RESUMO
Objetivo
Investigar os sintomas de transtorno de ansiedade social (TAS) entre os estudantes de Medicina do Centro Universitário Christus (Unichristus), instituição que adota o método de Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP).
Métodos
Estudo transversal com 431 estudantes do primeiro ao quarto ano do curso de Medicina, por meio da aplicação da Escala de Ansiedade Social de Liebowitz (LSAS-SR), do Inventário de Ansiedade de Beck de Avaliação de Ansiedade, além de questionário com perguntas referentes a questões sociodemográficas, história familiar de doenças psiquiátricas, acompanhamento psicoterápico e psiquiátrico, nível de ansiedade para se expressar na tutoria e percepção de como a ansiedade variou ao longo dos semestres da faculdade.
Resultados
Utilizando-se a LSAS-SR como instrumento de triagem para casos de TAS, encontraram-se escores sugestivos do transtorno em 59,2% (255) dos estudantes. Em relação ao nível de ansiedade, o Inventário de Ansiedade de Beck (BAI) evidenciou que 59,3% (258) dos estudantes apresentaram nível de ansiedade mínimo; 26,6% (115), nível leve; 9,7% (42), nível moderado; e 4,4% (19), nível grave. Observou-se uma correlação significativa entre os escores obtidos nas escalas BAI e LSAS-SR: estudantes com sintomas sugestivos de ansiedade social apresentaram maior grau de ansiedade. Além disso, estudantes com sintomas de ansiedade social relataram maior nível de ansiedade para se expressar durante as sessões de tutoria.
Conclusão
A elevada prevalência de TAS apontada nesta investigação já justifica o estímulo à adoção de medidas psicoeducativas e estratégias pedagógicas que venham a auxiliar os estudantes com manifestações de ansiedade social a reduzir esses sintomas, favorecendo o processo de ensino-aprendizagem.
Ansiedade; Fobia Social; Aprendizagem Baseada em Problemas; Estudantes de Medicina; Educação Médica
ABSTRACT
Objective
To investigate the symptoms of social anxiety disorder (SAD) among medical students of the Christus University Center (Unichristus), an institution that adopts the problem-based learning (PBL) method.
Methods
A cross-sectional study with 431 students in their first to fourth years of Medical School, through the application of the Liebowitz Social anxiety scale (LSAS-SR), Beck’s anxiety Inventory, and a questionnaire with questions concerning sociodemographic issues, family history of psychiatric disorders, psychiatric appointments, level of anxiety when expressing themselves in tutorials, and the perception of how their anxiety varied throughout the college semesters.
Results
Using the LSAS-SR as a screening tool for cases of SAD, there were indications of the disorder in 59.2% (255) of the students. In relation to the level of anxiety, the Beck’s anxiety inventory (BAI) showed that 59.3% (258) of the students presented minimal anxiety, 26.6% (115) presented light anxiety, 9.7% (42) presented moderate anxiety, and 4.4% (19) presented severe anxiety. A significant correlation was observed between the scores obtained in the BAI and LSAS-SR scales: students with symptoms suggesting social anxiety showed a greater degree of anxiety. Also, students with symptoms of social anxiety reported higher levels of anxiety when expressing themselves during tutorials.
Conclusions
The high prevalence of SAD pointed out in this research justifies stimulating the adoption of psycho-educational measures and pedagogical strategies that will help students with the manifestations of social anxiety, reduce these symptoms, and promote the teaching-learning process.
Anxiety; Social Phobia; Problem-Based Learning; Medical Students; Medical Education
INTRODUÇÃO
O transtorno de ansiedade social (TAS), também conhecido como fobia social (FS), é uma condição em que o indivíduo se esquiva de situações sociais pelo receio de ser avaliado negativamente. De início precoce e curso crônico, caracteriza-se pelo medo acentuado e persistente de enfrentar situações sociais ou de mostrar desempenho diante de outras pessoas, apresentando ansiedade antecipatória intensa em face de tais situações e consequente tentativa de evitá-las11. Association AP. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: texto revisado (DSM-IV-TR): Artmed; 2002.. O diagnóstico se faz quando comportamentos de esquiva, medo ou antecipação ansiosa diante das situações sociais interferem no funcionamento escolar ou ocupacional e na vida social do indivíduo, causando-lhe sofrimento e limitação11. Association AP. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: texto revisado (DSM-IV-TR): Artmed; 2002.. Embora cause grandes prejuízos nas dimensões social, profissional e afetiva da vida, o TAS ainda é subdiagnosticado e subtratado22. Schneier FR, Heckelman LR, Garfinkel R, Campeas R, Fallon BA, Gitow A, et al. Functional impairment in social phobia. The Journal of clinical psychiatry. 1994..
Os primeiros episódios de transtornos mentais surgem no início da fase adulta, período que geralmente coincide com o início da formação acadêmica, nas idades entre 18 e 25 anos33. Mowbray CT, Megivern D, Mandiberg JM, Strauss S, Stein CH, Collins K, et al. Campus mental health services: recommendations for change. American Journal of Orthopsychiatry. 2006;76(2):226.,44. Arnett JJ. Emerging adulthood: A theory of development from the late teens through the twenties. American psychologist. 2000;55(5):469.. A universidade traz grandes mudanças à vida do estudante. A transição do ensino médio para o ensino superior coloca o jovem estudante diante de inúmeros desafios55. Aktekin M, Karaman T, Senol YY, Erdem S, Erengin H, Akaydin M. Anxiety, depression and stressful life events among medical students: a prospective study in Antalya, Turkey. Medical education. 2001;35(1):12-7.. Estudos realizados em estudantes de Medicina têm apontado alta prevalência de sintomas de ansiedade e depressão66. Baldassin S, Martins L, Andrade A. Anxiety traits among medical students. Arq Med ABC. 2006;31(1):27-31., sofrimento psíquico ou transtorno mental comum77. Almeida AdM, Godinho TM, Bitencourt AGV, Teles MS, Silva AS, Fonseca DC, et al. Common mental disorders among medical students. Jornal Brasileiro de Psiquiatria. 2007;56(4):245-51.
8. Fiorotti KP, Rossoni RR, Miranda AE. Perfil do estudante de medicina da Universidade Federal do Espírito Santo, 2007. Rev bras educ med. 2010;34(3):355-62.-99. Lima MCP, Domingues MdS, Cerqueira ATdAR. Prevalência e fatores de risco para transtornos mentais comuns entre estudantes de medicina. Revista de Saúde Pública. 2006;40:1035-41. entre os futuros médicos.
Alguns cursos de Medicina adotam a metodologia Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP), que tem como filosofia pedagógica o aprendizado centrado no aluno, em que ele é o ser ativo, responsável por seu aprendizado1010. BERNARDO I. Investigação do nível de ansiedade e sintomas de depressão entre alunos de graduação em Odontologia. Piracicaba; 2010.. Tal metodologia propõe exposição e avaliação constantes pelos pares, constituindo mais um elemento estressor que pode ampliar o sofrimento psíquico do aluno. Afinal, falar em público foi encontrado em estudos como uma situação geradora de estresse que serve de gatilho disparador dos sintomas de TAS em estudantes universitários1111. Zeggio Perez Figueredo L, Vieira Barbosa R. Fobia social em estudantes universitários. ConScientiae Saúde. 2008;7(1)..
Dada a carência de estudos sobre ansiedade social entre estudantes universitários no Brasil submetidos à metodologia da ABP, propõe-se uma investigação de sintomas de TAS entre estudantes de Medicina do Centro Universitário Christus (Unichristus), instituição que adota esse método de ensino.
MÉTODOS
Realizou-se um estudo observacional com delineamento transversal em estudantes do primeiro ao quarto ano do curso de Medicina do Centro Universitário Christus, instituição de ensino superior privada situada em Fortaleza, no Estado do Ceará.
Os dados foram coletados entre agosto de 2016 e junho de 2017 por meio da aplicação da Escala de Ansiedade Social de Liebowitz, versão autoaplicada (LSAS-SR)1212. dos Santos LF, Loureiro SR, deSouza Crippa JA, de Lima Osório F. Psychometric validation study of the liebowitz social anxiety scale-Self-reported version for Brazilian Portuguese. PloS one. 2013;8(7):e70235., do Inventário de Ansiedade de Beck de Avaliação de Ansiedade (BAI) e de questionário sociodemográfico com perguntas referentes a idade, gênero, estado civil, religião, moradia, renda, história familiar de doenças psiquiátricas, e da realização de acompanhamento psicoterápico e psiquiátrico do nível de ansiedade para se expressar na tutoria e percepção de como a ansiedade variou ao longo dos semestres da faculdade.
A LSAS-SR, validada por Santos1212. dos Santos LF, Loureiro SR, deSouza Crippa JA, de Lima Osório F. Psychometric validation study of the liebowitz social anxiety scale-Self-reported version for Brazilian Portuguese. PloS one. 2013;8(7):e70235., visa identificar as situações de desempenho social que o indivíduo com TAS teme ou evita. Foi o primeiro instrumento desenvolvido para avaliação do transtorno de ansiedade social1313. Liebowitz MR. Social phobia. Anxiety. 22: Karger Publishers; 1987. p. 141-73.. Uma versão autoaplicada dessa escala surgiu em 19881414. Cox BJ, Ross L, Swinson RP, Direnfeld DM. A comparison of social phobia outcome measures in cognitive-behavioral group therapy. Behavior Modification. 1998;22(3):285-97.. O questionário tem 24 itens. Cada item consiste em determinada situação a ser classificada numa escala de zero a três pontos em termos da ansiedade que provoca e da frequência de seu evitamento. Santos et al.33. Mowbray CT, Megivern D, Mandiberg JM, Strauss S, Stein CH, Collins K, et al. Campus mental health services: recommendations for change. American Journal of Orthopsychiatry. 2006;76(2):226. examinaram a validade da escala LSAS-SR em casos de TAS em estudantes universitários brasileiros33. Mowbray CT, Megivern D, Mandiberg JM, Strauss S, Stein CH, Collins K, et al. Campus mental health services: recommendations for change. American Journal of Orthopsychiatry. 2006;76(2):226.. Como esse estudo encontrou um ponto de corte de 32 para triagem de casos de TAS, definiram-se os casos sugestivos de TAS como aqueles que obtiveram escore superior a 32 na LSAS-SR.
O BAI, elaborado por Beck et al.1515. Beck AT, Steer RA, Carbin MG. Psychometric properties of the Beck Depression Inventory: Twenty-five years of evaluation. Clinical psychology review. 1988;8(1):77-100. e validado no Brasil por Cunha1616. Cunha JA. Manual da versão em português das Escalas Beck. São Paulo: casa do psicólogo. 2001:11-3., é uma escala autoaplicativa que mensura a intensidade de sintomas de ansiedade. O sujeito avalia, numa escala de quatro pontos, a percepção de seu nível de ansiedade em 21 situações ansiogênicas. O nível de ansiedade total (somatório dos escores dos 21 itens) é classificado em mínimo (0–7 pontos), leve (8–15 pontos), moderado (16–25 pontos) e grave (26–63 pontos)1616. Cunha JA. Manual da versão em português das Escalas Beck. São Paulo: casa do psicólogo. 2001:11-3..
No estudo realizado na pesquisa foco deste artigo, o instrumento de avaliação de TAS utilizado foi a escala de ansiedade social de Liebowitz, versão autoaplicada (Liebowitz Social Anxiety Scale – LSAS-SR), que foi o primeiro instrumento desenvolvido para avaliação do transtorno de ansiedade social1313. Liebowitz MR. Social phobia. Anxiety. 22: Karger Publishers; 1987. p. 141-73.. Essa versão autoaplicada surgiu em 19881414. Cox BJ, Ross L, Swinson RP, Direnfeld DM. A comparison of social phobia outcome measures in cognitive-behavioral group therapy. Behavior Modification. 1998;22(3):285-97.. Validações psicométricas da LSAS-SR1212. dos Santos LF, Loureiro SR, deSouza Crippa JA, de Lima Osório F. Psychometric validation study of the liebowitz social anxiety scale-Self-reported version for Brazilian Portuguese. PloS one. 2013;8(7):e70235. revelaram adequada consistência interna e validade. Pelo menos dez estudos apontam a validade discriminatória da escala1212. dos Santos LF, Loureiro SR, deSouza Crippa JA, de Lima Osório F. Psychometric validation study of the liebowitz social anxiety scale-Self-reported version for Brazilian Portuguese. PloS one. 2013;8(7):e70235.,1717. Bobes J, Badía X, Luque A, García M, González M, Dal-Ré R. Grupo De Validación En Español De Cuestionarios De Evaluación De La Fobia Social. Validación de las versiones en español do los cuestionarios Liebowitz Social Anxiety Scale, Social Anxiety and Distress Scale y Sheehan Disability Inventory para la evaluación de la fobia social. Med Clin (Barc). 1999;112:530-8.
18. Soykan Ç, Özgüven HD, Gençöz T. Liebowitz social anxiety scale: the Turkish version. Psychological Reports. 2003;93(3_suppl):1059-69.
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O ponto de corte para detectar casos de TAS varia de acordo com a cultura da amostra. Nos EUA, estudos encontraram 30 como ponto de corte1919. Mennin DS, Fresco DM, Heimberg RG, Schneier FR, Davies SO, Liebowitz MR. Screening for social anxiety disorder in the clinical setting: using the Liebowitz Social Anxiety Scale. Journal of anxiety disorders. 2002;16(6):661-73.-2020. Rytwinski NK, Fresco DM, Heimberg RG, Coles ME, Liebowitz MR, Cissell S, et al. Screening for social anxiety disorder with the self-report version of the Liebowitz Social Anxiety Scale. Depression and anxiety. 2009;26(1):34-8.; na Turquia, 501818. Soykan Ç, Özgüven HD, Gençöz T. Liebowitz social anxiety scale: the Turkish version. Psychological Reports. 2003;93(3_suppl):1059-69.; na Espanha, um valor entre 19,6 e 26,11717. Bobes J, Badía X, Luque A, García M, González M, Dal-Ré R. Grupo De Validación En Español De Cuestionarios De Evaluación De La Fobia Social. Validación de las versiones en español do los cuestionarios Liebowitz Social Anxiety Scale, Social Anxiety and Distress Scale y Sheehan Disability Inventory para la evaluación de la fobia social. Med Clin (Barc). 1999;112:530-8.. O ponto de corte utilizado neste estudo para definir casos de TAS foi de 32, valor estabelecido por Santos2222. Santos LFd. Estudo da validade e fidedignidade da Escala de Ansiedade Social de Liebowitz-versão auto-aplicada: Universidade de São Paulo; 2012. para investigar casos de TAS em estudantes universitários brasileiros. Desse modo, identificaram-se 59,2% dos estudantes como possíveis casos de TAS. Não há estudos prévios que tenham utilizado a LSAS-SR autoaplicável e adaptada a brasileiros para diagnosticar ansiedade social em estudantes de Medicina.
Todos os procedimentos propostos e aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da instituição foram estritamente seguidos na condução do presente estudo. Por ocasião da sessão de tutoria da Aprendizagem Baseada em Problemas, após a autorização do professor para a coleta de dados em sala de aula, foram explicados aos alunos os objetivos do estudo. Os que concordaram em participar leram, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e foram incluídos no estudo. Os dados foram analisados por meio do software Statistical Package for the Social Sciences – (SPSS), v23, utilizando-se o teste t de Student e o teste do Qui-Quadrado para a comparação dos grupos. O coeficiente ρ de Spearman foi utilizado para medir a intensidade da relação entre variáveis ordinais.
RESULTADOS
Participaram deste estudo 431 estudantes, com média de idade de 21,4 anos (DP = 2,94), 61,5% (266) do sexo feminino. A maioria, 95,8% (413), referiu ser solteira. Em relação à renda familiar, a média foi de 14,9 salários. No que diz respeito à moradia, 80,5% (347) declararam morar com os pais; 7,6% (33), com outros familiares; 6% (26), sozinhos; 3,2% (14), com o cônjuge ou namorado(a), 2,3% (10), com um ou mais amigos, e 0,2% (1), em moradia estudantil. No quesito religião, 79,1% (341) se declaram católicos, 9,5% (41) responderam ser evangélicos e 11,3% (49) indicaram outras religiões.
Utilizando-se a LSAS-SR como instrumento de triagem para casos de TAS, encontraram-se escores sugestivos do transtorno em 59,2% (255) dos estudantes. A Figura 1 ilustra a distribuição, por semestre, dos estudantes com escore na LSAS-SR superior a 32, ponto de corte de triagem de TAS definido para a população brasileira11. Association AP. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: texto revisado (DSM-IV-TR): Artmed; 2002..
Em relação ao nível de ansiedade, o Inventário de Ansiedade de Beck (BAI) evidenciou que 59,3% (258) dos estudantes apresentaram nível de ansiedade mínimo; 26,6% (115), nível leve; 9,7% (42), nível moderado, e 4,4 (19), nível grave.
Observou-se uma correlação significativa entre os escores obtidos nas escalas BAI e LSAS-SR (p = 0,537, p = 0,01) (Figura 2). Estudantes com sintomas sugestivos de ansiedade social apresentaram maior grau de ansiedade (χ22. Schneier FR, Heckelman LR, Garfinkel R, Campeas R, Fallon BA, Gitow A, et al. Functional impairment in social phobia. The Journal of clinical psychiatry. 1994. = 73,44, p < 0,0001, Figura 3).
Grau de ansiedade dos estudantes segundo o nível de ansiedade social. Número de estudantes com grau mínimo, leve, moderado e grave de ansiedade segundo os escores obtidos no Inventário de Ansiedade de Beck (BAI)
Na análise dos fatores potencialmente associados à presença de sintomas de ansiedade, não se evidenciaram diferenças estatisticamente significativas em relação a morar com a família, estado civil, religião e renda entre os estudantes com e sem sintomas sugestivos de ansiedade social. Contudo, o sexo feminino se mostrou associado a TAS (64,2% com sintomas de ansiedade social vs. 35,8% sem tais sintomas, χ2 = 7,08, p = 0,008).
O mesmo ocorreu com a existência de familiar com doença psiquiátrica (66,9% vs. 33,11%, χ2 = 6,08, p = 0,014), Tais casos mostraram-se associados à presença de sintomas de ansiedade social, sendo 60,2% (53) dos casos em parentes de primeiro grau. Quanto ao tipo de transtorno mental dos familiares dos estudantes com ansiedade social, 41,9% (44) relataram depressão; 9,5% (10), esquizofrenia; 10,4% (11), transtorno bipolar; 7,6% (8), transtorno obsessivo-compulsivo; 7,6% (8), transtorno de ansiedade, e 43,8% (46), outros transtornos.
Estudantes com sintomas de ansiedade social apresentaram idade ligeiramente inferior (M = 21,1, DP = 3,2) à de estudantes sem tal quadro (M = 21,8, DP = 2,7, T = 6,31 p = 0,012). Uma porcentagem superior dos estudantes com sintomas de ansiedade social relatou já ter feito acompanhamento psicoterápico (67,1% vs. 32,9%, χ2 = 6,66, p = 0,010) e psiquiátrico (72,7% vs. 27,3%, χ2 = 5,934, p = 0,015). Além disso, estudantes com sintomas de ansiedade social relataram maior nível de ansiedade para se expressar durante as sessões de tutoria (χ2 = 57,734, p < 0,0001); 13,3% (34) dizem ficar pouco nervosos, sem comprometimento do desempenho; 38,8% (99) ficam nervosos a ponto de terem o desempenho comprometido; 7% (18) ficam extremamente nervosos, evitando se expor na tutoria.
DISCUSSÃO
Estudos sobre a prevalência de TAS em estudantes de Medicina são escassos2323. Baptista CA, Loureiro SR, de Lima Osório F, Zuardi AW, Magalhães PV, Kapczinski F, et al. Social phobia in Brazilian university students: Prevalence, under-recognition and academic impairment in women. Journal of affective disorders. 2012;136(3):857-61.. Shah e Katarina2424. Shah P, Kataria L. Social phobia and its impact in Indian university students. The Internet Journal of Mental Health. 2009;6(2). aplicaram a LSAS-SR em 405 graduandos de diversos cursos de ensino superior da Índia, tais como Medicina, Engenharia, Ciência, Comércio, Artes e Educação. Seus resultados revelaram uma prevalência de TAS de 19,5% entre os estudantes. No entanto, até o momento, nenhum estudo avaliou a prevalência de sintomas de TAS e fatores associados em amostra exclusiva de estudantes de Medicina.
Algumas pesquisas acerca do TAS no contexto universitário foram realizadas no Brasil. Baptista et al. encontraram uma prevalência de 11,6% de TAS numa população de 2.319 estudantes de diversos cursos, incluindo o de Medicina, em duas universidades públicas e em uma privada do interior do Estado de São Paulo2323. Baptista CA, Loureiro SR, de Lima Osório F, Zuardi AW, Magalhães PV, Kapczinski F, et al. Social phobia in Brazilian university students: Prevalence, under-recognition and academic impairment in women. Journal of affective disorders. 2012;136(3):857-61.. Wagner et al.2525. Wagner MF, Wahl SDZ, Cecconello WW. Sintomas de fobia social no ensino superior: uma amostra de população feminina. Mudanças-Psicologia da Saúde. 2014;22(2):49-54. encontraram TAS em 35,6% das estudantes universitárias de uma instituição brasileira de ensino superior do Rio Grande do Sul. Meotti e Mahl2626. Meotti L, Mahl ÁC. FOBIA SOCIAL: INCIDÊNCIA EM ACADÊMICOS DE PSICOLOGIA. Unoesc & Ciência-ACBS. 2015;6(1):89-96. investigaram a prevalência de TAS em acadêmicos de Psicologia de uma universidade de Santa Catarina. Numa amostra de 132 estudantes de variados semestres encontraram TAS em todos os períodos, com prevalência maior nos períodos iniciais. Pereira e Moura Lourenço2727. Pereira SM, Moura Lourenço L. O estudo bibliométrico do transtorno de ansiedade social em universitários. Arquivos Brasileiros de Psicologia. 2012;64(1). pesquisaram a prevalência de TAS entre estudantes universitários do primeiro ao oitavo período do curso de Direito em IES do município de Juiz de Fora, com uma amostra de 522 alunos. Os resultados indicaram que 21,1% apresentam sintomas relacionados à ansiedade social. No caso deste estudo, que investigou apenas estudantes de Medicina do primeiro ao oitavo semestre (n = 431), os resultados revelaram que 59,2% (n = 255) apresentam manifestação de sintomas de TAS2727. Pereira SM, Moura Lourenço L. O estudo bibliométrico do transtorno de ansiedade social em universitários. Arquivos Brasileiros de Psicologia. 2012;64(1)..
Detectou-se um declínio dos sintomas de TAS ao longo dos semestres. Uma hipótese para justificar esse fato é que o curso de Medicina dos estudantes investigados adota, em sua metodologia, a Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP)2828. Simas C, Vasconcelos F. Método ABP na medicina: origem e desdobramentos. ComCiência. 2010(115):0-., abordagem que estimula a aprendizagem ativa, centrada no aluno, com exposição dos sujeitos, geralmente em grupos tutoriais. A exposição geraria uma dessensibilização sistemática, em que o indivíduo, após repetidas confrontações, acabaria reduzindo seus sintomas de ansiedade social2929. Ito LM, Roso MC, Tiwari S, Kendall PC, Asbahr FR. Terapia cognitivo-comportamental da fobia social. Revista Brasileira de Psiquiatria. 2008;30(suppl 2):s96-s101..
O instrumento de avaliação de ansiedade adotado no estudo foi o Inventário de Beck de Avaliação da Ansiedade (BAI). Neste estudo, 40,7% dos estudantes apresentaram algum nível de ansiedade. Como esperado, verificou-se uma correlação significativa entre os escores obtidos nas escalas BAI e LSAS-SR. Há poucos estudos que utilizam a versão adaptada brasileira do BAI. Bernardo1010. BERNARDO I. Investigação do nível de ansiedade e sintomas de depressão entre alunos de graduação em Odontologia. Piracicaba; 2010. encontrou ansiedade leve em 50,27% dos 183 graduandos de Odontologia da FOP-Unicamp que se submeteram ao BAI. O estudo revelou ainda que os alunos dos últimos dois anos do curso apresentam maior prevalência de ansiedade do que os dos anos iniciais. Contrariamente a esse resultado, na presente pesquisa, a frequência de sintomas de ansiedade entre estudantes dos últimos períodos foi menor do que a encontrada em indivíduos dos períodos iniciais.
No que diz respeito à análise de fatores potencialmente associados à presença de sintomas de ansiedade social, verificou-se predominância de TAS no sexo feminino, o que está em consonância com o DSM-51, segundo o qual a ansiedade social costuma ser mais frequente no sexo feminino (com razão de chances variando entre 1,5 e 2,2). Pode-se ainda considerar que o fato de o curso de Medicina ser tradicionalmente masculino e de grande prestígio pode atuar neste aspecto.
Detectou-se também que a existência de familiar com transtorno psiquiátrico está associada a maior probabilidade de desenvolvimento de sintomas de ansiedade social. Margis et al.3030. Margis R, Picon P, Cosner AF, Silveira RdO. Relação entre estressores, estresse e ansiedade. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. 2003;25(1):65-74. postulam que a maneira de lidar com eventos estressores tem influência genética e que esta, por sua vez, está relacionada à emergência de sintomas de depressão ou ansiedade.
Observou-se que a idade é outra variável influente, uma vez que, nesta pesquisa, indivíduos mais jovens apresentaram mais sintomas de ansiedade social do que indivíduos com idade levemente superior. Aqueles com mais idade foram provavelmente submetidos a maior número de situações de exposição social do que os mais jovens. É possível que, por meio de confrontações sucessivas, tenham sido dessensibilizados quanto aos elementos originariamente estressores2929. Ito LM, Roso MC, Tiwari S, Kendall PC, Asbahr FR. Terapia cognitivo-comportamental da fobia social. Revista Brasileira de Psiquiatria. 2008;30(suppl 2):s96-s101..
Ressalte-se que os participantes deste estudo são estudantes de uma universidade particular, e outras pesquisas identificaram que tal fato está associado com ansiedade3131. Jatobá JDAVN, Bastos O. Depressão e ansiedade em adolescentes de escolas públicas e privadas. Jornal Brasileiro de Psiquiatria. 2007;56:171-9.. Por fim, observou-se que o grupo de indivíduos investigados como mais susceptíveis ao desenvolvimento de TAS referiu já ter buscado acompanhamento psicoterápico ou psiquiátrico em proporção significativamente maior do que os sujeitos sem o transtorno.
O elevado número de possíveis casos de TAS encontrados entre os estudantes aponta a necessidade de investigação diagnóstica mais aprofundada para a definição de casos clínicos que possam requerer acompanhamento psicoterápico e psicológico. Dos alunos com TAS em nosso estudo, 45,8% relataram nervosismo a ponto de terem o desempenho comprometido ou de evitarem se expor durante as sessões de tutoria.
Ressalte-se que este trabalho não foi multicêntrico, e deve-se considerar o resultado de estudos regionais devido ao ponto de corte escolhido.
CONCLUSÃO
Utilizando-se escalas autoaplicáveis para a avaliação de ansiedade, encontrou-se algum nível de ansiedade em quase metade dos estudantes de Medicina. Mais da metade dos estudantes apresentaram possíveis sintomas de TAS nos semestres iniciais do curso, com predominância no sexo feminino e em indivíduos mais jovens. Estudantes identificados com casos de TAS relataram mais casos de transtorno mental em familiares e maior busca por acompanhamento psicoterápico ou psiquiátrico.
Neste estudo, não foram comparados estudantes que utilizaram ABP com outros que usaram diferente metodologia de ensino. Assim, são necessárias novas pesquisas que contemplem outras metodologias Sublinhe-se que esta pesquisa foi realizada em apenas uma instituição de ensino, podendo haver divergências de resultados em outros contextos acadêmicos.
Apesar de possíveis vieses que possam emergir nesta investigação, o alto índice de prevalência de TAS apontado na população estudada justifica o estímulo à adoção de medidas psicoeducativas e estratégias pedagógicas que venham a auxiliar os estudantes com manifestações desse transtorno a reduzir esses sintomas, favorecendo o processo de ensino-aprendizagem.
REFERÊNCIAS
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2Schneier FR, Heckelman LR, Garfinkel R, Campeas R, Fallon BA, Gitow A, et al. Functional impairment in social phobia. The Journal of clinical psychiatry. 1994.
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3Mowbray CT, Megivern D, Mandiberg JM, Strauss S, Stein CH, Collins K, et al. Campus mental health services: recommendations for change. American Journal of Orthopsychiatry. 2006;76(2):226.
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4Arnett JJ. Emerging adulthood: A theory of development from the late teens through the twenties. American psychologist. 2000;55(5):469.
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5Aktekin M, Karaman T, Senol YY, Erdem S, Erengin H, Akaydin M. Anxiety, depression and stressful life events among medical students: a prospective study in Antalya, Turkey. Medical education. 2001;35(1):12-7.
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6Baldassin S, Martins L, Andrade A. Anxiety traits among medical students. Arq Med ABC. 2006;31(1):27-31.
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7Almeida AdM, Godinho TM, Bitencourt AGV, Teles MS, Silva AS, Fonseca DC, et al. Common mental disorders among medical students. Jornal Brasileiro de Psiquiatria. 2007;56(4):245-51.
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8Fiorotti KP, Rossoni RR, Miranda AE. Perfil do estudante de medicina da Universidade Federal do Espírito Santo, 2007. Rev bras educ med. 2010;34(3):355-62.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2019
Histórico
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Recebido
15 Ago 2018 -
Aceito
28 Ago 2018