RESUMO
Este artigo investiga como elementos essenciais da imaginação formativa brasileira foram moldados a partir de uma linguagem política proveniente da obra do intelectual português Joaquim Pedro de Oliveira Martins. A hipótese apresentada é de que a linguagem martiniana foi imprescindível para dar as condições de possibilidade ao discurso sobre a formação brasileira em diversos âmbitos. Neste estudo, examinaremos como o discurso histórico em torno das protonações desempenha um papel importante nas obras de Euclides da Cunha e Paulo Prado.
Oliveira Martins; pensamento brasileiro; ensaísmo luso-brasileiro
ABSTRACT
This paper investigates how essential elements of the Brazilian formative imagination were shaped through Martinian language, drawn from the work of Portuguese intellectual Joaquim Pedro de Oliveira Martins. The hypothesis presented is that Martinian language was indispensable in enabling discourse on Brazilian formation across various dimensions. In this paper, we examine how the historical discourse on protonations plays a key role in the works of Euclides da Cunha and Paulo Prado.
Oliveira Martins; brazilian thought; luso-brazilian essayism
A obra do escritor e político português Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1854) teve um impacto substancial sobre intelectuais brasileiros, no final do século XIX e início do século XX. Contudo, o modo como sua obra contribuiu para criar uma linguagem sobre o Brasil — diagnosticando seus problemas e explorando as potencialidades da nação — ainda carece de estudos mais aprofundados. O principal objetivo deste artigo é mostrar como uma certa linguagem martiniana foi usada - das mais diferentes maneiras - por intelectuais brasileiros para mobilizar o imaginário nacional em torno do protagonismo de determinados personagens históricos na formação do país.
Comumente estudado na literatura portuguesa como integrante da Geração de 1870, conhecida por denunciar o atraso social e a decadência geopolítica de Portugal, a atuação intelectual de Oliveira Martins ultrapassa o âmbito lusitano, podendo ser considerado um publicista verdadeiramente transatlântico, dado o alcance e a repercussão de sua obra no Brasil. Angela Alonso (2002, p. 174) afirma que seu livro O Brasil e as Colônias Portuguesas, publicado em 1880, foi um marco literário: ‘Referências a este ícone da historiografia portuguesa estão em todos os ensaios brasileiros do período – por exemplo, na História da Literatura Brasileira, de Sílvio Romero, publicada em 1888. Carlos Eduardo Berriel (2013) foi pioneiro no estudo da interrelação entre a Geração de 1870 e o modernismo brasileiro, ao analisar como Paulo Prado, longe de ser apenas um mecenas da Semana de Arte Moderna de 1922, articulou um robusto projeto político-ideológico, utilizando amplamente argumentos martinianos. Paulo Franchetti (2007) expandiu essa análise inicial de Berriel, encontrando diálogos com Oliveira Martins em diversos escritores brasileiros, como Joaquim Nabuco, Eduardo Prado, Euclides da Cunha, Manoel Bonfim e o próprio Paulo Prado.
Embora a crítica literária brasileira tenha feito avanços significativos na reflexão sobre a disseminação da obra de Oliveira Martins entre vários letrados brasileiros, ainda há muito a ser explorado. Não se trata de afirmar que conhecemos pouco sobre a obra de Oliveira Martins e sua recepção pelos intelectuais brasileiros, mas sim de destacar o caráter estruturante de seus argumentos. Esse caráter se revela não apenas na relação intertextual com outros autores — perceptível por uma abordagem filológica —, mas também no modo como ele produziu vocabulário e imagens para pensar a formação do Brasil. A ideia de formação aqui deve ser entendida como um paradigma em que variados intelectuais utilizam narrativas históricas de maneira pragmática, com o objetivo de elaborar diagnósticos e propor soluções para os problemas que impedem o avanço do país rumo à plena autonomia — seja no campo intelectual, econômico, político ou social (Arantes, 1997; Fischer, 2021).
Como veremos, os argumentos de Martins foram apropriados por diferentes atores ao longo do espectro ideológico brasileiro, gerando variados resultados. Esses resultados orbitam em torno do eixo discursivo da formação — com diagnósticos dos problemas que travam o desenvolvimento do país e propostas de soluções e potencialidades para a nação emergente. Apresento aqui as linhas gerais desse campo discursivo, delineando possíveis abordagens para as diversas apropriações do pensamento martiniano, amplamente reverberado na tradição ensaística brasileira:
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A crença de que o Brasil, “nação formada, livre e forte, na América” (Martins, 1978, p.11), seria o “único vivo testemunho” da existência dos portugueses no mundo; isto é, a noção de que o Brasil representaria o futuro das nações lusófonas e, entre elas, exerceria incontestável liderança. Gilberto Freyre foi o autor que mais utilizou e ampliou esse argumento, a ponto de imaginar um condomínio imperial luso-tropical comandado pelo Brasil (Feldman, 2021);
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A crítica ao Estado português sob o domínio da dinastia dos Bragança, considerado parasitário e explorador do povo, é um tema recorrente na obra de Martins, especialmente em A História de Portugal (1974). Essa crítica ecoa em obras tão diversas quanto América Latina: Os Males de Origem (1903), de Manoel Bomfim, e A Aventura Política do Brasil (1935), de Azevedo Amaral, ressoando também na imaginação antiestatista dos liberais brasileiros;
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A tese de que o Brasil trazia dentro de si dois países: o Norte, mais colonial e preso ao modelo das fazendas agroexportadoras, e o Sul, detentor de uma economia mais próspera e dinâmica e agindo politicamente de modo que era indômito e arredio a Metrópole. Essa tese aparece em obras de Nina Rodrigues (1932), Paulo Prado (1928) e até Caio Prado Jr. (1942). Posteriormente, foi formulada de maneira mais sistemática pelo brasilianista francês Jacques Lambert, em Os Dois Brasis (1956), e perdura na visão tecnocrática que vê o Brasil como uma “Belíndia” (mistura de Bélgica e Índia);
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O argumento de que a autonomia de um povo se manifesta inicialmente por “protonações”, isto é, grupos que se formam em torno de aspirações comuns e acabam criando uma comunidade capaz de se sustentar e conduzir a partir de seus próprios interesses, servindo de base para uma futura nação;
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O alerta para a necessidade de os brasileiros realizarem uma transição do status colonial para a consolidação nacional, superando a lógica de um mero conglomerado de negócios coloniais para incorporar o espírito de uma comunidade política e economicamente autossustentável. Para Martins, “não basta a independência política para constituir uma nação: a este termo corresponde a ideia de uma autonomia étnica, moral, intelectual e econômica. A colônia é o contrário disso” (Martins, 1978, p. 137). Toda a imaginação formativa progressista do século XX se estrutura em torno dessa premissa, como se vê nas obras de Caio Prado Junior e Celso Furtado.
Neste artigo, vamos nos concentrar no quarto item: as protonações imaginadas como a base fundacional sobre a qual uma nação floresce. No livro O Brasil e as Colônias Portuguesas, a figura do paulista surge como essa “protonação”. Contudo, apesar da surpresa que isso poderia causar, o exemplo mais bem realizado, do ponto de vista literário, de uma protonação está no episódio do Quilombo dos Palmares, narrado por Oliveira Martins (1978, p. 64) como a “Tróia negra”. O espanto reside no renitente racismo do intelectual português, como será discutido adiante.
Em Os Sertões (1902), um dos grandes clássicos da literatura brasileira, Euclides da Cunha define o sertanejo como o povo-formador do cerne nacional. Já o paulista é representado posteriormente, como a base de um Brasil insubmisso aos ditames metropolitanos na obra de Paulo Prado, especialmente em Paulística (1925). De partida, é possível identificar uma triangulação argumentativa composta por três modos distintos de imaginar uma “protonação” brasileira: os palmarinos do quilombo e os paulistas aparecem no esquema de Oliveira Martins, em O Brasil e as colônias portuguesas; do relato épico de Palmares apresentado por Martins, Euclides extrai um arcabouço narrativo semelhante para contar a história dos sertanejos conselheiristas; e do elogio martiniano ao paulista, Paulo Prado elabora uma interpretação do Brasil que posiciona o Estado de São Paulo como centro irradiador na busca por autonomia.
A seguir, veremos como as protonações do quilombola, do paulista e do sertanejo assumem rendimentos político-ideológicos muito distintos. Antes, porém, são necessárias algumas elucidações teórico-metodológicas para interpretar essas diferentes apropriações de uma mesma linguagem.
PRESSUPOSTOS PARA COMPREENDER OS USOS DE UMA LINGUAGEM POLÍTICA
Não há dúvidas de que a chamada “virada linguística” operou uma fecunda revolução na disciplina da história intelectual, tornando-se impossível trabalhar de maneira consequente nesse campo sem dialogar com o legado deixado por historiadores como Quentin Skinner, J. G. A. Pocock (da tradição anglófona) e Reinhart Koselleck (da tradição alemã). O que antes era a “história das ideias” — que tratava as ideias como representações mais ou menos atemporais, atravessando os séculos muitas vezes sem considerar mediações (como as do suporte textual ou das instituições) — tornou-se história intelectual: uma disciplina voltada para o modo como autores, a partir de um repertório linguístico prévio e historicamente situado, criavam argumentos e representações que dialogavam, em concordância ou conflito, com o universo discursivo em que viviam, gerando assim impactos culturais específicos no contexto do ato enunciativo.
Na transição da tradicional história das ideias para a história intelectual, podemos dizer que a análise do conteúdo proposicional dos argumentos (o que os textos dizem) cedeu lugar ao estudo da ação linguística gerada pelos discursos (como os textos atuam em um determinado contexto).
Um texto clássico como Meaning and Understanding in the History of Ideas, de Quentin Skinner (2002), ajudou a esclarecer o debate, apontando para diversas armadilhas impostas pelo raciocínio anacrônico, verdadeira sabotagem à reflexão histórica mais robusta. Skinner chama tais armadilhas de mitologias: a mitologia do perenialismo (presumir que a história das ideias é formada por um debate perene entre grandes autores, que tentam responder sempre às mesmas questões grandiosas e universais); a mitologia da prolepse (atribuir caráter antecipatório ao pensamento de um autor, criando esquemas interpretativos teleológicos e anacrônicos); e a mitologia da coerência (a tentativa de conferir uma coerência sistemática ao pensamento de um autor que nunca buscou tal sistematicidade). Embora essa abordagem ofereça avanços, dos quais a história literária e cultural pode se beneficiar, alguns excessos foram cometidos em nome de um programa historicista radical.
Se a intenção inicial era combater o pressuposto de que as ideias são universais (e, portanto, atemporais), os historiadores da Escola de Cambridge acabaram criando um parâmetro muito restrito para avaliar o alcance dos argumentos produzidos em determinada época, como se os textos que dialogam e respondem a questões e debates contingentes de um período fossem incapazes de se comunicar com outros horizontes históricos. Críticos do método de Skinner, como Femia (1987) e Keane (1987), argumentam que tal concepção de história intelectual estabelece uma radical alteridade temporal, encapsulando escritores, argumentos e conceitos em um contexto específico, sem possibilidade de transcendência.
Ao retirar a ênfase excessivamente nominalista e intencionalista da Escola de Cambridge, o que permanece é de grande valor: o foco na ação linguística, na maneira como os textos, utilizando os blocos lexicais de que dispõem, constroem argumentos que interpelam os leitores a agir com base em certos diagnósticos. Para ficarmos com exemplos do campo do pensamento social brasileiro, é importante destacar que a análise da ação linguística difere substancialmente de uma simples descrição da representação que determinado autor faz do Brasil (o retrato do país segundo o autor). O que interessa é compreender como uma determinada representação está articulada a uma estratégia discursiva que propõe, às vezes de forma explícita, outras vezes de maneira bastante oblíqua, um programa de ação para o país (o dever-ser da nação), e como tal estratégia se insere em disputas de poder, seja o poder institucional propriamente dito ou a consolidação de capital simbólico com vistas a obter hegemonia cultural.
No nosso caso, interessa sobretudo entender como diferentes intelectuais brasileiros partem de certos diagnósticos e vocabulários martinianos para propor programas para a nação, que seguem direções muito distintas, por vezes até opostas. Assim, para compreender a dinâmica da vida intelectual, é fundamental atentar para como a obra de Oliveira Martins se transforma em uma linguagem a ser empregada de modos variados por diversos atores do campo intelectual brasileiro.
Na chamada Escola de Cambridge, Quentin Skinner demonstra um interesse maior em estudar o texto como uma ação linguística, dentro da tradição wittgensteiniana, enquanto J. G. A. Pocock se debruça mais sobre o texto como produtor de linguagens que posteriormente são apropriadas por outros autores/atores. Segundo Pocock:
O texto [...] preserva as enunciações do autor em uma forma rígida e literal e as transmite para contextos subsequentes, onde elas estimulam naqueles que respondem interpretações que, embora radicais, deturpadoras e anacrônicas, não teriam sido efetuadas se o texto não tivesse atuado sobre eles. O que o autor “estava fazendo”, portanto, inclui o suscitar respostas em terceiros que o autor não pode controlar nem prever, algumas das quais se efetuarão em contextos completamente diversos daqueles em que “estava fazendo” aquilo que talvez soubesse que estava fazendo (Pocock, 2003, p. 30).
Em outras palavras, embora possamos contextualizar a produção intelectual de Oliveira Martins em Portugal no final do século XIX, dentro do horizonte de possibilidades intelectuais de sua época, esse não é o propósito deste artigo. Outros trabalhos já reconstruíram como Oliveira Martins atuava, na condição de ensaísta e político da Geração de 1870 (a qual pertencem Eça de Queiroz, Antero de Quental, e Guerra Junqueiro), em uma sociedade que enfrentava a crise do liberalismo dos anos 1870 e discutia a decadência geopolítica de Portugal (Alexandre, 1996; Ramos, 1997). O objetivo deste artigo é investigar as respostas que sua obra suscitou em terceiros (especialmente em dois intelectuais brasileiros), algo que sequer era previsto pelo autor. Pocock também destaca o caráter dinâmico dessa transmissão de linguagens:
A linguagem que um autor emprega já está em uso. Foi utilizada e está sendo utilizada para enunciar intenções outras que não as suas. Sob esse aspecto, um autor é tanto o expropriador, tomando a linguagem dos outros e usando-as para seus próprios fins, quanto o inovador que atua sobre a linguagem de maneira a induzir momentâneas ou duradouras mudanças na forma como ela é usada. Mas o mesmo que ele fez com outros autores e suas linguagens pode ser feio com ele e sua linguagem (Pocock, 2003, p. 29).
Buscaremos mostrar, a seguir, como a linguagem martiniana se transforma num idioma incontornável para se imaginar a própria ideia de formação e como diferentes atores usam tal linguagem gerando resultados e efeitos bastante distintos.
A TRÓIA NEGRA E A TRÓIA DE TAIPA
Em O Brasil e as Colônias Portuguesas, há uma longa passagem em que Oliveira Martins narra a ascensão e queda do Quilombo dos Palmares. A surpresa é inevitável ao perceber que a avaliação do evento histórico não é apenas positiva, mas ganha contornos épicos, mostrando um povo capaz de se construir e resistir às ameaças. Isso é ainda mais surpreendente considerando que o mesmo autor, em obras como Tábuas de Cronologia (1884) e As Raças Humanas (1881), publicadas posteriormente, adota uma postura abertamente racista e evolucionista. A passagem merece ser lida na íntegra:
[D]e todos os exemplos históricos do protesto do escravo, Palmares é o mais belo, o mais heróico. É uma Tróia Negra, e a sua história uma Ilíada.
Foi a ocupação dos Holandeses que deu lugar a formação da república dos escravos. O abandono das fazendas pelos senhores e mais tarde o armamento dos negros para expulsar os invasores, eis a causas imediatas da organização desse grande quilombo. Em 1630, quarenta negros guinés, escravos de Porto Calvo, refugiaram-se nos Palmares, coisa de trinta léguas para o interior de Pernambuco e fortificaram-se. Como os Romanos, raptaram as sabinas, índias e mestiças dos arredores. Principiaram por viver da razia das plantações próximas, do saque dos fazendeiros. Assim viviam os Romanos. Palmares era o asilo de escravos fugitivos, como também fora Roma e os concelhos medievais. [...] À maneira que prosperavam, abandonavam a pilhagem, fazendo-se agricultores. Lavravam e comerciavam; e os fazendeiros dos arredores, vendo-se livres do incômodo nascente, vendiam-lhe fazendas e armas. Assim as nações se formam, e Palmares mereceria já este nome quando, reconquistado e pacificado o Norte do Brasil, o Governo resolveu submeter a república (1695).
Tinha ele então quatro ou cinco milhas de circuito, porque não atingira ainda a idade em que as repúblicas se tornam conquistadoras. O recinto era fortificado por uma paliçada alta, à moda das aringas ou mocambas da África. Dentro havia as plantações, um rio com água abundante, frondosas bananeiras, campos de milho e mandioca. A população contava com mais de vinte mil pessoas, das quais oito ou dez mil em armas esperavam os agressores.
Caiu a república, destruída pelas armas portuguesas, mas caiu epicamente como uma Tróia de negros voltados à vida bárbara. Vencidos, mortos, esmagados pela força, rotas as fortificações, aberto de par em par aos invasores o ninho da sociedade nascente, os palmarinos não se submeteram, suicidaram-se. O zambi com os rotos destroços do seu exército precipitou-se do alto de um penhasco, e os cadáveres dos heróis vieram rolando despedaçados cair aos pés dos portugueses vitoriosos.
A Tróia dos negros foi arrasada, mas a memória dos seus heróis ficou e ficará como um nome protesto de liberdade humana contra a dura fatalidade da natureza, cujas ordens impuseram à exploração da América a condição do trabalho escravo (Martins, 1978, p. 66-67).
Subsiste na narrativa um esquema teleológico da formação das nações. O quilombo é desde o início comparado à Tróia por sua resistência guerreira, mas também é definido como uma república, sendo assim cotejado com Roma. É contada sua história desde os primórdios: os saques e a pilhagem constituíam os primeiros passos daquele povoado, assim como também caracterizaram a fundação de Roma. Mas aí surge o salto qualitativo: da pilhagem para a agricultura; do saque puro e simples para a produção do necessário para subsistir e, depois, comercializar. Estabelece-se, assim, como nação, ainda pequena, longe de desenvolver impulsos expansionistas. E, como uma nação, mantém negócios com os fazendeiros vizinhos, que já não temem os roubos, pois lidam agora com um povo que se sustenta e comercializa os excedentes de sua produção. “Assim as nações se formam”, conclui Oliveira Martins. Todo esse arco formativo está fundamentado no juízo que Oliveira Martins fazia da república romana: o começo bárbaro, o auge e a expansão, germe do declínio (nunca vivido pelo Quilombo dos Palmares por ter sido destruído antes dessa fase).
A república se transforma em Tróia quando precisa combater os portugueses. E mais uma vez, a virtude de uma nação independente se revela: a autonomia é absolutamente inegociável. Por isso, a submissão a outro poder estava fora do horizonte dos quilombolas. Suicidaram-se aqueles que não foram mortos em combate. Quem viveu o auge da autonomia não se submete à heteronomia decadente. Essa queda, que vai da liberdade da nação à sua submissão a outro poder nacional, é um tema caro aos letrados portugueses do último quartel do século XIX, obcecados pela percebida decadência de Portugal, iniciada com o fim da dinastia de Avis e a submissão à Coroa espanhola.
O leitor de literatura brasileira estará familiarizado com a expressão utilizada por Euclides da Cunha para representar Canudos (2002, p. 290): “Tróia de taipa dos jagunços”. Importante ressaltar que, aqui, Euclides não evoca pura e simplesmente o substrato mítico de Tróia, o povo que bravamente resistiu ao ataque dos aqueus até sua derrota final, como também está revisitando a Tróia descrita por Oliveira Martins. Tal como narrado pelo publicista português, o episódio do Quilombo dos Palmares oferece um enredo muito proveitoso para Euclides: um povo que se juntou, criou laços de comunidade e lutou contra uma força externa até seus limites para não ser submetido pelo Estado (metropolitano no caso dos palmarinos, brasileiro no caso dos conselheiristas). A insubmissão dos sertanejos é o grande destaque da narrativa euclidiana:: “Fechemos este livro. Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo” (Cunha, 2002, p. 778). Essa é uma das frases mais citadas de Os Sertões, sendo frequentemente lembrada pelo leitor não especializado. O teor épico da frase só ganha inteligibilidade plena quando vemos nela o eco dos “palmarinos [que] não se submeteram”, epicamente relatado por Martins, como se Euclides estivesse mobilizando um estoque discursivo previamente estabelecido pelo intelectual português.
Isso dito, a protonação vislumbrada por Euclides da Cunha não é propriamente política, pois os jagunços — como ele nomeia os sertanejos envolvidos na Rebelião de Canudos — seriam pré-modernos em sua imaginação política, incapazes de alcançar o pensamento abstrato necessário para discutir formas de governo (República ou Monarquia). Estavam marcados pelo messianismo sebastianista, considerado por Euclides como o germe da decadência portuguesa. Devido ao isolamento geográfico dos sertanejos, tal mentalidade, considerada obscurantista por Euclides, ainda vicejava no interior do Brasil, em 1897. Ele chega a citar Oliveira Martins para diagnosticar a “caquexia nacional”, que acometeu Portugal após a derrota em Alcácer-Quibir (Cunha, 2002, p. 240), por conta do fanatismo messiânico. Há um entrecruzamento temporal significativo nas imaginações martiniana e euclidiana: os elementos da superstição e do fanatismo estão presentes tanto no português tardo-quinhentista da História de Portugal quanto no sertanejo conselheirista de Os sertões. Para Oliveira Martins, o messianismo era a pedra angular da decadência portuguesa, enquanto para Euclides essa cultura atrasada era um obstáculo, embora contornável, que precisava ser denunciado com urgência em Os Sertões, um “livro de ataque”. No Brasil, o atraso cultural poderia ser solucionado: uma vez removida a suposta ignorância desse povo por meio da instrução pública, o sertanejo constituiria uma protonação étnica — e, por vezes, também confundida como uma protonação ética —, pois seu modo altivo e honrado de agir era visto como a reserva moral da nação. Nas palavras de Euclides: “Despeada afinal da existência selvagem, [o sertanejo] pode alcançar a vida civilizada” (Cunha, 2002, p. 103). Esse povo seria a “rocha” da nacionalidade brasileira.
Para adentrar no argumento que entrelaça isolamento geográfico e uma alegada “estabilidade étnica” da rocha da nacionalidade, é importante retomar mais uma linha de força da imaginação martiniana: o paulista, forjado nas intempéries do isolamento, constituindo assim o núcleo da nação. Veremos que a estrutura argumentativa acionada por Oliveira Martins, para elogiar o paulista — elogio reeditado por Paulo Prado — é muito semelhante à usada por Euclides para enaltecer o sertanejo.
PAULISTAS E SERTANEJOS: RAMOS COLATERAIS DE UMA INTERIORIDADE NACIONAL
No esquema interpretativo que apresenta em O Brasil e as Colônias Portuguesas, Oliveira Martins contrapõe o Sul ao Norte do Brasil, como se houvesse um hiato substancial entre as duas regiões em termos de organização social:
Na riqueza do ouro encontrou a população de S. Paulo uma força predominante com que impôs a sua supremacia – como homogeneidade, como coesão, como originalidade e autonomia nacional – às províncias do Norte, cuja existência era artificial, na população toda estrangeira, quer nos brancos portugueses, quer nos negros africanos; artificial no regime do trabalho e natureza da cultura: cuja vida, enfim, era a de uma fazenda ultramarina de Portugal, amanhada e cultivada pelo gênio dos estadistas, e não a de uma nação nova existindo independente e autônoma, por virtude de uma população fixada e naturalizada no solo sobre que vivia.
O espírito aventureiro dos paulistas foi a primeira alma da nação brasileira; e S. Paulo, esse foco de lendas e tradições maravilhosas, o coração do país. Daí partiu o movimento de ocupação do interior dos sertões (Martins, 1978, p. 81).
De acordo com Martins, o Norte seria um prolongamento da Metrópole portuguesa nas Américas. Este território trazia consigo uma série de corpos estranhos ao ambiente: os próprios portugueses e os africanos escravizados. Em contraste, São Paulo era habitado por pessoas que permaneciam e se embrenhavam nos interiores, adaptando-se à terra para melhor dominá-la. Enquanto Oliveira Martins desenvolve uma dicção elegíaca ao falar sobre Palmares, registrando o fim de uma protonação assassinada no início, um tom alvissareiro é usado pelo escritor português ao se referir aos paulistas, vendo neles a marca de um Brasil independente.
A autonomia dos paulistas teria sido conquistada em razão dos laços muito mais tênues com as autoridades coloniais. Um certo isolamento geográfico somado à iniciativa de desbravar as terras em busca de escravos e ouro distanciaram os paulistas dos ditames metropolitanos, tornando-os mais senhores de seus próprios domínios, enquanto os nortistas ficavam mais próximos daquilo que o jugo lusitano projetava para a colônia no Brasil.
Isolamento geográfico, afastamento da tutela metropolitana e envolvimento com as riquezas da terra: esses seriam os fatores que levariam ao surgimento de uma protonação, capaz de elaborar seu próprio interesse e forjar sua autonomia. Estamos novamente no terreno da imaginação formativa e da construção de um vocabulário para lidar com esse tema. O desejo do brasileiro de se tornar autônomo na sua cultura, na sua produção econômica e na sua vida política só poderia ser inicialmente cultivado, na visão de Martins, em São Paulo, e não nas fazendas luso-brasileiras do Norte.
A contraposição entre o Sul e o Norte ganhará continuidade no pensamento brasileiro, sobretudo na obra de estreia de Paulo Prado, Paulística (1925), uma coleção de ensaios sobre a história colonial da região de São Paulo. Representante da oligarquia cafeeira que dominou economicamente o Brasil na sua Primeira República, Prado foi uma figura que serviu como ponte entre a geração portuguesa de 1870, representada por Oliveira Martins, e os intelectuais modernistas brasileiros das décadas de 1920 e 1930. Essa ligação não se deu apenas no plano abstrato das ideias, mas também por meio dos contatos pessoais que ele estabeleceu. O próprio Paulo Prado frequentou, quando jovem, o círculo de amizades de seu tio, Eduardo Prado, que mantinha intensa interlocução intelectual com figuras como Eça de Queirós e Oliveira Martins. Some-se a isso o impacto gerado por sua atuação como mecenas da Semana de Arte Moderna e seu empenho em promover estudos da história do Brasil, apoiando seu mestre Capistrano de Abreu (Waldmann, 2015). Prado desempenhou, assim, um papel crucial na transmissão de muitos temas e léxicos dessa geração portuguesa de 1870 aos intelectuais brasileiros que se dedicavam a interpretar o Brasil nas primeiras décadas do século XX. Seu elogio à figura do paulista é indissociável da hegemonia cultural que o oligarca cafeeiro buscava estabelecer para São Paulo, província que já tinha o domínio nas atividades econômicas do país, mas que queria ser percebida como centro irradiador da cultura e da história brasileira. Como veremos adiante, tal projeto de hegemonia nacional será importante para se levar em conta as diferenças entre as figuras do sertanejo e do paulista na história cultural brasileira.
Em Paulística, Prado faz um forte elogio do paulista histórico, responsável pelas bandeiras:
Os excessos dos bandos mamalucos, se tinham uma explicação na própria rudeza dos tempos, afirmavam, no entanto, as qualidades fortes da raça, criada asperamente nas suas montanhas, longe das influências deprimentes da metrópole e do litoral. O Caminho do Mar preparara o paulista para as predestinações que lhe reservava a história do Brasil (Prado, 2004, p. 86).
Em seguida, reproduz o mesmo argumento martiniano de um povo afastado e liberto dos tentáculos metropolitanos:
Essa independência e isolamento foram os traços característicos do povo de São Paulo durante todo o desenrolar da história do Brasil. Quando o país inteiro era apenas uma colônia vivendo no mesmo ritmo transmitido pela Metrópole, os paulistas viviam a sua própria vida em que a iniciativa particular desprezava as ordens e instruções de além-mar para só atender aos seus interesses imediatos e à ânsia de liberdade e ambição de riquezas que os atraíam para os desertos sem leis e sem peias (Prado, 2004, p. 87).
O discurso de autonomia paulista permeia todo o texto: os paulistas viviam uma vida própria, atendendo aos seus interesses imediatos em detrimento do ritmo do país, ditado pela Metrópole. E apenas o isolamento étnico-geográfico poderia garantir essa autonomia. Em Retrato do Brasil (1928), no capítulo sobre a tristeza brasileira, Prado argumenta que “só escaparão à degenerescência de além-mar os grupos étnicos segregados e apurados por uma mestiçagem apropriada” (Prado, 2011, p. 95). Ele exemplifica: “Foi o caso de Piratininga, em que o Caminho do Mar preparou e facilitou para a formação do mamaluco esse ‘centro de isolamento’” (Prado, 2011, p. 95). Para todos os efeitos, a imensa maioria da população brasileira estaria sob a égide de uma mestiçagem inapropriada, sem a estabilidade étnica dos mamalucos isolados. O Caminho do Mar funcionava como um muro de proteção dos paulistas contra as nefastas influências do litoral.
Em certa medida, a imaginação de uma protonação em Paulo Prado também vem acompanhada de um nacionalismo étnico. Prado considera o paulista contemporâneo decadente e enfraquecido, mas, crente nos ciclos históricos (corsi e ricorsi), vislumbra que as energias adormecidas do paulista podem “ressurgir em retornos inesperados, como que ao contato do seu patrimônio histórico” (Prado, 2004, p. 48). Prado escreve essa passagem no prefácio da 2ª edição de Paulística, remoendo a derrota na Revolução de 1932, quando São Paulo foi derrotado pelas forças federais. Ele conclui que tal ressurgimento paulista seria uma “influência da Terra e dos Mortos, segundo a fórmula barresiana”. Maurice Barrès, autor de um clássico do nacionalismo étnico (e reacionário) francês, La terre et les morts: sur quelles réalités fonder la conscience française (1899), defende que os antecedentes históricos e as condições étnico-geográficas orientariam a consciência nacional de um país (Barrès, 1899, p. 30). A alusão a Barrès é bastante sintomática do que o elogio ao paulista havia se tornado após a derrota do Estado de São Paulo em 1932: telurismo reacionário e racista.
Seria então importante retomar o argumento euclidiano sobre Os sertões, já que ao contrário de Oliveira Martins e Paulo Prado, Euclides não destaca o paulista – para ele já decadente -, mas o sertanejo, que surge como um ramo colateral dos paulistas. Em Os sertões, tanto o sertanejo quanto o paulista seriam frutos de uma miscigenação acontecida há centenas de anos entre portugueses e indígenas, mas cada grupo se interioriza no território a partir de entradas diferentes e se isolam em espaços geográficos distintos. Só os sertanejos, no entanto, manteriam a pujança vital.
É que já se formara no vale médio do grande rio uma raça de cruzados idênticos àqueles mamalucos estrênuos que tinham nascido em S. Paulo. E não nos demasiamos em arrojada hipótese admitindo que este tipo extraordinário do paulista, surgindo e decaindo logo no sul, numa degeneração completa ao ponto de declinar no próprio território que lhe deu o nome, ali renascesse e, sem os perigos das migrações e do cruzamento, se conservasse prolongado, intacta, ao nosso tempo, a índole varonil e aventureira dos avós.
Porque ali ficaram, inteiramente divorciados do resto do Brasil e do mundo.
[...]
Caldeadas, a índole aventureira do colono e impulsividade do indígena, tiveram, ulteriormente, o cultivo do próprio meio que lhes propiciou, pelo insulamento, a conservação dos atributos e hábitos avoengos.
Estabelecendo no interior a contiguidade do povoamento, aquela rude sociedade, incompreendida e olvidada, era o cerne vigoroso de nossa nacionalidade (Cunha, 2002, p. 190).
Aqui, novamente, vemos as virtudes do isolamento geográfico, “sem o perigo das migrações”, que mantém intactas as qualidades dos antepassados até os dias atuais. O diagnóstico que Euclides da Cunha faz do sertanejo contemporâneo não é o de um povo decadente (como seria o paulista de Prado). Em sua definição, o sertanejo “[é] um retrógrado; não é um degenerado” (Cunha, 2002, p. 203). Atrasado e embrutecido, mas dotado de força, persistência e coragem, o sertanejo é visto como um povo reformável por excelência, antevisto como “o núcleo de força da nossa constituição futura, a rocha viva da nossa raça” (Cunha, 2002, p. 788), já que haveria uma garantia étnica de sua robustez.
Algo semelhante pode ser dito do paulista inventado por Paulo Prado, se entendermos que decadência não é sinônimo de degeneração. A ideia de degeneração carrega um teor muito mais essencialista e racial, como se refletisse uma desfibração constitutiva; por outro lado, a decadência estaria circunscrita a determinados momentos, passíveis de recuperação com a chegada de um novo ciclo histórico. No prefácio da 1ª edição de Paulística, Prado esboça um gráfico com uma linha curva, representando os movimentos ondulados da história do paulista: ascensão, clímax, decadência e regeneração. Ainda assim, nesse prefácio, lamenta-se a perda das virtudes do “antepassado piratingano”, como o “anseio de independência, a altivez inquieta e indômita” (Prado, 2004, p. 60). Essas energias autonomistas pareciam, para Paulo Prado, bastante adormecidas na época em que escrevia seu livro.
LINGUAGENS DA FORMAÇÃO E SEUS USOS
A partir da circulação da obra de Oliveira Martins, com a gradual difusão de seus esquemas interpretativos, vai-se criando um vocabulário da formação: uma linguagem forjada por um desejo de autonomia e diferenciação da nação. Para imaginar a independência efetiva do país, é preciso lançar mão de um elemento demográfico já formado e constituído por meio da experiência histórica. Apenas esse elemento, supostamente intocado pelos fluxos migratórios constantes, poderia gestar uma nação. Busca-se uma protonação no passado para promover a nação do futuro. Oliveira Martins faz menção a Palmares em tom elegíaco, mostrando o que poderia ter sido o Brasil caso a civilização europeia não houvesse triunfado de maneira, para ele, inexorável. No mais, aposta suas fichas no paulista—aposta essa redobrada por Paulo Prado. Usando uma estrutura argumentativa muito semelhante, mas modificando o grupo social a ser elevado como essencial para a formação do país, Euclides da Cunha transforma o sertanejo na rocha sobre a qual se assenta o futuro da nação.
As linguagens são semelhantes, mas seus usos são notoriamente distintos. Ademais, o sucesso argumentativo da obra de Euclides da Cunha parece ser sensivelmente maior do que o de Paulo Prado, uma vez que Os Sertões continua a figurar no cânone nacional (Abreu, 1998 de modo muito mais central do que Paulística e Retrato do Brasil. Uma pista para entender o hiato que se abre entre as linguagens da formação usadas por Paulo Prado e Euclides da Cunha está no fato de que Paulo Prado alardeia a superioridade — inclusive étnica — de uma personagem já dominante na correlação de forças econômicas e políticas do país: o paulista. Isso não torna as teses de Euclides da Cunha menos problemáticas; afinal, todo o seu argumento que qualifica e defende os sertanejos como “rocha viva da nacionalidade” está, inicialmente, assentado em premissas racistas. Os sertanejos seriam etnicamente superiores aos brasileiros do litoral, mestiços “proteiformes”. Os brasileiros do sertão seriam estáveis do ponto de vista étnico, enquanto os do litoral estariam em constante degradação racial, por conta dos fluxos demográficos nas cidades brasileiras. Luiz Costa Lima (1997, p. 121) chama a atenção para o fato de o racismo euclidiano ser costumeiramente silenciado na crítica literária. Por que a reflexão euclidiana sobre a formação do povo brasileiro, apesar de assentada em premissas racistas, manteve seu impacto cívico até os dias de hoje?
Podemos argumentar que o racismo em Euclides da Cunha difere do padrão habitual, pois a ideologia racista, em geral, justifica o status quo dos grupos dominantes, legitimando seu poder e frequentemente naturalizando a dominação colonial. Em Os Sertões, no entanto, a raça considerada mais estável e forte é justamente a mais empobrecida e marginalizada, esquecida pelo poder estatal, além de ser brutalizada por uma suposta ignorância pré-moderna — o que configura um peculiar “racismo subalterno”, em que a raça forte corresponde ao povo oprimido e subalternizado. Essa torção ideológica que Euclides realiza com os pressupostos racistas de seu argumento é, em certo sentido, o que permite que tal aspecto passe despercebido quando Os Sertões é debatido na esfera pública. Assim, a linguagem formativa proposta por Euclides — recebida e reinterpretada pela comunidade de leitores — adquire gradualmente um tom épico e uma moldura metonímica, na qual a parte (o sertanejo) passa a representar o todo: o povo brasileiro, agora, detentor das mesmas características anteriormente só atribuídas aos sertanejos do Norte por Euclides: povo sofrido, corajoso, moralmente coerente, subalternizado e resiliente. Essa operação metonímica ocorre sem necessariamente considerar o percurso argumentativo racista e excludente de Euclides que fundamenta suas conclusões em sua obra principal.
Esse processo de idealização ainda viceja no imaginário brasileiro, promovendo uma imagem épica do povo nacional como sofrido e batalhador (imagem do nacional-popular por excelência). A transformação de uma protonação — sempre idealizada retrospectivamente — em uma nação ansiosamente projetada para o futuro é um processo que acarreta diversos ônus, pois o povo supostamente fundacional é, invariavelmente, fruto de uma seleção baseada em critérios excludentes e racistas.
O uso dessas protonações para construir uma identidade nacional evidencia as tensões inerentes à linguagem formativa, tal como revelado pelo léxico martiniano: a necessidade de um “povo-matriz” fixo e resistente contrasta com as contingências de uma nação diversa e em constante transformação. Paulo Prado emprega a linguagem martiniana para enaltecer um personagem sócio-histórico — o paulista — que já detinha domínio econômico e começava a consolidar uma hegemonia cultural no país. Na busca do intelectual brasileiro pelo “povo”, ao longo do século XX, torna-se compreensível que o sertanejo, integrante das camadas mais subalternas de uma sociedade desigual, seja o elemento da população que mais capturou a imaginação nacional-popular. Ao exaltar a força e a resiliência dos sertanejos como a “rocha da nacionalidade”, Euclides constrói uma narrativa que, embora profundamente marcada por ideias racistas, tem sido frequentemente interpretada como uma celebração da garra e da disposição para a luta do povo brasileiro como um todo. Contudo, como aponta a inquietação de Luiz Costa Lima (1997), a interpretação culturalizante e nacionalizadora de argumentos fundamentados em premissas étnicas e regionalmente delimitadas resultou na supressão das questões raciais presentes nessa linguagem formativa tecida por Oliveira Martins e usada por Euclides. Talvez seja necessário revisitar a observação de J. G. A. Pocock (2003) para concluir que os usos de uma determinada linguagem frequentemente implicam distorções, anacronismos e variações transformadoras dessa linguagem ao longo do tempo. Se, para um crítico literário ou um filósofo, uma leitura equivocada pode parecer uma falha grave na prática hermenêutica dos mediadores de uma obra, para o historiador intelectual, tais equívocos constituem o modus operandi de uma linguagem política viva e dinâmica, repleta de usuários e que precisa ser estudada e analisada em suas variações históricas.
REFERÊNCIAS
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FONTE DE FINANCIAMENTO:
Bolsista de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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Editor responsável:
Ely Bergo de Carvalho
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Abr 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
1 Maio 2024 -
Revisado
10 Nov 2024 -
Aceito
4 Out 2024