Acessibilidade / Reportar erro

O Ingresso de índios e de mulatos na Ordem Terceira de São Francisco do Pará (c. 1759 - c. 1767)

The Entry of Natives and Mulattoes in the Third Order of São Francisco do Pará (c. 1759 - c. 1767)

Resumo

Este estudo pretende discutir a entrada de fiéis católicos, descendentes de povos indígenas que habitavam a região amazônica, na Ordem Terceira de São Francisco do Pará. Até princípios do século XVIII, a Ordem praticava uma política restritiva de aceitação de fiéis nativos. Depois das leis de 4 de abril, de 6 de junho, de 7 de junho de 1755 e do famoso Diretório dos índios, aprovado em 17 de agosto de 1758, constituiu-se um ambiente legal propício ao ingresso mais amplo de descendentes de populações indígenas na Ordem. Não obstante, as fontes do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, disponibilizadas pelo Projeto Resgate, mostram sinais de resistência ao cumprimento da legislação por parte dos frades capuchos da província de Santo Antônio de Portugal. Na década de 1760, o ingresso de irmãos que descendiam de nativos pareceu abrir caminho a solicitações de outros grupos sociais que, considerados de “sangue impuro”, eram tradicionalmente excluídos do ingresso nas ordens terceiras.

Palavras-chave:
ordens terceiras; legislação de pureza de sangue; leis pombalinas sobre os índios

Abstract

This study intends to discuss the entry of Catholic descendants of indigenous peoples who inhabited the Amazon region in the Third Order of São Francisco do Pará. Until the beginning of the 18th century, the Order practiced a restrictive policy of acceptance of native Catholics. After the laws of April 4th, June 6th, June 7th of 1755 and the famous “Diretório dos Índios”, approved on August 17th of 1758, a legal environment was created that favored the wider entry of descendants of indigenous populations in the Order. Nevertheless, the sources from the Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) from Lisboa, made available by Projeto Resgate, show signs of resistance to compliance with the legislation by the Capucho friars in the Province of Santo Antônio de Portugal. In the 1760s, the entry of brothers who descended from natives seemed to pave the way for requests from other social groups that, considered to be “impure blood”, were traditionally excluded from joining third orders.

Keywords:
third orders; pure blood laws; Pombaline laws on Indians

EXPOSIÇÃO DO PROBLEMA

O estabelecimento de missionários franciscanos no território do Pará data de 1617, poucos anos depois da fundação da cidade de Santa Maria de Belém. Pertenciam ao ramo da estrita observância da Ordem, e eram denominados como “descalços” ou “capuchos”, alusões que faziam referência à austeridade, à pobreza e à simplicidade da Regra que professavam. Fixados em outras partes da América Portuguesa, como nas cidades de Olinda, São Salvador da Bahia e Rio de Janeiro, os franciscanos capuchos estavam vinculados à província de Santo Antônio de Portugal (WILLEKE, 1975WILLEKE, Venâncio. Missões franciscanas no Brasil (1500-1975). Petrópolis: Vozes, 1975., p. 137-140). Sob o ponto de vista jurídico, estabeleceram-se no Pará entre 1617 e 1624 sob o regime de comissariado, passando no último ano ao de custódia. Conforme assinala Maria Adelina Amorim, “os prelados superiores do comissariado ou da custódia eram escolhidos em capítulo realizado em Lisboa, e a este regressavam depois de exerceram a função que lhes era destinada”. (AMORIM, 2005AMORIM, Maria Adelina. Os Franciscanos no Maranhão e no Grão-Pará: missão e cultura na primeira metade de seiscentos. Lisboa: Cehr, 2005., p. 67). Até o final do período colonial, os franciscanos capuchos da Custódia do Pará encontraram-se sob a dependência da província de Santo Antônio de Lisboa. Além dos capuchos de Santo Antônio, fixaram-se na região amazônica mais duas missões de frades menores observantes: a da Província da Piedade de Portugal, em 1693, e a da Província da Imaculada Conceição de Portugal, em 1706 (AMORIM, 2005, p. 336-350; MATOS, 2014MATOS, Frederik Luizi Andrade de. Os “frades del Rei” nos sertões amazônicos: os capuchos da Piedade na Amazônia colonial (1693-1759). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2014., p. 28-33).

Ainda que se relacione com as atividades dos frades capuchos na região do Pará, o foco do presente trabalho não se situa na missionação das ordens regulares direcionada à conversão dos povos nativos, tema que tem sido contemplado em numerosos trabalhos. Antes, prioriza a análise da fundação de associações religiosas destinadas em princípio a fiéis descendentes de colonizadores portugueses. Em vez de tratar da ação missionária das ordens religiosas, o presente trabalho busca compreender por que razão, a partir de determinado momento, a população indígena convertida pôde ingressar em um tipo de associação destinado aos brancos. Pretende-se, assim, suprir uma lacuna a respeito da participação dos nativos e de seus descendentes na vida associativa católica, constituída pelas irmandades e ordens terceiras, tema que tem merecido farta produção historiográfica, para outras regiões da América Portuguesa e para outros segmentos da população colonial.1 1 Entre os estudos clássicos sobre o tema da vida associativa, podem ser citados: SALLES, 2007; SCARANO, 1978; RUSSELL-WOOD, 1981; BOSCHI, 1986. Com relação às obras mais recentes, ver, por exemplo: SOARES, 2000; OLIVEIRA, 2008; MARTINS, 2009; REGINALDO, 2011; DELFINO, 2017.

Segundo um importante estudioso da região amazônica colonial, Rafael Chambouleyron (2003CHAMBOULEYRON, Rafael. Em torno das missões jesuíticas na Amazônia (século XVII). Lusitania Sacra, n. 15, p. 163-209, 2003., p. 182-193), a historiografia sobre os jesuítas deteve-se predominantemente nas missões efetuadas junto aos nativos, ou nos conflitos relativos à sua mão-de-obra, não considerando tanto as atividades que envolviam os moradores de origem portuguesa, para quem celebravam missas, dirigiam sermões, constituíam colégios, emitiam cartas de irmandade, etc. Na América hispânica, a mudança do foco de análise foi indicada por Karen Melvin (2012MELVIN, Karen. Building Colonial Cities of God: Mendicant Orders and Urban Culture in New Spain. Stanford: Stanford University Press, 2012.), que priorizou o estudo das relações mantidas pelas ordens regulares mendicantes com os fiéis que habitavam em vilas e cidades. Em várias partes da América Portuguesa, no reino de Portugal e em outros territórios católicos, a principal associação difundida por religiosos franciscanos que possuía o perfil descrito, destinando-se ao ingresso de brancos, cristãos-velhos e sem mácula de sangue “infecto”, foi a Ordem Terceira de São Francisco. A historiografia relativa às associações de irmãos terceiros tem assinalado, de um lado, os critérios exclusivistas de pertencimento às ditas associações, motivo que pode explicar a atração que exerciam para os que buscavam distinção social. Por outro lado, indulgências e outros benefícios espirituais concedidos pela Santa Sé às ordens terceiras atraíam os fiéis temerosos das penas do além, cujos sofrimentos poderiam ser mitigados graças ao pertencimento às ditas associações. Além disso, uma elite de católicos imbuída de uma devoção mais ardente encontrava nas ordens terceiras um veículo para canalizar a sua fé, participando de procissões, rituais de penitência e de outros exercícios religiosos, sob a direção dos frades franciscanos. A busca do prestígio mundano, da salvação da alma e dos signos de intensidade da vida religiosa marcaram o pertencimento às ordens terceiras durante os séculos XVII e XVIII. Pode ser agregado à lista um quarto elemento, isto é, os privilégios e isenções de caráter jurídico, derivados da vinculação das associações de irmãos terceiros às ordens regulares que as criaram. Por fim, o ingresso nas ordens terceiras dividia-se em dois momentos, à semelhança do que ocorria na ordem primeira dos frades: a entrada ou tomada de hábito e, após o cumprimento de um período de noviciado, a cerimônia de profissão. Ao se ter em mente o conjunto dos fatores descritos, pode-se compreender melhor a atração que as ordens terceiras exerciam sobre o conjunto dos fiéis católicos.

Para melhor compreensão do objeto do presente estudo, isto é, a questão do ingresso de descendentes de nativos e de africanos na Ordem Terceira de São Francisco do Pará, é importante ter em conta alguns aspectos discutidos no parágrafo anterior. A documentação principal aqui utilizada é constituída por manuscritos da capitania do Pará pertencentes ao acervo do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, disponibilizados pelo Projeto Resgate. Em caráter complementar, recorreu-se à documentação impressa de caráter variado, como a crônica de Monteiro Baena acerca da Ordem Terceira de São Francisco do Pará (BAENA, 1878BAENA, Antonio Nicolau Monteiro. Bosquejo chronológico da venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência do Gram-Pará. Pará: Typ. Commercio do Pará, 1878.), legislação eclesiástica e secular variada, entre outros registros pontuais.

Os arquivos locais não foram ainda checados presencialmente. Houve tentativas de localizar documentação digitalizada, no sítio do Arquivo Público do Pará, mas sem resultados práticos. Foi consultada a importante coletânea documental coligida por Marcos Carneiro de Mendonça, reunindo a correspondência do governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado com a corte em Lisboa, que não trouxe maiores informações sobre o tema aqui analisado (MENDONÇA, 2005MENDONÇA, Marcos Carneiro de (Org.). A Amazônia na era pombalina: correspondência do governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará e do Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751-1759). 3v. Brasília: Senado Federal, 2005.). Assim, foram relativamente diminutas as informações apuradas sobre a Ordem Terceira de São Francisco do Pará. Segundo o mais importante cronista da associação, ela foi fundada em 1668. Em 1694, os irmãos terceiros receberam uma autorização dos frades capuchos para erigirem a primeira capela, em chãos situados no interior da cerca do convento. Em 1685, segundo as informações do capitão Manoel Guedes, a cidade de Belém compunha-se de “quinhentos moradores, gente luzida e vária nobreza, em que também não falta pobreza” (MATOS, 2014MATOS, Frederik Luizi Andrade de. Os “frades del Rei” nos sertões amazônicos: os capuchos da Piedade na Amazônia colonial (1693-1759). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2014., p. 131). Em 1748, foi lançada a primeira pedra da nova capela da Ordem, cuja construção foi inaugurada em 1754, ao custo de doze mil cruzados, isto é, quatro contos e oitocentos mil réis (BAENA, 1878BAENA, Antonio Nicolau Monteiro. Bosquejo chronológico da venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência do Gram-Pará. Pará: Typ. Commercio do Pará, 1878., p. 8-22; AMORIM, 2011AMORIM, Maria Adelina. A Missionação franciscana no Estado do Grão-Pará e Maranhão (1622-1750): agentes, estruturas e dinâmicas. Tese (Doutorado em História) - Universidade de Lisboa, Lisboa, 2011., p. 490-491). No que diz respeito aos aspectos administrativos, a associação dos terceiros franciscanos do Pará funcionava ao modo de outras filiais da Ordem, difundidas na América Portuguesa e no reino de Portugal. Para os referidos territórios, frei Luís de São Francisco, religioso franciscano da cidade do Porto, foi incumbido pelo padre geral da Ordem franciscana de elaborar estatutos gerais, válidos para todas as associações da Ordem (RIBEIRO, 1952RIBEIRO, Fr. Bartolomeu. Os Terceiros franciscanos portugueses: sete séculos de sua história. Braga: Missões Franciscanas, 1952., p. 61-63). Finalizados em 1677, os estatutos gerais conheceram grande difusão, tendo sido recebidos pela Ordem Terceira de São Francisco do Pará, conforme assinalou o cronista Baena. Em 1689, em complementação às normas gerais estabelecidas, a mesa administrativa da Ordem do Pará elaborou os estatutos particulares, documento cujo teor não foi possível conhecer (BAENA, 1878, p. 8).

Os estatutos gerais da Ordem Terceira de São Francisco de 1677 adotavam critérios de seleção para os respectivos membros muito semelhantes àqueles utilizados no acesso às irmandades leigas de maior destaque e à carreira eclesiástica, ou para a recepção de mercês diversas, como os hábitos das ordens militares e as familiaturas do Tribunal do Santo Ofício.2 2 A respeito dos critérios de admissão ao clero secular, ver OLIVEIRA, 2014. Para as ordens militares, consultar OLIVAL, 2001. E quanto à concessão das familiaturas do Santo Ofício, ver RODRIGUES, 2014. Para um panorama de conjunto das instituições que praticavam a referida política, e com ênfase na situação dos cristãos-novos, ver CARNEIRO, 1988, p. 84-126. Se o fiel que solicitava o hábito da Ordem Terceira fosse nobre, eclesiástico ou oficial do Santo Ofício - categorias de pessoas que possuíam reconhecida qualidade - estava dispensado da investigação de genere, exigindo-se apenas a comprovação de bons costumes e da disponibilidade financeira para satisfazer os encargos da Ordem. Para os demais casos, o candidato à admissão deveria declarar em uma petição à mesa os nomes dos pais e dos respectivos avós paternos e maternos, como também os locais de moradia e nascimento dos mesmos. De posse dos referidos registros, o padre comissário da mesa - função que era sempre ocupada por um religioso franciscano - escolhia dois entre os irmãos mais antigos da associação para tirar informações jurídicas que atestassem as qualidades requeridas nos candidatos. Para tal, utilizavam um modelo de interrogatório, ao qual seriam submetidas as testemunhas ouvidas nos inquéritos. O questionário indagava “se conhecem a N e se conheceram a seus pais NN e a seus avós e se sabem que têm alguma raça de Judeu, Mouro ou Herege, condenado pelo Santo Ofício, ou se têm ou tiveram fama disto, e como e porque o sabem” (SÃO FRANCISCO, 1684SÃO FRANCISCO, Fr. Luis de. Livro em que se contém tudo o que toca à origem, regra, estatutos, cerimônias, privilegios e progresso da sagrada Ordem Terceira da Penitência de N. Seraphico P. S. Francisco. Lisboa: Miguel Deslandes, 1684., p. 545-548).

Na impossibilidade de consultar os estatutos particulares da Ordem Terceira de São Francisco do Pará, o conhecimento de documentos análogos, pertencentes às filiais da mesma Ordem fundadas na América portuguesa, indica que tais fontes eram mais sensíveis às condições locais. Em Vila Rica, os estatutos locais da Ordem Terceira de São Francisco foram estabelecidos em 1765. No que tange aos critérios de admissão de irmãos, assemelhavam-se muito aos estatutos gerais, mas incluíam alguns aspectos significativos, ausentes da legislação elaborada em Portugal. Assim, devia-se investigar se o candidato ao ingresso “tem alguma raça de Judeu, Mouro, e Mulato ou de outra qualquer Reprovado por direito”. Conforme explica Cristiano Sousa, que analisou a referida associação, “por se tratar de uma sociedade escravista onde a presença de mulatos, escravos ou livres, era abundante, a Ordem achou necessária a inclusão deste termo na inquisição feita sobre os pretendentes” (SOUSA, 2019SOUSA, Cristiano Oliveira de. O “Estatuto Particular” da venerável Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Vila Rica: critérios de recrutamento e estrutura administrativa. Revista de História da UEG, v. 8, n. 2, p. 1-26, jul.-dez. 2019., p. 6).

No Pará, existem também indícios de introdução de cláusulas complementares, destinadas a reger com maior precisão o acesso de fiéis à Ordem Terceira de São Francisco fundada na localidade. Em 1719, frei José de Santa Catarina elaborou novos estatutos particulares para a associação, trinta anos depois do aparecimento da primeira norma local, cujo texto foi aprovado pela junta geral da Ordem. Em 1722, a mesa administrativa da associação determinou, por maioria de votos, “que de nenhuma sorte fossem admitidos na Ordem os filhos de branco e tapuia, mas os netos destes fossem admitidos” (BAENA, 1878BAENA, Antonio Nicolau Monteiro. Bosquejo chronológico da venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência do Gram-Pará. Pará: Typ. Commercio do Pará, 1878., p. 10).3 3 Segundo as pesquisas de Moreira Neto, o “tapuio” é o nativo destribalizado, resultante do processo de conversão a que foi submetido nos aldeamentos das ordens religiosas, conforme definição do próprio autor: “o tapuio pode ser definido como membro de um grupo indígena que perdeu socialmente o domínio instrumental e normativo de sua cultura aborígine, substituindo-a por elementos de uma ou várias tradições culturais, que se misturam aos traços residuais da língua e da cultura originais (MOREIRA NETO, 1988, p. 79, grifo do autor). De acordo com Santos e Sampaio, o termo não pode ser confundido “com o índio Tapuia, muito veiculado na grande historiografia brasileira, ao referir-se aos índios não-tupi ou aos ‘inimigos’ dos brancos da costa leste da América portuguesa” (SANTOS; SAMPAIO, 2008, p. 95). Conforme já observou Anderson Oliveira, as questões locais assumiam um peso decisivo para a “definição das classificações e distinções sociais com base na cor no império português” (OLIVEIRA, 2014OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Dispensa de cor e clero nativo: poder eclesiástico e sociedade católica na América Portuguesa. In: OLIVEIRA, Anderson José Machado de; MARTINS, William de Souza (Org.). Dimensões do catolicismo no Império português. Rio de Janeiro: Garamond, 2014. p. 199-229., p. 213). Assim, é possível conjecturar a existência de duas situações anteriores: 1) os estatutos particulares não fariam menções específicas à exclusão dos descendentes de nativos, ao modo dos estatutos gerais; 2) os estatutos particulares poderiam ter declarado especificamente a recusa em aceitar fiéis mestiços de brancos com índios. Face às duas situações descritas, as modificações introduzidas em 1722 representavam importante alteração, pois reafirmavam critérios hierarquizantes de seleção e, ao mesmo tempo, abriam uma brecha para o ingresso daqueles que possuíam ante­passados indígenas mais remotos. Como afirmou o autor já citado, as barreiras de cor não constituíam um obstáculo intransponível, ficando sujeitas a alterações e remanejamentos das instituições que as criavam (OLIVEIRA, 2014, p. 214).

Segundo Maria Luiza Tucci Carneiro, os estigmas de pureza de sangue e de qualidade lançados contra populações indígenas para acesso a cargos e instituições e concessão de mercês foi inaugurada pelas Ordenações Manuelinas (1514-1521). Nas Ordenações Flipinas, foram acrescentadas as categorias de negros e mulatos (CARNEIRO, 1988CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial: Portugal e Brasil Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1988., p. 55). A historiografia reconhece que o defeito de limpeza de sangue entre os nativos era considerado menos grave do que aquele padecido pelos cristãos-novos (ALMEIDA, 2003ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003., p. 152). De acordo com o que salienta Verena Stolke, o

sangue impuro era entendido como aquele que carregava a mancha indelével da descendência dos judeus, que mataram Jesus Cristo, e dos muçulmanos, que se recusaram a reconhecê-lo como filho de Deus. O sangue era, portanto, concebido como um veículo de pureza da fé, que transmitia vícios e virtudes religioso-morais de uma geração para outra (STOLKE, 2006STOLKE, Verena. O Enigma das interseções: classe, “raça”, sexo, sexualidade: a formação dos impérios transatlânticos do século XVI ao XIX. Revista Estudos feministas, v. 14, n. 1, p. 15-41, abr. 2006., p. 21).

Por essa razão, conforme indicou Antonio Manuel Hespanha, o estigma da impureza de sangue reforçava, no plano simbólico, “a imagem elitista e aristocratizante da sociedade” (HESPANHA, 1994HESPANHA, Antonio Manuel. As Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal - século XVII. Coimbra: Almedina, 1994., p. 318). Na medida em que os indígenas eram classificados como gentios, isto é, que não tinham ainda conhecido a verdadeira fé, estavam situados um grau acima das outras categorias estigmatizadas. Segundo a obra clássica de Evaldo Cabral de Mello, que trata de concessão de mercês honoríficas na capitania de Pernambuco, como hábitos de ordens militares e familiaturas do Santo Ofício, “o chamado gentilismo, o sangue gentio de uma avó ou bisavô, nunca constituiu obstáculo de monta para o acesso às ordens militares” (MELLO, 1989MELLO, Evaldo Cabral de. O Nome e o sangue: uma fraude genealógica no Pernambuco colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., p. 120-121). Conforme mostraram os trabalhos de Maria Regina Celestino de Almeida para a capitania do Rio de Janeiro, e os de Ronald Raminelli e Maria Beatriz Nizza da Silva para a capitania de Pernambuco, as lideranças indígenas e negras, que lutaram ao lado de portugueses contra franceses e holandeses, receberam hábitos de ordens militares em reconhecimento dos serviços prestados à Coroa lusitana, alçando-os à condição de fidalguia (ALMEIDA, 2003ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.; SILVA, 2005SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na Colônia. São Paulo: Unesp, 2005., p. 85-120; RAMINELLI, 2014RAMINELLI, Ronald. Da Controversa nobilitação de índios e pretos, 1630-1730. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Org.). O Brasil colonial, 1580-1720. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 501-540.). Pesquisas recentes de Ronald Raminelli apontam que a concessão de mercês honoríficas a lideranças indígenas possuíam o duplo efeito de garantir distinções e privilégios aos seus portadores, aproximando-os de outros segmentos das elites coloniais, como também o de fortalecer o papel de liderança que possuíam no âmbito de suas comunidades (RAMINELLI, 2015, p. 135-173; ALMEIDA, 2017, p. 23-25). No momento oportuno, será retomada a participação de indígenas do Pará na Ordem Terceira de São Francisco. Em seguida, será aprofundada uma questão suscitada no início do texto: os sinais de distinção, de privilégio e de riqueza auferidos pela Ordem Terceira de São Francisco do Pará, que a tornavam um objeto de desejo para diversos segmentos da população colonial, inclusive dos mestiços oriundos de ligações entre os portugueses brancos, nativas e descendentes de africanos, além dos próprios nativos.

SOB O SIGNO DA DISTINÇÃO, DO PRIVILÉGIO E DA RIQUEZA

Por meio de uma bula expedida a 4 de março de 1720, o papa Clemente XI autorizou a criação do bispado do Pará, separando seu território do bispado do Maranhão, e subordinando a nova diocese ao patriarcado de Lisboa. Na mesma ocasião, foi também criado o cabido da sé do Pará. Conforme é possível verificar nas petições da Ordem Terceira enviadas ao Conselho Ultramarino, vários cônegos da Sé ocupavam funções na mesa administrativa da associação. Para ocupar a função de titular da nova diocese, D. João V nomeou o religioso carmelita frei Bartolomeu do Pilar. Sagrado bispo na igreja patriarcal de Lisboa a 22 de dezembro de 1720, D. Fr. Bartolomeu do Pilar tomou no ano seguinte posse da diocese, por intermédio de seu procurador. Não obstante, a partida para a América portuguesa demandou mais tempo, tendo efetuado a entrada solene na nova diocese apenas a 21 de setembro de 1724. Segundo Roberto Zahluth de Carvalho Jr., “a chegada de D. Frei Bartolomeu ao Pará é marcada por rituais de afirmação do poder episcopal” (CARVALHO JÚNIOR, 2015CARVALHO JÚNIOR, Roberto Zahluth de. “Dominar homens ferozes”: missionários carmelitas no Estado do Maranhão e Grão-Pará (1686-1757). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015., p. 176). Com efeito, para assistir às referidas cerimônias, o bispo exigiu que tomasse assento em banco de espaldar coberto, enquanto alguns representantes dos poderes seculares deveriam permanecer de pé.

A afirmação do poder episcopal por meio de cerimônias festivas não poupou a Ordem Terceira de São Francisco do Pará. Segundo o cronista Baena, em 26 de maio de 1725 o bispo enviou a carta do seguinte teor ao comissário da Ordem:

Como pela misericórdia divina e mercê da Santa Sé apostólica dou princípio à fundação deste novo bispado, devo logo na sua ereção fazer quanto me for possível que todas as ações do culto, que damos a Deus, se façam com a decência e decoro que lhe é devido; e como a santa igreja católica me ordena se faça a procissão de Corpo de Deus sacramentado com toda a solenidade, assistindo nela todas as comunidades, que por privilégio ou estatutos não foram isentas para saírem fora em comunidade; e como assim foi também servido Sua Majestade (...) ordenar-nos, me vejo obrigado mandar a venerável Ordem Terceira do Seráfico Padre São Francisco, ereta nesta cidade, cabeça do nosso bispado, acompanhe a dita procissão (BAENA, 1878BAENA, Antonio Nicolau Monteiro. Bosquejo chronológico da venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência do Gram-Pará. Pará: Typ. Commercio do Pará, 1878., p. 10-11).

Após receber o documento em questão, o padre comissário da Ordem, fr. Francisco de Santo Antônio, informou que havia convocado a junta geral de irmãos para o dia 30 do mês de maio. O parecer da assembleia foi “que se não havia direito que precisasse a Ordem acompanhar as procissões, se conservassem as isenções, que lhe pertenciam, conforme o costume em que estava”. Não obstante, o padre comissário conseguiu convencer, com “muito trabalho”, a mesa da associação para que ela acompanhasse a procissão do Corpo de Deus “por devoção”, e não “obrigada de preceito”. O frade capucho concluiu a súplica dirigida ao Conselho Ultramarino em 8 de setembro de 1725, reafirmando os direitos da Ordem Terceira: “eu só quero a paz destes meus súditos, e não os desassossêgos que lhes causou o mencionado preceito, na consideração de que a Ordem Terceira vive isenta da jurisdição Ordinária por vários Privilégios, e não é obrigada às procissões, como todos sabem”. No ano seguinte, em carta de 2 de maio, a decisão do rei enviada por intermédio do Conselho Ultramarino atendia as pretensões do bispo do Pará, mas sem derrogar os privilégios dos irmãos terceiros: “deve-se ordenar ao Padre Comissário da Ordem Terceira de São Francisco que a dita Ordem acompanhe a procissão do Corpo de Deus, como se observa na Santa Igreja Patriarcal, sem entrar em disputa da obrigação de assim o fazer”.4 4 AHU, Lisboa. Carta do comissário da Ordem Terceira de São Francisco do Pará, fr. Francisco de Santo António, para o rei [D. João V], solicitando que a mesma Ordem acompanhe a procissão de “Corpus Christis”, conforme a “Resolução Apologética” apresentada pelo Bispo do Pará, D. fr. Bartolomeu do Pilar, 1725. Cx. 9, D. 769. Assim, no ano de 1726, a Ordem Terceira participou da cerimônia do Corpus Christi realizada no Pará. Mas não por muito tempo, ao que parece.

A resistência da Ordem Terceira de São Francisco do Pará em participar da procissão do Corpo de Deus constitui um bom exemplo das situações apresentadas no cotidiano administrativo da Ordem, em que ela buscava se afastar das obrigações comuns a outras corporações ou categorias de súditos, e reafirmar seus privilégios. Segundo as Ordenações Filipinas de 1603, as câmaras das vilas e cidades tinham o encargo de ordenar, nos respectivos territórios, a procissão do Corpo de Deus. Os moradores em um raio de uma légua estavam obrigados à assistência, sob pena de pagamento de multas (ALMEIDA, 1870ALMEIDA, Cândido Mendes de (Comp.). Código philippino ou ordenações e leis do Reino de Portugal recopiladas por mandado d’El D. Philippe I. Rio de Janeiro: Typ. do Instituto Philomathico, 1870., p. 152-153). Na legislação do arcebispado de Lisboa, de quem o bispado do Pará era sufragâneo, verifica-se que os moradores tinham a obrigação de limpar a frente de suas casas e ornamentá-las para a passagem do desfile. A ele deveria também comparecer todo o clero diocesano, “e bem assim todas as Comunidades das Religiões, que tiverem Conventos ou Colégios nesta Cidade, e nas vilas e lugares de nosso Arcebispado (...), o que todos assim cumprirão, ainda que sejam religiosos exemptos e mendicantes, sob pena de excomunhão maior” (CUNHA, 1656CUNHA, D. Rodrigo da. Constituições synodaes do Arcebispado de Lisboa, novamente feita pelo D. Rodrigo da Cunha, arcebispo da mesma cidad, no synodo do anno de 1640. Lisboa: Paulo Craesbeeck, 1656., p. 215, grifo do autor).5 5 As Constituições do Arcebispado da Bahia, publicadas pela primeira vez em 1719, continham cláusulas muito semelhantes: “e sob a mesma pena de excomunhão, mandamos a todos os religiosos das religiões que costumam no nosso reino de Portugal acompanhar esta procissão, que assim nesta cidade como nas vilas e lugares de nosso arcebispado (...) a acompanhem no dito dia em corpo de comunidade com cruz adiante” (VIDE, 2010, p. 332). Acerca da realização da referida procissão na América Portuguesa, ver SANTOS, 2005.

Diversos manuais destinados às ordens terceiras declaravam que essas se beneficiavam da comunicação de privilégios, graças e indulgências concedidas pela Santa Sé às ordens mendicantes, isto é, aos franciscanos, carmelitas, dominicanos, entre outros frades (ARBIOL, 1706ARBIOL, Fr. Antonio. Los Terceros hijos del humano serafin, la venerable y esclarecida Orden Tercera de nuestro serafico Patriarca San Francisco. Refierense sus gloriosos princípios, regla, leyes, estatutos, y sagrados exercícios, sus grandes excelências, indulgencias, y privilegios apostolicos; y las vidas prodigiosas de sus mas principales Santos, y Santas, para Consuelo, y aprovechiamiento de sus amados Hermanos. Zaragoça: Manuel Roman, Impressor de la Universidad, 1706., p. 198-199; BELÉM, 1736BELÉM, Fr. Jerônimo de. Palestra da penitência sendo corifeu, autor e mestre o milagroso Deus Menino, e seu legítimo substituto o Patriarca dos Pobres, o grande pequeno São Francisco de Assis. Lisboa Ocidental: Antônio Isidoro da Fonseca, 1736., p. 227-228). No que diz respeito ao caso analisado, as ordens terceiras estavam isentas das visitas dos bispos e, de modo geral, eram imunes à jurisdição diocesana ordinária. Tais direitos foram explicitados ao rei em uma “Resolução apologética” enviada em anexo à petição do padre comissário da Ordem. Redigida como uma erudita defesa jurídica, fazendo uso de extensas citações em latim e mencionando várias fontes de direito, a apologia partiu de dois pressupostos: o de que a Ordem Terceira de São Francisco estava subordinada ao ministro geral dos franciscanos observantes; e o de que gozava “de todas as graças, privilégios, exempções, favores, imunidades, prerrogativas, indulgências e indultos que gozam os Religiosos de São Francisco”.6 6 AHU, Lisboa. Carta do comissário da Ordem Terceira de São Francisco do Pará, fr. Francisco de Santo António, para o rei [D. João V], solicitando que a mesma Ordem acompanhe a procissão de “Corpus Christis”, conforme a “Resolução Apologética” apresentada pelo Bispo do Pará, D. fr. Bartolomeu do Pilar, 1725. Cx. 9, D. 769. Baseando-se nos referidos aspectos, o argumento principal do letrado anônimo era de que o bispo não podia obrigar a Ordem ao comparecimento da procissão porque não havia direito expresso que justificasse tal medida. E, mesmo se houvesse leis que obrigassem as ordens terceiras seculares ao acompanhamento daquela solenidade, “nunca a de São Francisco do Pará ficava ligada com as ditas Leis, por estar sujeita a uma Província reformada e isenta de acompanhar as procissões”. Por sua vez, o costume da Ordem em acompanhar os seus defuntos com cruz alçada, ou alguma procissão devota e penitente, como a da Ordem Terceira do Carmo, sendo rogada, não constituía também razão para obrigar os terceiros franciscanos ao acompanhamento da solenidade do Corpo de Deus. Por fim, argumentou que, se na igreja patriarcal de Lisboa a Ordem Terceira de São Francisco acompanhava a cerimônia em questão, esse caso não forçava a associação do Pará a praticar o mesmo: “se na procissão da Patriarcal vai a Ordem Terceira ou é porque quer ceder do seu direito, ou é por especial decreto, e cá no Pará nem há esse especial decreto, nem a Ordem quer ceder do seu direito”.7 7 AHU, Lisboa. Carta do comissário da Ordem Terceira de São Francisco do Pará, fr. Francisco de Santo António, para o rei [D. João V], solicitando que a mesma Ordem acompanhe a procissão de “Corpus Christis”, conforme a “Resolução Apologética” apresentada pelo Bispo do Pará, D. fr. Bartolomeu do Pilar, 1725. Cx. 9, D. 769.

Em outra carta, com data de 28 de setembro de 1727, o padre comissário da Ordem expôs que a associação dos terceiros franciscanos do Pará vinha acompanhando por três anos seguidos a procissão do Corpo de Deus da cidade, em obediência às determinações régias. Na medida em que a “tão pobre” associação suportava os gastos com a cera necessária à festividade, o que tornava “os Cargos dos Irmãos da Mesa sumamente odiosos”, suplicava ao rei a concessão de “uma esmola anual ao menos de duas arrobas de cera para o gasto da dita procissão, ordenando se entregue a dita esmola ao Procurador da Ordem nessa Corte, para que assim possamos com mais decoro executar os Reais preceitos, e assistir a sua procissão tão santa”. Em anexo, seguia uma certidão assinada pelos membros da mesa da Ordem, na qual declaravam que a “Ordem Terceira não tem renda alguma, e o que nela se gasta, o pagam os Irmãos da Mesa, como também três Capelas de Missas que todos os Anos se dizem para Salvação dos Irmãos vivos e defuntos, e bem assim as missas que se dizem pelos Irmãos que falecem”. À margem da petição do padre comissário consta uma observação, provavelmente elaborada por alguma autoridade em Lisboa, explicando que não era costume o rei conceder esmolas para participação na procissão do Corpus. Se fizesse tal concessão, “seria mais usura que serviço, e se lhe não deve deferir”.8 8 AHU, Lisboa. Carta do comissário e visitador da Ordem Terceira de São Francisco da cidade de Santa Maria de Belém do Pará, fr. Francisco de Santo António, para o rei [D. João V], sobre o acompanhamento que a Ordem Terceira fez na procissão do Corpo de Deus naquela cidade, considerando que, para o futuro, seria necessária ajuda financeira para suprir as despesas com o dito evento, 1727. Cx. 10, D. 939. De fato, mesmo aos vereadores das câmaras, corresponsáveis pela organização da solenidade, não era permitido levar “dos bens do Conselho dinheiro nem percalço algum, por fazerem as ditas Procissões, ou irem nelas” (ALMEIDA, 1870ALMEIDA, Cândido Mendes de (Comp.). Código philippino ou ordenações e leis do Reino de Portugal recopiladas por mandado d’El D. Philippe I. Rio de Janeiro: Typ. do Instituto Philomathico, 1870., p. 153). Mesmo sem conceder a esmola suplicada, a provisão régia expedida a 28 de abril de 1728 reconheceu o direito da Ordem de não participar da procissão, conforme havia defendido a “Resolução apologética”: “que devia sempre ficar salvo o vosso direito e da dita ordem terceira para não continuardes com esta obrigação, que deveis usar neste particular do dito direito se entenderdes que o tendes”.9 9 AHU, Lisboa. Provisão (cópia) do rei D. João V, para o comissário da Ordem Terceira de São Francisco, fr. Francisco Santo António, relativa à realização da procissão do Corpo de Deus na capitania do Pará, 1728. Cx. 11, D. 968.

Sem receber a esmola para a aquisição da cera, mas garantindo as próprias isenções, é provável que a Ordem Terceira tenha deixado de comparecer à solenidade do Corpo de Deus no Pará. É preciso, contudo, ter cuidado ao avaliar a condição de pobreza alegada pela Ordem. Na verdade, a afirmação pode ter constituído uma estratégia para obter mais privilégios. De acordo com a determinação da junta geral de irmãos realizada em 1731, as anuidades da associação foram estabelecidas em 500 réis, podendo ser pagas em gêneros como cacau, cravo e salsa. Por determinação de 1733, os irmãos devedores que não pudessem saldar os anuais com os gêneros descritos poderiam pagá-los com fio, presumivelmente de algodão, avaliado em 250 réis a libra. Os irmãos terceiros estabelecidos na Vila da Vigia queixaram-se em 1734 das referidas condições de pagamento, alegando que “naquela vila não corre outra moeda mais que fio a 500 réis a libra, pano, sabão, peixe e farinha” (BAENA, 1878BAENA, Antonio Nicolau Monteiro. Bosquejo chronológico da venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência do Gram-Pará. Pará: Typ. Commercio do Pará, 1878., p. 14). É factível supor que os recursos destinados ao pagamento das anuidades poderiam ser disponibilizados por apenas uma pequena parcela da população local. Por outro lado, se a Ordem não dispunha ainda de bens imóveis em princípios do século XVIII, mais tarde tornou-se possuidora dos mesmos. Em um requerimento enviado ao Conselho em 1769, Cipriano Antunes Vieira, morador da cidade do Pará, suplicava ao rei que restituísse uma morada de casas que obtivera por compra de Vitoriana da Silva, e que se encontrava na posse da Ordem Terceira de São Francisco, herdeira da referida mulher. Por ser pobre, o suplicante alegava que não podia alimentar demandas com a Ordem, “por ser muito poderosa, em razão de se compor de sujeitos mais ricos, poderosos e de maior respeito naquela capital”. Após ser ouvido o procurador da Fazenda, a súplica foi escusada em 17 de julho de 1769.10 10 AHU, Lisboa. Requerimento de Cipriano Antunes Vieira, morador na cidade do Pará, para o rei [D. José I], solicitando que se julgue a questão relativa à posse de umas casas que lhe pertencem e que foram ocupadas pelos religiosos da ordem terceira de São Francisco daquela cidade, 1769. Cx. 64, D. 5554.

O que se pode concluir a respeito da resistência da Ordem Terceira de São Francisco do Pará em participar da procissão do Corpo de Deus? No episódio, os representantes da Ordem tentaram preservar as imunidades gozadas pela associação frente ao direito comum prescrito aos demais súditos, previstos nas ordenações do reino e nas constituições diocesanas. Privilégios de natureza corporativa, garantidos às ordens regulares, mantinham a Ordem Terceira de São Francisco em um lugar de distinção diante das simples irmandades, que se viam obrigadas a participar do desfile de Corpus Christi. Conforme argumenta Antonio Manuel Hespanha, os privilégios corporativos auferidos pelo clero e pela nobreza constituíam um dos fundamentos da sociedade do Antigo Regime, em que o predomínio da lei privada se impunha aos ordenamentos jurídicos mais gerais (HESPANHA, 1994HESPANHA, Antonio Manuel. As Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal - século XVII. Coimbra: Almedina, 1994., p. 324-343). Conforme indicou o cronista Monteiro Baena, desde pelo menos 1722, alguns mestiços descendentes de nativos e de portugueses obtiveram acesso à Ordem Terceira de São Francisco do Pará, passando a usufruir dos privilégios de natureza jurídica e canônica característicos daquela corporação. E, de modo complementar, foram incorporados aos padrões de pureza de sangue aceitos localmente pela associação, aproximando-se do status social gozado pelos brancos descendentes de cristãos-velhos, que compunham a categoria onde eram tradicionalmente recrutados os membros da Ordem, afastando-se assim da massa constituída por outros nativos e por mestiços descendentes de brancos e de africanos.

Uma vez que já foram sumariamente abordados os fatores de distinção e de riqueza auferidos pela Ordem Terceira de São Francisco no Pará, mostrando-se também a inserção da mesma no campo religioso local, é possível agora passar ao objeto principal do estudo.11 11 O conceito de “campo religioso” é utilizado aqui em conformidade com a definição de Bourdieu (1987), segundo o qual aquele se constitui como um espaço social de disputa entre diferentes agentes, movidos pela busca de capital sagrado e do monopólio do poder religioso. No caso discutido acima, ficou patente a tensão entre a autoridade ordinária do bispo diocesano e a esfera onde estava situada a Ordem Terceira de São Francisco, sob a autoridade dos religiosos franciscanos capuchos. No final do processo, os agentes identificados com a Ordem puderam manter os próprios privilégios e poderes, esvaziando a autoridade do bispo.

O INGRESSO DE NATIVOS E DE MULATOS

Na década de 1750, o contexto de atuação da Ordem Terceira de São Francisco no Pará mudou profundamente. Durante o governo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, e em total consonância com o primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, irmão do governador, foi delineado um projeto de fortalecimento da soberania régia no Estado do Grão-Pará e do Maranhão. Para o que toca mais diretamente ao objeto do presente texto, três medidas devem ser salientadas. Em primeiro lugar, o alvará de 4 de abril de 1755, declarando que “os vassalos do Reino da América que se casarem com índias não ficarão com a infâmia alguma” (SANTOS; SAMPAIO, 2008SANTOS, Francisco Jorge dos; SAMPAIO, Patrícia Maria de Melo. 1755, o ano da virada na Amazônia portuguesa. Somanlu, v. 8, n. 2, p. 79-98, jul.-dez. 2008., p. 80). Os brancos portugueses casados com mulheres nativas - trata-se aqui, evidentemente, do contingente da população indígena que havia passado pelo processo de destribalização e mudança cultural - tornaram-se preferidos para ocupar postos e receber dignidades. Além disso, os estigmas de classificação social vinculados aos descendentes das referidas uniões estavam abolidos, sendo “proibido referir-se às pessoas de sangue indígena depreciando-as com a palavra caboclo” (HEMMING, 2009HEMMING, John. Fronteira amazônica: a derrota dos índios brasileiros. São Paulo: Edusp, 2009., p. 30, grifo do autor). Em segundo, pela lei de 6 de junho de 1755, que “restituiu aos índios do Grão-Pará e Maranhão a liberdade de suas pessoas, bens e comércio” (SANTOS; SAMPAIO, 2008, p. 80). O texto da lei fazia referência à recepção em Portugal da bula de 20 de dezembro de 1741, em que o papa Benedito XIV determinou a liberdade “de pessoas, bens e comércio dos índios do Pará e Maranhão”. Após a edição da referida lei, “os índios passariam a gozar de todos os privilégios dos cidadãos livres comuns” (HEMMING, 2009, p. 29). E em terceiro lugar, a lei de 7 de junho de 1755, que retirou a jurisdição temporal das ordens regulares sobre os índios do Grão-Pará e Maranhão (SANTOS; SAMPAIO, 2008, p. 89-90).

Poucos anos depois, em requerimento elaborado antes de junho de 1759, alguns suplicantes autointitulados “índios e índias mamelucas” do Estado do Pará solicitaram ao Conselho Ultramarino autorização para serem admitidos na Ordem Terceira de São Francisco da cidade de Belém. Achando-se “civilizados e estabelecidos com cabedais e bons procedimentos” e que

Pretendendo entrar na Ordem Terceira da Penitência, os Definidores da dita Ordem os repudiam por serem descendentes de índios, que nisto lhes fazem uma grande injúria, quebrantando a Lei de Vossa Majestade em que os há por nobres, e juntamente porque o mesmo Excelentíssimo Bispo os está admitindo a sacerdotes, em cujos termos recorrem à inata Piedade de Vossa Majestade para que mande à dita Ordem Terceira, que tendo os pretendentes bons procedimentos e cabedais para concorrerem com as obrigações da Ordem e mais despesas delas, os aceite debaixo das penas que Vossa majestade foi servido, e obrando o contrário havê-los por transgressores da Real Lei de Vossa Majestade.12 12 AHU, Lisboa. Requerimento dos índios e índias mamelucas do Estado do Pará para o rei [D. José I], solicitando que lhes seja autorizada a sua admissão na Ordem Terceira da Penitência da cidade de Belém do Pará, 1759. Cx. 45, D. 4082.

Não houve resposta do Conselho Ultramarino a essa primeira petição. Solicitado pelo Conselho a prestar informação sobre o requerimento, o procurador da Fazenda respondeu em junho de 1759: “entendo que para qualquer homem ser admitido nestas Ordens terceiras, ou em quaisquer outras confrarias, basta-lhe o ser Cristão Católico Romano”.13 13 AHU, Lisboa. Requerimento dos índios e índias mamelucas do Estado do Pará para o rei [D. José I], solicitando que lhes seja autorizada a sua admissão na Ordem Terceira da Penitência da cidade de Belém do Pará, 1759. Cx. 45, D. 4082. O representante da autoridade régia posicionou-se a favor do pedido dos índios mamelucos do Pará. Além disso, o seu parecer distanciava-se da legislação ainda em vigência, que excluía cristãos-novos, mulatos e outras “nações infectas” do ingresso nas associações religiosas descritas. O Conselho também solicitou o parecer do governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, mas não consta que ele tenha respondido. Tampouco há indícios de que a Ordem Terceira tenha tentado esclarecer nesse momento a queixa dos índios mamelucos.

No ano seguinte, a questão tomou maior vulto, e a Ordem Terceira preocupou-se em explicar os critérios de pertencimento à associação. Em 11 de setembro de 1760, a mesa geral da Ordem enviou dois ofícios a Lisboa, que continham declarações muito semelhantes: um a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que se encontrava na ocasião no posto de secretário de Estado da Marinha e Ultramar. E o outro ao Conde de Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Melo. Os irmãos terceiros expuseram que o provincial da Província de Santo Antônio de Portugal, fr. José da Soledade, havia recebido um aviso, expedido pela Secretaria de Estado, declarando que fr. João do Monte Carmelo, comissário da Ordem, e a própria associação

se mostravam menos observantes das reais e piíssimas Leis que Sua Majestade Fidelíssima, que Deus guarde, se dignou mandar publicar em este Estado do Grão-Pará em benefício dos índios e seus descendentes, chamados vulgarmente Mamalucos [sic], não os admitindo a ir terceiros em a dita Ordem.14 14 AHU, Lisboa. Ofício dos religiosos da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco da cidade do Pará, para o [secretário de estado dos Negócios do Reino e Mercês] conde de Oeiras [Sebastião José de Carvalho e Melo], defendendo-se das acusações de não respeitarem a lei sobre os índios e seus descendentes, ao não permitir o ingresso destes nos quadros da referida ordem religiosa, 1760. Cx. 47, D. 4275; AHU, Lisboa. Ofício dos religiosos da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco da cidade do Pará, para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado, solicitando a restituição, àquela ordem, do comissário visitador dos religiosos de Santo António, padre fr. João da Salvação, 1760. Cx. 47, D. 4270.

A Ordem alegou que, sendo alvo de calúnia, sempre cumprira as determinações régias no tocante à aceitação de nativos:

não tendo nós palavras em que possamos dignamente exprimir a Vossa Excelência o grande sentimento que tivemos de que houvesse quem machucasse a inocência desta Venerável Ordem Terceira e seu Comissário, vilipendiando o mais nobre caráter de que se gloriam os humildes filhos de São Francisco em serem sempre obedientíssimos às mais mínimas insinuações do Real Sentimento.15 15 AHU, Lisboa. Ofício dos religiosos da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco da cidade do Pará, para o [secretário de estado dos Negócios do Reino e Mercês] conde de Oeiras [Sebastião José de Carvalho e Melo], defendendo-se das acusações de não respeitarem a lei sobre os índios e seus descendentes, ao não permitir o ingresso destes nos quadros da referida ordem religiosa, 1760. Cx. 47, D. 4275.

É interessante notar como a Ordem, que fazia questão de defender seus privilégios, podia adotar em suas súplicas, quando convinha, um tom de humildade muito presente na tradição franciscana, desde os tempos do poverello de Assis. Reportando-se diretamente ao Conde de Oeiras, esse cuidado era mais do que justificável. Desde 1757, quando o Diretório dos índios substituiu a administração temporal que as ordens regulares mantinham sobre os aldeamentos por diretores seculares, os missionários jesuítas começaram a ser expulsos do Estado do Grão-Pará e Maranhão, como também os religiosos franciscanos das províncias da Piedade e da Conceição (HEMMING, 1978HEMMING, John. Red Gold. The Conquest of the Brazilian Indians, 1500-1760. Cambridge: Harvard University Press, 1978., p. 443-483; WILLEKE, 1975WILLEKE, Venâncio. Missões franciscanas no Brasil (1500-1975). Petrópolis: Vozes, 1975., p. 152-154; ALMEIDA, 1997ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos índios: um projeto de “civilização” no Brasil do século XVIII. Brasília: UnB, 1997., p. 152-225).16 16 De acordo com Almeida, o “Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão” foi “assinado em 3 de maio de 1757 por Francisco Xavier de Mendonça Furtado”, tendo as suas diretrizes “aprovadas por força do alvará de 17 de agosto de 1758” (ALMEIDA, 1997, p. 152).

Em sua defesa, a Ordem expôs que, obedecendo a uma advertência do governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado, o comissário fr. João do Monte Carmelo havia lido um acórdão na mesa geral da associação, no qual se declarava a aceitação de “índios e seus descendentes em a Ordem Terceira com a mesma indiferença com que se aceitam os naturais da Europa, cujo acórdão o dito Padre Comissário tem até agora executado com admirável zelo”.17 17 AHU, Lisboa. Ofício dos religiosos da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco da cidade do Pará, para o [secretário de estado dos Negócios do Reino e Mercês] conde de Oeiras [Sebastião José de Carvalho e Melo], defendendo-se das acusações de não respeitarem a lei sobre os índios e seus descendentes, ao não permitir o ingresso destes nos quadros da referida ordem religiosa, 1760. Cx. 47, D. 4275. De acordo com o cronista da Ordem, a 9 de março de 1759, o padre comissário em questão declarou na mesa da associação que “em observância da lei de 7 de junho de 1755, pela qual Sua Majestade Fidelíssima foi servida nobilitar e isentar de toda a infâmia os índios naturais da terra, e seus descendentes, cumpria reformar o estatuto particular da Ordem, na parte que proíbe a admissão deles” (BAENA, 1878BAENA, Antonio Nicolau Monteiro. Bosquejo chronológico da venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência do Gram-Pará. Pará: Typ. Commercio do Pará, 1878., p. 25). Nesse trecho, aparece uma alusão muito provável ao estatuto de 1722 que, conforme discutido no item um, proibia o ingresso dos filhos de descendentes de brancos e tapuias, permitindo apenas os netos oriundos daquelas relações. A partir da proposta levada pelo padre comissário, a mesa resolveu que “todo índio ou seu descendente, que não tiver mescla de preto, e se tratar à lei de brancos, possa ser admitido à Ordem” (BAENA, 1878, p. 25, grifo do autor), uma referência também muito provável ao acórdão citado na correspondência do Conselho Ultramarino. Deve-se observar, no texto grifado, como a remoção da mácula de sangue dos nativos, efetuada pela legislação pombalina de 1755, não tinha o mesmo efeito com relação à descendência africana.

Nos ofícios enviados a Lisboa a 11 de setembro de 1760, a Ordem solicitava às autoridades régias que fr. João de Monte Carmelo fosse restituído à ocupação de comissário da associação. Em anexo, a Ordem remeteu um “catálogo de descendentes de índios” que tinham sido aceitos como irmãos na associação, durante o período em que fr. João do Monte Carmelo servira como padre comissário. O referido religioso assumira a ocupação de comissário a 26 de outubro de 1757 (BAENA, 1878BAENA, Antonio Nicolau Monteiro. Bosquejo chronológico da venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência do Gram-Pará. Pará: Typ. Commercio do Pará, 1878., p. 25).

Para efeito de melhor visualização, o “catálogo” referido é apresentado no quadro abaixo:

Quadro 1
Descendentes de índios aceitos na Ordem Terceira de São Francisco do Pará (1759-1760)

O rol descrito foi assinado pelo secretário da Ordem a 28 de agosto de 1760, e elaborado a pedido da mesma. Além dos treze nomes identificados, o irmão secretário declarou que Feliciano da Gaia, natural da aldeia de Uná, “foi admitido e não recebeu ainda o santo hábito por se achar fora da terra”. No período descrito, dois candidatos descendentes de índios não tinham sido aceitos: Antônia Maria do Nazaré e Pedro Joaquim de Alcântara, em ambos os casos por falta de bens para satisfazer as despesas da associação. Por fim, o secretário da Ordem atestou que havia candidatos que não foram aceitos “por mal procedidos e outros com Infesta Nação [sic] como constam dos mais assentos feitos pelos Reverendos Padres Comissários Visitadores, pois é livro que se acha em seu poder e não na secretaria da Ordem”.18 18 AHU, Lisboa. Ofício dos religiosos da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco da cidade do Pará, para [o secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado, solicitando a restituição, àquela ordem, do comissário visitador dos religiosos de Santo António, padre fr. João da Salvação, 1760. Cx. 47, D. 4270. A última informação mostra com toda a clareza que apenas os impedimentos associados ao sangue indígena haviam sido abolidos para o ingresso na Ordem Terceira, permanecendo de pé as restrições aplicadas às demais “raças” proibidas, conforme já argumentado. O próprio Diretório dos índios procurou afastar dos nativos americanos a infâmia associada aos descendentes de africanos:

não consentirão os Diretores daqui por diante, que pessoas alguma chame Negros aos Índios, nem que eles mesmos usem entre si deste nome como até agora praticavam; para que compreendendo eles, que não lhes compete a vileza do mesmo nome, possam conceber aquelas nobres ideias, que naturalmente infundem nos homens a estimação, e a honra (ALMEIDA, 1997ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos índios: um projeto de “civilização” no Brasil do século XVIII. Brasília: UnB, 1997., p. 184).

No ofício de 2 de outubro de 1761 enviado por Manoel Bernardo de Melo e Castro, governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão, ao secretário de Estado Francisco Xavier de Mendonça Furtado, são explicadas mais detalhadamente as razões para a saída de fr. João do Monte Carmelo do comissariado da Ordem. Em 29 de agosto de 1760, quase ao mesmo tempo em que o secretário da Ordem elaborou o “catálogo dos descendentes de índios”, o governador do Pará expôs que havia remetido para a Corte o “Padre Fr. João do Monte Carmelo, pela escandalosa escusa que pôs a José Roiz da Fonseca de entrar na Ordem Terceira por ser Mameluco”.19 19 AHU, Lisboa. Ofício do [governador e capitão-general do Estado do Pará e Maranhão] Manuel Bernardo de Melo e Castro, para [o secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre a ida para a Corte do padre fr. João do Monte Carmelo, por ter recusado a admissão do mameluco José Rodrigues da Fonseca, na Ordem Terceira e os preconceitos existentes entre algumas pessoas contra os índios, 1761. Cx. 50, D. 4606. Um pouco antes, a 21 de junho de 1761, o prelado da Província de Santo Antônio de Portugal havia demitido fr. João do Monte Carmelo do comissariado da Ordem e das funções de lente, encarcerando-o no Convento dos capuchos do Pará. Fr. João do Monte Carmelo fora também publicamente repreendido “perante a mesa da Ordem” pelo comissário geral, fr. João da Salvação, e depois reconduzido ao cárcere (BAENA, 1878BAENA, Antonio Nicolau Monteiro. Bosquejo chronológico da venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência do Gram-Pará. Pará: Typ. Commercio do Pará, 1878., p. 26-27).20 20 Sobre o encarceramento de fr. João do Monte Carmelo, existem algumas diferenças na narrativa apresentada, a 12 de setembro de 1760, por fr. João da Salvação, comissário geral reformador de todos os religiosos franciscanos das capitanias do Pará e Maranhão. Segundo o prelado reformador, “com a mais pronta obediência satisfez ao aviso de Sua Majestade, fazendo prender em um cárcere a Fr. João do Monte Carmelo, Comissário que foi dos Terceiros nesta Cidade, e desaprovando publicamente, assim em plena Comunidade dos Religiosos, como em mesa geral dos Irmãos Terceiros, e mandando lavrar termo em um dos seus livros para que todos obedecessem prontos as piíssimas Leis de Sua Majestade, arguindo nela ao dito Comissário de escandaloso, temerário e absoluto, lhe continuei desde o dia 18 de junho, em que foi declarado, até 11 de setembro em que embarcou por ordem do Excelentíssimo Governador e Capitão General em consequência das de Sua Majestade, com algumas penitências em cada uma das semanas da sua reclusão”. AHU, Lisboa. Ofício do capelão fr. João da Salvação para [o secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado, felicitando-o pelo seu novo cargo; sobre a prisão do ex-comissário da Ordem Terceira de São Francisco da cidade de Belém do Pará, fr. João do Monte Carmelo, pela não observância da lei dos índios; e a reforma dos religiosos da Província de Conceição do Minho e Beira que residem no Maranhão, 1760. Cx. 47, D. 4281. Em 1761, a 16 de junho, a Ordem já havia recebido as respostas dos ofícios que enviara a 11 de setembro de 1760 a Francisco Xavier de Mendonça Furtado e ao Conde de Oeiras. Esse alegou que não havia motivos para alterar a resolução régia tomada a respeito de fr. João do Monte Carmelo.

[E] em tudo o mais o que se oferecer do serviço desta Venerável Ordem Terceira desejarei muito ardentemente promover o que for mais útil para o seu aumento, para que ela floresça nos santos exercícios do seu instituto, com glória e louvor do Patriarca Seráfico, cujos santos exemplos espero que os seus filhos imitem” (BAENA, 1878BAENA, Antonio Nicolau Monteiro. Bosquejo chronológico da venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência do Gram-Pará. Pará: Typ. Commercio do Pará, 1878., p. 27).

A resposta polida de Sebastião José de Carvalho e Melo contrasta com o tom contrariado do secretário de Estado Francisco Xavier de Mendonça Furtado:

à Sua Majestade se fez muito estranho que a sua real presença chegasse um papel, como é a carta de Vossas Mercês de 11 de setembro do ano próximo passado, tão alheio da verdade e tão contraditório aos mesmos papéis originais, que foram presentes ao mesmo senhor, motivos por que não há para que tratar desta matéria (BAENA, 1878BAENA, Antonio Nicolau Monteiro. Bosquejo chronológico da venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência do Gram-Pará. Pará: Typ. Commercio do Pará, 1878., p. 27-28).

Sem lugar para dúvidas e disputas, as autoridades régias impuseram à Ordem o estrito cumprimento da nova legislação que amparava os nativos. Como filhos de São Francisco, deviam humildemente obedecer àquelas determinações. É interessante constatar como as novas práticas se distanciavam dos tempos em que a Ordem alegava privilégios e isenções para não cumprir as determinações régias, conforme foi analisado no item dois.

Entre as alegações dos “índios e índias mamelucas”, as da Ordem e as das autoridades régias, há aproximações e diferenças, que devem na medida do possível ser explicadas. No que tange às afinidades discursivas, pode-se aproximar o requerimento dos nativos ao ofício do governador Manoel Bernardo de Melo e Castro, pois testemunharam as medidas de exclusão aplicadas pela Ordem aos candidatos com sangue indígena. Quanto às divergências, é nítido o afastamento entre, de um lado, a defesa apresentada pela Ordem e, de outro, os dados apresentados pelo ofício do governador do Pará e a reação quase exasperada de Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Esse ponto merece ser realçado. O governador Manoel Bernardo de Melo e Castro apontou a “escandalosa” rejeição do mameluco José Roiz da Fonseca. Ao se confrontar essa informação com o “catálogo dos descendentes de índios” confeccionado pela Ordem, verifica-se o nome do mameluco em décimo primeiro lugar da listagem, tendo sido admitido na Ordem em 17 de setembro de 1759. Existem duas explicações possíveis para essa incongruência de informações. Em primeiro lugar, a de que José Roiz da Fonseca tenha tentado ingressar antes da referida data, não havendo obtido sucesso. E, seguindo-se um possível escândalo público pela rejeição, a Ordem acabou aceitando o pedido. Em segundo, que o ânimo persecutório do pombalismo dirigido às ordens religiosas, que se encontrava então no auge, tenha envolvido a Ordem Terceira do Pará em uma trama nefasta, formando um ambiente de ameaças. Na ausência de mais informações, devem ser mantidas em aberto ambas as possibilidades, ou uma combinação de ambas, à espera de pesquisas mais profundas sobre o objeto.

Além das correspondências mencionadas, os fundos digitalizados do Conselho Ultramarino não registram, salvo engano, outras fontes sobre a questão do acesso dos indígenas à Ordem Terceira de São Francisco do Pará. É possível afirmar que, após as duras punições aplicadas a fr. João do Monte Carmelo, muito semelhantes àquelas então impostas aos jesuítas e a outros regulares, a Ordem tenha cumprido as diretrizes da nova legislação respeitante aos nativos, mesmo havendo dúvidas de que em algum momento a tenha desrespeitado, conforme se argumentou. Na região amazônica, manteve-se aceso o interesse dos nativos em se tornarem irmãos terceiros. Na Capitania de São José do Rio Negro, criada pela carta régia de 3 de março de 1755 (SANTOS; SAMPAIO, 2008SANTOS, Francisco Jorge dos; SAMPAIO, Patrícia Maria de Melo. 1755, o ano da virada na Amazônia portuguesa. Somanlu, v. 8, n. 2, p. 79-98, jul.-dez. 2008., p. 80), foi possível identificar um documento manifestando tal intenção. O frade franciscano Jerônimo de Jesus Maria, que exercia a ocupação de capelão da fortaleza da Barra do Rio Negro, enviou um ofício a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, com data de 12 de novembro de 1768, no qual expôs que

alguns Índios Principais, e muitos moradores portugueses já casados e estabelecidos nesta capitania, vendo que sou filho de São Francisco, me pedem os admita a serem Irmãos terceiros da mesma Ordem, por não poderem recorrer à Mesa do Pará, por causa da sua Longitude.21 21 AHU, Lisboa. Ofício do [capelão da Fortaleza da Barra do Rio Negro] fr. Jerônimo de Jesus Maria para [o secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre o pedido dos moradores do Rio Negro para serem admitidos na Ordem Terceira de São Francisco, 1768. Cx. 2, D. 151.

O religioso solicitou ao secretário da Marinha e Ultramar uma faculdade para admitir irmãos terceiros ao hábito franciscano, mas não houve registro da resposta da autoridade régia.

No final da década de 1760, a Ordem Terceira de São Francisco do Pará teve que enfrentar outra espécie de pressão, oriunda de uma nova categoria de candidatos que aspiravam ao hábito franciscano. Em ofício enviado a 20 de outubro de 1767 ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, a Ordem Terceira do Pará expôs que

Tendo o Real Seminário de Brancanes em Setúbal um breve Apostólico para o Padre Guardião do dito Seminário e seus Missionários fazerem terceiros utriusque sexus, destes recebeu o hábito e profissão de Terceira na sobredita Vila de Setúbal Inácia Xavier de Jesus Maria, como consta de uma patente, que nos apresentou. É este indulto e graça especial Apostólica concedida ao mencionado Seminário ou aos seus missionários para a consolação de todos os fiéis geralmente; mas parece que se deve entender a dita concessão sem prejuízo e sem turbação dos Estatutos e costumes das Ordens Terceiras.22 22 AHU, Lisboa. Ofício dos membros da Ordem Terceira da Penitência da capitania do Pará para [o secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre os inconvenientes da mulata Inácia Xavier de Jesus Maria ter acesso ao hábito de missionária da referida Ordem, 1767. Cx. 61, D. 5383.

Conforme era garantido segundo diferentes faculdades da Santa Sé aos religiosos da família franciscana, a eles cabia conceder aos fiéis católicos o hábito da Ordem Terceira de São Francisco e, passado o período de noviciado, recebê-los à profissão, seguindo para isso uma série de rituais próprios (FERREIRA, 1752FERREIRA, Pe. Manoel de Oliveira. Compêndio geral da história da venerável Ordem Terceira de São Francisco: dividido em cinco tábuas, que mostram a sua instituição, prelados, mesas e formas dos atos espirituais... Porto: Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1752., p. 16-18). Uma vez aceito como irmão professo em uma dada associação local, o fiel tornava-se membro da fraternidade da Ordem Terceira de São Francisco difundida em todo o mundo católico. Quando havia mudança do local de moradia, era frequente que a associação onde o fiel havia originalmente professado emitisse uma patente, para que o mesmo fosse recebido como irmão terceiro na filial da Ordem existente na nova localidade onde passava a residir. É justamente a referida prática que fora seguida por Inácia Xavier de Jesus Maria. Não obstante, a concessão de hábitos avulsos, praticada excepcionalmente pelos missionários de Brancanes, se afastava das diretrizes adotadas pelas diferentes associações de irmãos terceiros, cujos membros eram “admitidos sem raça de infecta nação”, conforme os irmãos terceiros do Pará argumentavam ao secretário de Estado. A Ordem desconfiava da estratégia de ingresso escolhida pela referida mulher, pois “havendo na Vila de Setúbal uma Ordem Terceira tão ilustre e tão exemplar e pia, se a dita Inácia Xavier de Jesus Maria não tivesse impedimento tão grande, nela poderia tomar o hábito e professar”.23 23 AHU, Lisboa. Ofício dos membros da Ordem Terceira da Penitência da capitania do Pará para [o secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado sobre os inconvenientes da mulata Inácia Xavier de Jesus Maria ter acesso ao hábito de missionária da referida Ordem, 1767. Cx. 61, D. 5383.

O mais interessante é constatar a iniciativa de uma fiel que, recebendo na Vila de Setúbal, no Reino de Portugal, uma patente de irmã terceira, se valeu do documento para pleitear acesso à Ordem Terceira de São Francisco do Pará. Em que momento Inácia Xavier deixara o reino, passando à capitania do Pará? Viajara na companhia de parentes masculinos? Por que os ditos missionários não duvidaram em lhe fazer a mercê do hábito, ao contrário do que então praticavam as mesas das ordens terceiras? Diante da impossibilidade de se responder às referidas questões, cabe por ora delinear o perfil de Inácia Xavier de Jesus Maria. Segundo os representantes da Ordem Terceira, a mulher mencionada era “mulata inteira, filha de preta, com cabelo incrapinhado [sic], e muito bem conhecida por tal por muitos filhos de Setúbal, aqui existentes, nem ela nega ser mulata, por não ter tergiversação alguma, e de todo este Pará é reconhecida”. Além dos traços do fenótipo que identificavam a sua ancestralidade africana, a marca do passado da escravidão encontrava-se assinalada na ascendência de Inácia Xavier (“filha de preta”), como também na pública fama do reconhecimento como mulata. Em vista das razões alegadas, “se não admitiu à Ordem, pois até agora não há exemplo de intrometerem nela mulatos”. Outro motivo que levou a Ordem a ter dúvidas sobre o ingresso de Inácia Xavier era sua intenção em “lhe aceitarem uma sua sobrinha também mulata, filha de uma mulata sua irmã, e assim ficam ou ficariam todos os mulatos tendo ação de requererem para serem admitidos à Ordem, o que parece indecência e absurdo”.24 24 AHU, Lisboa. Ofício dos membros da Ordem Terceira da Penitência da capitania do Pará para [o secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado sobre os inconvenientes da mulata Inácia Xavier de Jesus Maria ter acesso ao hábito de missionária da referida Ordem, 1767. Cx. 61, D. 5383.

A mesa da Ordem concluiu o ofício enviado ao secretário de Estado expondo que “vendo a tal pretendente que a não admitiríamos, Logo nos disse e fez saber que remetia a sua patente à Vossa Excelência, para que, por Ordem expressa sua a aceitássemos para a Ordem”. Sentindo talvez algum risco na intenção de Inácia Xavier, a mesa resolver antecipar-se aos acontecimentos: “prevendo nós que a mesma não declararia a Vossa Excelência bem quem era, e a razão ou causa que temos para a não admitirmos, damos a Vossa Excelência esta parte”.25 25 AHU, Lisboa. Ofício dos membros da Ordem Terceira da Penitência da capitania do Pará para [o secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado sobre os inconvenientes da mulata Inácia Xavier de Jesus Maria ter acesso ao hábito de missionária da referida Ordem, 1767. Cx. 61, D. 5383. Mais uma vez, a correspondência do Conselho Ultramarino evidenciava o protagonismo de Inácia Xavier, ao ameaçar a Ordem com o recurso direto a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que havia se mostrado muito contrariado com a associação durante a questão do ingresso dos nativos. Inácia Xavier teria acompanhado antes os desdobramentos da referida questão? Não é possível ter certeza, mas a estratégia seguida pela mulata foi muito semelhante àquela adotada pelos índios mamelucos, apelando à soberania régia quando se sentiram contrariados pela Ordem. A diferença maior entre um caso e outro está no fato de que havia uma legislação que amparava os nativos e seus descendentes, mas não os mulatos. Isso pode explicar o silêncio adotado por Francisco Xavier de Mendonça Furtado e pelo Conselho Ultramarino no que diz respeito à demanda de Inácia Xavier, que contrastava nitidamente com a reação que tomaram face ao requerimento dos nativos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A documentação da capitania do Pará disponibilizada pelo projeto Resgate não permite acompanhar outras tentativas de ingresso oriundas de descendentes de africanos ou de indígenas. Em teoria, a lei de 25 de maio de 1773, que ordenava abolir a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, abriu espaço também para o fim de outros estigmas baseados nos critérios de pureza de sangue, como os que foram aplicados às mulatas que desejaram ingressar na Ordem Terceira de São Francisco do Pará. A lei determinava claramente o fim das inquirições de gênere para variadas carreiras e ocupações, mantendo-se apenas a verificação da vida e dos costumes dos candidatos (SILVA, 1858SILVA, Antonio Delgado da. Collecção da legislação portugueza desde a ultima compilação das ordenações redigida pelo desembargador Antonio Delgado Da Silva. Legislação de 1763 a 1774. Lisboa: L. C. da Cunha, 1858., p. 677). Didier Lahon argumenta que é provável que tal orientação não tenha sido imediatamente adotada pelas irmandades brancas. Da mesma forma que os critérios de pureza de sangue foram aos poucos incorporados à legislação das referidas associações, ao longo dos séculos XVII e XVIII, a mudança dos referidos costumes pode também ter ocorrido lentamente. Segundo o mesmo autor, uma situação excepcional ocorreu na Ordem Terceira de São Francisco de Xabregas que, em 1742, mais de trinta anos antes da legislação pombalina, suprimiu a “abominável prática da prova de limpeza de sangue” (LAHON, 2012LAHON, Didier. Da Redução da alteridade à consagração da diferença: as irmandades negras em Portugal (séculos XVI-XVIII). Projeto História, n. 44, p. 53-83, jun. 2012., p. 66). Essa provável exceção talvez se deva à importância de madre Cecília, como era conhecida a irmã terceira Maria Cecília de Jesus. “Mulher preta”, conforme a classificou o frade franciscano Jerônimo de Belém, havia nascido de pais forros na casa de D. Pedro de Menezes, Conde de Castenhede (BELÉM, 1736BELÉM, Fr. Jerônimo de. Palestra da penitência sendo corifeu, autor e mestre o milagroso Deus Menino, e seu legítimo substituto o Patriarca dos Pobres, o grande pequeno São Francisco de Assis. Lisboa Ocidental: Antônio Isidoro da Fonseca, 1736., p. 21). Teve atividade destacada na Ordem Terceira de São Francisco de Xabregas, em Lisboa, onde alcançou reputação de visionária e penitente. Em 1710, doou uma famosa imagem do Menino Deus que possuía ao hospital da referida associação. Antes de falecer, em 1717, havia também ingressado como irmã nas ordens terceiras de São Francisco da cidade e na do Convento de Jesus, ambas em Lisboa.

Na América Portuguesa, conforme apontaram diversos autores, não foi comum o ingresso de mulatos e de outras categorias com ascendência africana nas diferentes filiais da Ordem Terceira de São Francisco e do Carmo, antes da revogação formal dos estatutos de pureza de sangue. A análise de alguns casos mostra que a prática foi permitida apenas em circunstâncias excepcionais, que indicavam a expressiva riqueza material dos pretendentes que traziam as marcas do passado de escravidão. O padre Francisco da Mota, irmão da Ordem Terceira de São Francisco do Rio de Janeiro, tornou-se o principal benfeitor da associação no período colonial. Ao falecer, em 1704, legou à Ordem as terras que possuía na localidade da Prainha, uma capela ali erigida, um trapiche e 51 escravos. Em troca, a Ordem garantiria a celebração de 500 missas anuais em sufrágio de sua alma, entre outras obras de caridade (MARTINS, 2009MARTINS, William de Souza. Membros do corpo místico: Ordens Terceiras no Rio de Janeiro (c. 1700-1822). São Paulo: Edusp, 2009., p. 164). Com base no estudo do processo de habilitação sacerdotal de Francisco da Mota, Carlos Eugênio Líbano Soares mostrou que o padre “era filho de uma mãe africana, Maria do Gentio da Guiné, de nação Cabo Verde” (SOARES, 2016SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Geografia histórica da região do Valongo, 1713-1904. Acervo, v. 29, n. 1, p. 150-161, abr. 2016., p. 153). Para a Vila do Recife, está documentada a trajetória de Luís Cardoso, filho de uma escrava mulata chamada Simoa. Herdando da mãe a condição de cativo, Luís Cardoso comprou a própria alforria por 40 mil réis, em 1667. Depois de trabalhar como empregado na loja do comerciante Cristiano Paulo, assumiu o negócio do antigo patrão em 1687. Conseguiu amealhar expressiva fortuna na atividade comercial, atuando também como prestamista. Em 1719, recebeu o hábito da Ordem Terceira de São Francisco e, após cumprir o período de noviciado, professou em 1720. Na referida associação, chegou a atuar como definidor, um dos lugares da mesa administrativa. Em 1721, doou à Ordem a expressiva quantia de 4 contos de réis. Ao falecer, em 1724, nomeou a Ordem como testamenteira. O inventário de seus bens somou uma quantia superior a 24 contos de réis (ANJOS, 1999ANJOS, João Alfredo dos. Luís Cardoso, um homem de negócios no Recife da segunda metade do século XVII. In: ANDRADE, Manuel Correia de; FERNANDES, Eliane Moury; CAVALCANTI, Sandra Melo (Org.). Tempos dos flamengos e outros tempos: Brasil, século XVII. Brasília: CNPq; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Massangana, 1999. p. 255-266., p. 255-266; BEZERRA, 2019BEZERRA, Janaína Santos. Luís Cardoso: de escravo a homem de negócio da Praça do Recife (XVII e XVIII). CLIO: Revista de Pesquisa Histórica, v. 37, n. 2, p. 82-95, jul.-dez. 2019., p. 82-95).

Na América Portuguesa, parece se confirmar a observação feita por Didier Lahon para o reino de Portugal, a respeito da lentidão das mudanças suscitadas pela revogação dos estatutos de pureza de sangue. Em 1773, em atenção à nova legislação pombalina, a mesa da Ordem Terceira do Carmo da Bahia suspendeu as averiguações genealógicas para os que pretendiam ingressar na associação e tinham ascendência judaica. Não obstante, manteve as investigações relacionadas à identificação dos descendentes de mulatos, cuja entrada continuou proibida. Com relação ao referido grupo, os procedimentos de seleção adotados eram rigorosos. Em 1766, Lourenço Duarte Meira, negociante estabelecido na Bahia, e com vários parentes integrando associações religiosas com destaque local, pretendeu ingressar na referida Ordem. Um grupo de irmãos chamado para investigar a ascendência do pretendente identificou em Lourenço “o defeito de ser pardo, ainda que, em nossa visão, apenas muito remoto, porque ele tem a aparência e a cor de um branco” (RUSSELL-WOOD, 1989RUSSELL-WOOD, Anthony John R. Prestige, Power and Piety in Colonial Brazil: the Third Orders of Salvador. Hispanic American Historical Review, v. 69, n. 1, p. 61-89, Feb. 1989., p. 68-69). Foi admitido à profissão, mas com o ônus de contribuir com 10 mil réis. No Arraial do Tejuco, a trajetória da famosa ex-escrava Chica da Silva, casada com o contratador João Fernandes de Oliveira, mostra algumas particularidades com relação ao ingresso de descendentes de africanos nas ordens terceiras. Na Ordem Terceira do Carmo, a mais seletiva da localidade, Chica da Silva não parece ter ingressado, ainda que o contratador tenha ocupado o posto mais importante da associação, o priorado, em 1767. Não obstante, a partir dos anos de 1780, a associação “passou a aceitar pessoas de cor livres, libertas e até mesmo cativas” (FURTADO, 2003FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2003., p. 179). Na Ordem Terceira de São Francisco, Chica da Silva pôde ingressar com diversos membros da família. Certamente, pesou nesse caso o poder, a riqueza e o prestígio do contratador. Na região das Minas, algumas irmandades constituídas por crioulos forros pretenderam alcançar o estatuto das ordens terceiras, processo que foi apenas alcançado na primeira metade do século XIX (PRECIOSO, 2019PRECIOSO, Daniel. Os “pretos crioulos” das Minas Gerais e a fundação de ordens terceiras mercedárias (Vila Rica/Cidade de Ouro Preto, c.1750-1847). In: MARTINS, William de Souza (Org.). Ordens terceiras no mundo luso-brasileiro (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Gramma, 2019. p. 151-184.).

Os casos analisados pela historiografia mostram que o ingresso de mulatos constituía uma situação excepcional na Ordem Terceira de São Francisco, onde somente o poder, o prestígio e a riqueza usufruídos pelos pretendentes podiam mitigar a rigidez dos critérios de entrada. Esse fato lança luz sobre a importância da estratégia desenvolvida no Pará pela mulata Inácia Xavier, que não dispunha daqueles recursos, para driblar as restrições tocantes às marcas da ascendência africana. Foi também significativa a agência dos “índios e índias mamelucas” ao invocar o Diretório e outras medidas adotadas pela Coroa portuguesa em benefício dos nativos para justificar o ingresso na seletiva Ordem Terceira de São Francisco de Belém do Pará. O estudo das experiências dos referidos sujeitos remete às reflexões teóricas desenvolvidas por Sewell Jr. Os estatutos de pureza de sangue podem ser lidos como uma estrutura, constituída por esquemas mentais e recursos objetivos que garantiam a sua reprodução. Durante o reinado de D. José I, diversas alterações políticas e legais ocorridas no Pará e no Reino de Portugal favoreceram a agência de segmentos sociais que não podiam aspirar ao ingresso em associações religiosas com o perfil da Ordem Terceira de São Francisco, a não ser em algumas condições especialíssimas indicadas antes. Conforme argumenta Sewell Jr., a agência dos sujeitos sociais, definida como “a capacidade de transpor e estender esquemas a novos contextos”, tem o potencial de favorecer mudanças nas estruturas (SEWELL JR., 2017SEWELL JR., William H. Lógicas da História: teoria social e transformação social. Petrópolis: Vozes, 2017., p. 148).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ALMEIDA, Cândido Mendes de (Comp.). Código philippino ou ordenações e leis do Reino de Portugal recopiladas por mandado d’El D. Philippe I. Rio de Janeiro: Typ. do Instituto Philomathico, 1870.
  • ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
  • ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. A Atuação dos indígenas na história do Brasil: revisões historiográficas. Revista Brasileira de História, v. 37, n. 75, p. 17-38, 2017.
  • ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos índios: um projeto de “civilização” no Brasil do século XVIII. Brasília: UnB, 1997.
  • AMORIM, Maria Adelina. Os Franciscanos no Maranhão e no Grão-Pará: missão e cultura na primeira metade de seiscentos. Lisboa: Cehr, 2005.
  • AMORIM, Maria Adelina. A Missionação franciscana no Estado do Grão-Pará e Maranhão (1622-1750): agentes, estruturas e dinâmicas. Tese (Doutorado em História) - Universidade de Lisboa, Lisboa, 2011.
  • ANJOS, João Alfredo dos. Luís Cardoso, um homem de negócios no Recife da segunda metade do século XVII. In: ANDRADE, Manuel Correia de; FERNANDES, Eliane Moury; CAVALCANTI, Sandra Melo (Org.). Tempos dos flamengos e outros tempos: Brasil, século XVII. Brasília: CNPq; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Massangana, 1999. p. 255-266.
  • ARBIOL, Fr. Antonio. Los Terceros hijos del humano serafin, la venerable y esclarecida Orden Tercera de nuestro serafico Patriarca San Francisco. Refierense sus gloriosos princípios, regla, leyes, estatutos, y sagrados exercícios, sus grandes excelências, indulgencias, y privilegios apostolicos; y las vidas prodigiosas de sus mas principales Santos, y Santas, para Consuelo, y aprovechiamiento de sus amados Hermanos. Zaragoça: Manuel Roman, Impressor de la Universidad, 1706.
  • BAENA, Antonio Nicolau Monteiro. Bosquejo chronológico da venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência do Gram-Pará. Pará: Typ. Commercio do Pará, 1878.
  • BELÉM, Fr. Jerônimo de. Palestra da penitência sendo corifeu, autor e mestre o milagroso Deus Menino, e seu legítimo substituto o Patriarca dos Pobres, o grande pequeno São Francisco de Assis. Lisboa Ocidental: Antônio Isidoro da Fonseca, 1736.
  • BEZERRA, Janaína Santos. Luís Cardoso: de escravo a homem de negócio da Praça do Recife (XVII e XVIII). CLIO: Revista de Pesquisa Histórica, v. 37, n. 2, p. 82-95, jul.-dez. 2019.
  • BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986.
  • BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 27-98.
  • CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial: Portugal e Brasil Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1988.
  • CARVALHO JÚNIOR, Roberto Zahluth de. “Dominar homens ferozes”: missionários carmelitas no Estado do Maranhão e Grão-Pará (1686-1757). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.
  • CHAMBOULEYRON, Rafael. Em torno das missões jesuíticas na Amazônia (século XVII). Lusitania Sacra, n. 15, p. 163-209, 2003.
  • CUNHA, D. Rodrigo da. Constituições synodaes do Arcebispado de Lisboa, novamente feita pelo D. Rodrigo da Cunha, arcebispo da mesma cidad, no synodo do anno de 1640. Lisboa: Paulo Craesbeeck, 1656.
  • DELFINO, Leonara Lacerda. O Rosário das almas ancestrais: fronteiras, identidades e representações do viver e morrer na diáspora atlântica. Freguesia do Pilar de São João Del-Rei (1787-1841). Belo Horizonte: Clio, 2017.
  • FERREIRA, Pe. Manoel de Oliveira. Compêndio geral da história da venerável Ordem Terceira de São Francisco: dividido em cinco tábuas, que mostram a sua instituição, prelados, mesas e formas dos atos espirituais... Porto: Capitão Manoel Pedroso Coimbra, 1752.
  • FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • HESPANHA, Antonio Manuel. As Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal - século XVII. Coimbra: Almedina, 1994.
  • HEMMING, John. Red Gold. The Conquest of the Brazilian Indians, 1500-1760. Cambridge: Harvard University Press, 1978.
  • HEMMING, John. Fronteira amazônica: a derrota dos índios brasileiros. São Paulo: Edusp, 2009.
  • LAHON, Didier. Da Redução da alteridade à consagração da diferença: as irmandades negras em Portugal (séculos XVI-XVIII). Projeto História, n. 44, p. 53-83, jun. 2012.
  • MARTINS, William de Souza. Membros do corpo místico: Ordens Terceiras no Rio de Janeiro (c. 1700-1822). São Paulo: Edusp, 2009.
  • MATOS, Frederik Luizi Andrade de. Os “frades del Rei” nos sertões amazônicos: os capuchos da Piedade na Amazônia colonial (1693-1759). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2014.
  • MELLO, Evaldo Cabral de. O Nome e o sangue: uma fraude genealógica no Pernambuco colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
  • MELVIN, Karen. Building Colonial Cities of God: Mendicant Orders and Urban Culture in New Spain. Stanford: Stanford University Press, 2012.
  • MENDONÇA, Marcos Carneiro de (Org.). A Amazônia na era pombalina: correspondência do governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará e do Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751-1759). 3v. Brasília: Senado Federal, 2005.
  • MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Índios da Amazônia, de maioria a minoria. Petrópolis: Vozes, 1988.
  • OLIVAL, Fernanda. As Ordens militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar, 2001.
  • OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Dispensa de cor e clero nativo: poder eclesiástico e sociedade católica na América Portuguesa. In: OLIVEIRA, Anderson José Machado de; MARTINS, William de Souza (Org.). Dimensões do catolicismo no Império português. Rio de Janeiro: Garamond, 2014. p. 199-229.
  • OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção negra: santos pretos e catequese no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Quartet, Faperj, 2008.
  • PRECIOSO, Daniel. Os “pretos crioulos” das Minas Gerais e a fundação de ordens terceiras mercedárias (Vila Rica/Cidade de Ouro Preto, c.1750-1847). In: MARTINS, William de Souza (Org.). Ordens terceiras no mundo luso-brasileiro (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Gramma, 2019. p. 151-184.
  • RAMINELLI, Ronald. Da Controversa nobilitação de índios e pretos, 1630-1730. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Org.). O Brasil colonial, 1580-1720. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 501-540.
  • RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: FGV, 2015.
  • REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: irmandades de africanos e crioulos na Bahia setecentista. São Paulo: Alameda, 2011.
  • RIBEIRO, Fr. Bartolomeu. Os Terceiros franciscanos portugueses: sete séculos de sua história. Braga: Missões Franciscanas, 1952.
  • RODRIGUES, Aldair Carlos. Igreja e inquisição no Brasil: agentes, carreiras e mecanismos de promoção social - século XVIII. São Paulo: Alameda, 2014.
  • RUSSELL-WOOD, Anthony John R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: UnB, 1981.
  • RUSSELL-WOOD, Anthony John R. Prestige, Power and Piety in Colonial Brazil: the Third Orders of Salvador. Hispanic American Historical Review, v. 69, n. 1, p. 61-89, Feb. 1989.
  • SALLES, Fritz Teixeira de. Associações religiosas no ciclo do ouro: introdução ao estudo do comportamento social das irmandades de Minas no século XVIII. São Paulo: Perspectiva, 2007.
  • SANTOS, Beatriz Catão Cruz. O Corpo de Deus na América: a festa de Corpus Christi nas cidades da América Portuguesa - século XVIII. São Paulo: Annablume, 2005.
  • SANTOS, Francisco Jorge dos; SAMPAIO, Patrícia Maria de Melo. 1755, o ano da virada na Amazônia portuguesa. Somanlu, v. 8, n. 2, p. 79-98, jul.-dez. 2008.
  • SÃO FRANCISCO, Fr. Luis de. Livro em que se contém tudo o que toca à origem, regra, estatutos, cerimônias, privilegios e progresso da sagrada Ordem Terceira da Penitência de N. Seraphico P. S. Francisco. Lisboa: Miguel Deslandes, 1684.
  • SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos no distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Nacional, 1978.
  • SEWELL JR., William H. Lógicas da História: teoria social e transformação social. Petrópolis: Vozes, 2017.
  • SILVA, Antonio Delgado da. Collecção da legislação portugueza desde a ultima compilação das ordenações redigida pelo desembargador Antonio Delgado Da Silva. Legislação de 1763 a 1774. Lisboa: L. C. da Cunha, 1858.
  • SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na Colônia. São Paulo: Unesp, 2005.
  • SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Geografia histórica da região do Valongo, 1713-1904. Acervo, v. 29, n. 1, p. 150-161, abr. 2016.
  • SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
  • SOUSA, Cristiano Oliveira de. O “Estatuto Particular” da venerável Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Vila Rica: critérios de recrutamento e estrutura administrativa. Revista de História da UEG, v. 8, n. 2, p. 1-26, jul.-dez. 2019.
  • STOLKE, Verena. O Enigma das interseções: classe, “raça”, sexo, sexualidade: a formação dos impérios transatlânticos do século XVI ao XIX. Revista Estudos feministas, v. 14, n. 1, p. 15-41, abr. 2006.
  • VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Edusp, 2010.
  • WILLEKE, Venâncio. Missões franciscanas no Brasil (1500-1975). Petrópolis: Vozes, 1975.
  • 1
    Entre os estudos clássicos sobre o tema da vida associativa, podem ser citados: SALLES, 2007SALLES, Fritz Teixeira de. Associações religiosas no ciclo do ouro: introdução ao estudo do comportamento social das irmandades de Minas no século XVIII. São Paulo: Perspectiva, 2007.; SCARANO, 1978SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos no distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Nacional, 1978.; RUSSELL-WOOD, 1981RUSSELL-WOOD, Anthony John R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: UnB, 1981.; BOSCHI, 1986BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986.. Com relação às obras mais recentes, ver, por exemplo: SOARES, 2000SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.; OLIVEIRA, 2008OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção negra: santos pretos e catequese no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Quartet, Faperj, 2008.; MARTINS, 2009MARTINS, William de Souza. Membros do corpo místico: Ordens Terceiras no Rio de Janeiro (c. 1700-1822). São Paulo: Edusp, 2009.; REGINALDO, 2011REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: irmandades de africanos e crioulos na Bahia setecentista. São Paulo: Alameda, 2011.; DELFINO, 2017DELFINO, Leonara Lacerda. O Rosário das almas ancestrais: fronteiras, identidades e representações do viver e morrer na diáspora atlântica. Freguesia do Pilar de São João Del-Rei (1787-1841). Belo Horizonte: Clio, 2017..
  • 2
    A respeito dos critérios de admissão ao clero secular, ver OLIVEIRA, 2014OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Dispensa de cor e clero nativo: poder eclesiástico e sociedade católica na América Portuguesa. In: OLIVEIRA, Anderson José Machado de; MARTINS, William de Souza (Org.). Dimensões do catolicismo no Império português. Rio de Janeiro: Garamond, 2014. p. 199-229.. Para as ordens militares, consultar OLIVAL, 2001OLIVAL, Fernanda. As Ordens militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar, 2001.. E quanto à concessão das familiaturas do Santo Ofício, ver RODRIGUES, 2014RODRIGUES, Aldair Carlos. Igreja e inquisição no Brasil: agentes, carreiras e mecanismos de promoção social - século XVIII. São Paulo: Alameda, 2014.. Para um panorama de conjunto das instituições que praticavam a referida política, e com ênfase na situação dos cristãos-novos, ver CARNEIRO, 1988CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial: Portugal e Brasil Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1988., p. 84-126.
  • 3
    Segundo as pesquisas de Moreira Neto, o “tapuio” é o nativo destribalizado, resultante do processo de conversão a que foi submetido nos aldeamentos das ordens religiosas, conforme definição do próprio autor: “o tapuio pode ser definido como membro de um grupo indígena que perdeu socialmente o domínio instrumental e normativo de sua cultura aborígine, substituindo-a por elementos de uma ou várias tradições culturais, que se misturam aos traços residuais da língua e da cultura originais (MOREIRA NETO, 1988MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Índios da Amazônia, de maioria a minoria. Petrópolis: Vozes, 1988., p. 79, grifo do autor). De acordo com Santos e Sampaio, o termo não pode ser confundido “com o índio Tapuia, muito veiculado na grande historiografia brasileira, ao referir-se aos índios não-tupi ou aos ‘inimigos’ dos brancos da costa leste da América portuguesa” (SANTOS; SAMPAIO, 2008SANTOS, Francisco Jorge dos; SAMPAIO, Patrícia Maria de Melo. 1755, o ano da virada na Amazônia portuguesa. Somanlu, v. 8, n. 2, p. 79-98, jul.-dez. 2008., p. 95).
  • 4
    AHU, Lisboa. Carta do comissário da Ordem Terceira de São Francisco do Pará, fr. Francisco de Santo António, para o rei [D. João V], solicitando que a mesma Ordem acompanhe a procissão de “Corpus Christis”, conforme a “Resolução Apologética” apresentada pelo Bispo do Pará, D. fr. Bartolomeu do Pilar, 1725. Cx. 9, D. 769.
  • 5
    As Constituições do Arcebispado da Bahia, publicadas pela primeira vez em 1719, continham cláusulas muito semelhantes: “e sob a mesma pena de excomunhão, mandamos a todos os religiosos das religiões que costumam no nosso reino de Portugal acompanhar esta procissão, que assim nesta cidade como nas vilas e lugares de nosso arcebispado (...) a acompanhem no dito dia em corpo de comunidade com cruz adiante” (VIDE, 2010VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Edusp, 2010., p. 332). Acerca da realização da referida procissão na América Portuguesa, ver SANTOS, 2005SANTOS, Beatriz Catão Cruz. O Corpo de Deus na América: a festa de Corpus Christi nas cidades da América Portuguesa - século XVIII. São Paulo: Annablume, 2005..
  • 6
    AHU, Lisboa. Carta do comissário da Ordem Terceira de São Francisco do Pará, fr. Francisco de Santo António, para o rei [D. João V], solicitando que a mesma Ordem acompanhe a procissão de “Corpus Christis”, conforme a “Resolução Apologética” apresentada pelo Bispo do Pará, D. fr. Bartolomeu do Pilar, 1725. Cx. 9, D. 769.
  • 7
    AHU, Lisboa. Carta do comissário da Ordem Terceira de São Francisco do Pará, fr. Francisco de Santo António, para o rei [D. João V], solicitando que a mesma Ordem acompanhe a procissão de “Corpus Christis”, conforme a “Resolução Apologética” apresentada pelo Bispo do Pará, D. fr. Bartolomeu do Pilar, 1725. Cx. 9, D. 769.
  • 8
    AHU, Lisboa. Carta do comissário e visitador da Ordem Terceira de São Francisco da cidade de Santa Maria de Belém do Pará, fr. Francisco de Santo António, para o rei [D. João V], sobre o acompanhamento que a Ordem Terceira fez na procissão do Corpo de Deus naquela cidade, considerando que, para o futuro, seria necessária ajuda financeira para suprir as despesas com o dito evento, 1727. Cx. 10, D. 939.
  • 9
    AHU, Lisboa. Provisão (cópia) do rei D. João V, para o comissário da Ordem Terceira de São Francisco, fr. Francisco Santo António, relativa à realização da procissão do Corpo de Deus na capitania do Pará, 1728. Cx. 11, D. 968.
  • 10
    AHU, Lisboa. Requerimento de Cipriano Antunes Vieira, morador na cidade do Pará, para o rei [D. José I], solicitando que se julgue a questão relativa à posse de umas casas que lhe pertencem e que foram ocupadas pelos religiosos da ordem terceira de São Francisco daquela cidade, 1769. Cx. 64, D. 5554.
  • 11
    O conceito de “campo religioso” é utilizado aqui em conformidade com a definição de Bourdieu (1987BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 27-98.), segundo o qual aquele se constitui como um espaço social de disputa entre diferentes agentes, movidos pela busca de capital sagrado e do monopólio do poder religioso. No caso discutido acima, ficou patente a tensão entre a autoridade ordinária do bispo diocesano e a esfera onde estava situada a Ordem Terceira de São Francisco, sob a autoridade dos religiosos franciscanos capuchos. No final do processo, os agentes identificados com a Ordem puderam manter os próprios privilégios e poderes, esvaziando a autoridade do bispo.
  • 12
    AHU, Lisboa. Requerimento dos índios e índias mamelucas do Estado do Pará para o rei [D. José I], solicitando que lhes seja autorizada a sua admissão na Ordem Terceira da Penitência da cidade de Belém do Pará, 1759. Cx. 45, D. 4082.
  • 13
    AHU, Lisboa. Requerimento dos índios e índias mamelucas do Estado do Pará para o rei [D. José I], solicitando que lhes seja autorizada a sua admissão na Ordem Terceira da Penitência da cidade de Belém do Pará, 1759. Cx. 45, D. 4082.
  • 14
    AHU, Lisboa. Ofício dos religiosos da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco da cidade do Pará, para o [secretário de estado dos Negócios do Reino e Mercês] conde de Oeiras [Sebastião José de Carvalho e Melo], defendendo-se das acusações de não respeitarem a lei sobre os índios e seus descendentes, ao não permitir o ingresso destes nos quadros da referida ordem religiosa, 1760. Cx. 47, D. 4275; AHU, Lisboa. Ofício dos religiosos da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco da cidade do Pará, para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado, solicitando a restituição, àquela ordem, do comissário visitador dos religiosos de Santo António, padre fr. João da Salvação, 1760. Cx. 47, D. 4270.
  • 15
    AHU, Lisboa. Ofício dos religiosos da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco da cidade do Pará, para o [secretário de estado dos Negócios do Reino e Mercês] conde de Oeiras [Sebastião José de Carvalho e Melo], defendendo-se das acusações de não respeitarem a lei sobre os índios e seus descendentes, ao não permitir o ingresso destes nos quadros da referida ordem religiosa, 1760. Cx. 47, D. 4275.
  • 16
    De acordo com Almeida, o “Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão” foi “assinado em 3 de maio de 1757 por Francisco Xavier de Mendonça Furtado”, tendo as suas diretrizes “aprovadas por força do alvará de 17 de agosto de 1758” (ALMEIDA, 1997ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos índios: um projeto de “civilização” no Brasil do século XVIII. Brasília: UnB, 1997., p. 152).
  • 17
    AHU, Lisboa. Ofício dos religiosos da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco da cidade do Pará, para o [secretário de estado dos Negócios do Reino e Mercês] conde de Oeiras [Sebastião José de Carvalho e Melo], defendendo-se das acusações de não respeitarem a lei sobre os índios e seus descendentes, ao não permitir o ingresso destes nos quadros da referida ordem religiosa, 1760. Cx. 47, D. 4275.
  • 18
    AHU, Lisboa. Ofício dos religiosos da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco da cidade do Pará, para [o secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado, solicitando a restituição, àquela ordem, do comissário visitador dos religiosos de Santo António, padre fr. João da Salvação, 1760. Cx. 47, D. 4270.
  • 19
    AHU, Lisboa. Ofício do [governador e capitão-general do Estado do Pará e Maranhão] Manuel Bernardo de Melo e Castro, para [o secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre a ida para a Corte do padre fr. João do Monte Carmelo, por ter recusado a admissão do mameluco José Rodrigues da Fonseca, na Ordem Terceira e os preconceitos existentes entre algumas pessoas contra os índios, 1761. Cx. 50, D. 4606.
  • 20
    Sobre o encarceramento de fr. João do Monte Carmelo, existem algumas diferenças na narrativa apresentada, a 12 de setembro de 1760, por fr. João da Salvação, comissário geral reformador de todos os religiosos franciscanos das capitanias do Pará e Maranhão. Segundo o prelado reformador, “com a mais pronta obediência satisfez ao aviso de Sua Majestade, fazendo prender em um cárcere a Fr. João do Monte Carmelo, Comissário que foi dos Terceiros nesta Cidade, e desaprovando publicamente, assim em plena Comunidade dos Religiosos, como em mesa geral dos Irmãos Terceiros, e mandando lavrar termo em um dos seus livros para que todos obedecessem prontos as piíssimas Leis de Sua Majestade, arguindo nela ao dito Comissário de escandaloso, temerário e absoluto, lhe continuei desde o dia 18 de junho, em que foi declarado, até 11 de setembro em que embarcou por ordem do Excelentíssimo Governador e Capitão General em consequência das de Sua Majestade, com algumas penitências em cada uma das semanas da sua reclusão”. AHU, Lisboa. Ofício do capelão fr. João da Salvação para [o secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado, felicitando-o pelo seu novo cargo; sobre a prisão do ex-comissário da Ordem Terceira de São Francisco da cidade de Belém do Pará, fr. João do Monte Carmelo, pela não observância da lei dos índios; e a reforma dos religiosos da Província de Conceição do Minho e Beira que residem no Maranhão, 1760. Cx. 47, D. 4281.
  • 21
    AHU, Lisboa. Ofício do [capelão da Fortaleza da Barra do Rio Negro] fr. Jerônimo de Jesus Maria para [o secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre o pedido dos moradores do Rio Negro para serem admitidos na Ordem Terceira de São Francisco, 1768. Cx. 2, D. 151.
  • 22
    AHU, Lisboa. Ofício dos membros da Ordem Terceira da Penitência da capitania do Pará para [o secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre os inconvenientes da mulata Inácia Xavier de Jesus Maria ter acesso ao hábito de missionária da referida Ordem, 1767. Cx. 61, D. 5383.
  • 23
    AHU, Lisboa. Ofício dos membros da Ordem Terceira da Penitência da capitania do Pará para [o secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado sobre os inconvenientes da mulata Inácia Xavier de Jesus Maria ter acesso ao hábito de missionária da referida Ordem, 1767. Cx. 61, D. 5383.
  • 24
    AHU, Lisboa. Ofício dos membros da Ordem Terceira da Penitência da capitania do Pará para [o secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado sobre os inconvenientes da mulata Inácia Xavier de Jesus Maria ter acesso ao hábito de missionária da referida Ordem, 1767. Cx. 61, D. 5383.
  • 25
    AHU, Lisboa. Ofício dos membros da Ordem Terceira da Penitência da capitania do Pará para [o secretário de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado sobre os inconvenientes da mulata Inácia Xavier de Jesus Maria ter acesso ao hábito de missionária da referida Ordem, 1767. Cx. 61, D. 5383.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2020
  • Revisado
    29 Out 2020
  • Aceito
    17 Dez 2020
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: variahis@gmail.com