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Lei de Snell generalizada

Generalized Snell's law

Resumos

Neste artigo deduzimos a equação característica da trajetória seguida por um raio de luz monocromático que se propaga num meio com índice de refração variável. Embora essa dedução seja inspirada nas técnicas do cálculo variacional, ela é apresentada de modo elementar e auto-suficiente, utilizando somente conceitos básicos do cálculo diferencial e integral. Além da dedução, também analisamos alguns aspectos gerais da equação e discutimos alguns casos particulares. Finalmente, mostramos que a equação implica na Lei de Snell para a refração da luz como um caso limite.

lei de Snell; princípio de Fermat


In this article we deduce the characteristic equation for trajectories performed by monocromatic light rays which propagate through medium with a variable refractive index. Although our deduction was inspired in techniques from variational calculus, it is presented in an elementar and self-contained way and it uses only basic concepts of differential and integral calculus. Besides deduction, we analyse certain general aspects of the equation and discuss some special cases also. In particular, we show that this equation leads to the Snell's Law for refraction of light as a limiting case.

Snell's law; Fermat's principle


ARTIGOS GERAIS

Lei de Snell generalizada

Generalized Snell's law

Lúcio Fassarella1 1 E-mail: dmtlucio@furg.br.

Fundação Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, RS, Brazil

RESUMO

Neste artigo deduzimos a equação característica da trajetória seguida por um raio de luz monocromático que se propaga num meio com índice de refração variável. Embora essa dedução seja inspirada nas técnicas do cálculo variacional, ela é apresentada de modo elementar e auto-suficiente, utilizando somente conceitos básicos do cálculo diferencial e integral. Além da dedução, também analisamos alguns aspectos gerais da equação e discutimos alguns casos particulares. Finalmente, mostramos que a equação implica na Lei de Snell para a refração da luz como um caso limite.

Palavras-chave: lei de Snell, princípio de Fermat.

ABSTRACT

In this article we deduce the characteristic equation for trajectories performed by monocromatic light rays which propagate through medium with a variable refractive index. Although our deduction was inspired in techniques from variational calculus, it is presented in an elementar and self-contained way and it uses only basic concepts of differential and integral calculus. Besides deduction, we analyse certain general aspects of the equation and discuss some special cases also. In particular, we show that this equation leads to the Snell's Law for refraction of light as a limiting case.

Keywords: Snell's law, Fermat's principle.

1. Introdução

Os raios de luz que atravessam a superfície de separação entre meios transparentes com índices de refração diferentes são parcialmente refletidos e parcialmente transmitidos através da superfície segundo a lei da reflexão e a lei de Snell, às quais podemos dar os seguintes enunciados:

Lei da reflexão: para um raio de luz que se reflete numa superfície suave, o ângulo de incidência é igual ao ângulo de reflexão, medidos em relação à normal.

Lei de Snell: para um raio de luz monocromático que atravesse a superfície de separação de dois meios transparentes com índices de refração h1 e h2, o ângulo do raio incidente q1 e o ângulo do raio transmitido q2 (ângulo de refração), medidos com respeito à normal, satisfazem a relação

h1 sin (q1) = h2 sin (q2).

A lei de Snell2 2 A superfície de separacão dos meios deve possuir certa regularidade para que em cada ponto ela possua uma direcão normal bem definida; matematicamente, essa regularidade é definida pelo conceito de diferenciabilidade. Essa é uma das circunstâncias restritivas para aplicacão da lei de Snell, mas a generalizacão discutida aqui não trata desse aspecto. caracteriza o comportamento dos raios luminosos quando eles atravessam a superfície que separa dois meios transparentes em termos da quantidade chamada índice de refração; para uma luz monocromática, o índice de refração h de um meio é definido pelo quociente entre a velocidade c da luz no vácuo e a velocidade v dessa luz no meio

h = .

Experimentalmente, verificamos que o índice de refração depende tanto da substância que compõe o meio de propagação quanto da cor da luz (i.e., da sua freqüência); naturalmente, as características físicas das substâncias e da luz determinam o modo como elas interagem; essa dependência pode ser analisada, mas não é necessária para a descrição das trajetórias dos raios de luz, desde que possamos medir os índices de refração experimentalmente.

A seguir, deduziremos uma equação diferencial que caracteriza as trajetórias dos raios de luz monocromáticos que atravessam meios cujos índices de refração sejam variáveis; essa equação tem a lei de Snell como um caso limite e por isso pode ser considerada sua generalização. Para essa dedução partimos do princípio de Fermat, que pode ser enunciado assim:3 3 Na verdade, o enunciado mais geral para o princípio de Fermat substitui a condicão de tempo mínimo pela condicão de tempo extremo - ou seja, minimo, máximo ou sela; para as circunstâncias que vamos considerar, basta o enunciado mais restrito.

Princípio de Fermat: o caminho percorrido pela luz entre dois pontos é aquele que minimiza o tempo de percurso dentre todos os possíveis caminhos que ligam esse pontos.

Na dedução da lei de Snell generalizada4 4 Para deducão da lei de Snell ordinária no âmbito da teoria eletromagnética de Maxwell, veja a Ref. [1]. apresentada aqui, pressupomos somente os conceitos básicos do cálculo diferencial e integral, embora a técnica básica seja típica do cálculo variacional e envolva algumas sutilezas analíticas indicadas no texto.5 5 Nossa deducão é essencialmente equivalente à derivacão das equacões de Euler-Lagrange a partir do princípio de Hamilton como apresentada na Ref. [2], p. 43-44. - a diferenca está na situacão física. Essa dedução elementar pode servir como uma introdução ao cálculo variacional ou como uma ilustração concreta de como suas técnicas podem ser fundamentadas matematicamente. Também para fins didáticos, deduzimos de modo diferente a mesma equação que generaliza a lei de Snell sem qualquer referência às técnicas do cálculo variacional. Achamos instrutivo que as duas deduções sejam comparadas.

Naturalmente, pode-se ter a impressão de que a dedução da lei de Snell a partir do princípio de Fermat (ou de qualquer outro princípio) constitua-se num mero preciosismo matemático na medida em que parece apenas substituir uma regra por outra. Noutras palavras, pode ser interessante mas talvez inútil. Entretanto, isso não é assim num sentido importante: enquanto a lei de Snell é uma afirmação específica sobre o comportamento da luz sob circunstâncias particulares, o princípio de Fermat é uma afirmação mais genérica que pode ser usada para estudarmos o comportamento da luz em circunstâncias menos restritivas - por exemplo, dele podemos deduzir tanto a lei de Snell quanto a lei da Reflexão; mas além disso, e talvez mais importante também, o princípio de Fermat pode ser entendido como o caso especial de um princípio físico geral do qual podemos descrever o comportamento da luz bem como outros fenômenos físicos; esse enquadramento de uma situação particular em concepções mais amplas é um dos aspectos essenciais do que podemos entender como sendo o desenvolvimento do conhecimento científico. Em síntese, podemos dizer que a dedução da lei de Snell pelo princípio de Fermat significa um avanço do conhecimento científico porque enquadra o fenômeno específico da refração como caso particular de uma lei mais geral.

2. Lei de Snell generalizada

2.1. Dedução da lei de Snell generalizada

Nesta seção vamos deduzir a partir do princípio de Fermat a lei que determina as trajetórias percorridas por raios de luz monocromáticos em meios com índices de refração espacialmente variáveis; essa lei assume a forma de uma equação diferencial para as parametrizações dessas trajetórias.

A principal dificuldade que temos nesta dedução consiste em exprimir matematicamente o princípio de Fermat de um modo que possamos computar e comparar o tempo de percurso que gastariam diferentes raios de luz ligando pares de pontos do meio; resolveremos esse problema usando o conceito de variação de curvas e admitindo que o índice de refração seja uma função suave - o que nos permite restringir nossas considerações a curvas suaves ao invés de termos que considerar a classe de todas as curvas contínuas.6 6 Suave quer dizer infinitamente diferenciável. Desde que o índice de refracão seja suave, a restricão técnica de considerarmos somente curvas suaves se justifica porque (i) qualquer curva contínua pode ser arbitrariamente aproximada (num certo sentido) por curvas suaves e (ii) é possível provar que isso nos garante que a curva continua que descreve a trajetória dos raios de luz deve ser suave.

2.1.1. Variação de curvas e uma reformulação matemática do princí pio de Fermat

Essencialmente, uma variação de uma curva dada é uma outra curva que possui os mesmos pontos inicial e final. Mais precisamente, considere uma curva parametrizada7 7 Observamos que o parâmetro u da curva g não denota o tempo, necessariamente. com pontos inicial e final fixados:

Para um um número real e Î e uma curva w:[ a,b] ® 3 definida no mesmo intervalo que g e que se anula nos extremos, w(a) = 0 e w(b) = 0, a variação de g definida pelo par ( w,e) é a curva dada por

Imediatamente dessa definição, vemos que os pontos inicial e final da variação coincidem com os pontos inicial e final da curva original

g(w, e) (a) = p0; g(w, e) (b) = p1.

O primeiro ponto a salientar é que toda curva s: [c,d] ® 3 ligando os pontos p0 e p1 possui uma reparametrização8 8 Veja na secão 2.2.1 a definicão de reparametrizacão. que é idêntica a uma variação de g; de fato, s possui uma reparametrização que está definida no mesmo intervalo que g

Para e ¹ 0, se definimos a curva ws por

temos que

Considerando os fatos acima, o princípio de Fermat pode ser expresso da seguinte maneira: a curva g descreve a trajetória seguida por um raio de luz que liga dois pontos p0 e p1 se e somente se o tempo gasto pelo raio de luz para percorrer essa trajetória é menor ou igual ao tempo que seria gasto pelo raio de luz para percorrer a trajetória de qualquer variação g(w, e) , qualquer que seja o par (w, e) .

Dada uma curva s:[a,b] ®3 ligando os pontos p0 e p1, denotamos por T(s) o tempo que um raio de luz leva para percorrer o caminho descrito por s; esse tempo de percurso define uma função sobre as variações de g: para cada curva w:[a,b3 que se anula nos extremos, definimos

f(g, w) : ® ; f(g, w) (e) = T (g(w, e)).

Com essa terminologia, podemos expressar o princípio de Fermat do seguinte modo: a curva g descreve a trajetória seguida por um raio de luz que liga dois pontos p0 e p1 se e somente a função f(g, w) tem um ponto de mínimo em e = 0, para toda curva w que tem o mesmo intervalo de definição que g e que se anula nos extremos desse intervalo.

Como todo ponto de mínimo de uma função diferenciável é crítico (excluindo os pontos extremos do seu intervalo de definição), se admitimos que f(g, w) seja diferenciável temos a seguinte reformulação matemática do princípio de Fermat: a curva g descreve a trajetória seguida por um raio de luz que liga dois pontos p0 e p1 somente se9 9 Lembramos que a condicão (3) é necessária mas não é suficiente para caracterizar um ponto de mínimo.

para toda curva w que tem o mesmo intervalo de definição que g e que se anula nos extremos desse intervalo.

Nossa dedução agora segue duas etapas: primeiro definimos uma fórmula explícita para a função f(g, w) e para sua derivada, depois usamos a reformulação (3) do rincípo de Fermat para deduzirmos a equação diferencial característica dos raios de luz.

2.1.2. Fórmulas para f( g, w) e sua derivada

Para uma curva suave s:[a,b] ® 3 ligando os pontos p0 e p1, deduzimos aqui uma expressão para T(s) considerando a definição do índice de refração. Nesta seção denotamos o tempo por t. Primeiramente, lembramos que a função comprimento de arco é dada por10 10 Dado um par de vetores V e W, denotamos seu produto interno por á V,W ñ e a norma de V por || V|| = ; para maiores detalhes, vide Ref. [3], secão II.4.

S (u) = ||s' (s)|| ds, u Î [a, b],

ou, equivalentemente,

Naturalmente, a velocidade (rapidez) de uma grandeza física que percorre o caminho descrito pela curva é dada por

donde

Por outro lado, a velocidade da luz no ponto s(u) satisfaz

Combinando as fórmulas (3), (4) e (5) obtemos

dt = h (s (u)) ||s' (u)|| du.

Portanto, o tempo total de percurso do raio de luz que percorre o caminho descrito por s é dado por

Agora, escrevendo a curva s como uma variação de g, s = g(w,e), temos

Admitindo11 11 No contexto da análise matemática, a diferenciabilidade de f (g, w) e a possibilidade de derivar sob o sinal de integral são fatos que podem ser rigorosamente provados nas circunstâncias em questão. que podemos derivar com respeito a e sob o sinal de integração, temos

Usando a regra da cadeia, a derivada desse integrando pode ser calculada explicitamente

Quando e = 0, temos

Para o argumento que vamos desenvolver, será útil eliminarmos w' dessa expressão. Fazemos isso usando a seguinte identidade (que segue da regra da cadeia)

ág', w'ñ = ág', w'ñ – ág', w'ñ.

Então

Também será útil modificarmos a última parcela acima, para obtermos uma derivada total. Usando a seguinte identidade (que também segue da regra da cadeia)

encontramos

Substituindo essa expressão na integral (6), obtemos

Como w(a) = w(b) = 0, temos

Finalmente, concluimos que

2.1.3. A aplicação do princí pio de Fermat

A fórmula (9) nos permite extrair do princípio de Fermat (3) a equação para a trajetória g descrita pelo raio de luz ligando os pontos p0 e p1: se g descreve a trajetória seguida pelo raio de luz, então as Eqs. (3) e (9) implicam que

para toda curva w:[a,b] ®3 que se anula nos extremos do intervalo de definição da curva g; a arbitrariedade de w implica na seguinte equação para g, à qual chamamos lei de Snell generalizada:

Essa última implicação pode ser justificada pelo argumento que segue: podemos escolher uma curva w conveniente para obtermos a Eq. (11) da Eq. (10): seja q:[a,b uma função suave tal que12 12 Por exemplo: q( u) = ( u-a) ( b-u) .

q (a) = q (b) = 0 e q (u) > 0 "u Î (a, b) :

Seja

Então, é uma curva suave definida em [a,b] que se anula nos extremos e satisfaz

Fazendo w = na Eq. (10), do fato da integral ser nula e do integrando ser não-negativo, podemos concluir que o integrando (o produto interno) deve ser nulo; pela definição de , isso implica diretamente na Eq. (11).

2.2. Análise matemática da lei de Snell generalizada

Primeiramente analisaremos os aspectos matemáticos da lei de Snell generalizada: sua invariância sob reparametrizações, o caso particular em que o índice de refração varia numa única direção e o limite no qual obtemos a lei de Snell original; depois faremos uma análise qualitativa, comparando nossas expectativas com as plotagens.

2.2.1. Invariância sob reparametrizações

Inicialmente, lembramos o conceito de reparametrização:13 13 Para maiores detalhes sobre curvas e conceitos relacionados, sugerimos o cap. II da Ref. [3].

Definição 1Dada uma curva parametrizada suave g:I ®3, a reparametrização definida pela função suave g:J ® I é a curva gg:J ® 3dada por

gg (v) := g (g (v)) , "v Î J.

Dizemos que a reparametrização é regular quando a derivada da função g nunca se anula (e g é uma função bijetiva).

Denotamos o parâmetro da curva g por u e o parâmetro da curva gg por v. Nesse caso, u = g(v) e gg(v) = g(u) . Usando a regra da cadeia, obtemos as seguintes expressões para a velocidade e aceleração da curva reparametrizada

Para simplificar a notação, denotamos a derivada em relação a v por um ponto e a derivada em relação a u por uma linha; então, as identidades acima se reduzem a

Agora, podemos verificar que a Eq. (11) é invariante sob reparametrizações regulares, i.e.: a reparametrização gg satisfaz a Eq. (11) se e somente se a curva original g também satisfaz (11). Para provar isso, primeiramente calculamos

Então

Sob a condição de que a reparametrizaço é regular (a derivada nunca se anula), essa identidade implica que gg satisfaz a Eq. (11) se e somente se g também a satisfaz.

A invariância da Eq. (11) sob reparametrizações, aliada ao fato de que sempre podemos reparametrizar uma curva pelo comprimento de arco,14 14 Lembramos que uma curva parametrizada pelo comprimento de arco possui a propriedade característica de que o módulo da sua velocidade é constante e igual à unidade; para ver detalhes sobre a reparametrizacão pelo comprimento de arco veja Ref. [3], p. 101-104. implica que essa equação é equivalente ao seguinte sistema de equações

Podemos dizer que a invariância da Eq. (11) sob reparametrizações é uma propriedade necessária para que essa equação possa caracterizar as trajetórias seguidas pelos raios de luz; a razão dessa necessidade vem do fato do parâmetro u não ter significado físico intrínseco, podendo ser arbitrariamente escolhido, o que está relacionado com o fato de ||g'( u) || não necessariamente representar a velocidade (rapidez) da luz no ponto g(u). Lembramos que essa velocidade é dada pelo valor do índice de refração nesse ponto, h(g(u)).

2.3. Caso em que o índice de refração varia numa única direção

Vamos considerar agora um meio no qual o índice de refração varia apenas numa direção. Nesse caso, a trajetória de um raio de luz deve ser plana e então escolhemos o sistema de coordenadas cartesianas com o eixo-x paralelo ao gradiente do índice de refração e o eixo-z perpendicular ao plano determinado da trajetória do raio de luz - conforme a Fig. 1, onde indicamos a direção do gradiente do índice de refração e a orientação dos eixos cartesianos.


Com isso, o índice de refração do meio exprime-se como uma função da coordenada x: h = h(x) . A curva g que descreve a trajetória seguida pelo raio de luz no meio pode ser identificada com o gráfico de uma função y = y( x). Então, omitindo a coordenada z, podemos escrever

g (x) = (x, y (x)) g' = (1, y') ; g" = (0, y"),

e

h = h(x) Ñh = (h', 0).

Para substituirmos na Eq. (11), calculamos

Então, a Eq. (10) implica que

Essa equação vetorial é equivalente ao sistema de equações diferenciais ordinárias

Substituindo (A) em (B), obtemos

h (g) y" + ||g'||2h'y' = 0.

Dividindo essa equação por h(g) e usando que ||g'|| = , obtemos a equação

A Eq. (15) pode ser resolvida explicitamente (como pode ser verificado por substituição direta)15 15 A equacão para y' é do tipo Bernoulli e pode ser resolvida recorrendo-se a uma técnica padrão; depois, integrando a solucão da equacão satisfeita pela derivada, obtemos a solucão explícita para y. :

onde a é uma constante de integração que deve ser fixada por uma condição inicial sobre a derivada y' num ponto arbitrário.

Naturalmente, a solução acima só faz sentido nos pontos onde ah( x) 2-1 > 0; quando o parâmetro a está fixado, a condição ah( x)2-1 = 0 determina o ponto da trajetória onde o raio de luz deixa de se propagar por refração; como na situação considerada o índice de refração não varia na direção do eixo-y, nesse ponto da trajetória o raio de luz passa a se propagar na direção do eixo-y - observamos isso nas plotagens das Figs. 4, 5, e 6 .





3. Da lei de Snell generalizada para a lei de Snell ordinária

Agora, considere dois meios com índices de refração constantes h1 e h2 em contato por uma superfície plana de separação. Escolhendo convenientemente um sistema de coordenadas cartesianas, podemos identificar essa superfície de separação com plano x = 0 e analisar a propagação de um raio de luz contido no plano z = 0. Nessas condições, a trajetória do raio de luz é uma curva na forma g( x) = ( x,y(x) ) e podemos supor, sem perda de generalidade, que y( 0) = 0. Nesse caso, a direção normal à superfície de separação é igual ao eixo-x e os ângulos de incidência q1 e refração q2 que a trajetória faz com essa direção são caracterizados por

onde na notação do limite os símbolos "0+" e "0-" indicam o limite tomado à esquerda e à direita do zero, respectivamente. Nessa situação, o índice de refração tem a forma de uma função descontínua do tipo Heaviside

Esse índice do tipo Heaviside pode ser aproximado por índices de refração suaves16 16 Observamos que não é imediato verificar que h k é uma funcão suave, mas isso pode ser rigorosamente provado; vide a secão VII.4 da Ref. [3]. definidos para k > 0

Fisicamente, podemos esperar que a transmissão da luz pela superfície de separação possa ser suficientemente bem descrita por soluções da Eq. (15) para um índice de refração hk( x) com k > 0 suficientemente grande - veja na Fig. 2 a plotagem dos gráficos desses índices de refração para k = 1,5,10,100 com h1 = 1 e h2 = 2. É imediato verificar que valem os limites

Assim, seja yk(x) solução da Eq. (15) para o índice de refração hk( x) com condições iniciais yk( 0) = 0 e yk'(0) = tan( q1) , i.e.

onde as condições iniciais implicam que a constante a deve satisfazer

A inclinação da tangente a yk( x) num ponto x é dada por

Portanto, temos os limites

O ângulo de refração q2 deve satisfazer a condição limite

Desenvolvendo essa identidade obtemos

Comparando as duas identidades acima envolvendo a constante a obtemos a lei de Snell ordinária

4. Análise qualitativa

As figuras a seguir17 17 Observe que as plotagens não estão em escala. 18 Lembramos a derivada da funcão arco tangente: arctan( u) = . mostram plotagens numéricas de soluções da Eq. (15) para índices de refração particulares e condições iniciais y( 0) = 0 e y'( 0) = 1 (caso em que o raio de luz passa na origem do sistema de coordenadas com ângulo de incidência nesse ponto igual a p/4). Podemos observar que as plotagens conformam-se às nossas expectativas quanto às trajetórias dos raios de luz.

Na Fig. 3 temos a plotagem da trajetória seguida por um raio de luz num meio onde o índice de refração é dado pela função

h1 (x) = 1 + x.

Como o índice de refração aumenta com a profundidade, esperamos que a trajetória do raio de luz tenha uma inclinação decrescente. Com as devidas adaptações, observamos esse fenômeno com os raios de luz do sol quando ele está se pondo, embora o índice de refração do ar para um comprimento de onda qualquer não dependa da profundidade segundo a expressão acima (nesse caso, a profundidade é dada pela penetração na atmosfera da Terra). Para uma análise detalhada do fenômeno do envermelhamento do céu no pôr do sol, veja a Ref. [1].

Nas Figs. 4 e 5 temos plotagens para as trajetórias seguidas por raios de luz em meios com índices de refração que são, respectivamente,

h2 (x) = 1 + e–x/10.

e

h3 (x) = 1 + e–x/100.

Nesses casos, observamos que as trajetórias dos raios de luz têm inclinações crescentes, afastando-se da direção do gradiente do índice de refração; isso é o que podemos esperar com base na lei de Snell ordinária, que prevê que os raios de luz se afastam da normal quando passam de um meio com índice de refração maior para um meio com índice de refração menor; também está de acordo com essa lei a diferença nas curvaturas, maior no caso correspondente a h2 do que no caso correspondente a h3, pois a lei de Snell implica que, para um ângulo de incidência fixado, um índice de refração maior implica num ângulo de refração menor. Embora o raio de luz penetre mais profundamente no meio com índice h3 do que no meio com índice h2, em ambos os casos, as trajetórias terminam em pontos onde as inclinações tornam-se verticais, indicando que os raios de luz passam a se propagar na direção do eixo-y.

Nas Figs. 6 e 7 temos plotagens para as trajetórias seguidas por raios de luz em meios com índices de refração que são, respectivamente,

h4 (x) = 1.5 + sin (x).

e

h5 (x) = 1.5 +sin (x).


Como os índices de refração oscilam em torno do valor 1,5, esperamos que as trajetórias dos raios de luz tenham inclinações que também oscilem, aumentando e diminuindo alternativamente de acordo com o aumento ou decréscimo dos índices de refração. No caso correspondente a h4, observamos que a trajetória termina em um ponto onde a inclinação torna-se vertical, indicando que o raio de luz passa a se propagar na direção do eixo-y; isso não acontece no caso de h5, cuja amplitude de oscilação é menor do que a amplitude de oscilação de h4.

5. Conclusão

Deduzimos usando o princípio de Fermat uma generalização da lei de Snell para meios transparentes com índice de refração variável na forma de uma equação diferencial para as trajetórias de raios de luz monocromáticos, Eq. (11). Analisamos a consistência matemática dessa equação, obtemos a lei de Snell original como um caso limite e discutimos a compatibilidade das previsões teóricas com nossas expectativas pela análise das plotagens das trajetórias previstas teoricamente para alguns casos particulares.

Recebido em 27/11/2006; Aceito em 15/1/2007

6. Apêndice

Outra dedução da lei de Snell generalizada

Nesta seção, deduziremos a equação diferencial que caracteriza a trajetória de um raio de luz monocromático usando uma técnica diferente daquela usada anteriormente: aqui, ela é obtida da própria lei de Snell ordinária. A identidade das equações obtidas pelas diferentes técnicas corrobora a correção dos resultados.

Embora seja possível trabalhar no caso geral, pelo bem da simplicidade vamos nos restringir às circunstâncias da seção 2.3 que trata da situação bidimensional; com a notação dessa seção, o índice de refração depende apenas da coordenada x que serve de parâmetro da curva g que descreve a trajetória percorrida pelo raio de luz; o ângulo q(x) entre a reta tangente à trajetória do raio de luz no ponto ( x0,y( x0) ) e o eixo-x satisfazPara obtermos a equação diferencial satisfeita pela função y(x) ,consideramos a lei de Snell numa faixa vertical infinitesimalmente estreita, com largura infinitesimal dx conforme ilustra a Fig. 8.


tan (q (x)) = y' (x).

Para obtermos a equação diferencial satisfeita pela função y (x),consideramos a lei de Snell numa faixa vertical infinitesimalmente estreita, com largura infinitesimal dx conforme ilustra a Fig. 8.

Nesse caso, temos a seguinte aproximação devido à lei de Snell ordinária

Desenvolvendo os fatores do lado direito dessa aproximação até primeira ordem em dx obtemos

Substituindo na identidade aproximada (17) obtemos

Dividindo toda a equação por cos( q(x) ) dx obtemos

No limite dx® 0 a terceira parcela dessa soma se anula e (esperamos que) a aproximação torne-se uma igualdade exata

Agora, usando quede

y' (x) = tan (q (x)) e q (x) = arctan (y' (x)),

duzimos pela regra da cadeia que

Finalmente, obtemos a equação que generaliza a lei de Snell na situação considerada

Essa equação é idêntica à Eq. (15), obtida como caso particular da Eq. (11) na seção 2.3. Isso corrobora a correção da Eq. (11) como a equação característica das curvas que descrevem as trajetórias seguidas pelos raios de luz.

  • [1] A.E. Motter, Rev. Bras. Ens. Fís. 19, 189 (1987).
  • [2] H. Goldstein, Classical Mechanics (Addison-Wesley, Reading, 1980), 2nd ed.
  • [3] E.L. Lima, Curso de Análise (Instituto de Matemática Pura e Aplicada, Săo Paulo, 1981), v. 2, 4 ed.
  • 1
    E-mail:
  • 2
    A superfície de separacão dos meios deve possuir certa regularidade para que em cada ponto ela possua uma direcão normal bem definida; matematicamente, essa regularidade é definida pelo conceito de diferenciabilidade. Essa é uma das circunstâncias restritivas para aplicacão da lei de Snell, mas a generalizacão discutida aqui não trata desse aspecto.
  • 3
    Na verdade, o enunciado mais geral para o princípio de Fermat substitui a condicão de
    tempo mínimo pela condicão de
    tempo extremo - ou seja, minimo, máximo ou sela; para as circunstâncias que vamos considerar, basta o enunciado mais restrito.
  • 4
    Para deducão da lei de Snell ordinária no âmbito da teoria eletromagnética de Maxwell, veja a Ref. [1].
  • 5
    Nossa deducão é essencialmente equivalente à derivacão das equacões de Euler-Lagrange a partir do princípio de Hamilton como apresentada na Ref. [2], p. 43-44. - a diferenca está na situacão física.
  • 6
    Suave quer dizer infinitamente diferenciável. Desde que o índice de refracão seja suave, a restricão técnica de considerarmos somente curvas suaves se justifica porque (i) qualquer curva contínua pode ser arbitrariamente aproximada (num certo sentido) por curvas suaves e (ii) é possível provar que isso nos garante que a curva continua que descreve a trajetória dos raios de luz deve ser suave.
  • 7
    Observamos que o parâmetro
    u da curva g não denota o tempo, necessariamente.
  • 8
    Veja na secão 2.2.1 a definicão de reparametrizacão.
  • 9
    Lembramos que a condicão (3) é necessária mas não é suficiente para caracterizar um ponto de mínimo.
  • 10
    Dado um par de vetores
    V e
    W, denotamos seu produto interno por á
    V,W ñ e a norma de
    V por ||
    V|| =
    ; para maiores detalhes, vide Ref. [3], secão II.4.
  • 11
    No contexto da análise matemática, a diferenciabilidade de
    f
    (g, w) e a possibilidade de derivar sob o sinal de integral são fatos que podem ser rigorosamente provados nas circunstâncias em questão.
  • 12
    Por exemplo: q(
    u) = (
    u-a) (
    b-u) .
  • 13
    Para maiores detalhes sobre curvas e conceitos relacionados, sugerimos o cap. II da Ref. [3].
  • 14
    Lembramos que uma curva parametrizada pelo comprimento de arco possui a propriedade característica de que o módulo da sua velocidade é constante e igual à unidade; para ver detalhes sobre a reparametrizacão pelo comprimento de arco veja Ref. [3], p. 101-104.
  • 15
    A equacão para
    y' é do tipo Bernoulli e pode ser resolvida recorrendo-se a uma técnica padrão; depois, integrando a solucão da equacão satisfeita pela derivada, obtemos a solucão explícita para
    y.
  • 16
    Observamos que não é imediato verificar que h
    k é uma funcão suave, mas isso pode ser rigorosamente provado; vide a secão VII.4 da Ref. [3].
  • 17
    Observe que as plotagens não estão em escala.
    1818 Lembramos a derivada da funcão arco tangente:
    arctan(
    u) =
    .
  • 18
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2007
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Aceito
      15 Jan 2007
    • Recebido
      27 Nov 2006
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