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Para além de Raymond Aron A primeira recepção de Dilthey na França

Resumo

Este artigo tem como tema a recepção de Wilhelm Dilthey na França, na primeira metade do século XX. Não se trata, contudo, de uma exposição da obra do seu mais célebre comentador francês do período, Raymond Aron. Apresenta-se em linhas gerais a recepção de Dilthey na obra de Alexandre Koyré, historiador das ciências e também da filosofia, das religiões e do misticismo especulativo alemão. Próximo de Raymond Aron e de Bernard Groethuysen, outro leitor e comentador diltheyano ignorado, Koyré foi marcado pela obra de Dilthey, o que é atestado pelos trabalhos que escreveu diretamente sobre este autor, bem como por aqueles nos quais seu nome não aparece, e sobre a história do misticismo especulativo alemão e a história das ciências. A aparente estranheza dessa aproximação nos mostra a complexidade da recepção de Dilthey na França e a necessidade de alargarmos seu campo de análise para além dos trabalhos de Aron.

Palavras-chave
Dilthey; França; Alexandre Koyré

Abstract

This article delves into the reception of Dilthey’s work in France during the first half of the 20th century. Rather than focusing on his most famous French commentator of the period, Raymond Aron, this study offers an overview of the appropriations of Dilthey present in the works of Alexandre Koyré, historian of science, and also of philosophy, religions, and German speculative mysticism. Deeply marked by Dilthey’s work, Koyré was close to Aron and Bernard Groethuysen, another ignored Diltheyan reader and commentator. This is attested not only by the studies he wrote directly about this author, but also by those in which his name does not appear, including those on the history of German speculative mysticism and the history of science. This seemingly unconventional association underscores the complexity of Dilthey’s reception in France, making clear the need to broaden this field of analysis beyond Aron’s contributions.

Keywords
Dilthey; France; Alexandre Koyré

Em 1990, com o lançamento de Dilthey et la fondation des sciences historiques [ Dilthey e a fundação das ciências históricas], livro que pretendia ser a grande redescoberta de Wilhelm Dilthey na França, Sylvie Mesure ( 1990, p. 12MESURE, Sylvie. Dilthey et la fondation des sciences historiques. Paris: PUF, 1990.) declarava retomar um debate de mais de 50 anos: “Trata-se de retomar, de alguma maneira, as coisas onde, em 1938, as teses de Raymond Aron as tinham deixado. Quase 50 anos mais tarde, parece necessário prolongar o esforço para ‘aclimatar’ a tradição alemã na França”. 1 1 Trad. livre da autora: “il s’agit à cet égard de reprendre, en quelque sorte, les choses où, en 1938, les thèses de R. Aron les avaient laissées. Près de cinquante ans plus tard, il apparaît nécessaire de prolonger l’effort pour ‘acclimater’ en France la tradition allemande”. A recepção de Dilthey na França, diluída naquela da “sociologia alemã”, poderia, então, ser resumida da seguinte maneira: uma breve simpatia inicial, marcada por algumas traduções e artigos publicados no final do século XIX; 2 2 Veiculados nos Annales de l’Institut international de Sociologie (1894), na Revue internationale de Sociologie (1894), na Revue de Métaphysique et de Morale (1896), na revista Année sociologique (1896-1897) e na Revue de synthèse historique (1901) (citados por MESURE, 1990, p. 10). o célebre livro de Aron ( 2018ARON, Raymond. La philosophie critique de l’histoire. Paris: Vrin, 2018.), La philosophie critique de l’histoire [ A filosofia crítica da história], de 1938; e o já mencionado livro de Sylvie Mesure, de 1990.

Anos mais tarde, Leszek Brogowski ( 1997, p. 12BROGOWSKI, Leszek. Dilthey: Conscience et histoire. Paris: PUF, 1997.) retomava a mesma reconstrução histórica, acrescentando um tom pessimista para o seu final: “A recepção de Dilthey foi confusa na Alemanha; na França, foi apenas marginal”. Depois de Raymond Aron, com raras exceções, “nenhum estudo importante veio cobrir essa enorme lacuna até 1990”. 3 3 Trad. livre da autora: “la réception de Dilthey en Allemagne a été confuse, en France, elle n’a été que marginale”; “aucune étude importante n’est venue combler cette énorme lacune jusqu’en 1990”. Até mesmo a obra de Mesure e o seu projeto de tradução das obras diltheyanas teriam falhado na tentativa de “aclimatar” em solo francês o trabalho do historiador e filósofo alemão. O projeto foi abandonado em 2002, levando Brogowski ( 1997, p. 13BROGOWSKI, Leszek. Dilthey: Conscience et histoire. Paris: PUF, 1997.) a concluir que “Dilthey não encontrou seu público na França”, 4 4 Trad. livre da autora: “Dilthey n’a pas trouvé son public en France”. mesmo nos anos 1990.

Embora Dilthey não tenha feito discípulos no país de Descartes, a recepção de sua obra não pode ser resumida a Aron e a Mesure. Bernard Groethuysen, cujo trabalho quase sempre aparece como uma exceção reconhecida (porém ignorável) no cenário intelectual francês, foi um importante divulgador das obras diltheyanas no início do século XX. Figura presente em muitos círculos intelectuais alemães e franceses, Groethuysen era muito próximo de Dilthey e foi o responsável pela continuidade da publicação das obras completas do filósofo e historiador alemão após sua morte, em 1911 ( DANDOIS; GROETHUYSEN, 1995, p. 20DANDOIS, Bernard. Introduction. In: GROETHUYSEN, Bernard. Philosophie et histoire. Paris: Albin Michel, 1995, p. 9-54.). Pela editora Teubner, publicou os tomos VII e VIII, nos quais Dilthey ( 1992DILTHEY, Wilhelm. Introduction aux sciences de l’esprit. Paris: Cerf, 1992.) tratava da Introduction aux sciences de l’esprit [ Introdução às ciências do espírito]. Ainda nos anos 1910, na França, Groethuysen iniciou suas exposições sobre o trabalho diltheyano, proferindo conferências e publicando artigos. Em 1912, publicou Dilthey et son école [ Dilthey e sua escola] ( Bernard GROETHUYSEN, 1995aGROETHUYSEN, Bernard. Dilthey et son école. In: Philosophie et histoire. Paris: Albin Michel, 1995a, p. 55-71.), artigo fruto de uma conferência dada na extinta École des Hautes Études Sociales (EHES), em Paris, num congresso consagrado à filosofia contemporânea alemã ( DANDOIS; GROETHUYSEN, 1995, p. 20DANDOIS, Bernard. Introduction. In: GROETHUYSEN, Bernard. Philosophie et histoire. Paris: Albin Michel, 1995, p. 9-54.). Em 1926, Groethuysen ( 1995bGROETHUYSEN, Bernard. Introduction à la pensée philosophique allemande depuis Nietzsche. In: Philosophie et histoire. Paris: Albin Michel, 1995b, p. 91-144.) publicou outro importante artigo no qual abordava a obra de Dilthey, com o título Introduction à la pensée philosophique allemande depuis Nietzsche [ Introdução ao pensamento filosófico alemão desde Nietzsche]. Em 1934, escreveu outro estudo, intitulado Idée et pensée: Réflexions sur le journal de Dilthey [ Ideia e pensamento: Reflexões sobre o diário de Dilthey] ( Bernhard GROETHUYSEN, 1934GROETHUYSEN, Bernhard. Idée et pensée: Réflexions sur le journal de Dilthey. Recherches philosophiques, v. IV, p. 371-376, 1934.), e o publicou na revista Recherches Philosophiques.

Além desses textos que tratavam diretamente da obra do historiador e filósofo alemão, Groethuysen publicou ao longo de sua vida vários outros trabalhos em que aplicava o método histórico diltheyano ( DANDOIS; GROETHUYSEN, 1995, p. 25DANDOIS, Bernard. Introduction. In: GROETHUYSEN, Bernard. Philosophie et histoire. Paris: Albin Michel, 1995, p. 9-54.). Seu Les origines de l’esprit bourgeois en France [ Origens do espírito burguês na França] ( Bernard GROETHUYSEN, 1927GROETHUYSEN, Bernard. Les origines de l’esprit bourgeois en France. Paris: Gallimard, 1927.) teve certa notoriedade. Um ano depois, Marc Bloch e Lucien Febvre cogitaram convidá-lo para fazer parte da redação da revista Annales. 5 5 É o que se vê em uma carta de outubro de 1929 escrita por Bloch e destinada a Febvre, em Paris. Ver: Bloch; Febvre ( 1994, pp. 224-225). Sua obra, portanto, complexifica a história da recepção de Dilthey na França, mas não é a única a fazê-lo.

Outros autores na França também se interessaram pela obra diltheyana. Assim como na Alemanha ( ASSIS, 2021, p. 5ASSIS, Arthur Alfaix. History of Ideas and its Surroundings. In: BERGER, Stefan et al. (Org.). Bloomsbury History: Theory and Method. Londres: Bloomsbury, 2021, p. 1-28.), Dilthey foi tido mais como um historiador das ideias do que como um filósofo, sobretudo nos primeiros anos do século XX, marcadamente por conta de seu trabalho sobre o jovem Hegel ( DILTHEY, 1905DILTHEY, Wilhelm. Die Jugendgeschichte Hegels. Berlim: Verlag der Königlichen Akademie der Wissenschaften, 1905.), que teve grande repercussão, recebendo três edições antes de sua morte ( AMARAL, 1987, p. XXAMARAL, Maria Nazaré de Camargo Pacheco . Dilthey: Um conceito de vida e uma pedagogia. São Paulo: Perspectiva; Edusp, 1987. ). Em uma correspondência, datada de 1º de junho de 1931, de Émile Meyerson, epistemólogo e filósofo francês, endereçada a Henri Delacroix, filósofo, psicólogo e historiador, aluno de Bergson, vê-se que essa obra sobre Hegel circulava em certos meios intelectuais franceses (em BENSAUDE-VINCENT; TELKES-KLEIN, 2009, p. 143BENSAUDE-VINCENT, Bernadette; TELKES-KLEIN, Eva (Ed.). Lettres françaises. Paris: CNRS Éd., 2009.). Em De l’explication dans les sciences [ Sobre a explicação nas ciências], de Meyerson [-MEYERSON ( 1921MEYERSON, Émile. De l’explication dans les sciences. 2 t.. Paris: Payot & Cie, 1921.), p. 409; p. 425], um dos primeiros livros responsáveis pela redescoberta de Hegel na França ( A. KOYRÉ, 1973, pp. 236-241KOYRÉ, Alexandre. Études d’histoire de la pensée scientifique. Paris: Gallimard, 1973.), Dilthey aparece como referência. Outros trabalhos de sua autoria, também sobre história das ideias, são citados naquele país. É o caso do segundo tomo de suas obras completas, Weltanschauung und Analyse des Menschen seit Renaissance und Reformation [ Concepção do mundo e análise do homem desde a Renascença e a Reforma], publicado originalmente em 1914 ( DILTHEY, 1999DILTHEY, Wilhelm. Conception du monde et analyse de l’homme depuis la Renaissance et la Réforme. Paris: Cerf, 1999.), referenciado por Alexandre Koyré ( 1971, p. 39KOYRÉ, Alexandre. Sébastien Franck. In: Mystiques, spirituels, alchimistes du XVIᵉ siècle allemand. Paris: Gallimard, 1971, p. 21-45. ) em um texto sobre Sébastien Franck, crítico de Lutero.

Alexandre Koyré, historiador das ciências, mas também do pensamento místico e das religiões, foi, como se vê pela publicação acima, um leitor atento da obra de Dilthey. Sim, entre outros motivos, porque era próximo de Groethuysen. 6 6 Numa carta endereçada a Meyerson em 24 de fevereiro de 1924, vemos que Koyré se dirigia a Groethuysen quando perdia seus contatos na Alemanha (em BENSAUDE-VINCENT; TELKES-KLEIN, 2009, p. 232). Além disso, nos números da revista Recherches Philosophiques, editada por Koyré, vemos inúmeras contribuições de Groethuysen, como o texto indicado Idée et Pensée. Para Dandois ( 1995), algumas dessas contribuições foram feitas a pedido de Koyré. No entanto, relegado ao campo da historiografia das ciências – interpretação reducionista da obra koyreana –, o nome de Koyré não aparece nos estudos consagrados ao tema, o que é, certamente, muito compreensível. A presença de Koyré no quadro da recepção de Dilthey na França soa como algo estranho, pois, além de estarem inseridos em tradições filosóficas distintas, tantas vezes sublinhadas pelos manuais que quase sempre demarcam barreiras nacionais, reconhecemos neles concepções que se contrapõem. A separação entre ciências da natureza e ciências humanas delineada por Dilthey se conforma muito mal à ideia de uma história das ciências à la Koyré – pois a separação diltheyana se embasava numa concepção determinista e causalista das ciências da natureza, pouco afeita à historicidade de seus objetos e práticas. Atento às transformações científicas do século XX, sobretudo no domínio da física, Koyré via nessa historicidade o caráter essencial das ciências como um todo e ancorou nela sua obra historiográfica. Poderíamos, então, deduzir daí um certo distanciamento entre Dilthey e Koyré, mas, como a história não segue os caminhos da lógica, estaríamos completamente errados. Koyré não apenas se interessou pela obra de Dilthey, como também foi marcado profundamente por ela.

Este artigo tem como objetivo apresentar em linhas gerais a recepção de Dilthey na obra de Koyré, situando-a no contexto intelectual das primeiras leituras e análises, na França, da obra do filósofo e historiador alemão. A exposição que se segue contempla, num mesmo bloco de análise, os textos koyreanos que tratam de Dilthey e se referem diretamente a ele, bem como estudos nos quais o seu nome nem sempre aparece, e textos historiográficos, compreendendo tanto os trabalhos de Koyré menos conhecidos, dos anos 1920, sobre misticismo especulativo alemão, como sua obra sobre a história das ciências, a partir dos anos 1930. O objeto de investigação em questão nos força a trabalhar assim, pois as leituras e interpretações koyreanas de Dilthey penetraram sua obra historiográfica.

Koyré, leitor de Dilthey

Como compreender o interesse de Koyré por Dilthey? Primeiramente, é preciso ter em vista aquela interpretação corrente já destacada da obra diltheyana do início do século XX. Tratava-se sobretudo de uma obra de história das ideias e, de fato, mais da metade de seus trabalhos caminhavam nessa abordagem ( ASSIS, 2021, p. 5ASSIS, Arthur Alfaix. History of Ideas and its Surroundings. In: BERGER, Stefan et al. (Org.). Bloomsbury History: Theory and Method. Londres: Bloomsbury, 2021, p. 1-28.). Também é preciso ter em conta que Koyré não foi, desde sempre, historiador das ciências. Antes de sê-lo, ele foi historiador da filosofia, das religiões e, em especial, do misticismo especulativo alemão.

Em 1922, em um de seus cursos ministrados na École Pratique des Hautes Études (EPHE), vemos claramente esse interesse de Koyré ( 2016, p. 61KOYRÉ, Alexandre. De la mystique à la science: Cours, conférences et documents, 1922-1962. Paris: Éd. EHESS, 2016.):

O professor começou por um estudo preliminar do sistema de Boehme, que aparece não mais como um fenômeno isolado, mas como o resultado de uma longa evolução. Nós buscamos encontrar nas doutrinas religiosas e místicas do século XVI as etapas dessa evolução. Analisamos a obra de Sébastien Franck e de Valentin Weigel, de um lado, e aquela de Schwenckfeld de outro, assim como uma das obras mais importantes para a história do misticismo alemão, a Theologia Deutsch, editada por Lutero, parafraseada por Franck e, por fim, reeditada com um prefácio muito importante por V. Weigel. 7 7 Trad. livre da autora: “Le professeur a commencé par une étude préliminaire du système de Boehme, qui apparaît non plus comme un phénomène isolé, mais comme l’aboutissement d’une longue évolution. Nous avons cherché à retrouver dans les doctrines religieuses et mystiques du XVI e siècle les étapes de cette évolution. Nous avons analysé l’œuvre de Sébastien Franck et de Valentin Weigel d’un coté, et celle de Schwenckfeld de l’autre, ainsi qu’une des œuvres les plus importantes pour l’histoire du mysticisme allemand, la Theologia Deutsch, éditée par Luther, paraphrasée par Franck, et enfin réédité avec une préface très importante par V. Weigel”.

Antes de se dedicar à história das ciências, da revolução científica do século XVII, Koyré se dedicou ao estudo da obra do místico protestante Jacob Boehme em seu contexto histórico, marcado pelas discussões com Schwenckfeld, Sébastien Franck, Valentin Weigel e Lutero. O objeto de investigação de Koyré não tinha nada de inovador. Na década de 1920, comemoravam-se 300 anos da morte de Boehme, ocasião na qual foram publicados vários estudos sobre o místico protestante. Ademais, desde o início do século XX, autores de seu meio intelectual já haviam publicado obras a respeito do misticismo alemão, como Émile Boutroux, Victor Delbos e Henri Delacroix, Schwenckfeld, Sébastien Franck, Valentin Weigel, Paracelso, Lutero e Boehme.

Dilthey estava entre esses autores que se dedicaram ao tema. No segundo tomo de suas obras completas, Weltanschauung und Analyse des Menschen seit Renaissance und Reformation, Dilthey ( 1999DILTHEY, Wilhelm. Conception du monde et analyse de l’homme depuis la Renaissance et la Réforme. Paris: Cerf, 1999.) dedica um tópico a Franck, descrito por Koyré ( 1971, p. 39KOYRÉ, Alexandre. Sébastien Franck. In: Mystiques, spirituels, alchimistes du XVIᵉ siècle allemand. Paris: Gallimard, 1971, p. 21-45. ) como um “admirável artigo”. Ainda naquele tomo, o nome de Boehme aparece várias vezes, juntamente com os de Franck e Weigel, em discussões sobre a orientação transcendental da teologia no século XVI [DILTHEY ( 1999DILTHEY, Wilhelm. Conception du monde et analyse de l’homme depuis la Renaissance et la Réforme. Paris: Cerf, 1999.), p. 118-119; p. 153; p. 288] e sobre a crença do caráter moral e religioso do sistema astronômico de mundo ( DILTHEY, 1999, p. 335DILTHEY, Wilhelm. Conception du monde et analyse de l’homme depuis la Renaissance et la Réforme. Paris: Cerf, 1999.). A obra de Dilthey analisava as discussões pós-Reforma Protestante e a sua relação com os escritos de Boehme, além de descrever por vezes seu lugar na história da filosofia. Para Koyré, ela se apresentava como uma referência significativa.

Do ponto de vista da circulação dos textos, esse tomo das obras completas de Dilthey era particularmente conhecido por Koyré. Antes de se instalar na França nos anos 1920, Koyré foi aluno de Edmund Husserl e integrante do círculo de estudantes fenomenólogos que se reuniam em torno de Adolf Heinach, o “Círculo de Göttingen”. George Misch, genro de Dilthey e editor daquele tomo, era um de seus membros. Além disso, Husserl e Dilthey se conheciam e chegaram a citar as obras um do outro em alguns de seus seminários em Göttingen e Berlim. Para Dilthey (citado por GENS, 2002, p. 93GENS, Jean-Claude. La pensée herméneutique de Dilthey: Entre néokantisme et phénoménologie. Villeneuve-d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 2002.), as Investigações lógicas de Husserl eram “o primeiro grande progresso da investigação filosófica desde a Crítica da razão pura8 8 Trad. livre da autora: “le premier grand progrès de la recherche philosophique depuis la Critique de la raison pure”. e sua fenomenologia se aproximava de sua psicologia das ciências do espírito. Para Husserl (citado por GENS, 2002, p. 99GENS, Jean-Claude. La pensée herméneutique de Dilthey: Entre néokantisme et phénoménologie. Villeneuve-d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 2002.), o trabalho de Dilthey sobre a psicologia constituía uma “antecipação e uma etapa geniais da fenomenologia”. 9 9 Trad. livre da autora: “anticipation et une étape préliminaire géniales de la phénoménologie”. As obras de Dilthey eram, portanto, bem conhecidas no contexto intelectual de Koyré. Mas nem sempre com uma apreciação positiva, certamente.

Em 1911, após contato direto com Dilthey, Husserl ( 1992HUSSERL, Edmund. A filosofia como ciência do rigor. Coimbra: Atlântida, 1992.) publicou um artigo na revista Logos, Philosophie als strenge Wissenschaft [ A filosofia como ciência do rigor], que se tornaria bastante conhecido, no qual lançava duras críticas ao historiador alemão, em especial ao seu Die Typen der Weltanschauung und ihre Ausbildung in den metaphysischen Systemen [ Tipos de visão de mundo e seu desenvolvimento nos sistemas metafísicos]. Dilthey ( 1911DILTHEY, Wilhelm. Die Typen der Weltanschauung und ihre Ausbildung in den metaphysischen Systemen. In: FRISCHEISEN-KÖHLER, Max (Ed.). Weltanschauung, Philosophie und Religion. Berlim: Reichl & Co, 1911, p. 3-51.) apresentava ali uma concepção histórica da filosofia que a remetia a uma “visão de mundo”, o que Husserl criticava veementemente. Para Dilthey ( 1992, p. 9DILTHEY, Wilhelm. Introduction aux sciences de l’esprit. Paris: Cerf, 1992.), “perante o olhar que abarca a terra e todo passado, não há mais validade absoluta de qualquer forma singular de concepção da vida, seja religião, seja filosofia”. 10 10 Trad. livre da autora: “au regard qui embrasse la terre et tout le passé, il n’y a plus de validité absolue d’une quelconque forme particulière de conception de la vie, qu’elle soit religion ou philosophie”. A construção, a ruína e o aparecimento de diversas filosofias ao longo da história revelavam, para ele, a inexistência de uma verdade única e universal, a falácia metafísica. As belas construções filosóficas não revelavam o ser em si, mas a singularidade de seus construtores, bem como uma visão de mundo irredutível e, segundo seus próprios fundamentos, verdadeira. Por isso, em 1911, Husserl ( 1992, p. 66HUSSERL, Edmund. A filosofia como ciência do rigor. Coimbra: Atlântida, 1992.) caracterizou Dilthey como um “cético historicista” e contrapôs sua visão histórica da filosofia àquela da fenomenologia, que se propunha a decifrar o enigma do mundo e da vida pela apreensão fenomenológica das essências.

A percepção negativa de Husserl em relação à obra do historiador alemão não era apenas compartilhada pelos críticos de Dilthey. Paul Hankammer, historiador que pretendia ser discípulo diltheyano e estudioso de Jacob Boehme, apresentou a mesma leitura. Entre os trabalhos surgidos na ocasião da comemoração dos 300 anos da morte de Boehme, Hankammer publicou, em 1924, um livro sobre o místico protestante, Jacob Boehme: Gestalt und Gestaltung [ Jacob Boehme: forma e organização], aplicando o que seria, para ele, o método histórico diltheyano, fundamentado naquele “ceticismo historicista”. Koyré, que à época estudava e preparava sua tese de estado sobre o mesmo tema – editada apenas em 1929 –, leu o livro e publicou uma significativa resenha o criticando na Revue de l’histoire des religions, intitulada La littérature récente sur Jacob Boehme [ A literatura recente sobre Jacob Boehme]. Curiosamente, ele não o fez reafirmando as críticas de Husserl. Pelo contrário, defendeu o trabalho do historiador alemão. Para Koyré ( 1926, pp. 116-117KOYRÉ, Alexandre. La littérature récente sur Jacob Boehme. Revue de l’histoire des religions, v. 93, p. 116-128, 1926.),

Hankammer tenta refazer – ou fazer – uma imagem de Boehme “válida para nossa época”. Parece-lhe evidente que a imagem dele que faziam os românticos não vale mais nada hoje. Hankammer se aplica, então, em apreender “o que Boehme deve representar para o nosso tempo”; a importância que sua doutrina e sua pessoa poderiam – deveriam – ter para nós. 11 11 Trad. livre da autora: “Hankammer essaie de refaire – ou de faire – une image de Boehme ‘valable pour notre époque’. Il lui semble évident que l’image que s’en faisaient les romantiques ne vaut plus rien aujourd’hui. M. Hankammer s’applique donc à dégager ‘ce que Boehme doit représenter pour notre temps’; l’importance que sa doctrine et sa personne pourraient – et devraient – avoir pour nous”.

A verdade histórica da obra de Boehme e o percurso da sua elaboração não eram o que Hankammer perseguia, visto que, para ele, toda interpretação histórica estaria inevitavelmente ligada ao historiador e o revelaria mais do que seu objeto. Para ele, baseando-se em Dilthey, cada época formava para si uma imagem interpretativa das grandes doutrinas e dos grandes personagens do passado. Koyré era assertivo. Hankammer, ele diz, “falseou a imagem do teósofo em sua verdade histórica. Todavia, Hankammer responderia talvez que a ‘verdade histórica’ é apenas um mito, ou que a verdadeira doutrina de Jacob Boehme se constitui justamente no processo de suas interpretações” 12 12 Trad. livre da autora: “Il a (…) faussé aussi l’image du théosophe en sa vérité historique. Toutefois, M. Hankammer répondrait peut-être que la ‘vérité historique’ n’est qu’un mythe, ou que la véritable doctrine de Jacob Boehme se constitue justement dans le processus de ses interprétations”. ( A. KOYRÉ, 1926, p. 117KOYRÉ, Alexandre. La littérature récente sur Jacob Boehme. Revue de l’histoire des religions, v. 93, p. 116-128, 1926.). Nessa acepção, a investigação do contexto histórico era desnecessária. Por isso, Hankammer “[negligenciou] de propósito deliberado” todos aqueles autores de seu meio espiritual (Schwenckfeld, Sébastien Franck, Valentin Weigel, Paracelso) e nos deu imagens, segundo Koyré ( 1926, p. 117KOYRÉ, Alexandre. La littérature récente sur Jacob Boehme. Revue de l’histoire des religions, v. 93, p. 116-128, 1926.), “conscientemente ‘fabricadas’”. 13 13 Trad. livre da autora: “néglige de propos délibéré”; “consciemment ‘fabriquées’ comme images”.

Hankammer, entretanto, “querendo da teoria histórica de Dilthey tirar uma receita prática, falseou o sentido da doutrina e apenas obteve uma falsa receita” 14 14 Trad. livre da autora: “M. Hankammer, en voulant de la théorie historique de Dilthey faire une recette pratique, a faussé le sens de la doctrine et n’a obtenu qu’une fausse recette”. ( A. KOYRÉ, 1926, p. 117KOYRÉ, Alexandre. La littérature récente sur Jacob Boehme. Revue de l’histoire des religions, v. 93, p. 116-128, 1926.). A teoria histórica diltheyana não reenviava o historiador ao desprezo pelo contexto histórico do seu objeto. A leitura de Koyré sobre a postura teórico-metodológica de Dilthey inspirava-se naquela que Groethuysen, seu amigo, havia descrito em 1912. O método histórico de Dilthey, totalmente diferente do que afirma Hankammer, exigia uma análise dinâmica do particular e do geral, da obra de um autor e do seu meio histórico, não subsumindo o indivíduo ao contexto, nem o concebendo como separado dele ( Bernard GROETHUYSEN, 1995a, p. 63GROETHUYSEN, Bernard. Dilthey et son école. In: Philosophie et histoire. Paris: Albin Michel, 1995a, p. 55-71.). Ao escrever sua tese de doutorado – lembremo-nos, também sobre Boehme –, Koyré ( 2017, p. 508KOYRÉ, Alexandre. La philosophie de Jacob Boehme. Paris: Vrin, 2017., grifos no original) conclui seu trabalho afirmando uma orientação teórico-metodológica muito próxima daquela de Dilthey, nos moldes de Groethuysen:

E, no entanto, se a construção de um filósofo é sempre, enquanto ela constitui uma expressão de sua personalidade e de sua visão de mundo, individual e irredutível na própria medida em que ela exprime uma personalidade concreta, não é menos verdade que na história do pensamento humano existem “corrente de ideias”, vastos rios espirituais, formados de tradições que se enriquecem por contribuições sucessivas de individualidades que as compõem e exprimem em suas construções pessoais e que, por vezes, mudam o curso e a direção. 15 15 Trad. livre da autora: “Et, cependant, si la construction d’un philosophe est toujours, en tant qu’elle constitue une expression de sa personnalité et de sa vision du monde, individuelle et irréductible dans la mesure même où elle exprime une personnalité concrète, il n’en reste pas moins vrai que dans l’histoire de la pensée humaine il existe des ‘courants d’idées’, vastes fleuves spirituels, formés de traditions s’enrichissant par les apports successifs des individualités qui les composent et les expriment dans leurs constructions personnelles et qui, parfois, en changent le cours et la direction”.

Seguindo uma interpretação diferente, Paola Zambelli, historiadora italiana especialista em Koyré, afirmou igualmente a importância de Dilthey para seus trabalhos nos anos 1920. Ao tratar justamente da formação de seu método histórico, Zambelli ( 2016, p. XVIIZAMBELLI, Paola. Alexandre Koyré in incognito. Florença: Leo S. Olschki, 2016.) coloca Dilthey praticamente ao lado de Husserl, Lévy-Bruhl e Meyerson, autores já reconhecidos pela historiografia como influências cruciais para o trabalho de Koyré. Para ela, entretanto, a importância de Dilthey se limitaria à elaboração de seus trabalhos sobre Boehme, Paracelso e Weigel.

Outro historiador, Ernst Coumet ( 1987COUMET, Ernst. Alexandre Koyré: La révolution scientifique introuvable? History and Technology, v. 4, p. 497-529, 1987.), também destacou o papel de Dilthey na construção da obra de Koyré, mas não se limitou ao início de sua trajetória acadêmica. Nos anos 1930, como se sabe, Koyré estendeu suas pesquisas ao domínio da história das ciências, dedicando-se sobretudo à revolução científica do século XVII. Para Coumet, ainda nesse domínio, a importância de Dilthey era notável. De fato, Coumet tinha motivos para tal interpretação. Nesse período, Koyré publicou duas resenhas muito significativas do ponto de vista da recepção de Dilthey na França, bem como no que diz respeito à construção da obra koyreana. Principalmente na resenha do VIII volume das Gesammelte Schriften [ Obras Completas], Koyré expõe o núcleo da obra de Dilthey. Ao fazê-lo, no entanto, ele nos dá a impressão de expor sua própria obra. Tamanha é a semelhança que Coumet caracteriza esse texto como um “autorretrato” de Koyré. De fato, Koyré ( 1932, p. 490KOYRÉ, Alexandre. Revue Critique: W. Dilthey – Gesammelte Schriten, vol. 8 – Weltanschauungslehre, Abandlungen zur Philosophie der Philosophie. Revue Philosophique de la France et de l’étranger, v. CXIII, p. 487-491, janv./juin 1932.) descrevia assim o trabalho diltheyano:

[Dilthey] pensava que a alma humana apenas se revelava a si mesma em e por suas manifestações; que eram essas manifestações de sua vida e de sua atividade que se chamam arte, ciência, filosofia, que nos revelavam parcialmente o fundo obscuro e fecundo de onde elas procedem; ele sabia também que a “alma humana” é apenas uma abstração e que é somente analisando e buscando compreender, por um estudo histórico, as manifestações objetivadas, e, por isso mesmo, objetivas de sua vida, fazendo reviver em nós o sentido de suas encarnações históricas que nós podemos – pela interpretação desse sentido – apreender e compreender certos aspectos, certas atitudes e certas estruturas fundamentais da alma, que nós podemos reencontrar, partindo do real, algumas de suas possibilidades. Possibilidades, atitudes e estruturas de alma, antes que de espírito, pois Dilthey, reagindo contra a espiritualização excessiva e unilateral do homem provocada pelo racionalismo, queria reencontrar o homem concreto, sua alma concreta, alma que é tendência confusa, paixão, élan, tanto – e mais ainda – quanto espírito. Ele sabia da importância do vital, dos sentimentos obscuros; ele sabia que eles formavam o fundo que nutria as mais altas produções do espírito, fundo que se exprimia em e por eles, mas que nunca podia se espiritualizar completamente. É por isso também que o espírito jamais podia penetrá-lo inteiramente. Não podia se desprender de seu próprio fundo. É por isso que a história, e a história somente (…) podia nos permitir chegar a esse conhecimento de nós mesmos. 16 16 Trad. livre da autora: “il pensait que l’âme ne se révélait à elle-même que dans et par ses manifestations; que c’étaient ces manifestations de sa vie et de son activité qui s’appellent art, science, philosophie, qui nous révèlent, partiellement, le fond obscur et fécond dont ils procèdent; il savait aussi que ‘l’âme humaine’ n’est qu’une abstraction et que c’est seulement en analysant, et en cherchant à comprendre par une étude historique les manifestations objectivées, et par là même objectives, de sa vie, en faisant revivre en nous le sens de ses incarnations historiques que nous pouvons – par l’interprétation de ce sens saisir et comprendre certains aspects, certaines attitudes et certaines structures fondamentales de l’âme, retrouver, en partant du réel, certaines de ses possibilités. Possibilités, attitudes et structures de l’âme, plutôt que de l’esprit, car Dilthey réagissant contre la spiritualisation excessive et unilatérale de l’homme par le rationalisme, voulait retrouver l’homme concret, son âme concrète, âme qui est tendance confuse, passion, élan, autant – et même davantage qu’esprit. Il savait l’importance du vital, des sentiments obscurs; il savait qu’ils formaient le fond qui nourrissait les plus hautes productions de l’esprit; fond qui s’exprimait en et par eux mais qui jamais ne pouvait se spiritualiser tout entier. C’est pourquoi aussi jamais l’esprit ne pouvait le pénétrer entièrement, ne pouvait se saisir de son propre fond. Et c’est pourquoi justement l’histoire, et l’histoire seule (…) pouvait nous permettre de parvenir à cette connaissance de soi-même”.

Ora, essa ideia do trabalho histórico como busca pelo que há de vivo, pelo élan que nutre as produções do espírito, incluindo aquelas da ciência, constituía justamente o traço mais característico do trabalho de Koyré. Ao analisar as teorias científicas, Koyré não desprezava os “sentimentos obscuros”, os gostos artísticos, as concepções metafísicas dos cientistas. Muito pelo contrário, em suas principais obras, seja seus Estudos Galilaicos ( 1986KOYRÉ, Alexandre. Estudos galilaicos. Lisboa: Dom Quixote, 1986.), seja seu célebre Do mundo fechado ao universo infinito ( A. KOYRÉ, 2006KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.), essa postura historiográfica é patente. Como não seria possível fazer uma análise pormenorizada dessas obras aqui, vejamos o que ele escreve em 1954 sobre o seu próprio trabalho como historiador das ciências:

O que é a história, sobretudo a história do pensamento científico ou técnico? Um cemitério de erros, ou até mesmo uma coleção de monstra relegados com razão ao quarto de despejos, bons apenas para um canteiro de demolição. (…) Essa atitude com relação ao passado – que, aliás, é muito mais a atitude do técnico do que a do grande pensador criador – é, confessamos, bastante comum, ainda que não seja de todo inevitável. E muito menos justificável. É bastante comum para quem, a partir do presente, a até mesmo do futuro, para onde dirige seu trabalho, lança um olhar na direção do passado – um passado já há muito tempo ultrapassado – as teorias antigas aparecem como monstros incompreensíveis, ridículos e disformes. Com efeito, remontando a corrente do tempo, ele as reencontra no momento de sua morte, velhas, ressequidas, esclerosadas. Ele as vê, em resumo, como a Belle Heaumière que Rodin mostrou para nós. Só o historiador é que a encontra em sua primeira e gloriosa juventude, em todo o esplendor de sua beleza. Só o historiador é que, re-fazendo e seguindo a evolução da ciência, apreende as teorias do passado em seu nascimento e vive, com elas, o élan criador do pensamento 17 17 Trad. livre da autora: “Qu’est-ce que l’histoire, surtout l’histoire de la pensée scientifique, ou technique ? Un cimetière d’erreurs, ou même une collection de monstra justement relégués au cabinet de débarras et bons seulement pour un chantier de démolition. (…) Cette attitude envers le passé – qui est, d’ailleurs, beaucoup plus celle du technicien que du grand penseur créateur – est, avouons-le, assez normale, bien qu’elles ne soit pas du tout inévitable. Et, encore moins, justifiable. Il est assez normal qu’à celui qui, du point de vue du présent, et même de l’avenir vers lequel il est tendu son travail, jette un coup d’œil sur le passé – un passé, depuis longtemps dépassé – les théories anciennes apparaissent comme des monstres incompréhensibles, ridicules et difformes. En effet, puisqu’il remonte le cours du temps, il les rencontre, au moment de leur mort, veillies, desséchées, sclérosées. Il voit, pour tout dire la Belle Heaumière telle qu’elle nous a été rendue par Rodin. C’est l’historien seulement qui la retrouve dans sa prime et glorieuse jeunesse, dans tout l’éclat de sa beauté, c’est l’historien seulement qui, en re-faisant, et en resuivant l’évolution de la science, sait les théories du passé à leur naissance et vit, avec elles, l’élan créateur de la pensée”. ( A. KOYRÉ, 1973, pp. 265-266KOYRÉ, Alexandre. Études d’histoire de la pensée scientifique. Paris: Gallimard, 1973.).

As teorias científicas do passado só parecem “monstros incompreensíveis, ridículos e disformes” ao técnico que só vê a forma, que pratica aquela “espiritualização excessiva”, sendo, assim, incapaz de enxergar aquilo que um dia lhes deu vida. Para Koyré, o historiador, como ele escrevia sobre Dilthey, é aquele que sabe que as “produções do espírito”, mais uma vez, incluindo aquelas das ciências, não são apenas construções racionais, mas são também formadas por “atitudes e estruturas de alma”, irredutíveis à razão lógica, atitudes que as alimentam. Assim, o historiador é aquele que refaz o caminho e apreende, por uma reconstrução histórica, “o vital”, o élan que forma “o fundo que nutre as mais altas produções do espírito”.

Como se deduz, apesar daquela concepção de Dilthey, determinista e causalista das ciências da natureza, implícita na célebre divisão entre essas ciências e as ciências humanas – que contradiz suas considerações sobre o aspecto irracional das produções do espírito (científicas) –, é certo que Dilthey desempenhou um papel importante na obra historiográfica de Koyré dedicada à revolução científica seiscentista. Ignorando propositalmente aquela divisão, Koyré inseriu sua história das ciências da natureza (da física) no rol das ciências humanas, colocando em seu cerne a orientação teórico-metodológica diltheyana, crítica da racionalização radical do homem feita pelo século XVIII. Em uma frase bastante conhecida, Dilthey ( 1992, p. 149DILTHEY, Wilhelm. Introduction aux sciences de l’esprit. Paris: Cerf, 1992.) dizia que “nas veias do sujeito cognoscente tal como Locke, Hume e Kant o constroem, não é o sangue verdadeiro que corre, mas uma seiva diluída da razão, concebida como única atividade do pensar”. 18 18 Trad. livre da autora: “dans les veines du sujet connaissant tel que Locke, Hume et Kant le construisirent, ce n’est pas du sang véritable qui coule, mais une sève délayée de raison, conçue comme unique activité de penser”. No mesmo sentido, em um de seus cursos na EPHE, Koyré ( 2016, p. 154KOYRÉ, Alexandre. De la mystique à la science: Cours, conférences et documents, 1922-1962. Paris: Éd. EHESS, 2016.) dizia que o século de Kant é “estúpido a ponto de ser racional”, 19 19 Trad. livre da autora: “[ce stupide XVIII e siècle], stupide à force d’être raisonnable...”. assim se justificando:

O século XVIII, com sua filosofia das Luzes, é verdadeiramente muito ingênuo: pessoas que acreditam na luz, na razão, que representam o homem de maneira tão simples, que não compreendem que há no homem profundezas onde a luz não penetra, e é aí o que se encontra o que há de melhor 20 20 Trad. livre da autora: “Le XVIII e avec sa philosophie des Lumières, c’est vraiment très naïf: des gens qui croient à la lumière, à la raison, qui représentent l’homme de façon si simple, qui ne comprennent pas qu’il y a dans l’homme des profondeurs où la lumière ne pénètre pas et que c’est là ce qu’il y a de mieux”. ( A. KOYRÉ, 2016, p. 153KOYRÉ, Alexandre. De la mystique à la science: Cours, conférences et documents, 1922-1962. Paris: Éd. EHESS, 2016.).

Inspirando-se em Dilthey, Koyré acreditava que o que havia de melhor no homem, o sangue em suas veias, não era a racionalidade lógica, mas sua alma, “que é tendência confusa, paixão, élan”, 21 21 Trad. livre da autora: “âme qui est tendance confuse, passion, élan”. composta por sentimentos, atitudes e ideias que não poderiam ser deduzidas de antemão ( A. W. KOYRÉ, 1932, p. 491KOYRÉ, Alexandre. Revue Critique: W. Dilthey – Gesammelte Schriten, vol. 8 – Weltanschauungslehre, Abandlungen zur Philosophie der Philosophie. Revue Philosophique de la France et de l’étranger, v. CXIII, p. 487-491, janv./juin 1932.). Por isso, o técnico não as consegue entrever, mas apenas o historiador, “remontando o tempo”, no momento de nascimento das produções científicas. De fato, tal postura historiográfica de inspiração diltheyana tornou-se marca característica da história das ciências de Alexandre Koyré.

Koyré e a recepção de Dilthey na França: Considerações finais

A obra historiográfica de Koyré como um todo, de seus trabalhos sobre o misticismo especulativo alemão até seus estudos sobre a história da revolução científica do século XVII, foi marcada pela figura de Dilthey. Ainda que dispensássemos seus textos consagrados diretamente a esse historiador e filósofo alemão, sua obra historiográfica – como aquela de Groethuysen – já nos permitiria questionar a tese de que Aron, nos anos 1930, estaria isolado na França em seu interesse por Dilthey e pela historiografia alemã do século XIX.

No entanto, uma carta de Koyré a Aron, depositada no arquivo deste autor na Bibliothèque Nationale de France (BnF), torna essa tese ainda mais difícil de ser admitida. Na carta sem data, mas muito provavelmente de 1938, pela referência ao livro La philosophie critique de l’histoire, publicado por Aron nesse ano, Koyré comenta cada capítulo do livro:

eu quero te dizer a impressão que eu tive lendo seu livro: ele é bom, muito bom mesmo. (…) eu reli seu capítulo sobre Dilthey – é bom, e a sistematização que você lhe dá não ultrapassa os limites do que Dilthey teria podido fazer. (…) Seu “Rickert” me parece lhe dar importância demais. (…) Seu “Simmel” é bom. Seu “Weber”, muito bom. 22 22 BIBLIOTHÈQUE NATIONALE DE FRANCE (BnF), Paris. Lettre d’Alexandre Koyré à Raymond Aron, [1938]. Fonds Raymond Aron, NAF 28060 (1-77), cx. 5, f. 3. Grifos e trad. livre da autora: “Je veux vous dire l’impression que j’ai eu en lisant votre livre: c’est bien, très bien même. (…) J’ai relu votre chapitre sur Dilthey – c’est bien, et votre systématisation ne dépasse pas les bornes de ce que Dilthey aurait pu faire. (…) Votre Rickert me semble lui donner quand même trop d’importance. (…) Votre Simmel est bien. Votre Weber très bien”.

É sugestivo o fato de que Aron tenha enviado sua obra a Koyré, gesto muito comum nos meios intelectuais da época, como ainda o é, mas há um detalhe interessante nesse trecho aparentemente insignificante. Como se sabe, há quatro capítulos no livro de Aron: um sobre Dilthey, outro sobre Rickert, outro sobre Simmel e outro sobre Weber. Ao descrever o capítulo consagrado a Dilthey, Koyré nos dá uma informação curiosa, ele diz tê-lo lido pela segunda vez. Aron já o tinha mostrado separadamente de seus outros capítulos. Podemos deduzir daí que, no que se refere a Dilthey, Aron o reconhecia como um estudioso, um interlocutor. Não estava sozinho.

Groethuysen, Koyré e Aron se conheciam e dialogavam entre si. Groethuysen frequentava a casa de Koyré, em Paris, tendo como testemunha Georgette Vignaux, esposa de Paul Vignaux. 23 23 Paul Vignaux também era amigo de Koyré. Ver: Vignaux ( 2016). Segundo ela, ao conversarem sobre Lutero, passando depois para Agostinho, “a gente sabia que não teria outro assunto por toda noite” ( VIGNAUX, 2016, p. 210VIGNAUX, Georgette. Entrevistadora: Christine Goémé. Alexandre Koyré ou l’amour du savoir (1ère diffusion: 09/07/1982). Radio France, 23 dez. 2016. Disponível em: https://www.franceculture.fr/emissions/les-nuits-de-france-culture/documentaire-du-vendredi-alexandre-koyre-ou-lamour-du-savoir Acesso em: 15 mar. 2023.
https://www.franceculture.fr/emissions/l...
). Groethuysen ( 1939GROETHUYSEN, Bernard. Une philosophie critique de l’histoire. Nouvelle Revue Française, v. 27, n. 313, p. 623-629, oct. 1939.) também esteve atento à obra de Aron, chegando a publicar uma resenha sobre La philosophie critique de l’histoire um ano depois da sua publicação, em 1939, texto que Aron, em suas Mémoires [ Memórias], comenta positivamente. Groethuysen soube, segundo ele, compreender seu trabalho ( ARON, 1983, p. 180ARON, Raymond. Mémoires. Paris: Julliard, 1983.). Em outra passagem, Aron, citando uma carta que recebera de Jean Paulhan em 1967, deixa claro que eles eram próximos. Ao ler seu artigo Pourquoi, publicado no jornal francês Figaro, Paulhan (citado por ARON, 1983, p. 577ARON, Raymond. Mémoires. Paris: Julliard, 1983.) diz: “Por que nosso amigo Groethuysen não está aqui para lê-lo?”. 24 24 Trad. livre da autora: “Pourquoi notre ami Groethuysen n’était-il pas là pour le lire”. Groethuysen morrera em 1946. Há ainda outra passagem nas Mémoires que nos permite compreender mais a atenção de Aron à obra de Groethuysen. Para Aron ( 1983, p. 160ARON, Raymond. Mémoires. Paris: Julliard, 1983.), ele não era apenas um discípulo de Dilthey, sua importância ia muito mais além. Groethuysen teria influenciado Dilthey em sua segunda tentativa de construção de uma “crítica da razão histórica”, após falhar na via da fundamentação psicológica.

Longe de limitar-se à produção de um autor, a história da recepção de Dilthey na França nos leva a vários caminhos e entrecruzamentos, entre os quais, sem dúvida, aquele da obra de Koyré é o menos previsível, mas não menos importante. O inusitado fato de que obras de história da física – a clássica ciência da natureza – tenham sido marcadas pelo trabalho de Dilthey abre nossos olhos para a complexidade das primeiras leituras diltheyanas em solo francês, para outros encontros e possíveis trocas. Um belo exemplo de como a história das ideias pode ser, como diria o próprio Koyré ( 1973, p. 270KOYRÉ, Alexandre. Études d’histoire de la pensée scientifique. Paris: Gallimard, 1973.) acerca de seu objeto, “curiosa, imprevisível e ilógica”, 25 25 Trad. livre da autora: “Curieuse, imprévisible et illogique” e, por isso mesmo, fascinante.

Referências

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  • VIGNAUX, Georgette. Entrevistadora: Christine Goémé. Alexandre Koyré ou l’amour du savoir (1ère diffusion: 09/07/1982). Radio France, 23 dez. 2016. Disponível em: https://www.franceculture.fr/emissions/les-nuits-de-france-culture/documentaire-du-vendredi-alexandre-koyre-ou-lamour-du-savoir Acesso em: 15 mar. 2023.
    » https://www.franceculture.fr/emissions/les-nuits-de-france-culture/documentaire-du-vendredi-alexandre-koyre-ou-lamour-du-savoir
  • ZAMBELLI, Paola. Alexandre Koyré in incognito. Florença: Leo S. Olschki, 2016.
  • 1
    Trad. livre da autora: “il s’agit à cet égard de reprendre, en quelque sorte, les choses où, en 1938, les thèses de R. Aron les avaient laissées. Près de cinquante ans plus tard, il apparaît nécessaire de prolonger l’effort pour ‘acclimater’ en France la tradition allemande”.
  • 2
    Veiculados nos Annales de l’Institut international de Sociologie (1894), na Revue internationale de Sociologie (1894), na Revue de Métaphysique et de Morale (1896), na revista Année sociologique (1896-1897) e na Revue de synthèse historique (1901) (citados por MESURE, 1990, p. 10).
  • 3
    Trad. livre da autora: “la réception de Dilthey en Allemagne a été confuse, en France, elle n’a été que marginale”; “aucune étude importante n’est venue combler cette énorme lacune jusqu’en 1990”.
  • 4
    Trad. livre da autora: “Dilthey n’a pas trouvé son public en France”.
  • 5
    É o que se vê em uma carta de outubro de 1929 escrita por Bloch e destinada a Febvre, em Paris. Ver: Bloch; Febvre ( 1994, pp. 224-225BLOCH, Marc; FEBVRE, Lucien. Correspondance. T. I – Naissance des Annales, 1928-1933. Paris: Fayard, 1994.).
  • 6
    Numa carta endereçada a Meyerson em 24 de fevereiro de 1924, vemos que Koyré se dirigia a Groethuysen quando perdia seus contatos na Alemanha (em BENSAUDE-VINCENT; TELKES-KLEIN, 2009, p. 232BENSAUDE-VINCENT, Bernadette; TELKES-KLEIN, Eva (Ed.). Lettres françaises. Paris: CNRS Éd., 2009.). Além disso, nos números da revista Recherches Philosophiques, editada por Koyré, vemos inúmeras contribuições de Groethuysen, como o texto indicado Idée et Pensée. Para Dandois ( 1995DANDOIS, Bernard. Introduction. In: GROETHUYSEN, Bernard. Philosophie et histoire. Paris: Albin Michel, 1995, p. 9-54.), algumas dessas contribuições foram feitas a pedido de Koyré.
  • 7
    Trad. livre da autora: “Le professeur a commencé par une étude préliminaire du système de Boehme, qui apparaît non plus comme un phénomène isolé, mais comme l’aboutissement d’une longue évolution. Nous avons cherché à retrouver dans les doctrines religieuses et mystiques du XVI e siècle les étapes de cette évolution. Nous avons analysé l’œuvre de Sébastien Franck et de Valentin Weigel d’un coté, et celle de Schwenckfeld de l’autre, ainsi qu’une des œuvres les plus importantes pour l’histoire du mysticisme allemand, la Theologia Deutsch, éditée par Luther, paraphrasée par Franck, et enfin réédité avec une préface très importante par V. Weigel”.
  • 8
    Trad. livre da autora: “le premier grand progrès de la recherche philosophique depuis la Critique de la raison pure”.
  • 9
    Trad. livre da autora: “anticipation et une étape préliminaire géniales de la phénoménologie”.
  • 10
    Trad. livre da autora: “au regard qui embrasse la terre et tout le passé, il n’y a plus de validité absolue d’une quelconque forme particulière de conception de la vie, qu’elle soit religion ou philosophie”.
  • 11
    Trad. livre da autora: “Hankammer essaie de refaire – ou de faire – une image de Boehme ‘valable pour notre époque’. Il lui semble évident que l’image que s’en faisaient les romantiques ne vaut plus rien aujourd’hui. M. Hankammer s’applique donc à dégager ‘ce que Boehme doit représenter pour notre temps’; l’importance que sa doctrine et sa personne pourraient – et devraient – avoir pour nous”.
  • 12
    Trad. livre da autora: “Il a (…) faussé aussi l’image du théosophe en sa vérité historique. Toutefois, M. Hankammer répondrait peut-être que la ‘vérité historique’ n’est qu’un mythe, ou que la véritable doctrine de Jacob Boehme se constitue justement dans le processus de ses interprétations”.
  • 13
    Trad. livre da autora: “néglige de propos délibéré”; “consciemment ‘fabriquées’ comme images”.
  • 14
    Trad. livre da autora: “M. Hankammer, en voulant de la théorie historique de Dilthey faire une recette pratique, a faussé le sens de la doctrine et n’a obtenu qu’une fausse recette”.
  • 15
    Trad. livre da autora: “Et, cependant, si la construction d’un philosophe est toujours, en tant qu’elle constitue une expression de sa personnalité et de sa vision du monde, individuelle et irréductible dans la mesure même où elle exprime une personnalité concrète, il n’en reste pas moins vrai que dans l’histoire de la pensée humaine il existe des ‘courants d’idées’, vastes fleuves spirituels, formés de traditions s’enrichissant par les apports successifs des individualités qui les composent et les expriment dans leurs constructions personnelles et qui, parfois, en changent le cours et la direction”.
  • 16
    Trad. livre da autora: “il pensait que l’âme ne se révélait à elle-même que dans et par ses manifestations; que c’étaient ces manifestations de sa vie et de son activité qui s’appellent art, science, philosophie, qui nous révèlent, partiellement, le fond obscur et fécond dont ils procèdent; il savait aussi que ‘l’âme humaine’ n’est qu’une abstraction et que c’est seulement en analysant, et en cherchant à comprendre par une étude historique les manifestations objectivées, et par là même objectives, de sa vie, en faisant revivre en nous le sens de ses incarnations historiques que nous pouvons – par l’interprétation de ce sens saisir et comprendre certains aspects, certaines attitudes et certaines structures fondamentales de l’âme, retrouver, en partant du réel, certaines de ses possibilités. Possibilités, attitudes et structures de l’âme, plutôt que de l’esprit, car Dilthey réagissant contre la spiritualisation excessive et unilatérale de l’homme par le rationalisme, voulait retrouver l’homme concret, son âme concrète, âme qui est tendance confuse, passion, élan, autant – et même davantage qu’esprit. Il savait l’importance du vital, des sentiments obscurs; il savait qu’ils formaient le fond qui nourrissait les plus hautes productions de l’esprit; fond qui s’exprimait en et par eux mais qui jamais ne pouvait se spiritualiser tout entier. C’est pourquoi aussi jamais l’esprit ne pouvait le pénétrer entièrement, ne pouvait se saisir de son propre fond. Et c’est pourquoi justement l’histoire, et l’histoire seule (…) pouvait nous permettre de parvenir à cette connaissance de soi-même”.
  • 17
    Trad. livre da autora: “Qu’est-ce que l’histoire, surtout l’histoire de la pensée scientifique, ou technique ? Un cimetière d’erreurs, ou même une collection de monstra justement relégués au cabinet de débarras et bons seulement pour un chantier de démolition. (…) Cette attitude envers le passé – qui est, d’ailleurs, beaucoup plus celle du technicien que du grand penseur créateur – est, avouons-le, assez normale, bien qu’elles ne soit pas du tout inévitable. Et, encore moins, justifiable. Il est assez normal qu’à celui qui, du point de vue du présent, et même de l’avenir vers lequel il est tendu son travail, jette un coup d’œil sur le passé – un passé, depuis longtemps dépassé – les théories anciennes apparaissent comme des monstres incompréhensibles, ridicules et difformes. En effet, puisqu’il remonte le cours du temps, il les rencontre, au moment de leur mort, veillies, desséchées, sclérosées. Il voit, pour tout dire la Belle Heaumière telle qu’elle nous a été rendue par Rodin. C’est l’historien seulement qui la retrouve dans sa prime et glorieuse jeunesse, dans tout l’éclat de sa beauté, c’est l’historien seulement qui, en re-faisant, et en resuivant l’évolution de la science, sait les théories du passé à leur naissance et vit, avec elles, l’élan créateur de la pensée”.
  • 18
    Trad. livre da autora: “dans les veines du sujet connaissant tel que Locke, Hume et Kant le construisirent, ce n’est pas du sang véritable qui coule, mais une sève délayée de raison, conçue comme unique activité de penser”.
  • 19
    Trad. livre da autora: “[ce stupide XVIII e siècle], stupide à force d’être raisonnable...”.
  • 20
    Trad. livre da autora: “Le XVIII e avec sa philosophie des Lumières, c’est vraiment très naïf: des gens qui croient à la lumière, à la raison, qui représentent l’homme de façon si simple, qui ne comprennent pas qu’il y a dans l’homme des profondeurs où la lumière ne pénètre pas et que c’est là ce qu’il y a de mieux”.
  • 21
    Trad. livre da autora: “âme qui est tendance confuse, passion, élan”.
  • 22
    BIBLIOTHÈQUE NATIONALE DE FRANCE (BnF), Paris. Lettre d’Alexandre Koyré à Raymond Aron, [1938]. Fonds Raymond Aron, NAF 28060 (1-77), cx. 5, f. 3. Grifos e trad. livre da autora: “Je veux vous dire l’impression que j’ai eu en lisant votre livre: c’est bien, très bien même. (…) J’ai relu votre chapitre sur Dilthey – c’est bien, et votre systématisation ne dépasse pas les bornes de ce que Dilthey aurait pu faire. (…) Votre Rickert me semble lui donner quand même trop d’importance. (…) Votre Simmel est bien. Votre Weber très bien”.
  • 23
    Paul Vignaux também era amigo de Koyré. Ver: Vignaux ( 2016VIGNAUX, Georgette. Entrevistadora: Christine Goémé. Alexandre Koyré ou l’amour du savoir (1ère diffusion: 09/07/1982). Radio France, 23 dez. 2016. Disponível em: https://www.franceculture.fr/emissions/les-nuits-de-france-culture/documentaire-du-vendredi-alexandre-koyre-ou-lamour-du-savoir Acesso em: 15 mar. 2023.
    https://www.franceculture.fr/emissions/l...
    ).
  • 24
    Trad. livre da autora: “Pourquoi notre ami Groethuysen n’était-il pas là pour le lire”.
  • 25
    Trad. livre da autora: “Curieuse, imprévisible et illogique”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2023
  • Aceito
    21 Mar 2023
  • Revisado
    15 Mar 2023
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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