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As raízes religiosas da moderna ciência histórica alemã: Wilhelm von Humboldt e Leopold von Ranke

The religious roots of modern German historical science: Wilhelm von Humboldt and Leopold von Ranke

Resumo:

O presente artigo visa realizar um estudo a respeito dos vínculos da moderna ciência histórica alemã com elementos da teologia e religião cristãs. Pensando o historicismo nos termos de Wolfgang Hardtwig - como uma forma de religião da história (Geschichtsreligion) -, busca-se realizar dois estudos de caso a respeito das biografias e das obras de Wilhelm von Humboldt (1767-1835) e Leopold von Ranke (1795-1886). Considerados os pais fundadores do moderno pensamento histórico alemão, nos escritos dos referidos intelectuais é possível compreender como a consciência histórica contemporânea emergiu em sintonia com o nexo religioso de mundo produzido pela teologia protestante. Analisando este processo de transposição, pretendemos contribuir com tendências historiográficas que, nas últimas décadas, visaram repensar os vínculos entre ciência e religião no pensamento ocidental moderno.

Palavras-chave:
Religião da história; ciência história; historicismo; Wilhelm von Humboldt; Leopold von Ranke

Abstract:

This article aims at an understanding of the relations between the German modern historical science with elements of Christian theology and religion. By thinking historicism in Wolfgang Hardtwig’s terms - as a form of religion of history (Geschichtsreligion) -, we aim at a two case studies about the works and biographies of Wilhelm von Humboldt (1767-1835) and Leopold von Ranke (1795-1886). Both are considered the founding fathers of German modern thought and, in their writings, it is possible to grasp how contemporary historical consciousness arose in synchrony with the religious world nexus as produced by protestant theology. By analyzing that transposition process, we have the objective of contributing to some historiographical tendencies which in the last decades aimed rethinking the links between science and religion in modern western thought.

Keywords:
Religion of history; historical science; historicism; Wilhelm von Humboldt; Leopold von Ranke

Introdução

Em toda a história a presença e a vida de Deus podem ser encontradas. Todos os feitos são testemunha de sua presença; cada ação professa o seu nome, mas acima de tudo, eu acredito, as grandes interações da história o fazem. Ele permanece lá como um hieróglifo sagrado, percebido apenas em seu esboço e preservado para que não seja perdido de vista por séculos futuros. Que audácia, portanto! Deixemos que as coisas ocorram como devem ocorrer; de nossa parte, tentemos decifrar esse hieróglifo sagrado. Então sirvamos a Deus; de modo que sejamos tanto sacerdotes, quanto professores.

Leopold von Ranke, 2011f [1820]______. (2011f), “The young Ranke’s vision of history and god: excerpts from a letter to his brother Heinrich from Frankfurt/Oder, end of March 1820”. In: ______. The Theory and Practice of History: Edited with an introduction by Georg G. Iggers. London and New York: Routledge. (tradução nossa)

Na carta escrita por Leopold von Ranke em 1820 e endereçada ao seu irmão no inverno daquele ano, o jovem historiador descrevia um elemento de sua percepção histórica de mundo que o acompanharia ao longo de toda a sua longeva existência: sua crença em um Deus e nos desígnios divinos da História Universal. Essa forte presença de um constituinte religioso em seus escritos, compartilhada e professada por uma grande quantidade de historiadores de seu tempo, era uma característica comum da tradição histórica alemã que, nas últimas décadas, tem sido frequentemente levada em conta pela historiografia especializada.

Interpretações recentes sobre a tradição de pensamento histórico alemã em específico e sobre a noção de historicismo

1 1 Grafado em alemão como Historismus, o termo passou a ser utilizado pela historiografia norte-americana a partir da influência da noção italiana de storicismo – que, para Benedetto Croce e Carlo Antoni, possuía uma associação muito maior à filosofia de Hegel do que à historiografia de Ranke e Humboldt (Iggers 1983:296). O termo muitas vezes é confundido com a crítica que Karl Popper realizou à pretensão por prognósticos presente em algumas filosofias da história, quando o filósofo utilizou o termo historicism para se referir a essas tendências. No Brasil, apesar de Sérgio Buarque de Holanda – um dos primeiros intérpretes do tema no país – ter utilizado o termo historismo, nossa historiografia tem usado majoritariamente a grafia historicismo, acredita-se que, sobretudo, por influência da tradição norte-americana (Martins 2008:15). Em tal sentido, e seguindo o que tem sido mais frequente por aqui, optamos também pela utilização do termo historicismo. em uma perspectiva mais ampla têm sido bastante enfáticas em afirmar a importância da crença religiosa como sustentáculo da Weltanschauung historicista, sobretudo na primeira metade do século XIX. Desde Friedrich Meinecke e Ernst Cassirer, a importância da religião foi por muitas vezes apontada em estudos preocupados com as raízes do pensamento histórico no século XVIII europeu. De todo modo, apenas recentemente a historiografia atentou para a ampla dimensão na qual a percepção histórica de mundo se mostrou dependente da elementar estrutura religiosa na formação do imaginário cultural moderno.

Longe de ter se dissociado da teologia ou de pretensões seculares por sentidos transcendentes, os primeiros historicistas foram capazes de erigir uma nova maneira de justificar a crença no absoluto, tornando a história responsável pelo significado desse novo tipo de experiência religiosa. Ao acreditar poder encontrar “a presença de Deus na história”, Ranke não expunha uma simples descrença em relação aos ditames da religião e da racionalidade em suas formas puras, mas sim a transferência de sua fé para o âmbito da contingência histórica, expresso sobremaneira no que acreditava ser o significado positivo da ordem política dos Estados-nação europeus de seu tempo.

Desse modo, o historicismo rankeano oferecia uma visão de mundo genética (e não exemplar), em que não mais a razão iluminista ou a lei natural servia como modo único e principal de orientação, mas a própria história, em seu caráter fluido e inconstante. Em termos ideais, essa visão de mundo percebia a realidade a partir dos prismas da individualidade (Individualität), por um lado, e da continuidade (Kontinuität), desenvolvimento (Entwicklung), ou progresso (Fortschritt), por outro. A individualidade - a ideia de que cada pessoa, nação ou época seria única - era o que permitia experiências de mudança e de contato com o outro. Ela reconhecia a distinção de cada fenômeno (histórico) e percebia que o passado seria diferente do presente. As noções de continuidade, desenvolvimento ou progresso, por sua vez, preveniam que a percepção individual da realidade levasse a concepções atomistas de mundo, já que elas integravam o passado e o presente em um processo de mudança, de crescimento orgânico, ou da realização progressiva de certas ideias (Ideen) características de determinado contexto cultural (Nowak 1987NOWAK, Kurt. (1987), “Die ‘antihistoristische Revolution’. Symptome und Folgen der Krise historischer Weltorientierung nach dem Ersten Weltkrieg in Deutschland”. In: H. Renz; F. W. Graf (Ed.). Umstrittene Moderne: die Zukunft der Neuzeit im Urteil der Epoche Ernst Troeltschs. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus G. Mohn.:161).

De forma inédita, seria necessário que o homem passasse a considerar a história como campo fértil para o florescimento de suas potencialidades vitais. Ao enaltecer a importância das individualidades, das ideias históricas e da possibilidade de construção de um conhecimento histórico objetivo, os primeiros defensores da ciência histórica alicerçavam-se sobre elementos capazes de situá-los para além da atmosfera de incertezas do início do século XIX.

Mas o que teria causado essa mudança de perspectiva? Por que a estabilidade apriorística da razão iluminista, do jusnaturalismo e da providência divina deram lugar à história como alicerce à crença na sacralidade do devir humano? A historiografia tem apontado diversas razões para a emergência desse tipo de mudança, ou para aquilo que Meinecke denominou como a “revolução” ocorrida entre os séculos XVIII e XIX no pensamento europeu (Meinecke 1936MEINECKE, Friedrich. (1936), Die Entstehung des Historismus. 2 Bände. München/Berlin: R. Oldenbourg.:1). Para os nossos objetivos, entretanto, bastará que destaquemos inicialmente apenas três razões principais para a emergência da perspectiva histórica enquanto visão de mundo nos Estados alemães contemporâneos.

A primeira delas reside sobretudo no âmbito político e está relacionada àquilo que Reinhart Koselleck identificou como a abrupta aceleração temporal ocorrida na Europa entre os anos de 1750 e 1850 e que teria resultado na alteração semântica do próprio conceito de história. Este passaria a ser entendido em língua alemã a partir do singular coletivo Geschichte, significando desde então a apreensão dos distintos episódios não simultâneos que constituíam uma única história universal humana (Koselleck 2006KOSELLECK, Reinhart. (2006), Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio.:48-49).

A radicalidade de eventos como as Revoluções Francesa e Norte-Americana, além das guerras napoleônicas e de liberdade, passavam a ditar o ritmo dos acontecimentos, de modo que os antigos aparatos conceituais se mostravam insuficientes para apreender os desafios de uma era de drásticas rupturas. Com o objetivo de estabelecer um significado distinto para as fundamentais noções políticas de Estado, nação, cultura e tradição, o historicismo de Johann Gottfried von Herder emergiria enquanto diretiva para uma sociedade em processo de construção identitária (Iggers 1983IGGERS, Georg. (1983), The German Conception of History: The National Tradition of Historical Thought from Herder to the Present. Rev. ed. Middletown, Conn.: Wesleyan University Press.:40-41).

Uma segunda razão associa-se a um motivo tanto epistemológico quanto ontológico, tendo a ver com a “revolução copernicana” causada pelo pensamento kantiano e com os problemas enfrentados pela teologia protestante após a sua aproximação com o conhecimento histórico-científico. A este respeito, Allan Megill falará em uma “crise na filosofia continental” europeia e uma “crise na Teologia” marcada principalmente após a publicação da Crítica da Razão Pura (1781) e pelo início das primeiras contendas ocorridas entre teólogos na segunda metade do século XVIII alemão. Nessa visão, a supressão da dimensão transcendente teria levado o homem moderno a um desnorteamento no mundo. A perda do padrão de autoridade do bom, do verdadeiro e do belo acessíveis à razão estaria em sintonia com o decesso da palavra de Deus na Bíblia (Megill 1985MEGILL, Allan. (1985), Prophets of Extremity: Nietzsche, Heidegger, Foucault, Derrida. Berkeley/Los Angeles/London: Univ. of California Press.:xii-xiii).

Sob tal prisma seria plausível interpretar os escritos dos primeiros historicistas como um tipo de resposta trazida à redução kantiana do sujeito ao necessário lógico ou ao ideal puramente regulatório da unidade de suas representações (Barnard e Lester 1988BARNARD Philip; LESTER, Cheryl. (1988), “Translator’s Introduction: the presentation of Romantic literature”. In: P. Lacoue-Labarthe; J.-L. Nancy. The literary absolute: the theory of literature in German romanticism. New York: Suny Press.:xv); de todo modo, é necessário compreender de forma coerente o nível de autonomia do historicismo em relação às antigas formas setecentistas de pensamento. Isso remontaria aos infindáveis debates que ao longo do século XX trataram da distância entre Iluminismo e historicismo. Para que não adentremos nesta seara, todavia, bastará que compreendamos o historicismo como uma maneira distinta de enxergar tanto a essência humana - historicizada e entendida de maneira dinâmica - quanto a epistemologia - reinterpretada em recurso ao idealismo filosófico e à hermenêutica teológica (Beiser 2011BEISER, Frederick C. (2011), The German historicist tradition. Oxford: Oxford University Press.:2-3).

Uma terceira e última razão relaciona-se diretamente às anteriores, mas reside especificamente na diferença formal (no sentido da forma de escrita histórica) que a perspectiva historicista trouxe à maneira humana de entendimento do passado. Conforme observado por Frank Ankersmit, o historicismo teria operado uma historicização da própria noção de “substância” que havia norteado a escrita histórica iluminista e fundamentado a sua crença no caráter imutável da essência de distintos valores e postulados universais (Ankersmit 1995ANKERSMIT, Frank R. (1995), “Historicism: an attempt at synthesis”. History and Theory, vol. 34, nº 3.:151-152).

Historicizando a substância e atentando para a importância das noções de contexto (Zusammenhang), coerência e de uma dialética entre sincronia e diacronia, a escrita histórica historicista foi capaz de prover uma dinâmica sem precedentes ao entendimento humano das possibilidades de acesso ao passado. Ankersmit destaca que, entre as ferramentas conceituais desenvolvidas pela tradição historicista, estaria a noção de “ideia histórica”, ou aquilo que enxerga como “o mais frutífero conceito já desenvolvido na história da teoria histórica”, pois ele seria apto a conferir coerência aos elementos diacrônicos do passado, do mesmo modo em que estabelecia, em recurso à metáfora, uma relação entre acontecimentos pregressos e o olhar do historiador no presente (Ankersmit 1995:154, tradução nossa). Em tal sentido, Ankersmit concorda com Meinecke quanto ao caráter revolucionário do historicismo, que, rompendo com as antigas formas de escrita histórica, teria dado um importante passo na experimentação de novas maneiras de compreensão da realidade.

Nos três motivos acima elencados, encontramos não apenas as razões para o estabelecimento do historicismo enquanto visão de mundo, mas também as condições socioculturais à emergência do seu legado discursivo na modernidade. É praticamente consensual afirmar que o seu sucesso institucional se deu principalmente a partir do seu estabelecimento como um saber científico autônomo, dotado de métodos e articulações conceituais específicas. Mas se boa parte da historiografia recente buscou realizar disputas em torno do lastro de cientificidade da proposta historicista, esta por muito tempo deixou de atentar para os mecanismos discursivos capazes de estabelecê-lo enquanto uma influente diretriz de pensamento moderno. Por isso, para além de sua pretensão por cientificidade, é necessário que investiguemos os constituintes simbólicos que permitiram o estabelecimento daquilo que Friedrich Jaeger denominou como “a autoexperiência histórica da sociedade burguesa” no século XIX alemão (Jaeger 1996JAEGER, Friedrich. (1996), “Theorietypen der Krise des Historismus”. In: W. Bialas; G. Raulet. Die Historismusdebatte in der Weimarer Republik. Frankfurt am Main: Peter Lang.:54, tradução nossa).

Assim, é necessário que compreendamos os alicerces que permitiam a sustentação da visão de mundo historicista, transpondo o mero entendimento de sua pretensão por cientificidade e esclarecendo o significado da crença na infalibilidade e aplicabilidade de seus discursos. Afinal, o que permitia a historiadores como Ranke e Humboldt falarem em individualidades históricas sem sofrer os sintomas de uma vertigem relativista? Quais seriam as bases formais para a sua confiança na coerência do processo histórico e das narrativas de sentido histórico por eles produzidas?

Se muitos foram os historiadores que trataram do historicismo como uma visão de mundo munida de elementos transcendentes capazes de educar os cidadãos e de explicar uma realidade em rápida mudança e em acelerada experiência no século XIX, Wolfgang Hardtwig chegaria mesmo a definir o historicismo como uma “religião da História” (Geschichtsreligion). Em seu ponto de vista, Ranke, Droysen e Meinecke claramente falariam da busca por “Deus” e “pelo sagrado e pelo eterno” como os objetivos principais da investigação do historiador. Assim, em sua “doutrina das ideias” (Ideenlehre) e em sua busca por um sentido absoluto no mundo, a concepção de história científica historicista possuía em seu núcleo um inegável elemento religioso (Hardtwig 1991:8).

Através das lentes da filosofia idealista alemã, os historicistas reconheciam o guia e a bênção de um Deus, não apenas nos poderes da construção nacional e do progresso tecnológico, mas em cada evento histórico. Em uma forma verdadeiramente panenteística, eles reconheciam a transcendência divina sobre as coisas humanas (über aller Erscheinung), assegurando simultaneamente que a história participa no divino e que as ideias de autorrealização - que seriam os objetos de estudo do historiador - possuem dimensões tanto naturais quanto sobrenaturais, de modo que Deus poderia se manifestar em toda a história (in aller Erscheinung) (Hardtwig 1991HARDTWIG, Wolfgang. (1991), “Geschichtsreligion-Wissenschaft als Arbeit-Objektivität”. Historische Zeitschrift, vol. 252, nº JG: 1-32.:2).

Esses constituintes religiosos do historicismo ficam ainda mais evidentes a partir de uma compreensão da obra e do contexto intelectual dos primeiros responsáveis pelo estabelecimento da história científica em território alemão. É justamente este exercício analítico que pretendemos realizar nas páginas seguintes.

Assim, em uma breve análise da vida e da obra de Wilhelm von Humboldt, buscaremos primeiramente compreender os laços de sua perspectiva com o âmbito do religioso, entendendo a complexa relação que os seus postulados epistemológicos mantiveram com a dimensão do sagrado. Em um segundo momento, trataremos da trajetória de Leopold von Ranke, cujo legado para a tradição historicista não pode ser compreendido sem uma minuciosa análise dos seus vínculos com a fé protestante.

Em tal sentido, o presente artigo sustenta a hipótese de que existiam quatro pressupostos fundamentais da visão de mundo historicista clássica que permitiam a coerência de suas ideias e que tornavam nomes como Humboldt e Ranke capazes de dissipar de maneira substancial ameaças relativistas tanto no campo ético quanto na esfera da teoria do conhecimento. Estes eram: 1) a fé na religião protestante; 2) a crença na relação entre as noções de individual e universal; 3) a crença na objetividade científica; e 4) a confiança em um decurso positivo para o desenvolvimento da história humana. O conjunto de tais pressupostos era aquilo que compunha a religião histórica desse tipo clássico de historicismo, conforme descrita por Hardtwig.

Esses quatro pilares da Weltanschauung historicista estavam presentes na maneira pela qual esses intelectuais ordenavam uma percepção da realidade pautada pelo vir a ser no tempo, provendo coesão para as mudanças encadeadas em suas narrativas de construção identitária. Narrando o passado nacional, poderia se falar em um “princípio histórico” capaz de estabelecer não apenas o lugar de determinada cultura na história, mas também a construção de uma memória e destino político comuns (Toews 2004TOEWS, John Edward. (2004), Becoming historical: Cultural reformation and public memory in early nineteenth-century Berlin. Cambridge: Cambridge University Press .:xv).

As contradições e subjetividades presentes em uma realidade de crescente desconstrução das perspectivas teológicas e filosóficas de existência precisaram aos poucos ser sanadas por um tipo distinto de relação com a história, que encontrou na Geschichtsreligion historicista a coerência necessária para o seu desenvolvimento. A partir de seu apelo à crença como possibilidade de resolução dos mais profundos paradoxos existentes em uma forma acelerada de entender o real, a religião histórica foi capaz de alicerçar a razão de ser na história como referência de ação e reflexão em um mundo moderno “secular”. Os contornos precisos dessa doutrina e o seu significado nas obras de Humboldt e Ranke estarão no cerne de nossas preocupações nas páginas que seguem.

Wilhelm von Humboldt e a definição da tarefa do historiador

Nascido em Potsdam no ano de 1767, Friedrich Wilhelm Christian Karl Ferdinand, ou simplesmente Wilhelm von Humboldt, como ficaria conhecido posteriormente, descendia de uma família de oficiais prussianos de imenso prestígio no século XVIII alemão.

A origem abastada e o vantajoso status social de sua família permitiram a Humboldt gozar de um rico ambiente cultural e de um tipo deveras preeminente de educação particular. Junto com seu irmão mais novo, Alexander (1769-1859), que viria a tornar-se um famoso naturalista, o jovem Wilhelm contava com um amplo preparo para os seus estudos universitários, de modo que ainda em sua adolescência já possuía o domínio de vários idiomas e obras clássicas.

Sob a tutela do pedagogo e político Gottlob Kunth (1757-1829), os Humboldt estudavam os escritos de Immanuel Kant e discutiam sobre questões relacionadas ao significado do Iluminismo, de maneira que, a partir de 1785, os irmãos passariam a ter contato cada vez maior com os mais renomados nomes do Aufklärung berlinense (Geier 2012GEIER, Manfred. (2012), Aufklärung: das europäische Projekt. Reinbek: Rowohlt Verlag GmbH.:338).

Quando seguiu para a Universidade de Frankfurt an der Oder para cursar direito em 1787, os pais de Humboldt tinham em mente qualificá-lo como um alto funcionário público, fazendo com que o jovem estudante fosse já no ano seguinte para a renomada Universidade Göttingen onde completaria seus estudos universitários. É em Göttingen que Humboldt conhece e passa a ser influenciado pela percepção histórica de August Ludwig Schlözer (1735-1809), cujas visões sobre a história mundial e a respeito da estatística nacional influenciariam seu pensamento até o fim de sua vida (Beiser 2011BEISER, Frederick C. (2011), The German historicist tradition. Oxford: Oxford University Press.:171).

Justamente em 1789, Humboldt, então com 22 anos, viajaria para a França, onde seria surpreendido pelos eventos revolucionários daquele ano. Apesar de admirar o espírito de liberdade francês, o autor não deixaria de criticar em seu diário a violência e a busca cega pelo poder que enxergava naqueles eventos (Borsche 1990BORSCHE, Tilman. (1990), Wilhelm von Humboldt. München: CH Beck.:24).

No ano seguinte, já em Berlim, Humboldt daria início à carreira de jurista, ocupando cargos públicos até 1791. Três anos mais tarde, o intelectual seguiria com sua esposa, Caroline von Dachroeden, para Jena, onde entraria em contato com os poetas do círculo de Weimar, Johann Wolfgang von Goethe e Friedrich Schiller. Com este último, Humboldt manteria uma estreita amizade que resultaria em uma profícua troca de correspondências e escritos filosóficos (Caldas 2010CALDAS, Pedro S. P. (2010), “Wilhelm von Humboldt (1767-1835)”. In: E. de R. Martins (Org.). A História pensada: Teoria e método na historiografia europeia do século XIX. São Paulo: Contexto.:73).

Após seguir novamente para Paris em 1797, Humboldt permaneceria na cidade por cinco anos, intercalados entre viagens e estudos filológicos. Ao retornar para Berlim em 1801, o então jurista assumiria a função de diplomata, ocupando o cargo no Vaticano até 1808. Neste meio tempo, Humboldt intensificaria o seu contato com os estudos sobre a antiguidade, em especial no que dizia respeito às virtudes culturais do mundo helênico, que passaria não apenas a admirar, mas mesmo a comparar com o espírito alemão de seu tempo (Beiser 2011BEISER, Frederick C. (2011), The German historicist tradition. Oxford: Oxford University Press.:198).

A estadia do intelectual em território italiano se estenderia até 1808, ano em que retornaria para Berlim com intuito de acompanhar de perto as reformas instituídas por Karl von Hardenberg (1750-1822) e Karl Freiherr vom Stein (1757-1831) em território prussiano2 2 As reformas prussianas, ou as reformas Stein-Hardenberg, foram um conjunto de medidas constitucionais, administrativas, sociais e econômicas adotadas pelas lideranças do reino da Prússia sob ocupação francesa desde 1806. Entre as principais reformas adotadas, estavam a reorganização do governo e administração prussianos, mudanças na regulamentação do comércio e da agricultura, com a abolição da servidão e o estímulo à livre concorrência. Cf. Nipperdey (2014). . Já no ano seguinte, Humboldt seria convidado para assumir o cargo de conselheiro de Estado e diretor da seção para “culto e ensino”, estando assim diretamente responsável por organizar a estrutura das modernas universidades que surgiam em uma Prússia reformada.

Com a derrota de Napoleão em Leipzig em 1813, Humboldt seria encarregado de representar os interesses prussianos no Congresso de Viena, instituído pelas nações vitoriosas no ano seguinte. Todavia, a índole liberal do intelectual seria um empecilho para que prosseguisse no serviço público, de modo que, em 1819, depois de ter sido nomeado ministro de Estado, abandonou o cargo após se indignar contra denúncias de espionagem e censura nas universidades prussianas.

Os quinze últimos anos de sua vida seriam marcados tanto pelo recolhimento em relação à vida pública, quanto pela publicação de alguns dos seus mais importantes trabalhos nos campos da epistemologia histórica e dos estudos filológicos, como é o caso de Sobre a tarefa do historiador (1821) e Über die Entstehung der grammatischen Formen und ihren Einfluss auf die Ideenentwicklung (Sobre a formação das formas gramaticais e sua influência sobre o desenvolvimento das ideias) (1822), respectivamente.

No ano de sua morte, 1835, Humboldt acumulara grande fama nos territórios de língua alemã, não apenas pelos anos de serviço público e pelo trabalho como reformador educacional, mas também por sua ampla e variada obra que abrangia os domínios da Filologia, da História, da Filosofia, do Direito, da Teoria Política e da Educação.

É, todavia, principalmente para o surgimento dos modernos estudos históricos que a obra de Humboldt possuiria maior e mais abrangente relevância. Não é à toa que Johann Gustav Droysen atribuiria ao intelectual o título de “Francis Bacon das ciências históricas”, por ter criado os fundamentos do pensamento histórico capazes de conferir cientificidade à disciplina (Jaeger e Rüsen 1992JAEGER, Friedrich; RÜSEN, Jörn. (1992), Geschichte des Historismus: eine einführung. München: CH Beck .:38).

Como atestado por Droysen e por boa parte da tradição historicista alemã, ao escrever Sobre a tarefa do historiador, Humboldt formulava uma metodologia que tipificava muito do pensamento de sua época. Esses métodos pareciam sintetizar as correntes empiristas e racionalistas do período, de forma a alertar contra os perigos da teorização apriorística exacerbada, ao mesmo tempo que enfatizava o papel crucial do pensamento criativo na formulação de questões e na organização dos dados em uma lógica de sentido.

Isso é o que nos leva a suspeitar que foi principalmente pelo fato de ter sido um dos primeiros a alertar contra os perigos da especulação filosófica exacerbada, apontando para os contornos de uma reflexão empírica consciente de seus limites, que o pensamento humboldtiano se mostrou tão importante para Droysen e para os seus contemporâneos historiadores. Além disso, como apontado por Beiser, Humboldt foi um dos principais responsáveis por desenvolver a noção historicista de “individualidade”. Ao estabelecer que a tarefa do historiador seria a de prover aquilo que denominava como “característico”, de uma pessoa, evento, nação, época ou cultura, Humboldt esclarecia que o objetivo da pesquisa histórica seria o de determinar o principium individuationis, ou seja, o princípio central a partir do qual todos os demais elementos distintivos fluiriam (Beiser 2011:169).

Essas individualidades, perscrutáveis e discerníveis pelo historiador profissional, seriam apreensíveis não em uma mera operação empírica, mas a partir da aproximação com uma realidade metafísica que Humboldt denominava como “ideias”. As ideias não seriam conceitos claros, representando, ao contrário, a essência ou caráter de uma individualidade real. Em tal sentido, elas seriam concebidas como eternas e capazes de sobreviver a suas manifestações físicas. Em contrapartida, essas ideias não seriam universais no sentido platônico de justiça, capazes de se manifestar em situações históricas um tanto distintas. Portanto, para o intelectual, as ideias estavam associadas ao reconhecimento do caráter basicamente irracional da história e da vida humanas (Jaeger e Rüsen 1992JAEGER, Friedrich; RÜSEN, Jörn. (1992), Geschichte des Historismus: eine einführung. München: CH Beck .:39).

Como observado por Iggers, essa doutrina das ideias (Ideenlehre) parece apontar para um desordenado caos de valores. Entretanto, é fácil inferir que Humboldt não seria cético, ou relativista, acreditando sim haver um sentido no interior de tal fluxo, representando, na realidade, um mistério divino, ou, nas palavras de Iggers, “um drama de sentido em seu significado mais elevado” (Iggers 1983:59, tradução nossa).

Iggers, Jaeger e Rüsen percebem que o elemento central capaz de fornecer a Humboldt os subterfúgios para tornar a história autônoma em relação aos ditames da razão seria a crença política em uma noção otimista de nacionalidade. No entanto, ao focar na importância que o Estado teria no pensamento histórico humboldtiano, os historiadores subestimam a força da crença religiosa do historicismo clássico e o papel que esta possuía em suas formulações a respeito do sentido da História.

Nessa esteira, acreditamos que o apego de Humboldt (e também o de Ranke) à religião deve ser entendido como uma das principais bases ideais capazes de resguardá-lo do ceticismo e dos perigos do relativismo de valores já existentes em seu tempo, sobretudo após as paulatinas críticas à tradição idealista de pensamento filosófico e à Teologia operadas desde as primeiras décadas do século XIX. O significado de tal processo e o seu desenvolvimento no pensamento humboldtiano estarão no eixo de nossa análise no que segue.

O significado da religião nos escritos de Humboldt

É consenso entre os principais biógrafos e intérpretes do trabalho de Humboldt o forte nível de dificuldade no que diz respeito a uma sistematização de suas ideias e opiniões ao longo de sua biografia. O caráter efêmero de suas posições, como consequência de uma vida plural e cosmopolita, resulta na não linearidade de boa parte de suas ideias a respeito de temas centrais como, por exemplo, a religião3 3 Existem algumas controvérsias interpretativas no que diz respeito à crença religiosa de Humboldt. A clássica interpretação trazida por Eduard Spranger (1909) aponta, a partir de uma análise de suas correspondências pessoais, que Humboldt teria iniciado um processo de conversão ao Cristianismo a partir da década de 1820 e, em especial, após a morte de sua esposa em 1829. Spranger abrange essa análise documental para apontar que, se em sua juventude o intelectual entendia a religião como um sentimento momentâneo (sobretudo estético), na década de 1820 a fé de Humboldt na imortalidade da alma far-se-ia presente em sua visão de mundo como um todo (Spranger 1909:297). Todavia, em uma interpretação mais recente, Jean Quillien (1991) aponta para os exageros dessa leitura, já que, apesar de Humboldt ter atribuído maior importância à religião no final de sua carreira, ela representava muito mais a aquisição de um lugar de destaque em sua filosofia moral do que uma crença religiosa propriamente dita (Quillien 1991:504). Por fim, tais interpretações não são mutuamente excludentes, apontando para o fato de que, se Humboldt não pode ser visto como um “intelectual protestante por excelência”, como quer Spranger, não podemos deixar de considerar o importante papel da religião em suas digressões (especialmente em Sobre a Tarefa do Historiador, de 1821) a partir da década de 1820, como apontado por Quillien. .

Parece-nos bastante revelador, entretanto, o fato de os primeiros escritos de Humboldt terem tratado especialmente da temática da fé. Em Sokrates und Plato über die Gottheit______. (1903c), “Sokrates und Plato über die Gottheit, über die Vorsehung und Unsterblichkeit”. In: ______. Gesammelte Schriften. Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaften. Berlin: Behr, vol. 1.(Sócrates e Platão sobre a divindade) (1787) e em Über Religion (Sobre a religião) (1789), o jovem escritor debruçava-se sobre um tema que, nos últimos anos, havia se tornado corrente entre os membros de uma elite letrada alemã, principalmente após a postura repressiva adotada pelo Estado prussiano perante a questão religiosa4 4 A partir do reinado de Frederico Guilherme II (1744-1797) iniciado em 1786, uma série de medidas repressivas em relação à prática religiosa foi instituída em território prussiano após a determinação do edito religioso de 18 de dezembro de 1788. Com a adoção dessa medida, uma nova lei de censura foi estabelecida para assegurar a ortodoxia de todos os livros publicados. Isso obrigou uma série de periódicos berlinenses a serem publicados fora das fronteiras prussianas. Além disso, filósofos como Immanuel Kant foram proibidos de falar em público a respeito de temas relacionados à religião. Cf. Sauter (2009). .

Dotado do espírito iluminista da maior parte de seus preceptores, em seus primeiros escritos Humboldt deixa clara a sua intenção em definir o lugar da crença religiosa em um mundo moderno composto por instituições seculares. Contudo, como pretendemos demonstrar no que segue, é errôneo acreditar que a sua delimitação do papel do Estado ante a religião é sinal da incredulidade do autor ou de uma opinião crítica a respeito da espiritualidade na formação dos indivíduos. Uma análise dos escritos do jovem Humboldt nos leva, ao contrário, a entender a especificidade tanto do pensamento iluminista alemão diante da religião, quanto as particularidades da crença religiosa no interior da noção filosófica de Bildung.

Essas posições iniciais de Humboldt a respeito do significado da religião e da ação do Estado sobre a crença religiosa são reveladoras da atmosfera intelectual alemã do último quarto do século XVIII. Como alertado por Paul Sweet, é difícil determinar com precisão as influências intelectuais diretas de Humboldt em tal período, mas pode-se afirmar que o autor transitava entre as fontes do Iluminismo de preceptores como Kunth, da antropologia de Georg Foster (1754-1794) e tanto do Romantismo quanto do Pietismo de Herder e Johann Georg Hamann (1730-1788) (Sweet 1973SWEET, Paul R. (1973), “Young Wilhelm von Humboldt ’s writings (1789-93) reconsidered”. Journal of the History of Ideas, vol. 34, nº 3: 469-482.:472).

Em Über Religion, Humboldt preocupava-se em distinguir o papel da religião em sociedades antigas e contemporâneas, asseverando ser a prática da fé em tempos modernos distinta de uma política de Estado. Para o autor, a religião não se liga a uma prática nacional, “mas a uma divindade maior, ela não representa o cidadão, mas os homens. A proteção divina não é característica restrita a poucos; é a dádiva à qual todos podem se ater, sem ter de deturpar o outro” (Humboldt 1903a______. (1903a), “Über Religion”. In: ______. Gesammelte Schriften. Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaften. Berlin: Behr, vol. 1.:52, tradução nossa).

Anos mais tarde, a temática religiosa tornar-se-ia um capítulo central de sua obra Os limites da ação do Estado (2004______. (2004), Os limites da ação do Estado. Rio de Janeiro: Topbooks. ) completada em 1792, na qual Humboldt asseverava ser a religião “uma necessidade da alma” (Bedürfniss der Seele), subjetiva, dependente apenas de concepções individuais (Humboldt 1851:64). Para o intelectual, a moralidade humana independe da religião, não estando necessariamente conectada à esfera espiritual. Assim, Humboldt prosseguia no sentido de demonstrar que todos os verdadeiros sistemas de religião procediam em sua direção mais elevada da harmonia interna e de sua correlação com o processo de sensações humanas. Em outros termos, a moralidade não seria propriedade exclusiva da religião (Humboldt 1851:69).

Isso levava o intelectual a classificar como infrutíferas as intervenções por parte do Estado na vida religiosa de seus cidadãos, já que “todo crescimento moral e cultural [Bildung] advém apenas e imediatamente da interioridade da vida da alma, […] jamais podendo ser produzido por estímulos externos e artificiais” (Humboldt 1851HUMBOLDT, Wilhelm von. (1851), Ideen zu einem Versuch, die Gränzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen. Breslau: E. Trewendt.:73, tradução nossa). Dessa maneira, a única forma pela qual o legislador poderia se ater a tal finalidade seria “removendo os obstáculos que obstruem a mente do cidadão em se tornar familiarizada com ideias religiosas, promovendo assim um espírito de livre pensamento” (Humboldt 1851:73, tradução nossa).

É notório o esforço de Humboldt no sentido de pensar as condições mais propícias possíveis para o florescimento das potencialidades individuais dos cidadãos, ou, nas palavras do autor, da noção de Bildung. Mas o que exatamente o levaria - além dos motivos políticos acima explicitados - a tratar com tamanha ênfase da necessária liberdade política para a prática religiosa? Tal questão apenas pode ser respondida caso compreendamos o significado conferido por Humboldt à ideia de Bildung e os profundos laços que essa noção possuía com a religião protestante nos debates de língua alemã.

A autoeducação a partir da aceitação criativa da experiência é de fato o conceito máximo da teoria política humboldtiana em seus dois polos: em sua concepção da moralidade individual e em suas especulações sobre um possível progresso histórico. Seus preceitos sociais e políticos são baseados na noção da suprema importância da Bildung, que, para o autor, significava o mais amplo, rico e harmonioso desenvolvimento das potencialidades do indivíduo, da comunidade ou da raça humana (Burrow 1969BURROW, John Wyon. (1969), “Editor’s introduction”. In: W. von Humboldt. The limits of state action. Cambridge: Cambridge University Press.:8).

A vida vivida de forma plena, de acordo com Humboldt, consistiria em uma tentativa infinita de reconciliar uma individualidade coerente com a receptividade aos mais distintos tipos de experiências, uma aceitação da tensão eterna entre a necessidade em ser alguém único e em harmonia e o dever de assimilar o tanto quanto possível de possibilidades emocionais e intelectuais da vida. Como colocado no início do segundo capítulo de Os limites da ação do Estado:

A finalidade verdadeira do homem, ou aquilo que está prescrito pelos eternos e imutáveis ditados da razão, e não sugerido por desejos vagos e transitórios, é o maior e mais harmonioso desenvolvimento de suas forças [Bildung seiner Kräfte] em um todo completo e consistente. A liberdade é a grande e indispensável condição que a possibilidade de tal desenvolvimento pressupõe; mas existe outra essencial - intimamente conectada com a liberdade, que é real -, uma variedade de situações (Humboldt 1851HUMBOLDT, Wilhelm von. (1851), Ideen zu einem Versuch, die Gränzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen. Breslau: E. Trewendt.:9, tradução nossa).

O eco kantiano dos “ditados eternos e imutáveis da razão” contrastavam com os “vagos e transitórios desejos” que representam a não limitação de Humboldt aos cânones iluministas. Os elementos mais distintivos do ideal humboldtiano são sugeridos quando ele enfatiza a necessidade dos seres humanos por uma “variedade de situações” (Mannigfaltigkeit der Situationen) caso pretendessem desenvolver suas potencialidades em seu sentido mais amplo. O esforço que Humboldt destaca para a manutenção da personalidade de uma pessoa como um todo “completo e consistente” não é, ademais, uma mera contrapartida, mas o corolário para essa insistência na variedade, pois é apenas retendo e desenvolvendo sua particularidade, sua Eigentümlichkeit, que se pode contribuir para a referida “variedade de situações”, assim como se pode colaborar para a sua própria Eingentümlichkeit (Humboldt 1851:11).

Dessa forma, esse desenvolvimento de potencialidades individuais apenas ocorreria quando em sintonia com a esfera do cultivo interior que Humboldt destacava a partir de um foco na interioridade humana, já que, para o autor, “o ideal mais elevado da coexistência entre seres humanos consiste na união da busca individual do seu próprio desenvolvimento com a sua natureza interna e a partir de suas próprias iniciativas” (Humboldt 1851:13, tradução nossa).

O conceito de Bildung não era, obviamente, peculiar a Humboldt tanto na literatura quanto na filosofia social alemãs. Herder havia usado a noção para tratar do seu ideal humanista, com um olhar similar à ênfase humboldtiana na necessidade por diversidade. Essa insistência na interioridade humana é o que leva autores como John Wyon Burrow a associar a Bildung a um tipo de versão secular do Pietismo alemão, que por si representava uma variação vigorosa do protestantismo, resolutamente espiritual e voltado para o outro (Burrow 1969:19). Além disso, como destacado por Fritz Ringer, a “variedade de situações” sugerida por Humboldt, entendida como aquisição de cultura, refletia os conceitos religiosos e neo-humanistas de “crescimento interior” e autodesenvolvimento integral (Ringer 2000RINGER, Fritz K. (2000), O declínio dos mandarins alemães: a comunidade acadêmica alemã, 1890-1933. São Paulo: Edusp.:96).

Os vínculos de tal ideia com a religião luterana mostram-se ainda mais claros se observarmos a percepção de teólogos como Gottfried Arnold (1666-1714) e Friedrich Oetinger (1702-1782) que, ao tratarem do âmbito profano da “entrada no mundo”, mencionavam não apenas a ação de Deus sobre o homem, mas também o impacto da natureza e do próprio homem se entendendo como um “efeito formativo” (Vierhaus 2002VIERHAUS, Rudolf. (2002), “Formación (Bildung)”. Revista Educación y Pedagogía. Medellín, 2ª época, vol. 14: 8.:33). Em estreita relação com o desenvolvimento dessa veia místico-pietista, estava a assim chamada filosofia natural organicista (Paracelso, J. Böhme, Leibniz), em que se falava, não por acaso, de uma formação e desenvolvimento espirituais do homem em relação com a “formação” e o “formar” (Vierhaus 2002:33).

Isso torna plausível afirmarmos que a intenção do jovem Humboldt em libertar a prática religiosa dos indivíduos do jugo do Estado significava, em outras palavras, desatar a capacidade de florescimento individual, levando em consideração o importante papel da religião - entendida por Humboldt como uma “necessidade da alma” - em tal processo formativo5 5 Nada no jovem Humboldt, com exceção de um “êxtase leibniziano” que ele diz ter experimentado em sua juventude, evoca uma transferência dos valores religiosos da pré-história da noção de Bildung para a concepção por ele expressa em Os limites da ação do Estado. Todavia, como percebido por Louis Dumont, uma relação mais imediata entre o ideal de Bildung e o ideal da obra de arte para o artista, como expressa na obra de Karl Philipp Moritz (1756-1793), parece aproximar Humboldt – apesar de sua ênfase na imanência – da esfera religiosa tradicional da noção de Bildung. Assim, em seus primeiros escritos, Humboldt conjecturaria a respeito da habilidade humana em “relacionar representações sensíveis a ideias extra-sensitivas”. Ele buscava por uma expressão apropriada para classificar um sentimento estético ou imaginação (Einbildungskraft). Essa ênfase em um ideal estético seria, portanto, nas palavras de Dumont uma “conexão lógica” – considerando a proximidade do intelectual com Goethe e Schiller em tal período – com a transferência dos valores religiosos para a noção de Bildung em Humboldt (Dumont 1994:98). . Afinal, nas palavras do autor, se a religião outrora havia “sido um instrumento de opressão, tornara-se agora meio de formação” (Humboldt 1903a:52, tradução nossa).

Essa ênfase na importância da religião teria lugar ainda maior nos últimos anos da vida de Humboldt6 6 Isso se confirma a partir de uma análise das correspondências do intelectual, em especial com sua amiga e confidente Charlotte Diede (1769-1846), em que o tema da religião seria bastante frequente, sobretudo a partir da década de 1820. Em uma carta de 12 de setembro de 1824, por exemplo, Humboldt deixaria clara a importância que os textos bíblicos haviam adquirido para ele: “entre as mais poderosas, puras e lindas vozes que nos chegaram da cinzenta antiguidade, estão os livros do Velho Testamento, sequer somos capazes de prestar o devido tributo à nossa língua pelo fato de mesmo com tantas traduções ter sido capaz de ter perdido tão pouco em termos de sua verdade e força. Eu tenho constantemente pensado no fato de que não é possível trazer à tona algo tão grandioso, rico e diversificado quanto os textos contidos no Velho e Antigo testamento bíblicos” (Humboldt 1921:144). . Se nos escritos acima citados o autor dissociava moralidade e religião, em seus textos da década de 1820, como é o caso de Über das Verhältnis der Religion und der Poesie zu der sittlichen Bildung (Sobre a relação entre a religião e a poesia na formação moral) (1824), Humboldt afirmava o caráter auxiliar da religião na formação de uma cultura moral autêntica. Ao prover um sentido de eternidade, ensinando que a vida terrestre seria apenas a parte mais tênue e imperfeita da existência, a religião seria, para o intelectual, capaz de elevar a lei moral humana:

A religião eleva a lei moral a um nível superior, ao exibi-la como uma lei de Deus e, ao mesmo tempo, ao tornar mais fácil a sua obediência; pois ela situa uma conformidade seca e plena de dever, nos sentimentos perante Deus, naturais a todos os homens de boa índole, de respeito inocente, de amor, de reconhecimento e de submissão, deixando supor uma sobrevivência após a morte (Humboldt 1968______. (1968), “Über das Verhältnis der Religion und der Poesie zu der sittlichen Bildung”. In: ______. Gesammelte Schriften: Werke Bd. 7, Hälfte 1/2: Einleitung zum Kawiwerk. Behr/Berlin: Paralipomena/Hrsg. von Albert Leitzmann. :656, tradução nossa).

A essência da religião não residiria nas verdades que ela ensina, mas no fato de que ela se moveria inteiramente no âmbito dos sentimentos. Em tal sentido, não seria propriamente o dogma, ou uma religião específica, mas o sentimento religioso que, para Humboldt, contribuiria para o aperfeiçoamento moral humano (Quillien 1991QUILLIEN, Jean. (1991), L’anthropologie philosophique de G. de Humboldt. Lille: Presses Univ. Septentrion.:504). Mais adiante em seu texto, ele chegaria mesmo a tratar das formações moral e religiosa como possuindo um mesmo sentido, evidenciando uma importância ainda maior da religião para o seu ideal de Bildung: “Religião e moral, formação moral e formação religiosa [religiöse und moralische Bildung] são uma e a mesma coisa. Um homem autenticamente religioso é, nesse ponto mesmo, já um homem moral […] pois a moral em seus princípios supremos pressupõe esse reconhecimento daquilo que supera o finito, que é o mesmo necessário para a religião (Humboldt 1968:656, tradução nossa).

Esse entendimento da crença religiosa como expressão da sensibilidade humana pode ser lido como uma herança da maneira pela qual nomes como Herder e Hamann, na segunda metade do século XVIII, entendiam o âmbito do sensível contra a intolerância iluminista à diversidade. Além de preservá-lo da ameaça relativista, o misticismo de tal tradição certamente possuiu um papel fundamental na maneira pela qual Humboldt foi capaz de sistematizar o lugar da individualidade na pesquisa histórica. A forma pela qual essa noção religiosa operou na visão histórica do intelectual deve levar em consideração também sua influência sobre a sua doutrina das ideias históricas no interior do principium individuationis humboldtiano. É para este ponto que atentaremos no que segue.

Individualidades e ideias: a providência divina e o conhecimento histórico objetivo

De maneira bastante precoce em sua carreira, Humboldt deixava claro que o objeto principal dos estudos históricos seria o individual. Já no ensaio Über die Gesetze der Entwicklung der menschlichen Kräfte (Sobre as leis de desenvolvimento das forças humanas) (1791), o intelectual afirmava que o recurso a leis gerais para o mundo real não encontraria aplicação, de modo que apreender “as individualidades da realidade no interior das generalidades ideais” (Individualität der Wirklichkeit in Allgemeinheiten der Ideen) a partir da natureza de nossas potencialidades seria um primeiro passo no sentido de buscar compreender a fluidez do processo histórico (Humboldt 1903b______. (1903b), “Über die Gesetze der Entwicklung der menschlichen Kräfte”. In: ______. Gesammelte Schriften. Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaften. Berlin: Behr, vol. 1. :95-96, tradução nossa).

Mas o que exatamente Humboldt entendia por individualidade? O que permitia a ele e aos primeiros historicistas que sua visão individualizadora não os levasse a uma atomização relativista? Dada a importância dessa noção em seu pensamento e na tradição historicista como um todo, é deveras relevante que esclareçamos o significado do termo para Humboldt, bem como os seus profundos vínculos com a já mencionada crença religiosa.

O conceito humboldtiano de individualidade remete às suas influências prévias do pensamento racionalista de Christian Wolff (1679-1754) e do otimismo epistemológico de Gottfried Wilhelm Leibniz. Na primeira metade do século XVIII, Wolff havia definido o individual como tudo aquilo que era determinado em todos os seus sentidos e identificava o principium individuationis com o motivo pelo qual algo é uma coisa singular e não outra (Wolff 1962WOLFF, Christian. (1962), Philosophia prima sive ontologia. Ed. Jean Ecole. Hildesheim: George Olms.:227). Todavia, a versão trazida por Humboldt para o conceito possuía um tom mais complexo que remontava às suas declaradas influências do pensamento de Leibniz7 7 Em um volume que reúne as anotações de Humboldt, desde a sua juventude até seus últimos anos de vida, as referências a Leibniz são bastante frequentes (um total de 22 citações diretas apenas nesse volume). Referência interessante é feita por Humboldt já em 1785 ao conceito leibniziano de perceptionem cum apperceptione conjunctam a respeito do papel da sensibilidade humana no processo de produção de conceitos. Esse tipo de reflexão teórica reverberaria por muitos anos da maneira humboltiana de compreender as noções de história e individualidade (Humboldt 1908:369). .

Humboldt entende o individual em termos do conceito leibniziano de enteléquia, ou o esforço de algo no sentido de realizar a sua determinada natureza ou caráter. De acordo com Leibniz, existiria para cada coisa individual uma noção ou ideia, o seu principium individuationis que tornaria essa individualidade exata e não algo diferente. Essa noção ou ideia seria inerente à coisa, apesar de ser primeiramente apenas potencial ou rudimentar. O objetivo da coisa individual seria o de realizar essa noção ou ideia, ou seja, tornar o potencial real, o que é implícito explícito e o que é rudimentar nítido (Beiser 2011BEISER, Frederick C. (2011), The German historicist tradition. Oxford: Oxford University Press.:175).

A interpretação humboldtiana do conceito se pautaria em termos bastante próximos do colocado por Leibniz, já que, para Humboldt, “o individual é uma ideia representada na realidade, uma vitalidade física renovada no esforço de cada momento, a ideia do organismo, o esforço moral do caráter espiritual peculiar de obter validade na realidade” (Humboldt 1904______. (1904), “Geschichte des Verfalls und Unterganges der Griechischen Freistaaten”. In: ______. Wilhelm von Humboldts Gesammelte Schriften. Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaften. Albert Leitzmann (Hrsg.) Band III, Zweite Hälfte. Berlin: B. Behrs Verlag.:198, tradução nossa). A noção leibniziana de plenitude, para a qual “todas as coisas existiriam caso fosse possível para elas” (Leibniz 1923LEIBNIZ, G. W. (1923), Sämtliche Schriften und Briefe. German Academy of Sciences. Berlin: Akademie Verlag. :474, tradução nossa), está presente nessa formulação. Além disso, as implicações morais e políticas da ideia de perfeição - a maior variedade possível, em que o melhor é a existência do maior número possível de indivíduos - defendida por Leibniz apontam para a necessidade de preservação das coisas individuais por si só, algo que nos auxilia a compreender a relevância que a noção de individualidade teria para Humboldt.

Em um mesmo sentido, como apontado por Beiser, Humboldt formulara um quadro metafísico - um tipo de panteísmo vitalista - a partir de uma combinação do monismo8 8 Monismo é a visão filosófica de que uma variedade de coisas existentes pode ser explicada em termos de uma realidade ou substância únicas. Uma definição mais restrita de monismo assevera a presença de uma substância ou essência unificadoras. Na moderna filosofia ocidental, em contraste com o desenvolvimento do famoso dualismo cartesiano – a separação entre corpo e espírito –, Espinoza desenvolveu em sua ética uma visão monista na qual a união de todas as substâncias se daria em Deus. Cf. Bennett (1996). de Baruch Espinoza (1632-1677) com a referida enteléquia leibniziana, na qual substâncias universais se tornariam forças ou energias infinitas, realizando-se na totalidade de singularidades finitas. Em outros termos, a providência divina se relacionaria com sua criação, assim como a força com sua manifestação ou uma ideia com sua aparência, já que a manifestação ou aparência apenas tornaria a força ou ideia mais determinada ou organizada (Beiser 2011:176). Em tal formulação, Humboldt destaca uma concepção monista de mundo a partir da qual não existiria uma separação fundamental entre mente e corpo, finito e infinito, possibilitando assim um olhar repleto de sentido para um recorte individual da realidade.

O caráter complexo e profundamente metafísico de tais formulações seria a base fundamental da noção humboldtiana de individualidade, insight filosófico perceptível em praticamente toda a tradição historicista alemã. Mas se Humboldt fundamentava ontologicamente a existência de individualidades no mundo histórico, a apreensão cognitiva destas seria justificada epistemologicamente a partir de um elo com sua já mencionada teoria das ideias.

Presente em praticamente toda a sua obra, mas definida mais significativamente em Sobre a tarefa do historiador (1821), a teoria das ideias de Humboldt expressa aquilo que ele apontava como a necessidade do historiador em apreender as ideias por trás da História, que seriam as suas forças motrizes fundamentais. Essas ideias, que, como destacado, estão intimamente relacionadas com o princípio de individualidade, representam uma noção tanto metodológica quanto metafísica: “Para poder realizar o que deve, ele [o historiador] precisa, sobretudo, se manter fiel à condição, ao efeito, à conflitante dependência dessas forças, em que a plena percepção do que é específico pressupõe sempre o conhecimento do geral que o subsume. Nesse sentido, a apreensão do evento precisa sempre ser guiada por ideias” (Humboldt 2010______. (2010), “A tarefa do historiador”. In: E. C. R. Martins (Org.). A História pensada: Teoria e método na historiografia europeia do século XIX. São Paulo: Contexto. :91).

Em termos metodológicos elas seriam um princípio de explicação holística, já que, ao apreender a ideia por trás de um fenômeno, o historiador compreenderia o seu lugar em um todo. Em seu ensaio, Humboldt expõe esse significado metodológico, afirmando que o historiador deve apreender não apenas a sequência externa de eventos, mas a sua interconexão e interação, o papel de cada um em um contexto mais amplo, de modo que o universal em que eles estão inseridos seria aquilo que ele chama de ideia: “A história deve sempre produzir esse efeito interno, não importando, no caso, se o seu objeto é uma teia de eventos ou a narrativa de um fato singular. O historiador digno deste nome deve expor cada evento como parte de um todo, ou, o que é a mesma coisa, a cada evento dar a forma de História” (Humboldt 2010:87).

Já em termos metafísicos, as ideias estariam interligadas ao já referido princípio de individualidade de algo: aquilo que a torna algo único e não outra coisa. Assim, toda a individualidade possuiria uma ideia que lhe é correspondente (Beiser 2011BEISER, Frederick C. (2011), The German historicist tradition. Oxford: Oxford University Press.:211).

Essas ideias, contudo, não são abstratas no sentido da filosofia tradicional, mas concretas, manifestas no tempo, ou, nas palavras de Humboldt, “as ideias não penetram na história, mas formam a sua própria constituição” (Humboldt 2010:93). A ideia não seria um princípio estático, sendo essencialmente a energia vital, o princípio inerente ao individual que governa o seu crescimento.

Vista por alguns intérpretes como essencialmente neoplatônica, a teoria das ideias em Humboldt está associada à mencionada visão de Leibniz sobre a concepção do mundo em termos de mônadas autocontidas e governadas por um princípio de desenvolvimento interno, estando o seu crescimento em harmonia e de acordo com a vontade divina (Iggers 2011______. (2011), “Introduction”. In: L. von Ranke. The Theory and Practice of History: Edited with an introduction by Georg G. Iggers. London and New York: Routledge.:xxx). Esse débito para com a visão de mundo religiosa é perceptível naquilo que Humboldt denomina como “princípio criador” que não poderia ser diretamente encontrado pelo historiador, tendo este contato apenas com a sua forma subordinada, com aquele “veículo enobrecedor e elevado de sua mensagem” (Humboldt 2010:93).

A apreensão das ideias é o que permitiria ao historiador separar o necessário do contingente em um processo no qual a imaginação na imitação da natureza possuiria papel proeminente. A importância atribuída à subjetividade do historiador é o que leva Humboldt a compará-lo com o artista. Entretanto, para além dos caprichos criativos deste último, o historiador deveria ater-se ao que Humboldt denomina como “sentido de realidade”, ou aquilo que se situaria entre a as ideias e a realidade empírica.

Apesar de destacar o papel da imaginação, Humboldt é enfático ao apontar a necessidade de convergência entre o discurso do historiador e os fatos do passado. Longe de residir apenas em um dos lados, o desvendar dos enunciados da história encontrar-se-ia na mútua relação entre sujeito e objeto. As forças históricas que o historiador busca compreender são as mesmas que operam no interior de sua própria existência. Essa crença em uma essência compartilhada entre o sujeito cognoscente e a própria história é o que permite a Humboldt ter confiança em um saber histórico objetivo já que, para ele, “todo agente da história mundial já se movimenta na essência do homem” (Humboldt 2010:92).

O conhecimento histórico é possível, pois tanto o historiador quanto o seu objeto são partes do processo da história e ambos possuem sua base na vontade divina. Embora Humboldt não mencione de maneira clara, suas referências à ideia de providência estão presentes em sua alusão à necessidade de um ponto de vista exterior, ou, em suas palavras, “a história universal não é compreensível sem um direcionamento geral” (Humboldt 2010:94). Afinal, apesar das ideias serem imanentes à realidade empírica, elas também possuem uma dimensão transcendente “fora do círculo do finito” que apontaria para a sua origem divina. As ideias estão organizadas em um plano divino sistemático que não pode por nós ser acessado.

Esse fundo metafísico e religioso é o que fundamenta a crença de Humboldt tanto na existência de um plano minimamente otimista para os desenvolvimentos da história, quanto na possibilidade de construção de um conhecimento histórico objetivo. As bases dessa crença eram o que permitiam ao intelectual afastar-se de um relativismo valorativo, ao mesmo tempo que fundava os alicerces para o historicismo e para a sua geração subsequentes de historiadores.

Leopold von Ranke: a história como revelação

Um dos primeiros nomes a colher os frutos da visão histórica plantada por Humboldt em Sobre a tarefa do historiador seria o jovem estudante de Teologia Leopold von Ranke. Nascido no vilarejo de Wiehe, em 1795, Ranke iniciaria o legado institucional da tradição historicista alemã ao estabelecer, alguns anos após o ensaio de Humboldt, a primeira cátedra destinada ao estudo da História na Universidade de Berlim.

Membro de uma família composta quase exclusivamente por ministros luteranos - com a exceção de seu pai, que se tornara jurista -, Ranke crescera sob a influência de um ambiente profundamente religioso e marcado pela experiência política da restauração nos anos imediatamente posteriores ao Congresso de Viena (1814-1815).

Familiarizado com a leitura dos clássicos, o adolescente Leopold iniciaria o contato com a obra de Sófocles, Ovídio e Homero sem, contudo, se interessar pelo estudo da história, que naqueles anos costumava preterir em favor de um contato maior com a Teologia. Ao ingressar na Universidade de Leipzig em 1814 para estudar Teologia e Filosofia, Ranke se interessaria pelo estudo da história eclesiástica, além de, sob a tutela de Gottfried Hermann (1772-1848), entrar em contato com as obras de Píndaro e Tucídides.

Mas seria sobretudo após a leitura de Römische Geschichte (História de Roma), de Barthold Georg Niebuhr (1776-1831), que Ranke se deixaria seduzir pela historiografia, arriscando já em 1817 produzir um ensaio histórico sobre o jubileu dos 300 anos da Reforma Protestante, intitulado Luther-fragment. Anos mais tarde, após a conclusão dos seus estudos em Leipzig, o jovem autor seguiria para Frankfurt an der Oder, onde lecionaria Grego e História no ginásio de Fridericianum. É nesse período que Ranke se inclinaria em definitivo à ciência histórica e, em 1820, um primeiro projeto de pesquisa empírica em torno da formação dos modernos Estados europeus se delinearia (Mata 2010MATA, Sérgio da. (2010), “Leopold von Ranke (1795-1886)”. In: E. de R. Martins (Org.). A História pensada: Teoria e método na historiografia europeia do século XIX . São Paulo: Contexto .:188).

O resultado seria a obra Geschichten der römischen und germanischen Völker (Histórias dos povos latinos e germânicos), publicada em 1824. O trabalho seria o resultado de estudos acerca da história política europeia em torno dos anos de 1494 e 1514 e se basearia em uma análise de fontes documentais, inaugurando a aplicação de um método crítico de pesquisa que Ranke passara a empregar também à história moderna (Iggers 2011______. (2011f), “The young Ranke’s vision of history and god: excerpts from a letter to his brother Heinrich from Frankfurt/Oder, end of March 1820”. In: ______. The Theory and Practice of History: Edited with an introduction by Georg G. Iggers. London and New York: Routledge.:xvii).

A boa repercussão do livro levou o jovem autor a ser convidado para lecionar em 1824 na Universidade de Berlim. O ambiente dessa instituição nas primeiras décadas do século XIX era marcado por uma profunda divisão entre os partidários da assim chamada Escola Filosófica, centrada na figura de Hegel, e os seguidores da Escola Histórica, baseada nas posições de juristas como Friedrich Carl von Savigny (1779-1861) e Karl Friedrich Eichhorn (1781-1854), além daquelas do teólogo Friedrich Schleiermacher (1768-1834) (Iggers 1983IGGERS, Georg. (1983), The German Conception of History: The National Tradition of Historical Thought from Herder to the Present. Rev. ed. Middletown, Conn.: Wesleyan University Press.:66).

Ranke, que já há algum tempo havia se familiarizado com uma perspectiva histórica de mundo, engrossaria as fileiras daqueles preocupados em desenvolver os estudos históricos em Berlim, se colocando em forte divergência com a perspectiva da história filosófica hegeliana (Beiser 2011BEISER, Frederick C. (2011), The German historicist tradition. Oxford: Oxford University Press.:262). Contra a abstração filosófica e em favor de uma abordagem que favorecesse o individual no curso da história, Ranke posicionava-se em sintonia com o que havia sido formulado por Humboldt a respeito da tarefa do historiador no sentido de apreender as ideias por trás de individualidades, ou daquilo que identificava como “a mão de Deus” na história (Ranke 1885______. (1885), Geschichten der romanischen und germanischen Völker von 1494 bis 1514. Zur Kritik neuerer Geschichtschreiber. Dritte Auflage. Leipzig: Verlag von Duncker und Humblot.:vi).

O amplo interesse que possuía pela pesquisa documental e as boas relações políticas desenvolvidas na capital prussiana permitiram a Ranke dedicar alguns anos de sua vida para a pesquisa em arquivos internacionais. De sua visita à Áustria e à Itália, por exemplo, surgiriam o livro Die serbische Revolution (A revolução sérvia) (1829) e sua polêmica história dos pontífices romanos, Die römischen Päpste in den letzten vier Jahrhunderten (A história dos papas nos últimos quatro séculos) (1834-36).

Ao retornar a Berlim em 1831, Ranke não esconderia o profundo temor que os movimentos revolucionários europeus de 18309 9 As Revoluções de 1830 foram uma série de insubordinações que tiveram lugar em países como a Bélgica, os Países Baixos, a França, o território polonês e a Suíça. Na França, onde os levantes tiveram os maiores impactos políticos, a revolução levou à derrubada do rei Bourbon, Charles X, e a tomada do poder por seu primo, Louis-Philippe, Duque de Orléans. A chamada “monarquia de Julho” francesa, marcada por suas posições liberal-constitucionais, duraria até os levantes ocorridos em 1848. haviam lhe causado. Tendo sustentado uma visão de mundo conservadora ao longo de praticamente toda a sua vida, o intelectual se engajaria politicamente pela causa dos interesses monárquicos austro-prussianos que, naquele período, se pautavam na manutenção de posturas políticas autoritárias e antiliberais (Jaeger e Rüsen 1992JAEGER, Friedrich; RÜSEN, Jörn. (1992), Geschichte des Historismus: eine einführung. München: CH Beck .:85).

Os posicionamentos de Ranke seriam melhor definidos no periódico Historisch-Politische Zeitschrift, editado por ele entre os anos de 1832 e 1836. Em tal publicação, o historiador defendia posições opostas àquelas do movimento liberal, argumentando contrariamente à transferência de ideias e instituições estrangeiras, especialmente aquelas da Revolução Francesa, para os territórios alemães. Argumentando de forma bastante distinta de Humboldt, por exemplo, Ranke não acreditava em uma dissociação entre o Estado e o cidadão no processo de desenvolvimento individual. Nesse raro momento de envolvimento político direto, Ranke foi capaz de expor concepções a respeito da História e da Filosofia centrais para a compreensão de posições teóricas que o acompanhariam ao longo de toda a sua carreira (Iggers 2011______. (2011), “Introduction”. In: L. von Ranke. The Theory and Practice of History: Edited with an introduction by Georg G. Iggers. London and New York: Routledge.:xxi).

Apesar do fracasso da publicação, o prestígio social de Ranke tenderia apenas a crescer a partir de então. Mesmo com o relativo isolamento acadêmico causado por suas posições políticas conservadoras, Ranke manteve estreita relação com a elite dirigente local, de modo que, em 1841, o monarca Frederico Guilherme IV o nomearia historiógrafo oficial do reino da Prússia. Tal titulação foi seguida sete anos mais tarde pela designação do historiador como conselheiro real e, posteriormente, em 1854, pela sua nomeação como membro do Conselho de Estado Prussiano (Bentivoglio 2010BENTIVOGLIO, J. C. (2010), “Leopold von Ranke”. In: J. Malerba (Org.). Lições de História. Rio de Janeiro: FGV.:136).

Os eventos revolucionários de 1848 foram acompanhados por Ranke com imensa apreensão e receio. Mantendo a posição conservadora sustentada nos tempos de editor do Historisch-Politische Zeitschrift, o historiador orientara Frederico Guilherme IV a instituir uma constituição que garantisse o monopólio do poder ao monarca. Além disso, Ranke se manteria contrário ao sufrágio universal masculino, temendo a tomada do poder por classes populares incapazes de compreender os rumos da vida pública e da política.

Suas posições marcadamente antinacionalistas e antiliberais conservá-lo-iam na contramão do que era defendido por boa parte da opinião pública e de seus colegas professores em Berlim nas décadas de 1850 e 1860. Apesar de ter apoiado a guerra de 1866 contra a Áustria, por exemplo, ele o fazia apenas na medida em que a vitória no conflito significasse o fortalecimento dos Estados alemães diante dos interesses franceses. A unificação e a fundação do Império em 1871, por sua vez, foram acompanhadas por Ranke com um misto de apreensão e satisfação, já que, embora considerando a vitória sobre Napoleão III como o triunfo do princípio conservador sobre a revolução, avaliava como perigosas as concessões feitas por Otto von Bismarck aos liberais alemães nos anos que se seguiram à unificação (Iggers 2011______. (2011), “Introduction”. In: L. von Ranke. The Theory and Practice of History: Edited with an introduction by Georg G. Iggers. London and New York: Routledge.:xxv).

Em 1871, após problemas de saúde terem o afastado em definitivo da atividade docente, Ranke passou a dedicar-se exclusivamente ao seu há muito desejado projeto de pesquisa e escrita de uma história universal (Weltgeschichte). Alguns anos mais tarde, surgiria um primeiro volume do projeto, dedicado à história egípcia e greco-romana antigas. Este seria seguido por mais seis volumes que cobriam desde o período da Roma republicana até o reinado carolíngio. Após a morte de Ranke em 1886, os dois últimos livros seriam escritos por seus discípulos Alfred Dove e Georg Winter que, baseados nos manuscritos deixados pelo autor, tratariam de temas relacionados à moderna história política europeia.

Durante as mais de quatro décadas em que lecionou em Berlim, Ranke foi capaz de desenvolver um modelo de seminários históricos (historische Übungen), nos quais treinava e habilitava os seus alunos no trato com as fontes e em discussões a respeito da teoria e prática de pesquisa histórica (Bourne 1901BOURNE, Edward Gaylord. (1901), Essays in historical criticism. New Haven: Charles Scribner’s Sons, Yale University.:266). A instituição de tais seminários tornou-se comum entre uma geração de famosos historiadores de língua alemã, que não coincidentemente haviam sido alunos de Ranke em Berlim. Nomes como Heinrich von Sybel (1817-1895), Georg Waitz (1813-1886), Wilhelm von Giesebrecht (1814-1889) e Jacob Burckhardt (1818-1897) não escondiam os seus débitos para com o modelo de discussão histórica estabelecido por Ranke.

Ao contrário de Humboldt, Ranke jamais sistematizou de maneira clara as suas compreensões teóricas a respeito da história em um único tratado ou ensaio filosófico. É sabido, todavia, que, de forma ainda mais pronunciada que Humboldt, Ranke conferia papel proeminente à providência divina, ao lugar de Deus no decurso dos acontecimentos históricos e em sua apreensão por parte do historiador. É de certo modo consensual na historiografia afirmar que enquanto a maioria dos historiadores subsequentes falhou em evitar as consequências relativistas do princípio da individualidade, a visão de Ranke encontrou seu embasamento em uma clara crença na providência (Berding 2006BERDING, Helmut. (2006), “Leopold von Ranke”. In: P. Koslowski (Ed.). The discovery of historicity in German idealism and historism. Berlin/Heidelbeg/New York: Springer Science & Business Media.:45).

Ao estabelecer que “cada época é imediata a Deus” (Ranke 2011b______. (2011b), “On progress in History: from the first lecture to king Maximilian II of Bavaria, ‘on the epochs of modern history, 1854’”. In: ______. The Theory and Practice of History: Edited with an introduction by Georg G. Iggers. London and New York: Routledge. :21), Ranke reiterava a ideia defendida por Humboldt, segundo a qual o historiador não deveria se ater a elementos gerais externos a uma época, nação ou cultura, mas aos valores que lhe fossem próprios, preocupando-se, em outros termos, com “a emergência da vida individual na história” (Ranke 1885:vii). Ranke acreditava que o historiador deveria debruçar-se sobre individualidades históricas, de modo a reconstruir o passado “como ele realmente aconteceu” (wie es eigentlich gewesen). Entretanto, essa operação apenas seria possível com o reconhecimento do lugar ocupado por tal partícula individual em um nexo de sentido mais amplo. Este seria apreensível a partir da ideia por ele representada, já que, para Ranke, “da totalidade de seus desenvolvimentos, suas demandas, suas instituições e sua literatura, a ideia chega até nós de modo que não podemos negar-lhe a nossa atenção” (Ranke 2011a______. (2011a), “On the character of historical science”. In: ______. The Theory and Practice of History: Edited with an introduction by Georg G. Iggers. London and New York: Routledge. :15, tradução nossa).

Portanto, assim como Humboldt, Ranke destacava a necessidade de apreciação das individualidades pelo historiador, considerando o seu elo com o universal e a necessidade de apreensão das ideias históricas que as constituiriam. Como no caso de Humboldt, tais elementos do historicismo rankeano devem ser compreendidos em sintonia com o significado que possuíam no interior de sua fé e visão de mundo religiosa.

“Decifrar o hieróglifo sagrado”: o luteranismo histórico de Ranke

“Como poderia qualquer coisa existir sem o fundamento divino de sua vida?” (Ranke 2010______. (2010), “O conceito de história universal”. In: E. de R. Martins (Org.). A história pensada: teoria e método da historiografia europeia do século XIX. São Paulo: Contexto.:207). A pergunta formulada retoricamente por Ranke em seu manuscrito O conceito de história universal (1831) revela a difícil tarefa de estabelecer de maneira precisa o lugar da religião no pensamento histórico do intelectual luterano. O papel quase onipresente da crença religiosa em suas digressões tornaria praticamente impossível um exercício de separação entre os elementos místicos e seculares da visão de mundo rankeana. Com base em tal premissa, buscaremos entender a religião em Ranke não a partir de uma contradição entre o místico e o secular, compreendendo, pelo contrário, a religiosidade do autor como indissociável de sua epistemologia e teoria do conhecimento histórico.

Como apontado por Theodore H. Von Laue, “a mais prematura e persistente de todas as influências formativas de Ranke foi a versão protestante da religião cristã” (Von Laue 1950VON LAUE, Theodore H. (1950), Leopold Ranke: the formative years. Princeton: Princeton University Press .:12-13, tradução nossa). Ranke recebeu sua educação básica primeiramente na escola elementar de sua cidade e, posteriormente, em duas escolas destinadas aos melhores estudantes do seu principado. O currículo da escola secundária de Pforta, onde Ranke completou cinco anos de estudos, era ainda baseado nos ideais educacionais de Philipp Melanchthon (1497-1560)10 10 Philipp Melanchthon foi um reformador que colaborou com Martinho Lutero na propagação de suas ideias, bem como em um processo de sistematização de sua teologia e na elaboração de sistemas educacionais baseados nos preceitos reformistas. Melanchthon tornou a distinção entre a lei e o evangelho central para o insight evangélico luterano. Por “lei”, ele compreendia os mandamentos divinos tanto no Velho quanto no Novo Testamento, e por “evangelho”, a livre dádiva da graça através da crença em Jesus Cristo. , com uma espécie de combinação entre Protestantismo e Humanismo. O seu objetivo educacional era o de preparar os jovens para uma estrutura social tanto provida por Deus quanto embasada na razão humana.

O currículo humanista de Melanchthon e o estudo das línguas clássicas proveram sólidos fundamentos religiosos, humanísticos e filológicos para a vida e o trabalho de Ranke. Os manuscritos que ele deixou dos tempos de Pforta apontam também para sua imersão na moderna literatura alemã, nos escritos de Lessing, de Schiller e, principalmente, de Herder (Krieger 1977KRIEGER, Leonard. (1977), Ranke and the meaning of history. Chicago: University of Chicago Press.:40). Entretanto, para o jovem estudante secundário, “a Teologia ainda continuava a ser a maior das ciências” (Ranke 1890______. (1890), “Zur eigenen Lebensgeschichte”. In: ______. Sämtliche Werke. Bd. 53/54, Leipzig: Verlag von Duncker und Humblot.:16).

Entre 1814 e 1817, quando na Universidade de Leipzig, o estudo da Teologia e dos clássicos continuaria no centro de seus interesses. Em tal período, Ranke comenta que se entretinha com a leitura dos textos bíblicos e com a tradução dos salmos e das cartas de Paulo (Ranke 1890:29). Em suas memórias, ele revela o contato com a crítica histórica radical e a Teologia não ortodoxa de Wilhelm de Wette (1780-1849): “quando eu me via tentado com alguns expedientes mais antigos, eu lia De Wette” (Ranke 1890:29). Todavia, o jovem estudante deixava claro que, apesar de considerar as premissas do movimento racionalista teológico em Leipzig, sua fé não se abalara: “eu acreditava incondicionalmente […] sempre me apoiava na ideia de ler nos salmos não sentimentos religiosos de natureza pessoal apenas e tampouco aqueles da religião objetiva” (Ranke 1890:29-30, tradução nossa).

Seu último ano em Leipzig coincidiria com o aniversário de 300 anos da publicação das teses de Martinho Lutero em Wittenberg e, por esse motivo, Ranke decidira realizar um estudo intensivo de vida e obra do reformador alemão. O resultado seria o texto Das Luther-Fragment______. (1926), “Das Luther-Fragment von 1817”. In: ______. Gesammelte Ausgabe der Deutsche Akademie. Berlin: [s.n.], Bd. IV., publicado postumamente em 1926. Baseado em documentações originais, o estudo utilizava-se da biografia de Lutero para abordar a história da Reforma protestante alemã como um todo, escrevendo um tipo de história na qual a figura do reformador aparecia de maneira central.

Como apontado por Leonard Smith, o prematuro interesse rankeano por Lutero é revelador dos vínculos que o historiador encontraria entre a Teologia luterana e a maneira contemplativa de entender a história desenvolvida em seus escritos subsequentes. Para o reformador do século XVI, “um cristão é perfeitamente um senhor de tudo, submisso a nada”, enquanto que é “perfeitamente temente, servo de tudo, submisso a tudo” (Lutero 1998LUTERO, Martinho; PASCHOAL, Erlon José. (1998), Da liberdade do cristão: prefácio a Bíblia. São Paulo: SciELO-Ed. UNESP. :49). Para Lutero, a palavra de Deus e a fé dominariam a alma do homem interior, incorporando, assim, uma visão mística e holística de que o homem cristão seria, ao mesmo tempo, fiel e pecador. Essa perspectiva simultânea (simul) de enxergar a existência era complementada pela dinâmica luterana do jogo preposicional “no, com e sob”, em que Lutero situava Deus tanto paralela quanto superiormente às suas próprias criações (Smith 2009SMITH, Leonard. (2009), Religion and the Rise of History: Martin Luther and the Cultural Revolution in Germany, 1760-1810. Eugene, OR: Wipf & Stock Pub.:67). Ademais, para o luteranismo - que teria entre os seus fundamentos a ideia de revisão dos escritos sagrados -, o texto seria também uma realidade, na medida em que existiria para além do desejo prévio e das projeções do leitor (Caldas e Martins 2013CALDAS, Pedro S. P.; MARTINS, Estevão de Rezende. (2013), “Leopold von Ranke (1795-1886)”. In: J. Bentivoglio; M. A. Lopes (Org.). A constituição da história como ciência: de Ranke a Braudel. Petrópolis: Vozes.:30).

Smith chama a atenção para o fato de que, já nos fragmentos sobre Lutero, Ranke se preocupara com duas premissas fundamentais que estariam presentes em sua subsequente visão de mundo histórica e que possuem relação com esse tipo de luteranismo: a utilização de fontes primárias e a relação entre o individual e o universal (Smith 2009:206). Smith aponta para a importância de observar o momento da escrita de tal trabalho como crucial para Ranke moldar sua maneira religiosa de enxergar a história. Para ele, Lutero seria o grande homem que Deus havia acordado, ensinado e ordenado. Em Lutero e em sua influência sobre seu tempo, Ranke podia ver como o mundo havia se transformado e como tais homens fazedores de época representavam o vínculo do individual ao geral (Smith 2009:207).

De acordo com Carl Hinrichs, por sua vez, a primeira fonte que Ranke encontrou para solucionar o problema da relação entre o individual e o universal foi a sua fé cristã, em especial a partir da interpretação luterana dos salmos e do seu comentário a respeito das cartas de Paulo. Em tal ponto, mais do que em qualquer outro, Ranke encontrou as ideias da eficácia do poder divino na história e o caráter oculto de Deus no mundo. Hinrichs percebe que, nesse primeiro interesse rankeano por Lutero, residiriam as raízes de sua visão histórica universal (Hinrichs 1954HINRICHS, Carl. (1954), Ranke und die Geschichtstheologie der Goethezeit. Göttingen: Musterschmidt.:106).

De fato, quando nos debruçamos sobre obras que subsequentemente tratariam da temática da religião, como Deutsche Geschichte im Zeitalter der Reformation (História alemã à época da reforma) (1839-1847) - da qual o Luther-Fragment de 1817 fora uma espécie de embrião - ou Die römischen Päpste, percebemos a importância central conferida por Ranke à figura de Lutero enquanto representante de uma causa espiritual mais elevada: “E quando Lutero, com a máxima precisão e agudeza, sustentou seus princípios autodeclarados diante daquele poder que há tanto havia se desviado deles […] os seus escritos tiveram um efeito incalculável e foram rapidamente disseminados, não apenas na Alemanha, mas por todo o mundo” (Ranke 2011c______. (2011c), “History of the popes”. In: ______. The Theory and Practice of History: Edited with an introduction by Georg G. Iggers. London and New York: Routledge. :114, tradução nossa).

Para Leonard Krieger, Ranke encontrou em Lutero a coerência de uma visão de mundo que os seus estudos formais não foram capazes de fornecê-lo. Krieger defende que, ao concentrar-se em Lutero e na Reforma, Ranke passou por uma espécie de conversão que o permitiu compreender o poder da interioridade no processo de contato com o mundo a partir do papel ativo da espiritualidade luterana (Krieger 1977:49).

Essa experiência teria levado o intelectual a um segundo processo de conversão, desta vez para a história (Krieger 1977KRIEGER, Leonard. (1977), Ranke and the meaning of history. Chicago: University of Chicago Press.:57). Os anos de trabalho em Frankfurt an der Oder haviam levado Ranke a interpretar a história como contida na revelação. O seu papel como historiador seria, então, o de tentar revelar algo dos desígnios divinos associados ao próprio desenvolvimento histórico. Nas palavras de Ranke, “decifrar aquele hieróglifo sagrado” (Ranke 2011f______. (2011f), “The young Ranke’s vision of history and god: excerpts from a letter to his brother Heinrich from Frankfurt/Oder, end of March 1820”. In: ______. The Theory and Practice of History: Edited with an introduction by Georg G. Iggers. London and New York: Routledge.:4) passava a significar sua verdadeira vocação e objetivo de vida.

No que pese essa conversão histórico-religiosa do intelectual, entretanto, cabe compreendermos que esta de forma alguma se manifestou de modo a implicar quaisquer tipos de dogmatismos ou determinismos em seu entendimento da representação ou das noções de causa e efeito na história. Como observado por J. D. Braw, quando Ranke destacava os episódios da manifestação da “mão de Deus na História”, por exemplo, esses momentos seriam inteiramente imanentes: a divindade apareceria em viradas cruciais no “curso dos eventos”, mas esse efeito seria limitado a esses fenômenos em si. Deus restauraria (ou mesmo, poder-se-ia dizer, seria) o balanço entre as forças conflitantes, mas não levaria o processo histórico a qualquer objetivo exteriormente discernível. Isso seria, em outras palavras, uma providência secular onipresente (Braw 2007BRAW, J. D. (2007), “Vision as revision: Ranke and the Beginning of Modern History”. History and Theory , vol. 46: 45-60. :54).

Muitas são as divergências dos intérpretes no que diz respeito ao lugar conferido a Deus por Ranke tanto em sua epistemologia histórica, quanto em seu entendimento sobre o significado do passado em si. Meinecke, em uma conhecida definição, foi o primeiro a perceber que Ranke realizaria “uma clara separação entre o criador e sua criação, que seria um eco de seu Luteranismo” e que teria tornado “possível que ele praticasse as suas verdades crítico-empíricas face ao mundo prático da matéria e do espírito” (Meinecke 1972 ______. (1972), Historism: the Rise of a New Historical Outlook. London: Routledge & Kegan Paul.:506). De acordo com Meinecke, Ranke seria um “panenteísta”, ou seja, para este, Deus estaria acima do mundo por ele criado e inspirado em seu espírito, o que implicaria uma relação de todas as coisas “a Deus, mesmo quando mundanas e imperfeitas” (Meinecke 1972:506).

É, portanto, consensual afirmar, nos termos do dito por Meinecke, que, apesar de sua crença na providência, Ranke conferia imensa importância à autonomia da história ante a premissas teológicas ou filosóficas. Como asseverado em seu O conceito de história universal, “por meio do estudo da história nunca se poderia chegar a uma convicção universal e fundamentada” (Ranke 2010:205). Ranke conferia em seu entendimento histórico lugar primordial ao papel da liberdade humana e à ação de indivíduos autônomos que, embora situados em determinado contexto, jamais seriam apreensíveis em sua totalidade (Gadamer 2002GADAMER, Hans-Georg. (2002), Verdade e Método: Complemento e índices. Trad. Ênio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes .:318):

Reconheçamos que a história não pode ter nunca a unidade de um sistema filosófico; mas tampouco carece de nexo interno. Temos diante de nós uma série de acontecimentos que seguem e se condicionam uns aos outros. Quando digo que se condicionam, isso não se refere, obviamente, que seja através de uma necessidade absoluta. A grandeza é, antes, o fato de que por toda parte se faz mister a liberdade humana: a historiografia faz o rastreamento das cenas de liberdade; isso é o que a torna tão apaixonante (Ranke 2011d______. (2011d), “The role of the particular and the general in the study of universal history (a manuscript of the 1860s)”. In: ______. The Theory and Practice of History: Edited with an introduction by Georg G. Iggers. London and New York: Routledge. :24, tradução nossa).

Por conseguinte, é possível afirmar que a providência divina teria tido para Ranke o ambíguo papel de libertar a história de pretensões totalizantes, ao mesmo tempo que o permitia fundamentar o sentido tanto da pesquisa quanto dos desenvolvimentos históricos em si. Ao afirmar que “a História reconhece o infinito em cada coisa viva, algo de eterno vindo de Deus em cada instante, em cada ser” (Ranke 2010:206), Ranke reafirmava a asserção de que, apesar de sua fé religiosa ser um fundamento lógico, ela não se colocava como um ponto de partida ou premissa determinante para as suas digressões a respeito do conhecimento histórico.

A teoria das ideias e a relação entre o individual e o universal: o ideal rankeano de objetividade

O resultado do luteranismo rankeano seria, dentre outros, o de fornecer uma noção de simultaneidade (simul) entre o todo e as suas partes constituintes. A fé de Ranke na providência divina era o que possibilitava o estabelecimento de um elo entre a sua visão idealista do particular e um significado mais elevado para esse recorte individual do passado. Assim como Humboldt, Ranke fundamentava a sua epistemologia histórica e a sua crença na objetividade em termos holísticos: em uma relação entre o singular e o universal apreensível a partir de ideias fundamentais que constituiriam esse elo.

Essa maneira de compreender o individual como situado em determinado tempo e lugar era expressa por Ranke já à época de seus primeiros manuscritos em Leipzig. De maneira bastante pronunciada, a religiosidade do autor far-se-ia notar em sua dúvida quanto ao significado desse primeiro esboço da noção de contexto:

Não pode ser a proposta do historiador explicar os eventos das mentes dos atores históricos. Deve haver algo sobre eles e que os controla - chamemos de destino, providência ou Deus - assim como um evento se coloca acima deles, que é algo que não produzem, mas para o qual eles consciente ou inconscientemente contribuem. Pode-se chamar as circunstâncias sob as quais as pessoas se tornam o que elas são contingentes; mas aquele desenvolvimento mais elevado da vida humana é necessário. Esse desenvolvimento, entretanto, se estende a toda época em que um povo vive, ao grande evento no qual eles participam, a uma visão geral do grande destino da humanidade (Ranke 1965______. (1965), Aus Werk und Nachlass. WP Fuchs (ed.). Leipzig: Oldenbourg Verlag, vol. 4. :234, tradução nossa).

Quando escreveu esse trecho entre 1816 e 1817, Ranke ainda não havia desenvolvido uma formulação teórica capaz de explicar aquilo que situava como “acima dos homens”, mas esboçara na mesma época uma referência à “ideia divina que governa os seres humanos em todos os tempos e lugares” (Ranke 1965:235-236, tradução nossa).

Ranke passou a formulações mais complexas sobre o tema a partir de suas palestras sobre política proferidas em Berlim na década de 1830. Foi em tal período que as noções de individualidade, universalismo e a teoria das ideias (Ideenlehre) tomaram lugar proeminente em sua epistemologia e em sua concepção de história em termos mais amplos.

“Toda a vida”, escrevia o autor, “carrega consigo o seu ideal” (Ranke 2011e______. (2011e), “A dialogue on politics (1836)”. In: ______. The Theory and Practice of History: Edited with an introduction by Georg G. Iggers. London and New York: Routledge. :73, tradução nossa). “A ideia que inspira e domina o todo, a tendência que prevalece nas mentes, e as condições em geral, são elas que determinam a formação e o caráter de cada instituição” (Ranke 2011e:60, tradução nossa). Ranke iria frequentemente falar sobre as ideias em tal sentido, discutindo os movimentos políticos da era moderna. Em uma outra direção, a ideia seria a natureza característica de determinado Estado ou nação, o que tornaria tal entidade aquilo que ela é e não outra coisa, ou seja, seria o seu principium individuationis (Beiser 2011BEISER, Frederick C. (2011), The German historicist tradition. Oxford: Oxford University Press.:282). Aqui, as proximidades de Ranke com Humboldt evidenciam-se, principalmente quando o intelectual aponta para a necessidade de apreensão das ideias como sendo a principal tarefa do historiador: “São ideias que aparecem pelos séculos, que são aceitas ou combatidas. Elas aparecem tanto na literatura […] quanto na atividade dos Estados e das igrejas, que as aplicam em termos práticos. A sucessão dessas ideias e suas tendências formam a grande estrutura da história universal. Apreendê-las é a primeira tarefa do historiador” (Ranke 1965:191, tradução nossa).

O autor ressaltava também a importância do caráter dinâmico de tais ideias: “o desejo mais íntimo da vida espiritual é o movimento em direção à sua ideia, à sua maior perfeição” (Ranke 2011e______. (2011e), “A dialogue on politics (1836)”. In: ______. The Theory and Practice of History: Edited with an introduction by Georg G. Iggers. London and New York: Routledge. :73, tradução nossa). Elas não seriam apenas uma formulação estático-estrutural, estando intimamente ligadas ao princípio de desenvolvimento de um Estado, época ou nação em determinada direção (Iggers 2011______. (2011), “Introduction”. In: L. von Ranke. The Theory and Practice of History: Edited with an introduction by Georg G. Iggers. London and New York: Routledge.:xxix). Sem entrar em muitos detalhes sobre o processo de formação inicial dessas ideias fundamentais, Ranke era enfático em afirmar que elas remontavam a uma “origem divina” (Ranke 2011e:72).

Em tais formulações, é mais uma vez notória a proximidade do autor com Humboldt e, por conseguinte, com a já citada noção leibniziana de enteléquia, para a qual a forma substancial de uma coisa residiria em sua natureza individual e em seu princípio de desenvolvimento. De todo modo, como apontado por Beiser, essas reflexões seriam o produto das mais distintas influências sobre o pensamento rankeano. Assim, se os fundamentos metafísicos de sua teoria advinham de Leibniz, sua dimensão religiosa possuía origem tanto em sua fé luterana quanto nas leituras de Fichte. Por outro lado, a identidade político-social das Ideenlehre de Ranke era reflexo das influências de Savigny e de Eichhorn, bem como do caráter histórico-estético das formulações de Humboldt (Beiser 2011:283).

De uma maneira geral, tais influências confluiriam a um tipo otimista de olhar sobre as individualidades históricas e sobre o nexo causal dos acontecimentos presentes na história universal. Em um fragmento escrito na década de 1860, fica clara a fé rankeana em uma relação entre o particular e o geral, além de se explicitar a sua crença no caráter positivo da ciência histórica na apreensão de tal processo:

A investigação do particular, mesmo de um ponto singular, é de valor se for feita corretamente. Se devotada às coisas humanas, ela sempre revelará algo que vale a pena ser conhecida em si. Ela é instrutiva mesmo quando aplicada a pequenos detalhes, pois o humano é sempre válido a ser conhecido. Mas a investigação do particular está sempre relacionada a um contexto mais amplo. A história local está relacionada àquela do país, uma biografia está ligada a um evento mais amplo no Estado e na igreja, a uma época ou a uma história nacional ou geral. Mas todas essas épocas em si são, como dissemos, novamente parte da grande totalidade que denominamos de história universal (Ranke 2011d______. (2011d), “The role of the particular and the general in the study of universal history (a manuscript of the 1860s)”. In: ______. The Theory and Practice of History: Edited with an introduction by Georg G. Iggers. London and New York: Routledge. :24-25, tradução nossa).

Apesar de reconhecer o risco de “perder-se de vista o conhecimento geral que desejamos”, Ranke permanece confiante na capacidade da ciência histórica em manter-se segura de seu vínculo com uma causa maior da humanidade. O historiador admitia o perigo de tal perspectiva levar a “generalidades vagas”, mas mantinha-se confiante na justiça e nos pré-requisitos da pesquisa histórica que, apesar de “permanecerem como um ideal”, seriam “capazes de pressupor uma compreensão em uma base firme da totalidade da história humana” (Ranke 2011d:25, tradução nossa).

Como observado por Iggers, pelo fato de toda individualidade ser a manifestação de uma ideia que possui a sua origem em Deus, na concepção rankeana de história não haveria espaço para o mal (Iggers 2011:xxx). A tarefa ética de cada individualidade histórica, de cada nação ou Estado seria, para Ranke, o desenvolvimento completo de si. Todos os valores assumiriam uma forma histórica completa, como manifestações específicas de individualidades históricas. Isso tornava não mais a Filosofia ou a Teologia guias para os valores humanos, mas a própria história.

Em tal ponto, mais uma vez, o recurso à providência divina mostrava-se essencial no balanço rankeano entre o atomismo subjetivo da imaginação histórica e a busca científica pelo ideal de objetividade. A autonomia ética de todos os indivíduos e de todas as culturas era o que levava Ranke a fundar o seu ideal de objetividade sobre a premissa da “imparcialidade” (Unparteilichkeit). A habilidade de apresentar as forças da história sem as influências do seu próprio conjunto de valores seria o centro da sua noção de objetividade:

A história verdadeira deve buscar pela intuição da objetividade; ela deve se projetar acima do ponto de vista partidário. Por sua própria natureza ela possui um elemento moral e religioso. Mas a moral não consiste em julgar e condenar cada partido de acordo com a visão pré-concebida de alguém; e a visão religiosa não consiste em vincular-se a uma confissão para depreciar e degradar a dos outros. Mas ao contrário, consiste em justificar o direito de vida a cada existência moral e religiosa, mesmo se ela devesse ser limitada (Ranke 1965______. (1965), Aus Werk und Nachlass. WP Fuchs (ed.). Leipzig: Oldenbourg Verlag, vol. 4. :295, tradução nossa).

Isso nos permite inferir que a conhecida frase “eu gostaria, se possível, de me extinguir e deixar as coisas falarem por si” (Ranke 1877RANKE, Leopold von. (1877), Sämtliche Werke. Alfred Dove (ed.). Leipzig: Duncker & Humblot, vol. XV. :103, tradução nossa) se relacionava com a premissa de que “todas as épocas são imediatas a Deus” (Ranke 2011b:21, tradução nossa) já que, para Ranke, o historiador deveria ser capaz de cultivar um tipo especial de moralidade e religião: aquele que fornecesse condições iguais a todos os lados, buscando compreendê-los a partir do seu interior, e não os interpretando de acordo com princípios e ideais externos.

Longe de implicar uma forma ingênua, ou “eunuca” de objetividade, como queria Droysen, o ideal rankeano revelava traços de uma profunda imersão nos princípios normativos da filosofia epistemológica de Kant, tendo em vista que, para o historiador, a imparcialidade se colocava não como algo perfeitamente tangível no campo epistêmico, mas sim como um princípio regulador, uma força normativa à qual o pesquisador deveria se ater (Beiser 2011BEISER, Frederick C. (2011), The German historicist tradition. Oxford: Oxford University Press.:279).

Essa desmistificação do rótulo da ingenuidade no ideal rankeano de objetividade não deve deixar de considerar os profundos elos deste com a crença religiosa que lhe servia também como fundamento. Em tal sentido, faz-se necessário que retornemos, finalmente, ao texto da epígrafe com a qual iniciamos o presente artigo. Na carta de 1820, Ranke declarava serem “todos os feitos da história testemunhas da presença de Deus”, de modo que seria o seu objetivo “ser tanto um sacerdote quanto um professor” (Ranke 2011f:4, tradução nossa).

Como observado por Hans-Georg Gadamer, o que levava Ranke a comparar o ofício do historiador ao sacerdócio seria justamente a sua crença em uma noção de verdade, associada à imagem e semelhança de Deus (Gadamer 2002:325). Portanto, em Ranke, o elo com Deus que precedera a queda do pecado original não seria produzido apenas através dos meios da graça na igreja, mas a partir do historiador que dela participaria percebendo os vínculos do humano com a imediatez divina na história (Gadamer 2002:325)11 11 Isso permite que concordemos com a interpretação de Elías Palti quando este aponta que, apesar de suas opções teóricas terem o aproximado de um relativismo epistemológico, a fé rankeana na providência divina evitava qualquer tipo de relativismo ontológico em sua posição (Palti 2005:435). .

Ao asseverar que “apenas Deus conhece integralmente a história universal” (Ranke 2010______. (2010), “O conceito de história universal”. In: E. de R. Martins (Org.). A história pensada: teoria e método da historiografia europeia do século XIX. São Paulo: Contexto.:212), Ranke situava o lugar do historiador em mundo onde a crença religiosa e a especulação filosófica não seriam mais capazes de prover sentidos últimos à orientação humana. Transferindo a sua fé para a esfera da compreensão histórica, Ranke assegurava uma duradoura sobrevida ao saber objetivo em uma era de crescentes instabilidades no campo da produção de conhecimento científico. Se considerarmos o sucesso institucional de sua empreitada, o solo firme sobre o qual floresceu a chamada “era de ouro do historicismo” sem dúvidas deveu boa parte de sua fertilidade ao legado do velho professor de Berlim.

A religião da história na cultura oitocentista alemã

A primeira metade do século XIX alemão ficaria marcada pela emergência de uma concepção histórica de mundo preocupada em apreender o fluxo de intensas mudanças ocorridas no cenário europeu desde a irrupção da Revolução Francesa de 1789. Definida posteriormente a partir do conceito de historicismo, essa visão histórica da realidade teria seus postulados fundamentados principalmente nos escritos de Wilhelm von Humboldt e Leopold von Ranke.

Apesar de não utilizarem o termo e não conceberem a si próprios como historicistas, Humboldt, em Sobre a tarefa do historiador, e Ranke, em numerosos livros e ensaios sobre a história, erigiram uma maneira científica de apreciação do passado que teria amplas consequências para a cultura europeia do período. Contrapondo-se à perspectiva apriorística da Escola Filosófica, em recurso à própria filosofia idealista e a premissas teológicas cristãs, os dois intelectuais foram capazes de atribuir importância sem precedentes a um olhar individual sobre o fluxo dos acontecimentos do passado.

Como observado acima, todavia, tanto Humboldt quanto Ranke teriam enormes dificuldades em estabelecer os princípios de uma perspectiva preocupada com o significado do individual na história, e, embora baseassem seus postulados em uma série de preceitos filosóficos idealistas, suas posições se pautariam, em última instância, em uma crença no significado religioso da experiência histórica humana.

Em tal sentido, se Humboldt se preocupara em definir a tarefa do historiador como baseada na apreensão de ideias de origem na transcendência divina, Ranke concebia o historiador como uma espécie de sacerdote incumbido da missão de “decifrar o hieróglifo sagrado” presente na história universal. Isso demonstra que, longe de terem pretendido afastar-se da fé, esses intelectuais readequaram perspectivas religiosas de modo a preservar a consistência das narrativas históricas que passavam a construir.

A fé religiosa transposta para a realidade e a imaginação históricas foi o que permitiu que tais intelectuais delineassem a relação entre o individual e o universal, a crença na objetividade do saber histórico, além de um tipo otimista de prospecto a respeito dos desenvolvimentos humanos na história. Isto nos leva à conclusão de que, mais do que um simples postulado, a religião da história representou a principal base a partir da qual a moderna ciência - e consciência - histórica foi capaz de se desenvolver e de se alicerçar na cultura alemã do século XIX.

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  • 1
    Grafado em alemão como Historismus, o termo passou a ser utilizado pela historiografia norte-americana a partir da influência da noção italiana de storicismo – que, para Benedetto Croce e Carlo Antoni, possuía uma associação muito maior à filosofia de Hegel do que à historiografia de Ranke e Humboldt (Iggers 1983:296). O termo muitas vezes é confundido com a crítica que Karl Popper realizou à pretensão por prognósticos presente em algumas filosofias da história, quando o filósofo utilizou o termo historicism para se referir a essas tendências. No Brasil, apesar de Sérgio Buarque de Holanda – um dos primeiros intérpretes do tema no país – ter utilizado o termo historismo, nossa historiografia tem usado majoritariamente a grafia historicismo, acredita-se que, sobretudo, por influência da tradição norte-americana (Martins 2008MARTINS, Estevão C. R. (2008), “Historicismo: o útil e o desagradável”. In: F. F. Varella; H. M. Mollo; S. R. da Mata; V. L. de Araújo (Orgs.). A dinâmica do Historicismo. Revisitando a historiografia moderna. Belo Horizonte: Argumentum.:15). Em tal sentido, e seguindo o que tem sido mais frequente por aqui, optamos também pela utilização do termo historicismo.
  • 2
    As reformas prussianas, ou as reformas Stein-Hardenberg, foram um conjunto de medidas constitucionais, administrativas, sociais e econômicas adotadas pelas lideranças do reino da Prússia sob ocupação francesa desde 1806. Entre as principais reformas adotadas, estavam a reorganização do governo e administração prussianos, mudanças na regulamentação do comércio e da agricultura, com a abolição da servidão e o estímulo à livre concorrência. Cf. Nipperdey (2014NIPPERDEY, Thomas. (2014), Germany from Napoleon to Bismarck: 1800-1866. Princeton: Princeton University Press. ).
  • 3
    Existem algumas controvérsias interpretativas no que diz respeito à crença religiosa de Humboldt. A clássica interpretação trazida por Eduard Spranger (1909SPRANGER, Eduard. (1909), Humboldt und die Humanitätsidee. Berlin: Reuther &amp/Reichard.) aponta, a partir de uma análise de suas correspondências pessoais, que Humboldt teria iniciado um processo de conversão ao Cristianismo a partir da década de 1820 e, em especial, após a morte de sua esposa em 1829. Spranger abrange essa análise documental para apontar que, se em sua juventude o intelectual entendia a religião como um sentimento momentâneo (sobretudo estético), na década de 1820 a fé de Humboldt na imortalidade da alma far-se-ia presente em sua visão de mundo como um todo (Spranger 1909:297). Todavia, em uma interpretação mais recente, Jean Quillien (1991) aponta para os exageros dessa leitura, já que, apesar de Humboldt ter atribuído maior importância à religião no final de sua carreira, ela representava muito mais a aquisição de um lugar de destaque em sua filosofia moral do que uma crença religiosa propriamente dita (Quillien 1991:504). Por fim, tais interpretações não são mutuamente excludentes, apontando para o fato de que, se Humboldt não pode ser visto como um “intelectual protestante por excelência”, como quer Spranger, não podemos deixar de considerar o importante papel da religião em suas digressões (especialmente em Sobre a Tarefa do Historiador, de 1821) a partir da década de 1820, como apontado por Quillien.
  • 4
    A partir do reinado de Frederico Guilherme II (1744-1797) iniciado em 1786, uma série de medidas repressivas em relação à prática religiosa foi instituída em território prussiano após a determinação do edito religioso de 18 de dezembro de 1788. Com a adoção dessa medida, uma nova lei de censura foi estabelecida para assegurar a ortodoxia de todos os livros publicados. Isso obrigou uma série de periódicos berlinenses a serem publicados fora das fronteiras prussianas. Além disso, filósofos como Immanuel Kant foram proibidos de falar em público a respeito de temas relacionados à religião. Cf. Sauter (2009SAUTER, Michael J. (2009), Visions of the Enlightenment: The Edict on Religion of 1788 and the Politics of the Public Sphere in Eighteenth-century Prussia. Leiden: Brill.).
  • 5
    Nada no jovem Humboldt, com exceção de um “êxtase leibniziano” que ele diz ter experimentado em sua juventude, evoca uma transferência dos valores religiosos da pré-história da noção de Bildung para a concepção por ele expressa em Os limites da ação do Estado. Todavia, como percebido por Louis Dumont, uma relação mais imediata entre o ideal de Bildung e o ideal da obra de arte para o artista, como expressa na obra de Karl Philipp Moritz (1756-1793), parece aproximar Humboldt – apesar de sua ênfase na imanência – da esfera religiosa tradicional da noção de Bildung. Assim, em seus primeiros escritos, Humboldt conjecturaria a respeito da habilidade humana em “relacionar representações sensíveis a ideias extra-sensitivas”. Ele buscava por uma expressão apropriada para classificar um sentimento estético ou imaginação (Einbildungskraft). Essa ênfase em um ideal estético seria, portanto, nas palavras de Dumont uma “conexão lógica” – considerando a proximidade do intelectual com Goethe e Schiller em tal período – com a transferência dos valores religiosos para a noção de Bildung em Humboldt (Dumont 1994DUMONT, Louis. (1994), German ideology: From France to Germany and back. Chicago and London: University of Chicago Press.:98).
  • 6
    Isso se confirma a partir de uma análise das correspondências do intelectual, em especial com sua amiga e confidente Charlotte Diede (1769-1846), em que o tema da religião seria bastante frequente, sobretudo a partir da década de 1820. Em uma carta de 12 de setembro de 1824, por exemplo, Humboldt deixaria clara a importância que os textos bíblicos haviam adquirido para ele: “entre as mais poderosas, puras e lindas vozes que nos chegaram da cinzenta antiguidade, estão os livros do Velho Testamento, sequer somos capazes de prestar o devido tributo à nossa língua pelo fato de mesmo com tantas traduções ter sido capaz de ter perdido tão pouco em termos de sua verdade e força. Eu tenho constantemente pensado no fato de que não é possível trazer à tona algo tão grandioso, rico e diversificado quanto os textos contidos no Velho e Antigo testamento bíblicos” (Humboldt 1921______. (1921), Briefe an eine Freundin. A. Huhnhäuser (Ed). Berlin: Wegweiser-Verlag. :144).
  • 7
    Em um volume que reúne as anotações de Humboldt, desde a sua juventude até seus últimos anos de vida, as referências a Leibniz são bastante frequentes (um total de 22 citações diretas apenas nesse volume). Referência interessante é feita por Humboldt já em 1785 ao conceito leibniziano de perceptionem cum apperceptione conjunctam a respeito do papel da sensibilidade humana no processo de produção de conceitos. Esse tipo de reflexão teórica reverberaria por muitos anos da maneira humboltiana de compreender as noções de história e individualidade (Humboldt 1908______. (1908), Wilhelm von Humboldts Gesammelte Schriften. Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaften. Albert Leitzmann (Hrsg.) Band VII, Zweite Hälfte. Berlin: B. Behrs Verlag. :369).
  • 8
    Monismo é a visão filosófica de que uma variedade de coisas existentes pode ser explicada em termos de uma realidade ou substância únicas. Uma definição mais restrita de monismo assevera a presença de uma substância ou essência unificadoras. Na moderna filosofia ocidental, em contraste com o desenvolvimento do famoso dualismo cartesiano – a separação entre corpo e espírito –, Espinoza desenvolveu em sua ética uma visão monista na qual a união de todas as substâncias se daria em Deus. Cf. Bennett (1996BENNETT, Jonathan. (1996), “Spinoza’s metaphysics”. In: D. Garrett (Ed.). The Cambridge Companion to Spinoza. New York: Cambridge University Press.).
  • 9
    As Revoluções de 1830 foram uma série de insubordinações que tiveram lugar em países como a Bélgica, os Países Baixos, a França, o território polonês e a Suíça. Na França, onde os levantes tiveram os maiores impactos políticos, a revolução levou à derrubada do rei Bourbon, Charles X, e a tomada do poder por seu primo, Louis-Philippe, Duque de Orléans. A chamada “monarquia de Julho” francesa, marcada por suas posições liberal-constitucionais, duraria até os levantes ocorridos em 1848.
  • 10
    Philipp Melanchthon foi um reformador que colaborou com Martinho Lutero na propagação de suas ideias, bem como em um processo de sistematização de sua teologia e na elaboração de sistemas educacionais baseados nos preceitos reformistas. Melanchthon tornou a distinção entre a lei e o evangelho central para o insight evangélico luterano. Por “lei”, ele compreendia os mandamentos divinos tanto no Velho quanto no Novo Testamento, e por “evangelho”, a livre dádiva da graça através da crença em Jesus Cristo.
  • 11
    Isso permite que concordemos com a interpretação de Elías Palti quando este aponta que, apesar de suas opções teóricas terem o aproximado de um relativismo epistemológico, a fé rankeana na providência divina evitava qualquer tipo de relativismo ontológico em sua posição (Palti 2005PALTI, Elías J. (2005), “Historicism as an Idea and as a Language”. History and Theory , vol. 44, nº 3: 431-440.:435).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2016
  • Aceito
    02 Ago 2018
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