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Teologia feminista e a crítica da razão religiosa patriarcal: entrevista com Ivone Gebara

PONTO DE VISTA

Teologia feminista e a crítica da razão religiosa patriarcal: entrevista com Ivone Gebara

Maria José Rosado-Nunes1 1 Com a colaboração de Adriana Tanese, mestra em Ciências da Religião pela PUC-SP.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

As religiões, assim como os estudos que tentam compreendê-las e explicá-las, sofreram, nas últimas décadas, de maneira significativa, os impactos do feminismo, seja como movimento, seja como pensamento. As reivindicações das fiéis variam desde o acesso ao sacerdócio e ao pastorado, no campo cristão, até o uso do véu, ou sua recusa, entre as muçulmanas. O desenvolvimento de um discurso teológico elaborado por mulheres e distinto, em muitos aspectos, daqueles que escrevem os homens é marcado pela forte influência das idéias feministas. Revisões das interpretações existentes dos textos sagrados e a proposição de novas interpretações são uma constante entre as teólogas feministas. As doutrinas e a organização institucional têm sido alvo de sua crítica. Também os cultos realizados por grupos de mulheres têm se constituído como espaços de contestação e de criação imaginativa de novas formas de relacionar-se com suas crenças. Pode-se dizer que nenhuma área das religiões instituídas deixou de passar pelo crivo crítico do olhar feminista. Da mesma forma que Londa Schienbinger2 2 Schienbinger, 2001. se interroga pelas mudanças operadas na ciência por ação de cientistas feministas, no campo das religiões podemos perguntar-nos pelas significativas mudanças resultantes da prática e do pensamento das mulheres.

Nas páginas que se seguem, vamos ouvir Ivone Gebara, religiosa da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora Cônegas de Santo Agostinho, doutora em Filosofia e Ciências Religiosas. Ela é uma das expoentes da Teologia Feminista (TF) brasileira. Filha de pais imigrantes libaneses e sírios, com 22 anos entrou para o convento, nos anos da efervescência daquela que foi chamada a "opção pelos pobres" da Igreja Católica. Morando em Recife, participou intensamente, ao lado de Dom Hélder Câmara, da organização das Comunidades Eclesiais de Base e da elaboração da Teologia da Libertação (TL).

Sua vida junto às mulheres de Camaragibe e a aproximação do movimento feminista levaram-na a diferenciar sua reflexão, pela incorporação do olhar de gênero. A solidariedade para com os pobres, e sobretudo para com as mulheres cujas lutas diárias pela sobrevivência ela observa diretamente no bairro onde mora, uniu-se à fineza de uma produção intelectual consistente e deu forma ao seu pensamento teológico feminista. Sua biografia inclui a docência em Institutos e Faculdades de Teologia, no Brasil e no exterior, e várias obras publicadas, em forma de artigos e de livros. Também parte de sua história são os dois anos de silêncio forçado a que o Vaticano a condenou, por considerar inadequado seu pensamento sobre uma questão polêmica na Igreja Católica: a validade do recurso ao aborto. Fruto desse tempo passado fora do Brasil, na Bélgica, onde concluiu um doutorado em Sciences Religieuses, foi um de seus livros, em que aborda a questão do mal: Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal.3 3 Gebara, 2000. Uma de suas últimas obras, de caráter autobiográfico, intitula-se As águas do meu poço.4 4 Gebara, 2005.

Nesta entrevista, Ivone aborda questões candentes da abordagem teológica feminista. Discute as semelhanças e diferenças entre a teologia feminista contemporânea, européia e norte-americana, e a brasileira. Fala de como se enriquecem e, ao mesmo tempo, se distanciam. A teologia feminista brasileira caracteriza-se, por um lado, por ser teologia de acadêmicas que geralmente não pertencem a instituições religiosas e, por outro, pelo fato de as teólogas estarem freqüentemente engajadas em movimentos sociais, articuladas com o movimento de mulheres. A maior contribuição para a teologia feminista brasileira vem certamente do movimento feminista e, avalia Ivone, quando essa teologia acompanha as questões quotidianas das mulheres, produz uma ruptura que a afasta do pensamento institucional e a separa também da Teologia da Libertação, que é ainda patriarcal e está repleta de imagens masculinas de Deus.

Sua reflexão é, assim, enriquecida pela contribuição da vivência concreta que abre o olhar para o fato de a necessidade da coerência ética não pertencer somente aos setores religiosos. Realidade plural, as teologias feministas expressam e perseguem o que ela chama de "intencio-nalidades específicas". Surgem as teologias feministas negra, lésbica, indígena, queer, womanist e outras.

Sua interpretação da condição das mulheres dentro da Igreja é particularmente expressiva, pois Ivone é uma das poucas religiosas que ousaram desafiar publicamente preceitos católicos considerados obsoletos em determinadas circunstâncias sociais. Mesmo assim, ela permanece católica. Quisemos então saber como Ivone concilia essa contradição existencial, presente, silenciosamente, no íntimo de muitas mulheres. Ivone fala dessa difícil conciliação entre ser católica e feminista. E apresenta, criticamente, sua compreensão das razões que tornam a presença feminina tão numerosa na Igreja.

Como outras teólogas feministas, Ivone desenvolve uma reflexão crítica sobre a apropriação religiosa dos corpos e da sexualidade das mulheres. A visão cristã negativa da corporeidade, devida à compreensão dualista tradicional que prioriza 'o espírito', acaba por atribuir às mulheres, responsáveis pela reprodução da espécie, um lugar não apenas secundário, mas de periculosidade. Daí, a necessidade de controlá-las. Essa compreensão reduz as mulheres à especificidade de sua condição biológica, em que a maternidade, física ou espiritual, torna-se um destino obrigatório. A rejeição do recurso à biologia para explicar o ordenamento social – e religioso – dos sexos leva a uma crítica radical da organização das instituições religiosas, apontadas como androcêntricas, hierárquicas e excludentes das mulheres.

Ivone Gebara dedicou alguns dos seus trabalhos teóricos à questão do corpo e da sexualidade. Aqui, ela fala sobre o lugar desses temas na Teologia Feminista brasileira e como ela avalia essa inclusão. Frisa que hoje é de particular importância pensar teologicamente a respeito da manipulação religiosa do corpo feminino, o que envolve evidentemente outros âmbitos, como a medicina, o direito e a política.

As relações entre a Teologia da Libertação e as Teologias Feministas constituem um capítulo à parte na história da elaboração teológica na América Latina e, em especial, no Brasil. Apesar da atualidade da questão ética de fundo que marca a Teologia da Libertação, esta se situa num momento específico da história do nosso continente. É bom frisar que o clamor da TdL por justiça social não incluía justiça e igualdade de gênero, que ainda não estavam claramente em pauta naquele contexto social e político. Considera Ivone que a TL permaneceu encerrada num ideário abstrato, não enfrentando a realidade colocada pela concretude da corporeidade e do sexo. Nenhum avanço significativo no campo da Teologia moral pode ser apontado na produção da TL. Para Ivone, não é possível fazer TF abstraindo-se dos corpos e da sexualidade das mulheres. É aí que começa a opressão das mulheres e que a possibilidade de sua autonomia se efetiva. Na sexualidade, frisa a teóloga, confluem desde os problemas da injusta divisão do trabalho até a dominação masculina, que continua pretendendo privar as mulheres da liberdade de decisão sobre seus corpos. Exemplo disso é a ambigüidade em torno do debate sobre a descriminalização do aborto, expressão mais uma vez da tentativa de manter a dominação patriarcal sobre as mulheres, inclusive por parte das igrejas.

A TF que emerge da fala de Ivone Gebara é radical e crítica. A perspectiva analítica que toma as relações de gênero como vetor da análise permite compreender como essas relações cortam transversalmente todas as classes e questões sociais. Permite perceber que igualdade entre mulheres e homens está longe de ser uma realidade tanto na sociedade como na Igreja Católica. Mas permite também propor o estabelecimento de novas formas dessas relações, como condição imprescindível para que a justiça se realize.

Maria José Rosado-Nunes: Quais são a seu ver os temas emergentes e mais relevantes que estão no centro da reflexão da Teologia Feminista contemporânea, ou das teologias feministas, e se você está de acordo com este plural?

Ivone Gebara: Penso que no centro da reflexão das teologias feministas está uma intencionalidade de base que se expressa na afirmação da dignidade feminina através de múltiplas formas. Essas teologias são marcadas pelos contextos diferentes em que nascem e por algumas problemáticas diferentes, dependendo do objetivo imediato perseguido.

Costumo chamar esses objetivos específicos ou imediatos de intencionalidades específicas, visto que partem da preocupação de grupos específicos como as mulheres negras, indígenas, lésbicas, trabalhadoras do campo, empregadas domésticas, etc. É a partir daí que se pode falar das diferentes teologias feministas. Nem sempre essas teologias são escritas, mas elas se expressam na vida cotidiana e nos múltiplos encontros de mulheres. Somos nós as assessoras que muitas vezes escrevemos sobre elas.

É bom lembrar que algumas teólogas trabalham o resgate das mulheres na Bíblia, outras, as imagens de Deus, a teologia antiga e a contemporânea, porém, sempre direcionada à sua intencionalidade específica. Além disso, podemos encontrar teologias feministas que fazem um trabalho de des-construção da teologia patriarcal a partir de diferentes temáticas, seguindo de certa forma as divisões clássicas dos estudos teológicos.

No atual momento penso que é urgente pensarmos nas diferentes formas de manipulação religiosa do corpo feminino. Essa manipulação não se faz necessariamente a partir dos representantes das hierarquias religiosas, mas também através de políticos, através da medicina e do direito.

MJ: Essas questões estão presentes também na Teologia Feminista brasileira? Ou emergem outras? A TF brasileira também pode ser dita no plural?

IG: De certa forma essas questões também estão presentes, sobretudo nas teólogas que ensinam em faculdades e instituições teológicas. A teologia norte-americana e a européia foram fonte de inspiração e de reflexão de conteúdos novos para todas nós. Entretanto, há algo de específico na Teologia Feminista do Brasil e de alguns países latino-americanos. Esse específico situa-se em uma dupla perspectiva:

a) a Teologia Feminista no Brasil, na grande maioria das vezes, se desenvolve à margem das instituições religiosas. Mesmo se as teólogas são marcadas por uma pertença institucional, sua teologia não é necessariamente dirigida a esta ou aquela igreja;

b) grande parte das teólogas feministas brasileiras alia seu trabalho acadêmico e produção intelectual a uma militância nos movimentos sociais. Essa militância ocorre, sobretudo, na forma de assessoria aos movimentos populares ou na forma de cursos regulares dados, por exemplo, ao MST, ao movimento de trabalhadoras rurais, movimento de domésticas, grupos de mulheres da periferia, grupos de consciência negra, quadros sindicais femininos, etc. Essa inserção social e política da teologia feminista nos movimentos de base vem permitindo uma abordagem interdisciplinar a partir de vivências concretas, assim como um desenvolvimento exterior às instituições oficiais de reprodução das igrejas. Começamos a perceber que a busca de espiritualidade e de coerência ética não se situa apenas no interior das instituições da religião. Nesse sentido, também a Teologia Feminista no Brasil se expressa de forma plural, e é este pluralismo que faz sua riqueza e originalidade.

MJ: As teorias feministas tiveram um desenvolvimento intenso nos últimos anos. No caso do Brasil, também o movimento feminista intensificou sua atuação, ganhando um lugar destacado entre os movimentos sociais. Como essas teorias e o movimento de mulheres desafiam e/ou articulam-se com a/as Teologia/s Feminista/s?

IG: Creio que a Teologia Feminista no Brasil começa a se desenvolver de forma mais original a partir do momento em que se articula às questões levantadas pelo movimento feminista. Nosso público não se restringe aos freqüentadores assíduos das igrejas e nem aos seminaristas e religiosos, mas abre-se para os que se debatem com as grandes questões levantadas na sociedade atual e que têm um referencial religioso cristão ou outro. A meu ver, essas questões têm a ver, em grande parte, com a violência contra as mulheres nas suas múltiplas facetas; tem a ver com o controle da sexualidade feminina, com as questões relativas à reprodução, com a questão da laicidade do Estado e outras questões afins.

Quando as teologias feministas se articulam aos movimentos feministas e fazem de suas questões as questões cotidianas vividas pelas mulheres, se dá uma espécie de ruptura em relação às questões tradicionais da teologia e à sua forma de abordagem. Mais uma vez, essa maneira de fazer teologia não é institucional, no sentido de não ser assumida oficialmente pelas igrejas. Desenvolve-se à margem e por isso muitas vezes é difícil manter sua reprodução e crescimento, visto o caráter asistemático em que se apresenta. Nesse sentido, talvez precisaríamos criar formas de atuação mais organizadas para garantir uma vivência e uma teoria teológica que acompanhe o avanço dos movimentos feministas.

MJ: Quais foram ou ainda são os pontos de maiores contatos e enriquecimento entre a Teologia da Libertação e a Teologia Feminista? Como a Teologia Feminista articula as reivindicações feministas com aquelas de justiça social, uma vez que as preocupações com a questão social estão na origem da TF?

IG: Os pontos de maior contato estão na perspectiva ética encontrada nos textos do Evangelho. A Teologia da Libertação se estruturou em torno da opção pelos pobres, dos oprimidos, como critério para a reconstrução do mundo, como base para o processo de salvação. Essa matriz ética presente nos profetas e profetizas e na tradição de Jesus é retomada igualmente pela Teologia Feminista. Entretanto, a maior parte das teologias feministas separa-se de certa forma da teologia masculina da libertação quando se trata da manutenção da dogmática patriarcal, das imagens de Deus masculinas e de um conceito de salvação estreito que inclui apenas a pessoa individual de Jesus de Nazaré.

MJ: Você poderia fazer um balanço da Teologia da Libertação? Como você a avalia hoje?

IG: A Teologia da Libertação, embora aborde problemas éticos e esse particular mantém sua atualidade no presente, não deixa de ser a expressão de um momento histórico particular vivido na América Latina. Trata-se das décadas 1970 e 1980, período de luta contra as ditaduras militares e de afirmação de vários movimentos políticos e sociais com o apoio das igrejas cristãs. O cenário mundial e as referências ao socialismo histórico da época davam a base teórica para afirmar a possibilidade de estabelecer relações sociais mais justas. Davam igualmente um referencial histórico socialista a partir do qual 'se imaginava' que o povo que vivia no bloco socialista experimentava a justiça social em seu cotidiano.

Entretanto, com a mudança do contexto internacional a partir de 1990, isto é, do final da guerra fria, do final da União Soviética, da queda do muro de Berlim e do estabelecimento da cultura e da economia globalizada, as referências sociais e também as teologias mudaram. Assim, nesse novo contexto, as teologias da libertação perdem seu referencial histórico ou, em outros termos, perdem uma certa referência histórica de sociedades justas e igualitárias. Havia, como acenei anteriormente, uma espécie de 'crença' de que nos países soviéticos havia mais justiça e que bastava nos aproximarmos desse modelo para que conseguíssemos os mesmos resultados. É bom termos presente que o discurso sobre a justiça social não incluía a justiça e a igualdade de gênero.

Hoje, penso que as teologias da libertação no Brasil vivem na memória dos que a iniciaram e de outras pessoas que delas viveram. Entretanto, da maneira como foram formuladas e vividas nos anos 1980, não penso que têm força atual e futuro promissor. A Teologia Feminista, sem dúvida, inspirou-se na Teologia da Libertação em muitos aspectos, como afirmei anteriormente, porém, dados os diferentes temas que trabalha e as alianças com o movimento feminista, ela tem se afastado da ortodoxia da TL.

MJ: Qual é o lugar do corpo e da sexualidade na Teologia Feminista no Brasil?

IG: A partir do corpo e da sexualidade feminina é que se expressa a opressão e a dominação de gênero ou do gênero masculino. Não se pode fazer Teologia Feminista sem falar dos corpos femininos e especificamente da sexualidade feminina. Esse é o lugar a partir do qual começa a opressão e também o lugar a partir do qual se afirma a autonomia feminina. É a partir daí que se marca a posse masculina sobre as mulheres. Por isso, ultimamente tenho insistido muito no fato de que uma abordagem feminista a partir das relações de gênero deve explicitar a questão da dominação a partir da sexualidade. Essa dominação se expressa através de uma divisão injusta do trabalho social e doméstico, através de uma legislação que acaba mantendo não apenas os privilégios de classe e de etnia, mas os privilégios de gênero. Manifesta-se, igualmente, nas questões de descriminalização e legalização do aborto, como se os homens, ou a sociedade que representam, tivessem a última palavra sobre nossas decisões e escolhas. As teologias ou, mais especificamente, as igrejas seguem a mesma lógica de dominação. Afirmando-se a partir dos princípios que respeitam a vida, não percebem a contradição histórica de seus argumentos e a reprodução da dominação patriarcal em relação às mulheres.

MJ: Qual é o lugar que você daria a essas duas questões?

IG: Penso que esses dois lugares devem ter um tratamento privilegiado no atual contexto teológico. E isso porque é a partir desse lugar que se dá a desigualdade econômica, política, social, cultural e religiosa em relação às mulheres. É a partir da genitalidade feminina que se constroem as diferentes simbologias e significados sociais em relação ao corpo feminino. É a partir da genitalidade que se expressam os processos de socialização desde o mundo familiar até as crenças religiosas. Portanto, é a partir dessa realidade biológica culturalizada que é nosso ser sexuado que a cultura e as diferentes instituições sociais não apenas consideram as mulheres como seres de segunda categoria, mas organizam a política, a economia, as leis sociais, a religião de forma a sempre priorizar as iniciativas masculinas e os valores considerados masculinos.

Não se trata aqui de destacar a sexualidade ou a genitalidade do conjunto da pessoa humana. Trata-se, sim, de denunciar a forma pela qual o mundo patriarcal nos trata. Diminuem-se nossos direitos, embora se continue a falar da igualdade de direitos humanos ou da igualdade entre pessoas humanas. E a partir daí se afirma a nossa diferença para, a partir dela, afirmar-se a nossa inferioridade nas várias situações e instituições. Por isso, a afirmação da diferença, embora seja um passo importante, não pode ser feita em detrimento da luta pela justiça e igualdade e na linha do estabelecimento de outras formas de relação entre mulheres e homens.

MJ: Como teóloga, o que você acha da multiplicidade de religiões e movimentos religiosos que caracterizam a atualidade?

IG: A atual multiplicidade de religiões e movimentos religiosos, longe de ser a expressão de uma diversidade positiva, representa, a meu ver, uma certa mercantilização do religioso a serviço do retrocesso político mundial, do retrocesso da democracia e do retrocesso do pensamento. Trata-se de uma enfermidade global na qual estamos, e o religioso parece fornecer aparentes saídas imediatas. Há uma volta aos demônios, às possessões, às magias e aos anjos do bem, como se a racionalidade conquistada no passado não pudesse mais explicar as tragédias pessoais e sociais que assolam nossa terra. Temos a impressão de que cresce no meio das pessoas o sentimento de abandono, de falta de sentido, cresce a desvalorização dos que não respondem aos padrões elitistas estabelecidos. Então, a projeção em forças supranaturais, em entidades metafísicas se impõe como saída. Por isso se pode dizer que o recurso às forças ocultas acompanha a lógica de dominação do Império norte americano e de seus satélites.

Tenho consciência da complexidade dessa questão. A pista que abordei é uma entre as muitas que poderiam servir para analisar o fenômeno religioso em nosso tempo.

MJ: Ivone, qual balanço você faria da condição das mulheres na Igreja Católica hoje? Você vê possibilidades reais de mudanças favoráveis às mulheres na Igreja?

IG: Do jeito que está a instituição religiosa católica romana e do jeito como se anunciam as políticas religiosas no futuro próximo, as mulheres que buscam afirmar direitos, as que lutam por uma cidadania em bases igualitárias, as que desejam uma outra ordem social e política, parecem não ter chances na Igreja institucional. Cada vez mais ela está se tornando para elas uma referência mínima. Representa uma pertença que existiu no passado, representa influências recebidas, mas não é mais o lugar de referência de sentido e de compromisso com a transformação das relações injustas. A Igreja Católica, como outras igrejas cristãs, não são mais para muitas mulheres os lugares de expressão e de alimento de seu compromisso cristão. Nossa pertença a essas instituições é cada vez mais complexa e problemática. Muitas vezes mantém-se por um fio tênue, visto que, quer queiramos, quer não, o cristianismo se tornou um fenômeno cultural mundial e tem um papel político que não podemos deixar de levar em conta.

MJ: Como você explica a forte presença feminina nas igrejas, uma vez que as mulheres parecem ocupar um lugar tão desfavorável?

IG: A forte presença feminina é devida à fragilização crescente das mulheres pelo sistema capitalista atual, altamente desagregador. Muitas buscam no consolo imediato que uma celebração religiosa pode dar alguma força para enfrentar os problemas do dia-a-dia. Entretanto, esse consolo imediato, na maioria das vezes, reduz as mulheres a seu papel doméstico e reforça a reprodução de um modelo de dominação masculina a dominação dos pastores ou padres. Nessa perspectiva, é bom lembrarmos de novo que, sendo as teologias feministas não aceitas institucionalmente, não temos um lugar alternativo para oferecer às mulheres serviços de que elas necessitam. Além disso, como não temos reconhecimento público institucional, para a maioria das mulheres necessitadas de consolo religioso é na "casa de Deus", no prédio, na igreja que se vai buscar o que se precisa.

As teologias feministas nunca entraram na elaboração da catequese, nas liturgias, na simbologia cristã oficial. Por isso têm um papel secundário na vida da maioria das mulheres, sobretudo quando as mulheres estão necessitadas de amparo e ajuda.

MJ: O que as mulheres pobres com as quais você convive e trabalha sabem ou pensam de Teologia Feminista?

IG: Creio que as mulheres pobres que vivem nos bairros periféricos sabem muito pouco de teologia do ponto de vista teórico. Entretanto, algumas são capazes de discernir o quanto as igrejas têm dado pouco lugar às mulheres, sobretudo em relação a seus problemas específicos. Outras mulheres vivem tomadas pela luta pela sobrevivência e poucos espaços têm para refletir sobre as causas de suas diferentes opressões. Continuam clamando por Deus e esperando a sua ajuda sem se preocupar com outras questões. Muitas vezes, em diferentes assessorias fico impressionada com a consciência política de mulheres pobres tanto do meio rural quanto do meio urbano que, através da organização a que pertencem, chegaram a um nível de análise da realidade da vida humana absolutamente impressionante. A maioria delas está mais inclinada a transformar as relações sociais e a investir pouco para mudar as igrejas. Muitas acham que não vale a pena. Acredito, entretanto, que haja uma diversidade muito grande de comportamentos nesse particular e que desconheço a maioria deles.

MJ: Enfim, sua trajetória de vida intensa e nem sempre fácil nos traz uma pergunta: como você concilia sua vocação pessoal, sua experiência religiosa e sua fé com as estruturas e os homens de Igreja que nem sempre a compreenderam e reconheceram?

IG: Confesso que no momento não busco nem compreensão e nem reconhecimento dos homens de Igreja. Não penso que isso seja tão importante. Da mesma forma, minha pertença à instituição católica romana e a uma congregação religiosa não são mais coisas vitais em minha vida. Essa pertença tem seu relativo valor como a pertença a outros grupos. É parte de minha história e eu não seria eu sem essa história.

Cada uma de nós está em algum lugar ou em muitos lugares atuando conforme as suas convicções. Cada lugar é marcado pela ambigüidade, por contradições e por diferentes limites. No momento não encontro razões para deixar esses lugares, visto que em outros poderia estar sofrendo das mesmas ou de outras contradições e pressões. O importante é que não me impeçam de pensar e de tentar afirmar nossa vocação à liberdade através de coisas pequenas e grandes que constituem o nosso dia-a-dia.

Este é o meu presente; o amanhã será do amanhã. Para hoje me bastam a luz do sol que brilha intensa nestas terras nordestinas e a memória de tantas pessoas queridas que povoam a minha existência.

Ivone Gebara

Camaragibe, 18 de fevereiro de 2005.

  • GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
  • ______. As águas do meu poço São Paulo: Brasiliense, 2005.
  • SCHIENBINGER,, Londa. O feminismo mudou a ciência? Bauru, SP: EDUSC, 2001.
  • 1
    Com a colaboração de Adriana Tanese, mestra em Ciências da Religião pela PUC-SP.
  • 2
    Schienbinger, 2001.
  • 3
    Gebara, 2000.
  • 4
    Gebara, 2005.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Ago 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 2006
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