libertou o “homem-animal” que vive em nós levantando o “pavilhão vermelho do livre exame” motivado por seu “individualismo hipertrofiado”), denunciando o “erro funesto do liberalismo” (Mendes, 1932, p. 31). Ao não saber “aliar a liberdade à autoridade”, proclamando a precedência da primeira sobre a segunda, o liberalismo iria “envenenar toda a vida social, intelectual e religiosa da humanidade” (Mendes, 1932, p. 32).
Citando o influente O estúpido século, do escritor reacionário francês Léon Daudet, Mendes vitupera a “tese da liberdade absoluta”, “ramo fêmea” da Reforma, cujo “ramo macho” seria a Revolução Francesa. O pluralismo, crença ilógica em que “tudo é bom”, atingira uma preeminência ruinosa na vida brasileira. Sob a égide do regalismo (subordinação da Igreja ao monarca), a classe dirigente brasileira expusera-se à proliferação do credo liberal no seminário de Olinda e à penetração da Maçonaria, abrindo caminho para o desmonte dos mecanismos de coesão e direção espiritual da sociedade. A República entronizara o “liberalismo maçônico” com a constituição de 1891, que negava Deus, separava Igreja e Estado, proibia o ensino religioso e instituía o casamento civil, usurpando os direitos da maioria silenciosa de católicos no país. D. Vital, o deflagrador da Questão Religiosa, fora uma das poucas vozes a se levantarem contra esse quadro, “verdadeira personalidade” numa época de “indivíduos pecos” (Mendes, 1932, p. 40). Disposto a transigir com o vocabulário político liberal, dando-lhe um sentido radicalmente diverso, Mendes conclui o texto reivindicando, contra “todo e qualquer falso liberalismo, quer se vista de trajos de protestante, de espírita ou de científico,” o “nosso liberalismo” – o da liberdade da consciência católica majoritária, “que não contemporiza com o erro” (Mendes, 1932, p. 45). Na expectativa da nova Constituição, Mendes chama os católicos à “tarefa vigilante de evitar que, mais uma vez, nossos direitos sejam ludibriados, e nossas consciências amordaçadas” (Mendes, 1932, p. 44).
Evidentemente, o pensamento de autores católicos brasileiros não pode ser reduzido a uma recepção do pensamento de Maritain. A economia argumentativa do “Adeus” de Alceu retoma tópicas relacionadas ao ressentimento diante do liberalismo e da modernidade já longamente codificadas no repertório intelectual contrarrevolucionário, desenvolvido desde Bonald e de Maistre. Há uma pletora de motivos que se desenvolvem e articulam toda uma visão de mundo e uma forma de pensar a história a partir da experiência desesperadora da Revolução. O pensamento histórico de matriz iluminista organiza suas percepções dos acontecimentos a partir da crença na perfectibilidade do mundo social e cultural paralelo à realização dos poderes da razão humana, vendo na Revolução, com suas eventuais falhas empíricas, uma confirmação de seus pressupostos.
A tradição contrarrevolucionária está igualmente convencida da existência de um sentido na história, mas vê, em 1789, uma mensagem cifrada da Providência divina. Um poderoso fermento intelectual da reação é o escândalo diante da hybris prometeica do homem moderno, o qual se pretende, pelo poder de seu intelecto, um criador do mundo em que vive, inscrevendo, contra a natureza, novas e falsas origens no tempo e no mundo. Em vez de aquiescer às funções hierarquizadas prescritas por Deus, formulam-se inéditas reivindicações, lidas pela contrarrevolução como secessões da ordem natural da cidade dos homens (ver Gengembre, 1989, p. 14-16). Sem menosprezar a importância da frequentação de toda uma tradição intelectual reacionária pela direita brasileira desse período (ver Cassimiro, 2018; Koerner, 2020), penso que vale destacar a constante presença de Maritain nos escritos de Alceu e de seu entourage. Três reformadores parece exercer uma atração especial pelo fato de Maritain articular essa interpretação da história numa interface direta com a agenda cultural do momento, confrontando-se com a psicanálise e com a literatura de vanguarda e exprimindo uma visão pessimista sobre a cultura. As manifestações culturais são identificadas como sintomas de desorientação espiritual, espelhamento, na interioridade, da desintegração social do mundo moderno. Nessa apropriação, igualmente pertinente nos debates sobre o modernismo estético, sobrepõem-se e convergem modalidades de crítica estética, social e política, em linha com o perfil editorial de A ordem.
OTÁVIO DE FARIA: A REVOLUÇÃO CONTRA A REVOLUÇÃO
Herdeiro de uma grande fortuna de industriais fluminenses, Otávio de Faria formou-se no seio de uma elite que prezava a excelência intelectual. Cunhado de Alceu Amoroso Lima, foi membro, como aluno da Faculdade Nacional de Direito, do Centro Acadêmico de Estudos Jurídicos (Caju), que reuniu importantes figuras da intelectualidade fluminense, algumas que fariam carreira na política brasileira, como San Tiago Dantas. Egressos do Caju alcançariam proximidade, no período inicial do governo Vargas, com membros da facção radical dos “tenentes-civis”, a qual exerceria grande influência até o Estado Novo, como Oswaldo Aranha e Francisco Campos (ver Ribeiro, 2023). A análise da obra de Otávio de Faria revela aberta afinidade com os argumentos da direita católica. Colaborador de A Ordem desde 1927, (Cassimiro, 2018, p. 148), ele foi um dos primeiros, no Brasil, a realizar uma análise de fôlego do fenômeno político fascista no livro Maquiavel e o Brasil (1931, aqui citado como Faria, 1933). De estrutura heteróclita, o livro compreende três ensaios: uma interpretação e defesa da obra de Maquiavel, seguida de um “Intermezzo mussoliniano”, no qual analisa o fascismo italiano, e, por fim, uma análise de conjuntura sobre “O caso brasileiro”, que mescla interpretações histórico-sociais com proposições para a política brasileira.
A repercussão do livro foi imediata e geralmente entusiasmada, com inúmeras resenhas na imprensa e uma reedição apenas dois anos depois da primeira. Para além da novidade representada pela análise do fascismo e pela especulação em torno da sua viabilidade no Brasil, a idade do autor, vinte e três anos, causou sensação. Alceu Amoroso Lima escreveria, n’O Jornal, que o tom do livro de seu cunhado, “menino que apenas começa a sair da adolescência” tinha o “exagero natural de uma idade que ainda não conhece o senso das proporções”.16 Como já observou Cassimiro (2025), certas posições, especialmente o primado da Razão de Estado, criavam dificuldades para uma adesão plena a Maquiavel e o Brasil entre católicos. Manoel Lubambo levantará, em resenha publicada n’A Ordem, a restrição de que, a despeito de citar diretamente a interpretação de Maritain sobre a distinção indivíduo/pessoa, Faria confunde os dois conceitos, e sacrifica a “pessoa” ao “milhão”, colocando-se no polo oposto ao “fundo mesmo do catolicismo” (Lubambo, 1932, p. 232).
Em chave semelhante, Alceu observa que Faria incorre no erro de “subordinar Pedro a César”. Insistindo nos imperativos terrenos do poder e manifestando indiferença à autoridade espiritual à qual deveria se subordinar, a doutrina maquiaveliana de Faria cindia a “ordem natural” e a “ordem espiritual”, de modo a se prestar tanto à apropriação pela direita como pela esquerda, sendo precursora “tanto daqueles que o autor de Maquiavel e o Brasil defende como daqueles que ataca, tanto de Mussolini como de Stalin”. Contra “anarquia do Renascimento”, Maquiavel apelara para o “paganismo político”, para a “[l]ição de Roma, em vez de apelar para a lição da Idade Média, para o Cristianismo político”.17 Como vimos, não se trata de uma divergência superficial, mas de uma contradição com o núcleo da interpretação da modernidade que fundamenta a Doutrina Social da Igreja – vale lembrar que a resenha sai exatamente um mês depois da encíclica Non abbiamo bisogno, na qual Pio XI denuncia duramente o fascismo como regime baseado na “estadolatria pagã” [statolatria pagana] (Pio XI, s. d. [1931]), após Mussolini ter dissolvido a Juventude Católica italiana.
Interessam, aqui, os elementos que Otávio de Faria (1933, p. 125) destaca em sua adesão à releitura fascista da Revolução, na qual encontra a via para a regeneração social. No “Intermezzo mussoliniano”, ele identifica, na profissão de fé revolucionária de Mussolini, mesmo após seu afastamento do socialismo, a “suprema sedução do fascismo nascente”. Num país de grande difusão das ideias socialistas, onde grassava, portanto, o “preconceito das revoluções” (Faria, 1933, p. 124), Mussolini precisava transigir com o vocabulário revolucionário. Ao romper com o socialismo, lograva, porém, apagar a “ideia socialista”, substituindo-a pela sua própria personalidade, fazendo nascer do “Mussolini socialista” o “Mussolini puro, sem cor política definida, que foi o ponto de partida para o Mussolini fascista” (Faria, 1933, p.124). O indivíduo-Mussolini é aquele que consegue transformar a “ideia socialista” na “ideia fascista” por meio da força plástica de que é portador como agente histórico excepcional. Há, porém, além do indivíduo, o conceito transicional de “Revolução”:
A multidão que o olha, que assiste à formação do novo partido, que adere à nova ordem com o entusiasmo dos grandes momentos históricos, fixa [...] o cartaz que vê pregado no chefe e no programa que cada um dos membros do novo partido proclama sem medo. Tudo fala uma mesma língua e de todas as bocas sai um mesmo grito: – nós somos a Revolução (Faria, 1933, p. 125).
A Revolução aparece aqui como um mito sem conteúdo fixo, passível de manipulação por um líder carismático. A virtude de Mussolini está na sua capacidade de transformismo, de “falar várias línguas conforme o interlocutor”. O êxito do fascismo está em ter sabido converter o vocabulário e o imaginário revolucionários em favor de objetivos regeneradores, não antissociais (como no liberalismo e no comunismo). Diante de um mundo moderno “doente de uma paixão incurável pela revolução”, o “único meio de vencer” seria “fazer revolução”. Aqui, acenando aos católicos, Faria cita em seu apoio uma carta em que Jackson de Figueiredo afirma a necessidade de “métodos revolucionários” para curar o Brasil da penetração de “princípios revolucionários agnósticos e ateizantes” (Faria, 1933, p. 126). A citação é estratégica para autorizar a crítica que se segue ao tradicionalismo católico:
Na corrente de pensamento de Joseph de Maistre, de De Bonald, de Maurras, [o fascismo] ensinou a revolução como meio de vencer a revolução. Se uma parte da nação se coloca fora da lei, no puro terreno da força, não cabe ao resto da nação ficar de braços cruzados ou tomar medidas ineficazes. Nem mesmo orar apenas pela salvação da nação. Impõe-se-lhe, ao contrário colocar-se também no puro terreno da força e restabelecer a ordem, servindo-se das armas que são então as únicas capazes de conseguir tais fins. É a revolução contra a revolução (simultaneidade – porque a contrarrevolução não é senão a revolução depois da revolução, quando já é tarde no mais das vezes) (Faria, 1933, p. 126-127).
Aproximando-o, no plano dos fins, da Reação, Faria apresenta o fascismo como solução para a ineficácia da intransigência como método da contrarrevolução, resolvendo um impasse histórico das direitas. Num primeiro momento, o raciocínio não convence. Na resenha já citada, Alceu fica particularmente incomodado com a defesa da “revolução contra a revolução” por Faria. Ela incorre no erro de crer na factibilidade de uma ordem política a partir da vontade humana, ou seja, no “liberalismo metafísico e religioso” que está na raiz dos “males do liberalismo na ordem política”, que “não são autônomos dessa ordem de ação e sim derivados” daquele. Apesar de ver o livro como filosoficamente indefinido e logicamente inconsistente, Alceu elogia seu senso de revolta e seu espírito de ação (em contraste, escreve, com a “dúvida” que marcara a sua própria formação), sua recusa ao “conformismo burguês”, que acredita na possibilidade de uma solução intermediária entre “revolução e revolta”, isto é, entre “os que combatem Deus e os que combatem por Deus”:
Graças a Deus, é justamente contra esse mal tremendo do statu quo como remédio contra a revolução (foi no início do século passado a medicina de Metternich [...] em oposição à medicina de Joseph de Maistre ou de Bonald, que, (como nós “contra” 1917) só viam a salvação “contra 1789” na volta à ordem cristã integral. O lema íntimo de Metternich era: “não se mexer” [...]), é contra esse “imobilismo social” que se joga também o autor de Maquiavel e o Brasil.18
Em movimento retórico simétrico àquele com que Faria corteja a sensibilidade reacionária, Alceu aplaude a disposição ativa do jovem autor, tentando devolvê-lo às hostes contrarrevolucionárias da “revolta” contra a “revolução”. Alceu identifica em Faria um “porta-voz das novas elites que estão surgindo”, e faz uma observação que pode parecer, num primeiro momento, mero floreio literário, mas que é reveladora da disposição de Alceu diante das ideias e da capacidade do cunhado: Maquiavel e o Brasil seria “o poema em prosa de uma nova geração cuja arte expressiva, por excelência, não é mais a subjetividade da poesia, mas sim a objetividade da técnica do cinema”19. Estaríamos diante da avaliação de que o livro seria fruto de um impulso artístico mal direcionado? Talvez, em alguma medida.
Contudo, creio que, ao falar de “poema em prosa” e no domínio de técnicas expressivas mais modernas, Alceu anuncia o potencial que o cunhado teria para ser uma espécie de poliglota ideológico à Mussolini, capaz de comunicar os valores católicos na linguagem da juventude. Com seu “poema em prosa”, talvez Faria pudesse ajudar a conquistar a adesão de porções maiores da juventude letrada para o projeto católico. Alceu não estava indiferente, portanto, à sedução que formações simbólicas podiam exercer na conquista de simpatias políticas, e nem à necessidade da sua articulação numa forma inovadora (daí a referência ao cinema); apenas considera os conteúdos mobilizados incompatíveis com os preceitos e finalidades da política católica.
Houve, n’A Ordem, quem apelasse a Alceu para reavaliar suas críticas. Notavelmente, isso ocorreu em uma “Saudação” a Tristão de Athayde, em que José Lourenço de Oliveira se referia à “auréola” do líder).20 Em tom apaixonado, referindo-se à crítica de Alceu, Oliveira diz que o Maquiavel de Otávio de Faria é “a voz de nossa geração. Se apenas, entre todos, fala um Otávio de Faria, ele fala por todos, porque todos sentimos o que ele fala”. Passa, então, a falar, naquela “disponibilidade alarmante”, ao “estado exaltado de receptividade” da juventude que Alceu denunciava na sua carta a Sérgio Buarque de Holanda (Oliveira, 1933, p. 36, grifos do original).
O apelo foi, em parte, atendido. Em 1935, Alceu publica n’A Ordem uma série de artigos em que considera a compatibilidade entre catolicismo e integralismo. No segundo deles, que trata da necessidade da “Preeminência da consciência católica sobre a consciência política” (Athayde, 1935, p. 5), Alceu manifesta preocupação com a teologia política do Integralismo, que podia terminar absorvendo o catolicismo. O “espiritualismo”, a “filosofia de vida” do integralismo, “quer fazer uma espécie de frente única em torno da ideia e do sentimento de Deus”, incluindo “desde o espiritismo ao catolicismo” (Athayde, 1935, p. 6-7). Do ponto de vista dos princípios, tal “liberalismo religioso” era “falso e perigoso”, mas poderia ser “perfeitamente defensável” como “movimento de aliança temporária contra males mais graves e iminentes”. Havia, também, o perigo de, espiritualmente, o Integralismo “substituir-se lentamente ao Catolicismo”, advindo da disposição heroica do Integralismo, “condimento nietzschiano” no qual, admite Alceu, está uma das virtudes do movimento, aliás partilhada, segundo ele, com o Comunismo.
Esse mesmo heroísmo poderia voltar-se contra o catolicismo devido à intransigência com que o Integralismo rejeitava o conceito de Liberdade, que a Doutrina Social Católica tem como ideal, desde que subordinado à Autoridade. Para o Integralismo, a valorização da “Pessoa Humana” pelo catolicismo poderia passar por “neo-individualismo”, e a Ação Católica por “inoperante e efeminada”. A oposição católica aos métodos violentos na política seria mais uma manifestação de “covardia e comodismo burguês”, e as restrições da Igreja ao autoritarismo estatal eram vistas com um “desdém” que, pouco a pouco, poderiam levar à confusão doutrinária já praticada por Otávio de Faria (o primado do político). Desde que fosse afastado o perigo do “regalismo” e preservada a “Liberdade da Igreja” (Athayde, 1935, p. 9-10), a precedência da “ordem sobrenatural” sobre a natural, do “corpo místico do Cristo” sobre o “corpo político”, era válida a adesão a um partido político como o integralista (Athayde, 1935, p. 11-12). Tudo considerado, Alceu permitia-se proclamar “a mais viva simpatia” pelo integralismo e pelo fascismo, por “toda essa moderna reação das direitas, que mostraram a não inevitabilidade do socialismo” (Athayde, 1935, p. 13).
MAQUIAVEL E A UNIVERSIDADE
A propósito da convergência entre catolicismo, fascismo e o governo Vargas, vale lembrar a turbulenta passagem de Otávio de Faria pela direção da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade do Distrito Federal (UDF), no começo de 1936. Mesmo que breve e malfadada, ela ensejou uma articulação discursiva desse alinhamento tático. A gestão coincidiu com a igualmente tempestuosa passagem do fisiologista Miguel Ozório de Almeida pela reitoria da instituição. O caso foi relatado por ambos numa estridente série de artigos publicados n’O Jornal de Assis Chateaubriand, entre 21 e 31 de março de 1936.
Nos anos 1930, o tema da educação assumia, de modo inédito na história brasileira, um prestígio e uma importância existenciais, a ponto de Francisco Campos, que ocuparia diversos cargos-chave ao longo do governo Vargas, ter declarado, pouco depois da instauração do Estado Novo, que a educação era o meio de “dar à vida um sentido e um fim” e “orientação a todas as atividades sociais” da nação (Campos, 2001, p. 58). Com o levante comunista de 1935, o secretário de educação do Distrito Federal, Anísio Teixeira, o reitor da Universidade Afrânio Peixoto (outro cunhado de Otávio de Faria) e vários professores foram exonerados, alguns presos. Sob pressão do governo federal (e suspeita de envolvimento no levante, que ainda o levaria à prisão pouco depois), o governador Pedro Ernesto nomeou Francisco Campos para a Secretaria. Para a reitoria da UDF, Campos nomeou Miguel Ozório de Almeida, cientista de renome. Campos nomeou, ainda, Otávio de Faria, então com 27 anos, como diretor da Faculdade de Filosofia e Letras, cargo que acumularia com a direção interina da Faculdade de Economia e Direito.
O Jornal noticia a posse de ambos em 30 de dezembro de 1935, transcrevendo resumos dos discursos. Ozório, protocolar, afirmava não ter um programa definido, sendo mesmo avesso a programas. Desejava permitir o funcionamento normal da Universidade, com autonomia do corpo docente e discente. Faria fez um discurso grandiloquente, no qual denunciava o utilitarismo da “civilização americana” e da “civilização marxista”, ambas de orientação anti-humanista, avessas à cultura e aos valores espirituais “sem os quais o homem rui por terra desorganizado e descentralizado, entregue à anarquia”.21
A UDF e, de modo mais amplo, a política educacional do Brasil, era objeto da disputa entre duas forças antagônicas: o grupo da Escola Nova, capitaneado por Anísio Teixeira, de um lado, e pedagogos católicos alinhados ao Centro Dom Vital, de outro. Com os acontecimentos de novembro, os católicos parecem ter visto uma oportunidade para avançar sobre a UDF, que vinha sendo montada a partir da liderança de Anísio Teixeira, com projeto pedagógico inspirado pela filosofia da educação de John Dewey. Anísio era alvo de ataques sistemáticos dos católicos. Um artigo não assinado d’A Ordem ataca sua formação “yankee” em Columbia, de cunho materialista, progressista, pragmático, laicizante e “falsamente liberal” (já vimos acima o sentido atribuído pela reação católica ao “verdadeiro liberalismo”). Dewey é denominado “grão-mestre de toda essa nova filosofia pedagógica burguesa”. Fingindo combater o “absolutismo pedagógico do Estado”, o pensamento de Teixeira na verdade era sua expressão máxima, pois, vedando toda “orientação sectária ou unilateral” na educação, terminava por “impor uma doutrina aberta” (A Ordem, 1933, p. 164-167; grifo do original).22
Na altura da remoção de Anísio, Campos, a despeito de ter inicialmente formulado seu próprio pensamento pedagógico sob a influência de Dewey (ver Campos, 1940), aproximava-se das lideranças católicas, Alceu à frente, por nelas ver uma ideologia com amplo repertório e sólido amparo institucional, capaz de fundamentar a política do Estado varguista, que se encaminhava a passos largos para uma inflexão autoritária (ver Schwartzman; Bomeny; Costa, 2000, p. 69-84; para informações mais detalhadas sobre a UDF, ver Galvão, 2021). A nomeação de Faria, o modo como ela malogrou e sua repercussão dão claros indícios de que ele havia sido alistado nesse projeto e, a despeito da sua inexperiência e inabilidade, demonstra um caso talvez isolado, mas notável, de resistência institucional da Universidade à sua instrumentalização por Campos e pelos católicos.
Instalado no cargo de reitor, Miguel Ozório passou a solicitar a Faria que entregasse os planos pedagógicos da Faculdade de Filosofia e Direito. Faria manifestou, então, a intenção de, na impossibilidade de rescindir seus contratos, reduzir drasticamente a carga de ensino regular dos professores franceses contratados por Anísio Teixeira para atuar na Universidade (que estavam ainda a caminho do Rio de Janeiro). A Francisco Campos (que transmitia recados de Faria a Ozório), Faria escrevera que os franceses eram “perigosos, não por eles próprios, pois não sei se tanto valem, mas pela nossa geral falta de cultura e pela desordem [de] ideias reinante entre nós”, e que “[e]ntregar os alunos da Escola a esses professores seria um compromisso com o antigo espírito da Universidade”.23 Quem transcreve o conteúdo das conversas é Ozório (nunca desmentido no essencial das suas revelações pelas outras partes da querela), que se compraz em publicizar a deferência com que Campos trata o jovem Faria, subordinado funcional de ambos. Sempre insinuando ter o apoio irrestrito de Campos, Faria escreve uma sequência de cartas a Ozório (que depois as publicaria quase na íntegra) dando suas razões para o afastamento pelo menos parcial dos franceses das atividades docentes. Numa delas, lemos:
hoje já não se permite mais a ninguém a ingenuidade de acreditar que os professores de geografia ensinem geografia, e os de literatura só literatura, mesmo sendo eles franceses e mesmo não querendo influir fora da sua zona própria. Hoje já não temos mais o direito de ignorar que todas essas coisas se prendem e que as menores frases, contêm afirmações decisivas, capazes de desorientar ou de salvar”.24
Ozório não cedeu. Afirmando o reconhecido mérito acadêmico dos professores contratados (argumento que será desmerecido na resposta de Faria como culto liberal aos “medalhões”) e a liberdade de pensamento, concedeu a possibilidade de contratação de professores assistentes “explicadores” que tornassem seu ensino mais acessível. Passou, também, a pedir a Campos a exoneração de Faria. Quando, esgotado o diálogo com Campos e Faria, Ozório decidiu retirar de Faria a direção interina da Faculdade de Economia e Direito e suspendê-lo por 15 dias da de Filosofia e Letras, Campos, que nunca havia deixado de ser o reitor efetivo, voltou ao cargo, destituindo Ozório do posto de reitor em exercício e devolvendo-o ao seu cargo efetivo de vice-reitor, ao qual Ozório, então, renunciou. Talvez por ter perdido credibilidade diante da exibição de falta de traquejo no conflito com o reitor, talvez pelo desgaste psicológico da experiência,25 Faria – a quem Campos prestou solidariedade e ofereceu o cargo de volta em carta aberta n’O Jornal impressa, em 24 de março26 – pediu exoneração alegando motivos médicos e não voltou mais à UDF. No lugar de Ozório, Campos instalou Afonso Penna Jr., colaborador de A Ordem e autor do epitáfio de Jackson de Figueiredo. Na direção da Faculdade de Filosofia, Penna Jr. instalou Prudente de Morais Neto, intelectual de posições geralmente simpáticas ao liberalismo.27 Em maio, Prudente nomearia seu amigo Sérgio Buarque de Holanda para uma das cadeiras de assistente (ou “explicador”) nascidas da querela entre Ozório e Faria.
Convém examinar as razões com que Faria respondeu à acusação que Ozório lhe lançou, de instrumentalizar politicamente a universidade, criando uma “escola fascista”. A linha geral da argumentação é intrincada mas busca certa coerência, e exprime um alinhamento com a coalizão formada pelo governo, intelectuais integralistas e fascistas que se formava com o malogro do levante comunista. Nos artigos em que responde a Ozório, Faria sustenta que a Universidade é uma instituição política, pois precisa ter a direção reclamada pelos católicos e por Campos, direção essa que ele pretendera exercer, encontrando, porém, a resistência de Ozório. O então reitor teria uma concepção pedagógica “ingênua e carcomida”, além de alheia às diretrizes educacionais do governo, proclamadas pelo seu superior hierárquico, Francisco Campos. Ozório procederia, então, como se a Universidade lhe tivesse sido dada como um “presente”.
A principal fragilidade do raciocínio está no desencontro entre a admitida necessidade de neutralizar a influência dos franceses, cujas orientações díspares poderiam causar confusão entre os alunos, mais do que aliciá-los a alguma doutrina específica, e a alegada preocupação com a incapacidade que os alunos teriam de compreender as lições de cada um deles. De todo modo, a sua gestão não estaria empenhada em fazer da Faculdade uma “escola fascista”, o que nem seria possível, a despeito de sua “posição pessoal” favorável ao fascismo, que nada tinha a ver com sua posição na Universidade, pois não existia, naquele momento, regime fascista no país. Faria defende uma pedagogia de oposição militante à liberdade de pensamento, princípio caduco, representativo do século XIX, “no que ele teve de mais fraco”, isto é, nos “preceitos cientificistas e antipolíticos” e na sua “obsessão de liberalismo”28 [i. e., com a liberdade como valor supremo]. Dar direção política alinhada com o governo à Faculdade era cumprir o dever imposto pelo cargo.
Ao contrário de investidas reacionárias na política educacional em tempos mais recentes, o maior receio de Faria não dizia respeito à doutrinação em favor de determinado partido, mas, diante do suposto despreparo do alunato, ao pluralismo – como vimos, um alvo frequente da retórica católica, sempre angustiada com a “disponibilidade” e “exaltada receptividade” da juventude. Querer proteger a Universidade de qualquer direção política e espiritual substantiva, permitindo que cada docente fizesse “como bem entendesse”, seria, aí sim, uma apropriação indevida da instituição por crenças pessoais. Faria caíra, mas, ciente de que seu modo de pensar era o ascendente na capital federal, aproveitou a ocasião para citar a conferência sobre “A educação e o comunismo”, proferida havia poucos dias por Alceu Amoroso Lima e coberta com alarde pel’O Jornal: “A pedagogia é dirigida, ou não é pedagogia”.29
SÉRGIO BUARQUE: A REVOLUÇÃO EM RITMO LENTO
Na primeira edição de Raízes do Brasil, o liberalismo e a democracia são objeto de ataques, quando não de chacota, a partir de um ponto de vista marcadamente cético da “ideologia do progresso”, o que tem levado comentadores a considerar a possibilidade de que Sérgio Buarque fosse simpático ao fascismo, ou a pelo menos algumas de suas teses (ver Mata, 2016). Um exame do livro à luz do repertório argumentativo e simbólico do fascismo e da reação católica cria algumas dificuldades para esse tipo de interpretação.
A direita católica não chega a ser nomeada no livro, mas é claramente o alvo de uma sucessão de ataques contundentes que não escapariam (e não escaparam) ao leitor da época.30 No primeiro capítulo, a escolástica (recuperada por Maritain, tornara-se a base do pensamento político da renovação católica), com sua “grandiosa concepção hierárquica da sociedade”, é tida por antinatural, uma “paixão de professores”, equivocada desde o fundamento, pois empenhada em “disfarçar” o “antagonismo entre Espírito e Vida” (Holanda, 1936, p. 9) – divergência importante sublinhada, como vimos, no “Adeus à disponibilidade”. A concepção hierárquica da sociedade, sempre defendida pelos católicos, que tomam a obediência por valor social básico, é tida por forma de organização “caduca e impraticável” (Holanda, 1936, p. 15).
Se formos ao famoso capítulo sobre o “Homem cordial”, encontraremos uma rejeição dos pressupostos da Doutrina Social da Igreja e um ataque direto à pedagogia apregoada por Alceu Amoroso Lima e seus aliados, no qual Sérgio Buarque se socorrerá de um pedagogo da escola de Dewey, Knight Dunlap. O escopo do argumento espelha o programa da Rerum Novarum, refutando, porém, as prescrições papais. “O Estado”, começa o texto, “ao contrário do que pretendem alguns teóricos, não constitui uma ampliação do círculo familiar”, havendo “descontinuidade e oposição” entre Estado e Família (Holanda, 1936, p. 93). Na seção “A família e o Estado”, da Rerum Novarum, Leão XIII denomina a família “a sociedade doméstica, sociedade muito pequena certamente, mas real e anterior a toda a sociedade civil”, com “prioridade lógica” sobre a sociedade civil, de modo que, “se os indivíduos e as famílias, entrando na sociedade, nela achassem, em vez de apoio, um obstáculo, em vez de proteção, uma diminuição dos seus direitos, dentro em pouco a sociedade seria mais para se evitar do que para se procurar” (Leão XIII, s. d. [1891]).
Esse mesmo ponto de vista é afirmado, amparando-se na autoridade de um autor da “ciência etnológica contemporânea”, além, é claro, da de Tomás de Aquino, no tratado político que Tristão de Athayde publica em 1931 (Athayde, 1932, p. 63, ss). A crença na continuidade entre Estado e família é denominada, por Sérgio Buarque, um “prejuízo romântico”. O ataque é grave, pois o “romantismo”, como vimos na crítica de Maritain a Lutero, é um conceito de valor profundamente negativo na visão de mundo do tradicionalismo católico. Para Maritain, o “romantismo” de Lutero estava em construir toda uma teologia em função da disposição momentânea do “Eu”, definição aproximada da que Carl Schmitt (1986), autor frequentado e parafraseado por Sérgio Buarque em Raízes, faz do “romantismo político” como elaboração de posições políticas a partir da interação livre da subjetividade com estímulos estéticos.
Ao identificar na Família a origem do Estado, no lugar de fazer uma sólida avaliação política, Leão XIII cedera à miragem nostálgica de um círculo familiar originário inviável no mundo moderno. Do mesmo modo, a idealização da Idade Média apelava para a sensibilidade de gabinete dos “professores” apaixonados pela escolástica mencionados no capítulo I, “Fronteiras da Europa”. É o que se conclui da argumentação subsequente, quando Sérgio Buarque se empenha em demonstrar a despersonalização das relações na sociedade industrial, transformação que irá solicitar um novo paradigma pedagógico, no qual a influência diretora da família deve ser substituída por um processo de aprendizagem centrado na preparação da criança para a ação autônoma. Acompanhando Knight Dunlap, um dos “pedagogos mais venerados dos nossos dias”, Sérgio defende, em choque direto contra a “pedagogia dirigida” defendida por Alceu Amoroso Lima e Otávio de Faria, que
a obediência, um dos princípios básicos da velha educação, só deve ser estimulada na medida em que possa constituir uma adoção razoável de opiniões e regras que a própria criança reconheça como formuladas por adultos que tenham experiencia nos terrenos sociais em que ingressa (Holanda, 1936, p. 97).
A criança deve mesmo ser treinada para desobedecer quando os comandos dos pais se tornam falhos (Holanda, 1936, p. 97). Sobre os “âmbitos familiares excessivamente estreitos e exigentes”, lemos que são “verdadeiras escolas de inadaptados e até de psicopatas” (Holanda, 1936, p. 98). No mesmo capítulo, a caracterização do sentimento religioso mais autêntico na história brasileira ressalta o caráter “democrático”, anárquico e sensualista do catolicismo popular.
Já o fascismo, especialmente suas emulações brasileiras, será tratado com ainda menor reverência. Em sua versão italiana, Sérgio Buarque lembra que ele “pretende compor-se dos elementos vitais das doutrinas que repele em muitos dos seus aspectos; nisso está um dos títulos de orgulho prediletos dos criadores do regime” (Holanda, 1936, p. 159). Considerando a qualificação de Otávio de Faria como “um dos adeptos mais sinceros do fascismo” (Holanda, 1936, p. 173), é difícil imaginar que essa frase não se refira à exposição que Faria faz da doutrina do partido de Mussolini, citando o teórico fascista Alfredo Rocco. A citação longa é compensadora:
[O] Estado fascista contém em si os elementos de todas as outras concepções do Estado; não como nessas, de modo unilateral – consequentemente errado – mas de maneira integral – portanto verdadeira. O Estado fascista contém em si o Estado liberal – e supera-o; contém porque se serve da liberdade quando é útil; supera porque a refreia quando prejudicial. O Estado fascista contém a democracia – e supera-a; contém porque faz com que o povo participe da vida do Estado tanto quanto é necessário; supera porque tem em mão a possibilidade de entregar a decisão dos problemas essenciais da vida do Estado àqueles que são capazes de compreendê-los, colocando- se acima da consideração dos interesses particulares dos indivíduos. Por fim o Estado fascista contém o socialismo – e supera-o; contém porque quer como ele realizar a justiça social; supera porque não consente que essa justiça seja conseguida pelo embate brutal das forças sociais e porque não crê que, para realizá-las, seja necessário um mastodôntico e complicado sistema de produção coletiva que acabaria por suprimir qualquer espírito de iniciativa e por pôr de lado toda a utilidade do processo produtivo (Rocco, citado por Faria, 1933, p.123-124).
Sérgio Buarque não se deixa impressionar por esse tom triunfalista, denunciando, contra a pretensão fascista de haver “superado” a modernidade por meio da reorganização corporativista do Estado totalitário, a procedência de seu ímpeto, que manifestaria um desejo de “dar um sentido e um fundamento” a “reivindicações materiais que, em verdade, lhe servem de base”. Desse modo, a despeito de toda a sua parafernália teológico-política, o fascismo ainda operaria no quadro da política moderna, não a tendo superado, e sim realizando a sua “negação disciplinada” (Holanda, 1936, p. 159). A antítese entre Maquiavel (que Otávio de Faria retrata como proponente do totalitarismo avant la lettre) e Rousseau (seu grande inimigo teórico, segundo Faria), ainda estaria dentro dos limites da “doutrina do poder” (isto é, da filosofia política desencantada da modernidade), sendo a “superação da doutrina democrática” possível apenas a partir da emergência de um terceiro termo resultante da antítese entre o “impersonalismo”, aqui equiparado ao liberalismo, e o “caudilhismo”, isto é, o autoritarismo, incluindo o fascismo (Holanda, 1936, p. 149-150).
O fascismo brasileiro, porém, estaria muito aquém desse grande impasse histórico-universal, pois, no caso do integralismo, teria a aparência de uma teoria “meramente conservadora”, “acomodatícia” (Holanda, 1936, p. 159). Sem o talento para a “truculência desabrida e exasperada” dos fascismos italiano e alemão, os aderentes brasileiros do fascismo traduziam a “energia sobranceira” daqueles em “pobres lamentações de intelectuais neurastênicos” (Holanda, 1936, p. 158-159) – difícil não associar essa imagem à preocupação jocosa do autor de Raízes do Brasil com o estado d’alma do jovem Otávio de Faria, cujas ideias exibiriam um “pessimismo verdadeiramente consternador com relação à espécie humana” (Holanda, 1936, p. 174). Para Sérgio Buarque, as visões grandiosas de regeneração social dos católicos, integralistas e fascistas eram, do ponto de vista da forma, mais um episódio na história do “bovarismo nacional, grotesco e sensaborão”, tipicamente associado ao Império, mas que permanecera vivo, e mesmo crescera, com o tempo, junto com a “insensibilidade aos seus efeitos” (Holanda, 1936, p.130).
Quanto à Revolução, ideia polarizante, ardentemente desejada ou rejeitada, Sérgio Buarque realiza uma arrojada torção conceitual, neutralizando sua força apelativa como horizonte de expectativa e transferindo-a para o passado. A revolução brasileira, “lenta, segura e concertada”, processada “sem o grande alarde de convulsões de superfície”, era um acontecimento decorrido, aproximadamente, nos “três quartos de século” entre a chegada dos Bragança ao Brasil, em 1808, e a Proclamação da República, em 1889 (Holanda, 1936, p. 135-136). Que terá sido ela, exatamente, se esses dois marcos, ao lado da Independência e da Abolição, foram apenas seus “pontos culminantes”? Num nível mais abstrato, ela fora a transformação da “composição social” do Brasil colonial rural para uma forma de sociedade centrada nas cidades e organizada pelo mercado – a Revolução torna-se dramaticamente perceptível a partir da Abolição, quando “cessam os freios tradicionais contra o advento de um novo estado de coisas” (Holanda, 1936, p. 136).
O Império brasileiro, a despeito da sua “solidez orgânica”, não fora mais do que um freio para a integração do Brasil no mundo moderno. Se a “fase aguda” da revolução havia terminado quase quarenta anos antes do aparecimento de Raízes do Brasil, a problemática política do livro, a do “desenlace final” por vir (Holanda, 1936, p. 136-137), já não seria questão de um redesenho radical da sociedade, tal como imaginado na forma da “revolta” restauracionista católica ou na “revolução contra a revolução” fascista, e sim da adaptação orgânica a um processo social já existente. No longo prazo, ela poderia resultar numa autêntica mutação civilizacional – também prevista, por sinal, nas páginas finais do Maquiavel e o Brasil de Faria (1933, p. 213-224) – mas, por ora, era o caso de ser mais paciente e descobrir um contraponto harmônico, devidamente fundado no “ritmo espontâneo” da nação.
Sérgio Buarque vê a Revolução como processo decisivo, mas já decorrido, dilatado em sete décadas, no qual simultaneamente se dão a transferência do polo dinâmico da sociedade do campo para as cidades, a integração da sociedade brasileira ao mercado internacional e o surgimento do Estado como problema a ser equacionado com uma classe política formada na experiência histórica do latifúndio. “Organizar a desordem” é, aqui, criar algum mecanismo de compromisso e transição entre a liberdade tal como compreendida pelos potentados rurais (da qual resulta o “mal-entendido da democracia”) e a liberdade implicada pelas dinâmicas sociais em ascensão. Usualmente considerada como destino a ser realizado ou evitado, a Revolução converte-se em origem a ser investigada. Dessublimando-a, Sérgio Buarque apresentava uma visão da história cética das grandes rupturas,31 bem como da capacidade diretora dos programas sistemáticos. Nisso, parece retomar o que escrevera dez anos antes, em polêmica com Tristão de Athayde, no ensaio “O lado oposto e outros lados”:
O que idealizam [...] é a criação de uma elite [...] sem grande contato com a terra e com o povo [...], gente bem-intencionada [...] à altura de nos impor uma hierarquia, uma ordem, uma experiência que estrangulem de vez esse nosso maldito estouvamento de povo moço e sem juízo. [P]ara eles, por enquanto, nós nos agitamos no caos e nos comprazemos na desordem. Desordem de quê? É indispensável essa pergunta, porquanto a ordem perturbada entre nós não é decerto, não pode ser a nossa ordem; há de ser uma coisa fictícia e estranha a nós, uma lei morta, que importamos, senão do outro mundo, do Velho mundo. [...] O erro deles está nisso de quererem escamotear a nossa liberdade que é [...] o que temos de mais considerável, em proveito de uma detestável abstração inteiramente inoportuna e vazia de sentido (Holanda, 1996b, p. 226, grifo no original).
O objeto ostensivo da polêmica, no trecho, não é a organização política, como em Raízes, mas a arte modernista. Além disso, o problema da “ordem” recebe tratamento menos peremptoriamente libertário no ensaio de 1936 do que aqui. É comum, porém, aos dois textos, uma atitude crítica aos voluntarismos. Em 1936, essa atitude exprime-se numa recusa equidistante ao democratismo liberal, à falsa teoria política do fascismo – falsa, porque, à guisa de superar o liberalismo, reitera involuntariamente seus fundamentos – e à pretensão do catolicismo de restaurar uma ordem “natural” incompatível com os novos tempos – ordem extemporânea, portanto, antinatural.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na análise aqui empreendida, procurei mostrar como os conceitos de “liberdade”, “ordem” e “revolução”, ao mesmo tempo, 1) solicitam a reflexão dos agentes e autores do campo político e cultural pela força apelativa e pelo universo simbólico que acionam, e 2) são por eles mobilizados e tensionados com a finalidade palpável de articular ou modificar a percepção da realidade política e social na qual pretendem intervir.
Identificando na ordem a virtualidade divina da qual os acidentes da história afastam a sociedade humana, os católicos pretendem restaurá-la, salvando-a do suicídio social representado pela revolução. Por meio de uma transfiguração da revolução, o fascismo pretende criar uma nova ordem – argumento ao qual os católicos resistem pela rejeição dogmática à factibilidade da história e das ordens políticas. Sérgio Buarque apresenta, contra os dois grupos, uma concepção política coerente com uma afirmação da espontaneidade nacional, que deve ser compreendida a partir de um exame aprofundado da História – argumento formalmente conservador e sem aplicação prática imediata no horizonte da proposição, mas influente na construção de uma agenda relativa à “formação” que terá grande fortuna no pensamento social do período subsequente, e que pretende neutralizar, em atitude cético-irônica, a “filosofia de emergência” dos fascistas e sua apropriação do conceito de “revolução”, bem como a obsessão católica com a “ordem”, tomando ambas por inautênticas e extemporâneas.
A engrenagem argumentativa em torno da “ordem” tem, no seu horizonte prévio de formulação, uma leitura do problema da “liberdade” na sua forma moderna, invocando sua pertinência política, mas também sua valência e seu sentido na cultura (a liberdade de consciência e expressão, a liberdade de ensino, a liberdade artística, o individualismo como estilo de vida). Num debate onde a “revolução” figura como um meio possível para a solução de um diagnóstico relativo à “ordem” (ou à sua ausência), ou, ao contrário, como o mais grave dos perigos, autores/atores políticos empenham-se em produzir uma argumentação amparada por um repertório simbólico que conjugue a reflexão política com o mundo “literário” e a cultura erudita e filosófica, na forma como os próprios agentes os percebem.
Esse é um movimento autoconsciente, pois, como vimos, no contexto da formação de uma visão de mundo católica, na qual os três autores estão, cada um a seu modo, enredados, a agenda da “ordem” se formula a partir de um exame aprofundado da cultura. O “político” faz uso do “literário” como uma espécie de par antitético contra o qual se define, enquanto, por outro lado, dele extrai elementos essenciais à edificação de visões do mundo e à validação de proposições. Procurei, com esta pesquisa, contribuir para uma história das ideias políticas atenta ao trânsito entre o consumo e a produção de expressões críticas e artísticas endereçadas direta ou indiretamente ao âmbito político (primariamente em veículos como livros e, em igual importância, rodapés críticos e revistas, literárias ou não, nas quais se publicam textos críticos e literários) e a formulação das posições ostensivamente elaboradas nesse domínio.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Luiz Feldman e aos pareceristas anônimos de Varia Historia pelas críticas e sugestões à primeira versão do texto, que me permitiram aprimorar e esclarecer a argumentação. O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Brasil. Processo nº 23/09050-2.
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- RIBEIRO, Renato Ferreira. Por uma revolução conservadora: O Centro Acadêmico de Estudos Jurídicos e o fascismo no contexto da Revolução de 1930. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 1-31, 2023.
- SALGADO, Plínio. Psychologia da Revolução. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1934.
- SANTOS, Wanderley Guilherme. Raízes da imaginação política brasileira. In: A imaginação política brasileira Rio de Janeiro: Revan, 2017, p.83-117.
- SCHMITT, Carl. Political Romanticism. Cambridge, MA: MIT Press, 1986.
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- SKINNER, Quentin. Visions of politics, v. 1. Regarding Method. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
- TORREND, Camillo. A crise atual. A Ordem, Rio de Janeiro, n. 23, p. 9-30, jul. 1933.
- TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro Brasília: UnB, 1982.
- WAIZBORT, Leopoldo. O mal-entendido da democracia: Sérgio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil, 1936. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 26, n. 76, p. 39-62, jun. 2011.
- WHITE, Hayden. The Politics of Historical Interpretation: Discipline and De-Sublimation. In: The content of the form: Narrative Discourse and Historical Representation. Baltimore, MD: Johns Hopkins UP, 1987. p. 58-82.
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1
Ver, a esse respeito, os trabalhos de Angela de Castro Gomes (1990) e Sérgio da Mata (2016), além dos já citados Waizbort e Feldman.
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2
Trad. do autor: “What the historical record strongly suggests is that no one is above the battle, because the battle is all there is”. As traduções de textos citados em língua estrangeira são todas minhas.
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3
Trad. do autor: “Such changes originate when an action or state of affairs is described by means of an evaluative term that would not normally be used in the given circumstances. The aim is to persuade an audience that, in spite of appearances, the term can properly be applied – in virtue of its ordinary meaning – to the case in hand. The effect of successfully persuading someone to accept such a judgement will be to prompt them to view the behaviour in question in a new moral light”.
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4
Trad. do autor: “[T]here is [...] a genealogy of all our evaluative concepts to be traced, and in tracing their changing applications we shall find ourselves looking not merely at the refletions but at one of the engines of social change. [...] I have always sought to emphasise that innovating ideologists may in consequence be no less preoccupied with wresting an available moral language to their own ends than with seeking at the same time to challenge conventional beliefs”.
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5
A fisionomia do programa ecoa proposições precursoras do padre Júlio Maria no início do século XX, na época em que se começava a articular uma recepção brasileira à Doutrina Social da Igreja (ver Arduini, 2011, p. 8).
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6
Para um exemplo de época particularmente pungente desse modo de pensar, leia-se, no Doutor Fausto, a caracterização, por Serenus Zeitblom, do “círculo Kridwiss”, que parece ecoar percepções do próprio Thomas Mann sobre a experiência da deriva fascista da intelectualidade alemã. Nela, as Reflexões sobre a violência de Georges Sorel são o texto emblemático da regressão mitológica dos alemães. Com apreensão, o narrador conta como os intelectuais alemães se entregavam com entusiasmo à tese de que “mitos adaptados à mentalidade das massas se tornariam doravante veículos do movimento político: fábulas, quimeras, visões fantasmagóricas que não necessitassem de base alguma na verdade, na razão, na ciência, mas, apesar disso, se mostrassem criativas, determinando o curso da vida e da história, e dessa forma evidenciassem seu poder de realidades dinâmicas” (Mann, 2015, p.425).
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Vale lembrar, nesse contexto, a preocupação de Hannah Arendt (1994) com a preservação de um potencial criativo na política, que a leva a estabelecer, ainda na década de 1950, uma distinção entre a “imaginação” criativa e a “fantasia” falsificadora da realidade.
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8
A principal referência para o tipo de abordagem aqui procurada é o estudo de Ricardo Benzaquen de Araújo (1994).
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9
Sobre a noção de modelagem do self, ver Greenblatt (1980) e Clifford (1988).
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10
Referindo-se à impressão causada pelo seu primeiro encontro com Alceu Amoroso Lima, José Lourenço de Oliveira (1932, p. 34) escreveria, em linguagem abertamente hagiográfica, que, a partir de então, tinha se tornado “impossível [...] ver o nome de T[ristão] de A[thayde] sem a auréola, num fundo de irradiação pura, que lhe vem do homem Alceu Amoroso Lima”.
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11
O motivo ainda será usado para atacar Sérgio Buarque de Holanda por Oscar Mendes, colaborador de A Ordem, em resenha a Raízes do Brasil. Não tendo identificado no livro qualquer proposta afirmativa para o país, nem coerência nos argumentos sobre a história nacional, Mendes vaticina: “a disponibilidade gidiana é chocante”. MENDES, Oscar. A alma dos livros. Folha de Minas, Belo Horizonte, 17 jan. 1937.
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12
O caráter estilizado da conversão não terá escapado aos leitores da época que tivessem alguma familiaridade com o autor da carta e seu destinatário. Já em 1925 Alceu polemizava com Sérgio Buarque por sua adesão à Antropofagia oswaldiana numa série de artigos publicada em O Jornal, nos quais denuncia o pendor anárquico de parte das vanguardas, com destaque para o surrealismo, que faria uma leitura deturpada da psicanálise. O título de dois deles denuncia a afinidade de Alceu com argumentos católicos sobre a cultura moderna: “Literatura suicida” (Lima, 1966, p. 914-927) e “A salvação pelo Angélico” ATHAYDE, Tristão de. A salvação pelo Angélico. O Jornal, Rio de Janeiro, 4 out 1925, p. 4.
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13
Trad. do autor: “La Réforme a débridé le moi humain dans l’ordre spirituel et religieux, comme la Renaisance [...] a débridé le moi humain dans l’ordre des activités naturelles et sensibles. Après que Luther a pris le parti de refuser l’obéissance au Pape et de rompre avec la communion de l’Église, son moi, malgré ses angoisses intérieures qui ne firent qu’augmenter jusqu’à la fin, est désormais au-dessus de tout. Toute règle “extérieure”, toute “hétéronomie”, comme dira Kant, devient dès lors une offense insupportable à sa “liberté chrétienne”.”
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14
Trad. do autor: “ce disciple de M. Gide qui se contemple avec une douloureuse ferveur dans le miroir de sa gratuité”.
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15
Trad. do autor: Qu’est-ce que l’individualisme moderne? Une méprise, [...]:l’exaltation de l’individualité camouflée en personnalité, et l’avilissement corrélatif de la personnalité véritable. Dans l’ordre social, la cité moderne sacrifie la personne à l’individu; elle donne à l’individu le suffrage universel, l’égalité des droits, la liberté d’opinion, et elle livre la personne, isolée, nue, sans aucune armature sociale qui la soutienne et la protège, à toutes les puissances dévoratrices qui menacent la vie de l’âme, aux actions et réactions impitoyables des intérêts et des appétits en conflit, aux exigences infinies de la matière à fabriquer et à utiliser. [...] C’est une civilisation homicide.”
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16
ATHAYDE, Tristão de. Revolta ou Revolução. O Jornal, Rio de Janeiro, 29 jul. 1931, p. 4.
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ATHAYDE, Tristão de. Revolta ou Revolução. O Jornal, Rio de Janeiro, 29 jul 1931, p. 4.
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ATHAYDE, Tristão de. Revolta ou Revolução. O Jornal, Rio de Janeiro, 29 jul. 1931, p. 4.
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19
ATHAYDE, Tristão de. Revolta ou Revolução. O Jornal, Rio de Janeiro, 29 jul. 1931, p. 4.
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20
Cf., acima, a nota 11
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21
O JORNAL. Tomou posse o novo reitor da Universidade do Distrito Federal. O jornal, Rio de Janeiro, 31 dez 1935, p. 10.
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22
Algum tempo antes, ainda seria possível encontrar um tom menos confrontacional diante do pensamento inspirado por Dewey nas páginas d’A Ordem. Em “A crise atual”, o padre jesuíta Camillo Torrend (1932, p. 27) arriscara uma aproximação entre os pensamentos pedagógicos de Dewey e Loyola no que dizia respeito ao problema da “autoridade e liberdade na educação”. Ambos insistiriam na “necessidade de castigar de maneira que se tenha sempre em vista uma cura moral”. Décadas mais tarde, Alceu Amoroso Lima se empenhará em edulcorar sua atuação na campanha contra o escolanovismo, estabelecendo uma simetria entre suas posições e as de Anísio Teixeira como igualmente “sectárias”: “Assim como a Revolução de 30 me separou de Anísio Teixeira, que deixava a Igreja Católica quando eu nela ingressava, a de 64 terminaria por nos reunir, embora na verdade tenha sido a experiência e a meditação que acabaram por nos aproximar. Compreendemos ambos que a verdade é muito mais complexa e acolhedora que os sectarismos” (Lima, 1973, p. 228).
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23
ALMEIDA, Miguel Ozório de. O caso da Universidade do Distrito Federal (II). O Jornal, Rio de Janeiro, 22 mar. 1936, p. 6.
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24
ALMEIDA, Miguel Ozório de. O caso da Universidade do Distrito Federal (IV). O Jornal, Rio de Janeiro, 25 mar. 1936, p. 6.
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25
Ozório relata que Campos teria ouvido de Faria que tinha “medo” de ir encontrá-lo em seu gabinete. De fato, depois disso, Faria compareceu ao gabinete do reitor, que, irritado, expulsou-o. ALMEIDA, Miguel Ozório de. O Caso da Universidade do Distrito (VII). O Jornal, Rio de Janeiro, 28 mar. 1936, p. 4.
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26
O JORNAL. A direção da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade do Distrito Federal: Uma carta do sr. Francisco Campos ao diretor demissionário, dr. Otávio de Faria. O Jornal, Rio de Janeiro, 24 mar. 1936, p. 7.
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27
Sob o pseudônimo de Pedro Dantas, Prudente de Morais Neto escreveu, em 1931, uma resenha mordaz de Maquiavel e o Brasil, publicada n’A Ordem. Nas palavras do crítico, o livro é “tão constantemente mal escrito que dá a impressão de ser uma tradução errada do francês”. Sobre a defesa de um regime de força a pretexto de preservar a liberdade de pensamento e ação diante da ameaça comunista, lemos que “[o] que repugna ao sr. Otávio de Faria não é a ideia de ditadura, nem a supressão da liberdade de pensamento. É a ideia de uma determinada ditadura e a supressão de um determinado pensamento. Tanto que, para evitar a ditadura e a supressão que lhe desagradam, ele proclama a necessidade de suprimir desde já a liberdade de pensamento, instaurando-se [...] desde já um regime ditatorial, pois este que temos não bastam ao sr. Otávio de Faria [...]. Contra uma ditadura, outra ditadura: a inevitável incoerência dos antiliberais” (Dantas, 1931, p. 317).
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28
FARIA, Otávio de. O caso da Universidade do Distrito Federal (I – Ideias). O Jornal, Rio de Janeiro, 29 mar. 1936, p. 6.
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29
FARIA, Otávio de. O caso da Universidade do Distrito Federal (I – Ideias). O Jornal, Rio de Janeiro, 29 mar. 1936, p. 6.
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30
Integralistas e católicos, como Alberto Cotrim Neto, Hélio Viana, Hélder Câmara e Oscar Mendes uniram-se na postura adversa, às vezes agressiva, diante do livro em resenhas publicadas na imprensa. Para um comentário parcial, ver Martins, 2022; um levantamento amplo, mas não exaustivo, é realizado em Furtado (2018, p. 71-118).
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31
Sigo aqui a tese de Hayden White (1987) sobre o efeito “dessublimador” da concepção de historiografia consolidada com a disciplinarização do campo no século XIX, oposto ao potencial radicalizante das filosofias da história.
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Editor responsável:
Nathália Sanglard de Almeida Nogueira
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
31 Mar 2024 -
Revisado
2 Set 2024 -
Aceito
20 Set 2024