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As máculas da prisão: estigma e discriminação das agentes penitenciárias

The prison blots: stigma and discrimination on correctional officers

Resumo

O estigma de viver no sistema prisional marca e oprime a personalidade do egresso; e quanto às agentes penitenciárias que nele ingressam para trabalhar? Este artigo busca verificar se as agentes penitenciárias são discriminadas em virtude de seu labor. Para o desenvolvimento deste estudo, utilizam-se como técnicas de pesquisa a revisão bibliográfica e a realização de trinta e quatro entrevistas, entre 9 e 14 de maio de 2013 e 23 de outubro e 27 de novembro de 2015, com agentes penitenciárias lotadas em instituições de tratamento penal do Rio Grande do Sul. Vinte e sete aconteceram na Penitenciária Feminina Madre Pelletier e sete com agentes penitenciárias lotadas em outras casas prisionais gaúchas. Após análise do material coletado, verifica-se que as marcas da prisão não atingem somente as que nela ingressam obrigadas, com o intuito de cumprir pena, mas também as que nela trabalham, uma vez que estas são igualmente marcadas pela sociedade em virtude do seu contato com a instituição.

Direitos humanos; prisão; estigma; discriminação; agente penitenciária

Abstract

The stigma of living in the prison system blemishes and oppresses the egress personality what could be said about the correctional officers who work at these facilities? Faced with this question, this article aims to verify whether the correctional officers suffer from discrimination because of their work. The methodology applied to this study includes literature review and thirty-four interviews (9 to 14 May 2013; 23 October to 27 November 2015), with correctional who work at prisional institutions of Rio Grande do Sul. Twenty-seven of these interviews took place at Madre Pelletier Women’s Prison, and seven at other prison houses. The analysis of the collected material indicates that the blemish of prison affects not only the imprisioned people, but also its workers, who are also targeted for their contact with the institution.

Human rights; prison; stigma; discrimination; correctional officer

Introdução

A hostilidade do sistema penal e as marcas deixadas nos que nele ingressam são de conhecimento público (CARNELUTTI, 2013CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. São Paulo: Nilobook, 2013.; FOUCAULT, 2011FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 39. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.; OLIVEIRA, 2011OLIVEIRA, Luciano. Relendo vigiar e punir. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 4, n. 2, p. 309-338, abr.-maio-jun. 2011. Disponível em: <http://revistadil.dominiotemporario.com/doc/Dilemas-4-2Art5.pdf>. Acesso em: 4 jun. 2014.
http://revistadil.dominiotemporario.com/...
). O contato com a prisão não é bem visto socialmente; afinal, trata-se de instituição que atua com indivíduos indesejados pela sociedade. Daí surgem questionamentos: o que leva uma pessoa a fazê-lo por livre e espontânea vontade? Não seria a prisão – um lugar onde se colocam e se esquecem de pessoas – apenas uma ferramenta de exclusão social? O estigma de ter passado pelo sistema prisional marca e oprime a personalidade dos egressos? E das agentes penitenciárias (APs)1 1 Como o objeto deste artigo são as mulheres que atuam na profissão de agente penitenciário, motivo pelo qual a maioria das entrevistadas é servidora da Penitenciária Feminina Madre Pelletier (PFMP) e de outras casas prisionais gaúchas, optamos por fazer referência utilizando os termos no feminino mesmo quando, dentre as envolvidas, encontram-se homens e mulheres. Os termos são empregados no masculino quando apenas homens estiverem envolvidos e quando constituem citações (diretas e indiretas) de outras obras ou de entrevistas. que ingressam nesse sistema para trabalhar? Respondendo a essas indagações, este artigo busca verificar se as APs são estigmatizadas e discriminadas em virtude de seu labor.

Lembra-se de que a participação de um dos autores, quando ainda cursando o bacharelado, em um projeto de extensão desenvolvido na Penitenciária Feminina Madre Pelletier, localizada em Porto Alegre, nunca foi bem compreendida pelos colegas da graduação. Afinal, o que pretendia passando as tardes na prisão? Por que perder tempo naquele lugar de onde todos queriam sair? Qual a razão de estar com aquelas pessoas?

A pesquisa mostra-se, desta forma, relevante, pois as agentes penitenciárias, apesar de serem peças fundamentais para o funcionamento dos sistemas penal e prisional, são esquecidas, já que a quase totalidade dos estudos se concentra nas presidiárias. Considera-se que as APs estão também expostas aos efeitos do sistema penitenciário.

Estudos desenvolvidos na área (CHIES, 2001CHIES, Luiz Antônio Bogo et. al (Coord.). A prisionalização do agente penitenciário: um estudo sobre encarcerados sem pena. Pelotas: Educat, 2001.; COELHO, 2005COELHO, Edmundo Campos. A oficina do diabo e outros estudos sobre criminalidade. Rio de Janeiro: Record, 2005.; MORAES, 2005MORAES, Pedro Rodolfo Bodê de. Punição, encarceramento e construção de identidade profissional entre agentes penitenciários. São Paulo: IBCCRIM, 2005.; KALINSKY, 2008KALINSKY, Beatriz. El agente penitenciario: la cárcel como ámbito laboral. Runa, v. 28, p. 43-57, 2008. Disponível em: <http://www.scielo.org.ar/pdf/runa/v28/v28a03.pdf>. Acesso em: 7 abr. 2013.
http://www.scielo.org.ar/pdf/runa/v28/v2...
; LOURENÇO, 2010LOURENÇO, Luiz Claudio. Batendo a tranca: Impactos do encarceramento em agentes penitenciários da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 3, n. 10, p. 11-31, out.-dez. 2010. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7181/5760>. Acesso em: 1º jun. 2013.
https://revistas.ufrj.br/index.php/dilem...
; RUDNICKI, 2015aRUDNICKI, Dani. Notas sobre a formação de agentes penitenciários. In: DUARTE, Francisco Carlos; SCHWARTZ, Germano (Org.). O direito e as ações políticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 159-173, 2015a. e 2015bRUDNICKI, Dani. Os oficiais da Polícia Militar que comandam o Presídio Central de Porto Alegre. O público e o privado, Fortaleza, v. 26, p. 177-206, 2015b.) consistem em fontes que devem ser utilizadas no desenvolvimento de políticas públicas e reformas legislativas que amenizem as violações decorrentes do ambiente carcerário. Nesse sentido, quando se pensa em reformas na execução penal, deve-se não só resolver questões referentes às necessidades das mulheres presas, mas também das servidoras atuantes nas instituições. Afinal, os direitos humanos são garantias para todos, independentemente da posição ocupada.

Este artigo utiliza o modelo de pesquisa qualitativa e como técnicas a revisão bibliográfica e a realização de entrevistas. A parte empírica refere-se a entrevistas realizadas entre os dias 9 e 14 de maio de 2013 e 23 de outubro e 27 de novembro de 2015 com agentes penitenciárias lotadas em instituições de tratamento penal do Rio Grande do Sul. Essas entrevistas foram transcritas e analisadas pelos autores tomando como fundamento a perspectiva de apresentar o discurso das APs sobre sua realidade. Objetivando, assim, corroborar, ou não, os dados teóricos por meio da comparação com os estudos citados.

Foram realizadas vinte e sete entrevistas (sendo vinte e três agentes penitenciárias e quatro agentes penitenciários), na Penitenciária Feminina Madre Pelletier. Ainda foram entrevistadas sete agentes penitenciárias lotadas em casas prisionais gaúchas que participaram do Programa de Capacitação das Servidoras Penitenciárias para Atenção Integral às Mulheres em Privação de Liberdade, na Escola do Serviço Penitenciário do estado do Rio Grande do Sul.2 2 O programa se destinava à capacitação das servidoras da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), tanto agentes penitenciárias quanto técnicas, que trabalhassem diretamente com mulheres privadas de liberdade, em estabelecimentos femininos e mistos. Imperioso ressaltar que se optou pela proteção da identidade das participantes, dessa forma, foram adotados pseudônimos, com o objetivo de preservá-las.

Assim, o artigo inicia com a apresentação do conceito de estigma e sua utilização como ferramenta de exclusão social. Depois, refere-se às faces da estigmatização da AP, ou seja, os atributos que a profissional carrega pelo fato de trabalhar em uma penitenciária, ser uma “carcereira”, alguém que aplica a mais severa pena aceita hoje no país. Por fim, aborda a questão da discriminação a que as servidoras estão expostas, em decorrência do exercício de sua profissão.

1 O estigma penitenciário como exclusão

O termo “estigma”, lembra Erving Goffman (1998GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação de identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988., p. 11), foi criado na Grécia e seu significado original consistia em definir os “sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava”. Na Era Cristã, o termo passou a representar “sinais corporais de graça divina”, bem como “sinais corporais de distúrbio físico”.

No dicionário, o vocábulo “estigma” possui os seguintes significados: “Estigma. s.m. 1. marca ou cicatriz deixada por ferida 2. sinal natural no corpo 3 fig. o que é considerado indigno; desonra [...]” (HOUAISS; VILAR, 2008HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Minidicionário Houaiss de lexicografia e banco de dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. 3. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008., p. 318). Para Erving Goffman (1998GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação de identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988., p. 13), “estigma” é “[...] um tipo de relação entre atributo e estereótipo [...]”. E completa:

Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser – incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável – num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande – algumas vezes ele também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem – e constitui uma discrepância específica entre a identidade social virtual e a identidade social real. (GOFFMAN, 1998GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação de identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988., p. 12)

O estigma é considerado uma “mácula social que sinaliza a identidade social deteriorada da pessoa, com a qual se deve evitar contato mais próximo, especialmente em locais públicos” (OMOTE, 2004OMOTE, Sadao. Estigma no tempo da inclusão. Rev. Bras. Ed. Esp., v. 10, n. 3, Marília, p. 287-308, set.-dez. 2004. Disponível em: <http://www.abpee.net/homepageabpee04_06/artigos_em_pdf/revista10 numero3pdf/ 3omote.pdf>. Acesso em: 6 jan. 2015.
http://www.abpee.net/homepageabpee04_06/...
, p. 293). Apesar de o estigma não ser mais constituído por uma marca física, esse atributo que o define possui função semelhante à função inicial, ou seja, promover exclusão social:

Embora o estigma se refira hoje à própria condição social de desgraça e descrédito, e não mais à evidência corporal da inferioridade moral, o sentido original do conceito deve ser analisado com algum detalhe, pois, ainda que metaforicamente, o estigma parece cumprir ainda hoje essencialmente as mesmas funções. Se as marcas corporais eram produzidas com a finalidade de sinalizar às pessoas que o seu portador era um ladrão, traidor ou escravo, alguém de status moral inferior, com quem deveria ser evitado qualquer contato mais próximo, evidentemente a sua imediata e inconfundível visibilidade era imprescindível. Não teria sentido produzir essas marcas em locais pouco visíveis nem serviriam marcas que facilmente poderiam ser confundidas com outros sinais corporais, congênitos ou adquiridos. (OMOTE, 2004OMOTE, Sadao. Estigma no tempo da inclusão. Rev. Bras. Ed. Esp., v. 10, n. 3, Marília, p. 287-308, set.-dez. 2004. Disponível em: <http://www.abpee.net/homepageabpee04_06/artigos_em_pdf/revista10 numero3pdf/ 3omote.pdf>. Acesso em: 6 jan. 2015.
http://www.abpee.net/homepageabpee04_06/...
, p. 294-295)

O estigma acaba por impor a segregação, cria o desviante. Howard S. Becker (2008BECKER, Howard S. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008., p. 22) define o desviante como alguém rotulado pela sociedade. Dessa forma, pessoas que não infringiram regras podem ser rotuladas como desviantes, assim como pessoas que infringiram regras podem não sê-lo. Acrescenta que: “O grau em que um ato será tratado como desviante depende também de quem o comete e de quem se sente prejudicado por ele. Regras tendem a ser aplicadas mais a algumas pessoas do que a outras” (BECKER, 2008BECKER, Howard S. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008., p. 25).

Amilton Bueno de Carvalho (2013CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito penal a marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013., p. 129), nesse sentido, revela que o direito penal é seletivo, servindo para punir o “outro”, o “indesejado”. Assim, o sistema penal se aplica de maneira distinta; uma forma de intervenção nos estratos sociais médios e superiores e outra nos inferiores. Ademais, os juízes tendem a esperar que as pessoas pertencentes aos estratos superiores estejam mais ligadas ao cumprimento das normas do que as dos estratos inferiores (BARATTA, 2011BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2011., p. 177-178). Logo, o direito penal é utilizado como forma de controle social e, nesse sentido, o estigma, que resulta do aprisionamento, mostra-se a ferramenta mais marcante de exclusão social.

[...] as pessoas creem que o processo penal termina com a condenação e não é verdade; as pessoas creem que a pena termina com a saída do cárcere, e não é verdade. A pena, se não mesmo sempre, nove vezes em dez não termina nunca. Quem em pecado está é perdido. Cristo perdoa, mas os homens não. (CARNELUTTI, 2013CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. São Paulo: Nilobook, 2013., p. 103)

Essa marca atinge todos que nela ingressam, como detentos, funcionários, pesquisadores ou visitantes. No que tange ao estigma do “delinquente”, do “criminoso”, este, uma vez constituído como tal, carregará essa mácula até o fim de seus dias. Afinal, o que define um criminoso a não ser a característica de ter cometido um crime (BECKER, 2008BECKER, Howard S. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008., p. 43)? Ao questionar quem seria um criminoso, Edwin H. Sutherland afirma que a resposta levanta outros questionamentos, uma vez que,

[...] por quanto tempo é a pessoa que comete crime um criminoso? É durante o tempo em que está cometendo o crime, até “ter cumprido a pena”, ou durante o resto da vida? Essa questão talvez não tenha importância e é difícil respondê-la sòmente por que usamos a palavra “criminoso” para estigmatizar aquele que viola a lei. No pensamento público, a palavra “criminoso” aplica-se geralmente só àqueles que são pela sociedade condenados ao ostracismo. (SUTHERLAND, 1949SUTHERLAND, Edwin H. Princípios de criminologia. São Paulo: Martins, 1949., p. 32)

O preconceito que uma pessoa sofre e o estigma carregado pela sua condição de ex-presidiária são um “fator inibidor” da possibilidade de que ela não volte a delinquir. Ademais, ao término da pena, o ex-detento concorrerá a vagas de trabalho com pessoas que não portam o estigma da criminalidade e deparar-se-á com o descrédito dos empregadores frente a sua condição (PINTO; HIRDES, 2006PINTO, Guaraci; HIRDES, Alice. O processo de institucionalização de detentos: perspectivas de reabilitação e reinserção social. Esc. Anna Nery, v. 10, n. 4, p. 678-683, out.-dez. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ean/v10n4/v10n4a09>. Acesso em: 6 jan. 2015.
http://www.scielo.br/pdf/ean/v10n4/v10n4...
, p. 680-681). Isso ocorre porque, na opinião da sociedade, a possibilidade de que um criminoso venha a cometer novos crimes é presumida, uma vez que ele demonstrou ser uma pessoa “sem respeito pela lei” (BECKER, 2008BECKER, Howard S. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008., p. 43).

Nesse sentido, Guaraci Pinto e Alice Hirdes (2006PINTO, Guaraci; HIRDES, Alice. O processo de institucionalização de detentos: perspectivas de reabilitação e reinserção social. Esc. Anna Nery, v. 10, n. 4, p. 678-683, out.-dez. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ean/v10n4/v10n4a09>. Acesso em: 6 jan. 2015.
http://www.scielo.br/pdf/ean/v10n4/v10n4...
, p. 682) afirmam: “O preconceito e os estigmas sociais inibem o preso de tomar qualquer iniciativa para ter uma vida não criminal, pois já estão condicionados a ela e sabem que o fruto de suas ações será reprovado e envolto em desconfiança, dúvidas e medos”.

Para Michel Foucault (2011FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 39. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 251), “A detenção provoca a reincidência; depois de sair da prisão, tem-se mais chance que antes de voltar para ela, os condenados são, em proporção considerável, antigos detentos [...]”. No que tange à “ressocialização” do preso, uma agente penitenciária alega que “As pessoas são retiradas da sociedade, são colocadas em confinamento e saem dali com uma tacha” (SILVA, 2013SILVA, Joana Coelho da. Transpondo estigmas: o cotidiano das agentes na Penitenciária Feminina Madre Pelletier. 2013. 93 f. Monografia (Bacharelado) – Centro Universitário Ritter dos Reis, Curso de Direito, Canoas, 2013., p. 34-35). A servidora afirma ainda que a sociedade exclui essas pessoas, uma vez que, ao se candidatarem para vagas em empresas, têm suas “fichas” consultadas e, automaticamente, são descartadas. Ela exemplifica dizendo que ao contratar alguém para trabalhar em uma casa como doméstica, tendo duas candidatas, uma ex-presidiária e outra não, emprega-se a sem passagem pelo sistema prisional. Porém as marcas do sistema penitenciário não atingem apenas a identidade social dos presos, igualmente atingindo a dos APs:

Daí o fato de a condição fronteiriça vivenciada pelos agentes penitenciários torná-los desacreditáveis em alguns contextos extramuros, nos quais, trazer a público sua condição de custodiador pode torná-los depositários de um estigma, num movimento de deslocamento do estigma que originariamente cerca os presidiários. (SILVEIRA, 2009SILVEIRA, Josilei Terezinha. “Se tirar o colete não dá pra saber quem é agente”: trabalho, identidade e prisionização. Sociologia & Política. I Seminário Nacional Sociologia & Política UFPR. Curitiba, 2009. Disponível em: <http://www.humanas.ufpr.br/site/evento/SociologiaPolitica/GTs-ONLINE/GT4/EixoII/tirar-colete-JosleiSilveira.pdf>. Acesso em: 6 jan. 2015.
http://www.humanas.ufpr.br/site/evento/S...
, p. 8)

A depreciação do trabalho penitenciário fica evidenciada na fala de um agente penitenciário. Ele conta que um colega seu somente fez concurso após a morte da mãe, que não aceitava que o filho “passasse a vida no meio de bandido” (VARELLA, 2012VARELLA, Drauzio. Carcereiros. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 154). Na percepção da sociedade, a única diferença entre o agente penitenciário e o preso é o colete usado pelos carcereiros (MORAES, 2005MORAES, Pedro Rodolfo Bodê de. Punição, encarceramento e construção de identidade profissional entre agentes penitenciários. São Paulo: IBCCRIM, 2005., p. 163). Nesse sentido, Luiz Claudio Lourenço (2010LOURENÇO, Luiz Claudio. Batendo a tranca: Impactos do encarceramento em agentes penitenciários da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 3, n. 10, p. 11-31, out.-dez. 2010. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7181/5760>. Acesso em: 1º jun. 2013.
https://revistas.ufrj.br/index.php/dilem...
, p. 16-17) afirma que o agente sofre um duplo estigma: extramuros e intramuros. O primeiro ocorre quando a sociedade descobre o seu ofício; o segundo refere-se à sua relação com o preso, que o percebe como um inimigo, “um indivíduo digno de desprezo e inimizade”, uma vez que o agente é uma representação institucional de tudo que oprime o interno.

Logo, os APs, assim como os policiais militares (“porcos”) e civis (“ratos”), recebem, popular e depreciativamente, apelidos relacionados a animais, no caso, às toupeiras (elas vivem em “buracos”, recebem, como os burros, pecha de serem pouco inteligentes). Deve-se destacar, todavia, que o agente penitenciário, hoje, em diversos estados brasileiros, dentre os quais se destaca o Rio Grande do Sul, necessita ter como requisito educacional o nível superior completo.

2 As faces da estigmatização

Ao analisar os estudos sociológicos e históricos desenvolvidos sobre o sistema penitenciário, Pedro Rodolfo Bodê de Moraes (2005MORAES, Pedro Rodolfo Bodê de. Punição, encarceramento e construção de identidade profissional entre agentes penitenciários. São Paulo: IBCCRIM, 2005., p. 56) elucida que a dificuldade de desenvolver uma pesquisa cujo objeto de estudo diga respeito aos agentes penitenciários está diretamente relacionada com o fato de que a maioria dos trabalhos, na área prisional, tem seu foco no preso. O volume de pesquisas realizadas nessa área demonstra uma vitimização do preso em virtude de “uma estrutura social excludente e injusta” e, quando se referem aos agentes penitenciários, o fazem apenas para “reforçar o caráter negativo da instituição”, pois aparecem como violentos e corruptos.

Tania Regina Armani Nery critica a interferência da mídia, a qual deprecia a classe desses servidores. Desconhecendo a sua realidade, a imprensa generaliza a categoria e transmite a imagem do servidor penitenciário de forma pejorativa:

As notícias veiculadas passam a imagem de um servidor corrupto no que atende às solicitações da demanda carcerária em detrimento a questões éticas. Sabemos que situações existem, mas são pontuais, e o que observamos é toda uma classe rechaçada pela sociedade que, através de algumas situações, torna ineficaz todo um trabalho, sem considerar o aumento da população carcerária, as mudanças na legislação e outros fatores que deveriam ser revistos antes de se chegar a conclusões. (NERY, 2012NERY, Tânia Regina Armani. Falando de perfil. Da ética à poética do ser servidor penitenciário. Porto Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas, p. 63-102, 2012., p. 98)

Durante os trabalhos da Subcomissão da Situação Carcerária do Rio Grande do Sul, o deputado estadual Jeferson Fernandes (2011FERNANDES, Jeferson. Situação carcerária no Rio Grande do Sul. In: Rio Grande do Sul. Assembleia Legislativa. Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (Org.). Relatório Azul 2011. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, p. 319-328, 2011., p. 327) declara que a corrupção parece intrínseca ao meio carcerário e que há muitos profissionais honestos. O deputado ressalta ainda que não há de se fazer uma generalização nesse sentido, pois, da mesma forma que existem servidores que se corrompem, há servidores que mantêm a sua integridade. Contudo, ele mesmo generaliza, na medida em que afirma: “Ouviu-se histórias de corrupção, que já parece intrínseca a este meio” (FERNANDES, 2011FERNANDES, Jeferson. Situação carcerária no Rio Grande do Sul. In: Rio Grande do Sul. Assembleia Legislativa. Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (Org.). Relatório Azul 2011. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, p. 319-328, 2011., p. 327). É necessário que se tome o devido cuidado, de forma a não se utilizar de preconceitos. Em todas as profissões podem ser encontrados bons e maus exemplos, não sendo pertinentes generalizações.

Quando não relacionadas à corrupção, as notícias veiculadas sobre os APs costumam se preocupar apenas em depreciar o trabalho carcerário, pouco valorizando a profissão. Afinal, as notícias, obras cinematográficas e de teledramaturgia apontam para fatos que fogem da normalidade: banalizam a imagem pejorativa dos servidores penitenciários (LOURENÇO, 2010LOURENÇO, Luiz Claudio. Batendo a tranca: Impactos do encarceramento em agentes penitenciários da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 3, n. 10, p. 11-31, out.-dez. 2010. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7181/5760>. Acesso em: 1º jun. 2013.
https://revistas.ufrj.br/index.php/dilem...
, p. 14). Logo, o estigma carregado por eles influencia suas relações sociais:

Embora o “estigma” (GOFFMAN, 1988GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação de identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988.) do trabalho carcerário possa não necessariamente marcar o corpo físico, invariavelmente afeta a vida dos indivíduos no que se refere às suas possibilidades de interação social, impondo padrões próprios de comportamento e sociabilidade. A categoria de agente penitenciário é sociologicamente tida como desacreditável. É dizer que no momento em que o agente passa a ser reconhecido como tal ele também passa a portar o estigma. A identificação com o trabalho carcerário traz ainda a incorporação e a visualização social do estigma decorrente dele. (LOURENÇO, 2010LOURENÇO, Luiz Claudio. Batendo a tranca: Impactos do encarceramento em agentes penitenciários da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 3, n. 10, p. 11-31, out.-dez. 2010. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7181/5760>. Acesso em: 1º jun. 2013.
https://revistas.ufrj.br/index.php/dilem...
, p. 15)

Esse entendimento de que a mídia corrobora com o imaginário social sobre o serviço penitenciário desdenhoso, que apresenta servidoras desleixadas, é compartilhado pelas agentes penitenciárias, como afirma a AP Vitória:

Eles têm a imagem, nos casos das mulheres, da mulher gorda, feia. Aí tu pode até fazer um comparativo da... com o pessoal da Polícia Civil. Até na mídia, por exemplo, sempre que aparecer uma delegada, uma inspetora, uma escrivã vai sempre aparecer mulheres belas, bonitas, lindas, maravilhosas, bem arrumadas, perfumadas, de salto. Sempre que colocarem o agente penitenciário, que eles não chamam de agente penitenciário, inclusive, chamam de carcereiro, que não é carcereiro. Carcereiro é uma coisa, agente penitenciário é outra. Vai sempre aparecer mulheres ou homens sujos, desleixados, mulheres gordas, feias. Então a sociedade em si tem uma péssima visão sobre o agente penitenciário.

Há tendência em atribuir imperfeições ao estigmatizado, a partir da imperfeição original, desenvolvendo-se as crenças ligadas ao estereótipo (GOFFMAN, 1998GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação de identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988., p. 15). Ou seja, como se não bastasse a associação ao ambiente da prisão e à marginalidade, verifica-se a presença do estigma carregado pela categoria de agentes penitenciários, em virtude de características que lhe são atribuídas (corrupção e violência, dentre outras). A má fama do trabalhar na prisão e a influência nas relações sociais restam evidenciadas quando uma agente penitenciária, durante entrevista, relata que a posse do cargo foi um dos motivos que causou a sua separação conjugal, uma vez que o marido se negou a aceitar a nova profissão, afirmando que os seus colegas seriam “um bando de sem-vergonhas” (SILVA, 2013SILVA, Joana Coelho da. Transpondo estigmas: o cotidiano das agentes na Penitenciária Feminina Madre Pelletier. 2013. 93 f. Monografia (Bacharelado) – Centro Universitário Ritter dos Reis, Curso de Direito, Canoas, 2013., p. 40). Nesse sentido:

Tal situação, portanto, leva a crer que o agente penitenciário carrega com ele um estigma nas relações sociais extramuros, uma vez que a sua imagem está relacionada ao seu “vínculo” de pertencimento institucional. Diante disso, se, no cotidiano extramuros ele é estigmatizado a partir do momento em que é descoberto o seu ofício, fica clara, também, a razão pela qual alguns entrevistados optam pela estratégia do encobrimento, tratando-se de uma tentativa de reduzir ao máximo possível o descrédito que recai sobre si, nos contatos sociais mistos [...]. (BRANDT, 2015BRANDT, Marisol de Paula Reis. Saber e habitus profissional do ex-agente de segurança penitenciária de São Paulo. Textos & Debates, Boa Vista, v. 1, n. 27, p. 197-209, jan.-jun. 2015., p. 208)

Ainda, no que tange à definição da imagem e atribuição de características a essas servidoras, uma agente penitenciária, antes de entrar em exercício na função, afirma, com fundamento em uma verdade conhecida a partir de notícias veiculadas na televisão, o que pensava sobre a categoria:

Eu imaginava sei lá! Eu imaginava o que a TV mostra, como tu vê na novela. Assim né, como tu vê nos filmes, que o agente penitenciário é grosso, que é mal-educado, que é meio relaxado que as mulheres agentes são machorras, são homossexuais [...]. (AP Bruna)

Tal entendimento permanece presente nas falas das servidoras quando questionadas sobre a imagem que a sociedade tem da agente penitenciária:

Ah! Resumindo assim, é o que tu vê na televisão, né? Por exemplo, o que deu na última novela [Babilônia, exibida pela Rede Globo entre março e agosto de 2015, em que havia uma personagem de uma agente penitenciária de aparência tida como masculina e corrupta]. É aquela carcereira brutamontes, sem noção, que é... sabe? Que bate nas presas, que não tá nem aí. É o que eu vejo da sociedade, é isso. Eles não veem trabalhando como a gente faz, né? Aí, não, e vai lá, e entra numa cela e acalma a presa, e conversa, e senta aqui e tá-tá-tá. Não, a gente dá-lhe pau, a gente manda elas calar a boca, a gente não faz nada por elas, é isso que a sociedade vê. (AP Marcela)

As agentes penitenciárias têm sua figura assemelhada à força e à violência. Quando se apresentam como tais, recebem expressões de surpresa, pois sua aparência não condiz com a reprodução do imaginário dos civis:

Não, até eu acho assim, aqui tu diz que é agente penitenciário e as pessoas, às vezes reagem assim: “Ah! Trabalha no presidio, tu?”. Eles acham que a pessoa tem que ser grande, tem que ser forte, aí eles: “Ai! Tão pequenininha e como é que é?”, sabe? É mais ou menos essa reação que a maioria das pessoas tem comigo, né? (AP Laura)

No mesmo sentido:

[...] eu já senti um estranhamento pela parte de ser mulher, de rotularem que menina bonita e delicada, e acharem que é uma profissão de força. Por acharem que é uma coisa assim de homem: “Mas tu, tu não tem cara”. Não tem cara, né? Não é porque tu sai daqui e põe um salto, uma roupa mais social, menos de... que mostra, que tu veste uma farda e que tu és menos, mas eu acho que é, assim, muita força assim. Parece que tu não tem força para isso assim, só nesse sentido assim, não sei se seria uma coisa boa ou ruim, mas são nesse sentido, esses estranhamentos assim. (AP Sofia)

A agente penitenciária gera mais surpresa ao se apresentar como tal: “‘Não dá pra acreditar que tu é agente penitenciária’; ‘tá, mas por quê?’; ‘ai, porque tu é tão diferente;’ ‘diferente do quê?’, ‘diferente daquilo que a televisão mostra’” (AP Helena). Esse é o diálogo recorrente durante a revelação da profissão, afinal, a atividade é vista como masculina (SILVA, 2016SILVA, Joana Coelho da. Efeitos do cárcere: o mundo prisional vivido pelas agentes penitenciárias. 2016. 165 f. Dissertação (Mestrado) – Centro Universitário Ritter dos Reis, Direito, Porto Alegre, 2016., p. 53).

Para Erving Goffman, durante os “contatos mistos” – momentos em que os normais e os estigmatizados se encontram –, “o indivíduo estigmatizado pode descobrir que se sente inseguro em relação à maneira como os normais o identificarão e o receberão” (GOFFMAN, 1998GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação de identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988., p. 22-23). Essa insegurança fica evidente quando uma agente penitenciária entrevistada afirma que, perguntada sobre sua profissão, responde ser professora, forma de evitar comentários sobre assuntos relativos ao cárcere e estigmatização decorrente da profissão:

Geralmente quando me perguntam onde eu trabalho, pelo meu biótipo, eu não digo que sou agente penitenciária, talvez seja uma negação. Eu tenho prazer em dizer que eu sou agente penitenciária em determinados lugares aonde eu vou. Pessoas que eu sei que não vão ver com bons olhos, eu digo que sou professora. “Tu trabalha onde?” Eu sou professora e moro em Porto Alegre, e não falo mais. Porque as pessoas só querem saber, se elas estão lá. Elas têm essa visão ruim. Elas não querem que as presas comam bem, elas não querem que as presas estudem, elas não querem que as presas tenham nada. A sociedade não quer, elas querem isso, e isso é um choque. Tu tem que aprender a lidar com isso. (AP Priscila)

Os agentes penitenciários ainda podem ser estigmatizados em virtude de enfermidades que desenvolvem em decorrência do trabalho:

Em um segundo momento, os agentes penitenciários tornam-se passíveis de outro tipo de estigma decorrente de psicopatologias do trabalho, tais como: insônia, nervosismo, depressão, estresse, paranoia, dependências químicas. Donde passam a ser estigmatizados pelos próprios colegas de profissão, pelos quais passam a ser chamados, pejorativamente, de “xaropes”, “beberrões” ou “gardenal”. Não obstante reconheçam que “a classe dos agentes necessita de acompanhamento, todos [os agentes penitenciários] necessitam. Procuro ajuda, conversar, desabafar, o que para o agente é algo necessário” (agente penitenciário). (SILVEIRA, 2009SILVEIRA, Josilei Terezinha. “Se tirar o colete não dá pra saber quem é agente”: trabalho, identidade e prisionização. Sociologia & Política. I Seminário Nacional Sociologia & Política UFPR. Curitiba, 2009. Disponível em: <http://www.humanas.ufpr.br/site/evento/SociologiaPolitica/GTs-ONLINE/GT4/EixoII/tirar-colete-JosleiSilveira.pdf>. Acesso em: 6 jan. 2015.
http://www.humanas.ufpr.br/site/evento/S...
, p. 8)

Nesse sentido, quanto à saúde dos agentes penitenciários gaúchos, dados coletados pela pesquisa realizada acerca do “Perfil, estresse e qualidade de vida dos servidores penitenciários”, no que tange à percepção de sua saúde pelos servidores, revelam que apenas 27% dos servidores entrevistados não se consideram saudáveis. Todavia, quando questionados acerca de sua percepção sobre a saúde dos colegas, 36% classificam-na como ruim. Assim, verifica-se, “a percepção de que os colegas estão doentes é maior que a percepção acerca de seu próprio adoecimento (27%)” (ROSA, 2012ROSA, Lutiana Ricaldi da. Relato de pesquisa: perfil, estresse e qualidade de vida de servidores penitenciários. In: NERY, Tânia Regina Armani (Org.). Da ética à poética do ser servidor penitenciário. Porto Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas, p. 201-296, 2012., p. 263-278).

Em relação à questão de possuir sintomas, 43% dos entrevistados responderam de forma afirmativa. Quanto ao tipo de sintoma percebido, “foi mencionado que 59% desses sintomas são do tipo psicológico, 29% do tipo físico e 7% do tipo misto; sendo que 5% não responderam, provavelmente por dificuldade de identificar em si o mesmo sintoma e seu tipo” (ROSA, 2012ROSA, Lutiana Ricaldi da. Relato de pesquisa: perfil, estresse e qualidade de vida de servidores penitenciários. In: NERY, Tânia Regina Armani (Org.). Da ética à poética do ser servidor penitenciário. Porto Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas, p. 201-296, 2012., p. 264-265). Por fim, a pesquisa demonstra que 38% dos participantes apresentam diagnóstico de estresse (ROSA, 2012ROSA, Lutiana Ricaldi da. Relato de pesquisa: perfil, estresse e qualidade de vida de servidores penitenciários. In: NERY, Tânia Regina Armani (Org.). Da ética à poética do ser servidor penitenciário. Porto Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas, p. 201-296, 2012., p. 279).

Apesar de a pesquisa ter sido desenvolvida no estado do Rio Grande do Sul, seus resultados demonstram a realidade vivida pela classe de APs. Condições semelhantes às expostas são verificadas também pelos servidores do estado do Paraná:

O alto grau de estresse e seus reflexos negativos físicos e psíquicos também são constatáveis entre os agentes penitenciários do Departamento Penitenciário do Estado do Paraná. No entanto, os agentes penitenciários não falaram sobre essa questão com a facilidade que havíamos suposto, principalmente quando instados a falar de si mesmos, sendo mais fácil falar dos outros ou do conjunto dos agentes penitenciários como “doentes”, “cheios de problemas” em função do desgaste no trabalho etc. Mas os códigos de virilidade e necessária demonstração de que são fortes e “agüentam qualquer parada”, bem como o medo da estigmatização advinda de sua possível classificação como nervoso (DUARTE, 1984; SELIGMANN-SILVA, 1994), falam primeiro e mais alto. (MORAES, 2005MORAES, Pedro Rodolfo Bodê de. Punição, encarceramento e construção de identidade profissional entre agentes penitenciários. São Paulo: IBCCRIM, 2005., p. 226-227)

No que tange ao desgaste físico e mental do trabalho penitenciário, em virtude da grande movimentação e do baixo efetivo, o volume de trabalho na PFMP é considerado muito maior do que nas outras prisões em decorrência da arquitetura da penitenciária e do fato de concentrar as apenadas grávidas (o que determina a formação de várias escoltas). Na opinião das APs, a prisão feminina, em especial a que abriga gestantes, exige muito delas:

Mas assim, o negócio de trabalhar, da saúde do trabalhador, tipo isso não existe de saúde do trabalhador. É mais que não dormir à noite toda e tu ficares rodando e fazer quarto de hora e fica o dia todo na cadeia trabalhando, porque nós trabalhamos muito aqui. Eu trabalhei em Caxias, mas não trabalha um terço do que a gente trabalha aqui, não tem que ir nessas escoltas. Essas mulheres é muito trabalho. E daí tu chegas, às onze da noite tem que ir na cama descansar um pouco, quando tu consegues descansar, porque teu corpo está a mil, né? A adrenalina está a mil pelo teu dia todo, né? Aí tu tens que vir fazer o quarto de hora e, quando não tens que fazer o quarto de hora, tens que ir para o hospital porque tem uma presa passando mal, tem presa grávida tendo neném, é assim. (AP Sofia)

A deficiência no número de APs que compõe o efetivo da casa é crucial para a precariedade da situação dessas trabalhadoras. Não há horários de almoço e de intervalo durante o dia, as agentes descem ao refeitório, almoçam e retornam para que as colegas possam almoçar também. Elas se revezam, algumas servem seus pratos e retornam, comem no próprio posto:

É, o efetivo é baixo, né? A gente não tira uma hora de almoço, muita gente come dentro do posto onde tá, ou se tá na portaria, come na portaria, se tá no posto, come no posto, ou então a gente se reveza, porque a gente não pode deixar o posto sozinho, fechar o posto e vamos comer e pronto. Não, não vai, quando um sai o outro fica. É... às vezes, quando tem uma escolta, a gente fica quebrado, porque já tá baixo o efetivo, aí desloca alguém de um posto pra fazer uma escolta. (AP Juliana)

Além disso, as idas ao banheiro para satisfazer necessidades básicas são reduzidas. As APs vão pouquíssimas vezes ao banheiro, só conseguem fazer isso quando a movimentação acalma, momento em que avisam as colegas que precisam ir e se dirigem até lá, acompanhadas pelo pensamento de logo retornar e pela preocupação de que as colegas possam precisar de sua ajuda durante sua ausência no posto (SILVA, 2016SILVA, Joana Coelho da. Efeitos do cárcere: o mundo prisional vivido pelas agentes penitenciárias. 2016. 165 f. Dissertação (Mestrado) – Centro Universitário Ritter dos Reis, Direito, Porto Alegre, 2016., p. 132).

Desde 2006, a insalubridade do ambiente e a falta de limpeza e de materiais de higiene eram citadas pelas agentes penitenciárias como um problema (WOLFF, 2007WOLFF, Maria Palma. Mulheres e prisão: a experiência do Observatório de Direitos Humanos da Penitenciária Feminina Madre Pelletier. Porto Alegre: Dom Quixote, 2007., p. 86). No que tange aos espaços para repouso das APs, destinados aos momentos de “descanso”: “Este alojamento pouco difere da estrutura prisional vivida pelas apenadas, quanto a sua localização, infraestrutura e acomodações, fazendo com que a agente penitenciária viva, na subjetividade, uma forma de encarceramento” (WOLFF, 2007WOLFF, Maria Palma. Mulheres e prisão: a experiência do Observatório de Direitos Humanos da Penitenciária Feminina Madre Pelletier. Porto Alegre: Dom Quixote, 2007., p. 85). Assim, as agentes que estão em horário de folga ou em momento de descanso do plantão encontram-se em acomodações precárias, improvisadas e semelhantes às das presas (SILVA, 2016SILVA, Joana Coelho da. Efeitos do cárcere: o mundo prisional vivido pelas agentes penitenciárias. 2016. 165 f. Dissertação (Mestrado) – Centro Universitário Ritter dos Reis, Direito, Porto Alegre, 2016., p. 136).

No que tange à questão da (falta de) estrutura prisional, presos e APs estão expostos ao confinamento no mesmo espaço fechado, ao frio glacial que suportam no inverno, aos odores, ao mau sustento, ao medo, à insegurança e à exclusão social (MORAES, 2005MORAES, Pedro Rodolfo Bodê de. Punição, encarceramento e construção de identidade profissional entre agentes penitenciários. São Paulo: IBCCRIM, 2005., p. 163). Afinal, para conhecer as condições de vida em um presídio, não é necessário entrar nas galerias e nas celas, basta verificar os alojamento e refeitórios dos agentes penitenciários.

Drauzio Varella, ao explicar os motivos que possibilitaram que os agentes penitenciários o aceitassem “como personagem do meio, ou do ‘Sistema’”, menciona que: “A natureza do trabalho dos guardas de presídio pouco os diferencia da condição do prisioneiro, exceto o fato de que saem em liberdade no fim do dia, ocasião em que o bar é lenitivo irresistível para as agruras do expediente diário” (VARELLA, 2012VARELLA, Drauzio. Carcereiros. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 16). Foi a interação com eles, neste momento, a razão de sua aceitação. No que tange às questões sobre o envolvimento dos agentes penitenciários com o álcool, Drauzio Varella (2012VARELLA, Drauzio. Carcereiros. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 104) define a cachaça como uma das válvulas de escape do agente penitenciário, sendo a mulher a segunda. Relata, entre diversos casos de envolvimento dos servidores com o álcool, que é no bar, depois do primeiro gole, que o agente penitenciário sai do inferno e chega ao paraíso:

Assim descreveu a sensação que lhe trazia o bar no fim do expediente um moreno alto, jovem ainda, que dava plantão no setor do Amarelo com um pedaço de cano nas mãos, para lá e para cá, o tempo todo, dois anos mais tarde afastado para tratamento psiquiátrico no Hospital do Servidor. (VARELLA, 2012VARELLA, Drauzio. Carcereiros. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 115)

Afirma ainda: “Nesse contexto estão reunidas as condições que os especialistas definem como fatores de risco para o alcoolismo” (VARELLA, 2012VARELLA, Drauzio. Carcereiros. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 116). E acrescenta:

Descontados os casos mais dramáticos de dependência, muitos fazem uso regular do álcool como relaxante e antidepressivo, passo inicial para o consumo compulsivo. Não é que a profissão atraia pessoas com tendência a desenvolver alcoolismo, quase todos eram abstêmios ou bebiam muito pouco antes do emprego na cadeia. (VARELLA, 2012VARELLA, Drauzio. Carcereiros. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 116)

Verifica-se que, além dos estigmas criados a partir de características atribuídas pela sociedade ao serviço penitenciário, as agentes ainda estão expostas a uma segunda espécie de estigmatização, advinda das doenças que podem ser desenvolvidas a partir do exercício de suas funções.

3 A discriminação das “carcereiras”

Além de desvalorizadas e de carregar o estigma de carrascas, torturadoras, corruptas, as APs são discriminadas3 3 Roger Raupp Rios (2008, p. 20) define o conceito jurídico de discriminação como “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural ou em qualquer campo da vida pública”. pela sociedade. Estudo realizado por Luiz Claudio Lourenço, na região metropolitana de Belo Horizonte, revela que 61,8% dos agentes penitenciários sofreram discriminação. Um destes revelou que: “Trabalhar na cadeia é diferente, o pessoal não é visto da mesma forma. Aqui mesmo na faculdade tem professor e aluno que têm até medo da gente” (LOURENÇO, 2010LOURENÇO, Luiz Claudio. Batendo a tranca: Impactos do encarceramento em agentes penitenciários da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 3, n. 10, p. 11-31, out.-dez. 2010. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7181/5760>. Acesso em: 1º jun. 2013.
https://revistas.ufrj.br/index.php/dilem...
, p. 26). Ele afirma ainda que os agentes relatam sofrer diversos tipos de discriminação decorrente de cor da pele, local de moradia e origem social, além da profissão:

A percepção experimentada por estes indivíduos cotidianamente é que, além de ser pobre, morar em bairro perigoso da periferia, e ter a pele escura, eles trabalham na prisão. Se para cada característica já existe um preconceito, com o acúmulo delas este preconceito também se acumula e se potencializa. Nesse sentido, o estigma de agente penitenciário une com grossas correntes todas estas demais dimensões discriminatórias vivenciadas por este trabalhador. (LOURENÇO, 2010LOURENÇO, Luiz Claudio. Batendo a tranca: Impactos do encarceramento em agentes penitenciários da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 3, n. 10, p. 11-31, out.-dez. 2010. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7181/5760>. Acesso em: 1º jun. 2013.
https://revistas.ufrj.br/index.php/dilem...
, p. 26-27)

Pedro Rodolfo Bodê de Moraes apresenta outros dois motivos distintos de discriminação relatados por agentes penitenciários. Primeiro, o caso dos “vigilantes”, pessoas contratadas para exercer as funções de segurança nas unidades prisionais terceirizadas do Paraná. Conhecidos como “pangarés”, são discriminados tanto pela massa carcerária quanto pelos agentes penitenciários, que não os reconhecem como pertencentes à sua classe de trabalhadores (MORAES, 2005MORAES, Pedro Rodolfo Bodê de. Punição, encarceramento e construção de identidade profissional entre agentes penitenciários. São Paulo: IBCCRIM, 2005., p. 207-208).

Segundo, há relatos de servidores que sofrem discriminação no seio de sua própria família, eis que o trabalho desenvolvido, a convivência com “a pior classe” (presos) e os baixos salários não são bem vistos. Por pertencer a classe social superior à dos colegas, um agente discriminou-os e, posteriormente, foi discriminado pela própria família (MORAES, 2005MORAES, Pedro Rodolfo Bodê de. Punição, encarceramento e construção de identidade profissional entre agentes penitenciários. São Paulo: IBCCRIM, 2005., p. 213-214).

No que tange às mulheres que desempenham essa função, além da discriminação por trabalhar no meio penitenciário, elas ainda sofrem distinção dentro da própria instituição, que impede o exercício de suas funções na área da segurança. As agentes penitenciárias gaúchas revelaram que, quando fazem plantões em instituições de tratamento penal masculinas, ficam restritas ao desempenho de atividades administrativas, como se fossem “auxiliares de escritório”, “preservadas” pelos colegas homens que desempenham as atividades relativas à segurança (SILVA, 2013SILVA, Joana Coelho da. Transpondo estigmas: o cotidiano das agentes na Penitenciária Feminina Madre Pelletier. 2013. 93 f. Monografia (Bacharelado) – Centro Universitário Ritter dos Reis, Curso de Direito, Canoas, 2013., p. 24). Dessa maneira, afirma uma agente penitenciária:

Então, muitos colegas ficam muito preocupados com a situação de tu ser mulher e tu estar lá dentro daquele ambiente e de acontecer alguma coisa, um preso te dizer alguma besteira e eles terem que tomar alguma atitude, faltar com respeito. Coisa que comigo, eu já entrei, já fiz revista, já participei lá dentro e nunca houve nada. [...] mas só foi permitido para mim entrar lá dentro, no momento em que não tinham homens suficientes para fazer o trabalho. Não era uma coisa rotineira. Quer dizer, tudo era proibido ir, mas no momento que a situação exigiu, eu fui porque não tinham pessoas, homens suficientes para ir. (AP Bianca)

No mesmo sentido:

Aqui [PFMP] é a gente que faz, a gente nós mulheres, lá é o homem, certas colegas não gostam que fale isso. Eu acho que a mulher no presídio masculino é mais um auxiliar de escritório, a única coisa que é igual é o trabalho na sala de revista. Eu falo pela PASC. Lá quem entra em galeria, quem faz a parte operacional são os colegas homens. As mulheres são preservadas. (AP Soraia)

Essa “preservação” das mulheres pelos colegas homens contribui para a manutenção da dominação masculina, para a estigmatização e discriminação da mulher pela sua condição feminina:

[...] a própria proteção “cavalheiresca”, além de poder conduzir a seu confinamento ou servir para justificá-lo, pode igualmente contribuir para manter as mulheres afastadas de todo contato com todos os aspectos do mundo real “para os quais elas não foram feitas” porque não foram feitos para elas. (BOURDIEU, 2011BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011., p. 77)

Logo, verifica-se a posição hegemônica dos homens que utilizam estigmas para promover desigualdade na instituição. Nesse sentido, afirmam Richard Parker e Peter Aggleton (2001PARKER, Richard; AGGLETON, Peter. Estigma, discriminação e AIDS. Rio de Janeiro: ABIA, 2001. Disponível em: <http://www.abiaids.org.br/_img/media/colecao%20cidadania%20direito.pdf>. Acesso em: 3 out. 2014.
http://www.abiaids.org.br/_img/media/col...
, p. 16): “[...] o estigma é empregado por atores sociais reais e identificáveis que buscam legitimar seu próprio status dominante dentro das estruturas de desigualdade social existentes”.

São observados, nos casos antes descritos, os traços da dominação masculina sob as servidoras quando as mulheres são excluídas das “tarefas mais nobres”, bem como a atribuição de “tarefas penosas, baixas e mesquinhas” (BOURDIEU, 2011BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011., p. 34). Afinal, na concepção da dominação masculina,

Cabe aos homens, situados do lado do exterior, do oficial, do público, do direito, do seco, do alto, do descontínuo, realizar todos os atos ao mesmo tempo breves, perigosos e espetaculares, como matar o boi, a lavoura ou a colheita, sem falar do homicídio e da guerra, que marcam rupturas no curso ordinário da vida. As mulheres, pelo contrário, estando situadas do lado do úmido, do baixo, do curvo e do contínuo, vêem ser-lhes atribuídos todos os trabalhos domésticos, ou seja, privados e escondidos, ou até mesmo invisíveis e vergonhosos, como o cuidado das crenças e dos animais, bem como todos os trabalhos exteriores que lhes são destinados pela razão mítica, isto é, os que levam a lidar com a água, a erva, o verde (como arrancar as ervas daninhas ou fazer a jardinagem), como o leite, com a madeira e, sobretudo, os mais sujos, os mais monótonos e mais humildes. (BOURDIEU, 2011BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011., p. 41)

Por sua vez, na Penitenciária Feminina Madre Pelletier, o trabalho é desenvolvido por quatro turmas de agentes que se revezam no regime de vinte e quatro horas de trabalho por setenta e duas horas de descanso. Cada turma é formada por uma média de dez APs. Nesse sentido, há apenas dois homens por plantão, com exceção de uma turma em que há apenas um. Os APs também têm o desenvolvimento de suas funções restritas no estabelecimento feminino, normalmente, resumidas às atividades de motoristas e auxiliares na portaria e no portão administrativo. Eles apenas sobem para as galerias em situações consideradas de urgência e gravidade. Quando a força se faz necessária para a contenção das presas (brigas, resistência ativa ao cumprimento de ordens, por exemplo), eles auxiliam as colegas. Os APs evitam ficar a sós nos ambientes com as presas para prevenir acusações de assédio.

Dessa forma, verifica-se que a prática na Penitenciária Feminina mantém os estereótipos referidos, uma vez que os homens permanecem nas funções de “proteção”, “força”, “virilidade”. Sua permanência é justificada pela necessidade de “salvaguarda” das colegas. Ainda, sua estada nos andares inferiores e os obstáculos ao seu contato direto com as detentas nas galerias reflete, mais uma vez, tanto a “fragilidade” das mulheres presas diante de sua presença quanto a própria reafirmação de estigmas decorrentes de práticas antigas das prisões, quando os guardas homens utilizavam-se frequentemente das apenadas para satisfazer desejos sexuais.

Verifica-se que, na posição de AP, ambos acabam sendo rotulados e discriminados, um por sua condição de vulnerabilidade e necessidade de proteção, o outro pela agressividade e imposição de suas vontades, associadas ao gênero que representam.

Assim, entende-se que a estigmatização e a discriminação devem ser reconceituadas e não analisadas sob uma ótica individual, como “um tipo de coisa”. Precisa-se entendê-las como ferramentas de poder e de dominação utilizada para promover a exclusão social desses grupos marginalizados e, somente assim, a partir desse reconhecimento, conseguir-se-á promover intervenções para combater a epidemia do estigma, discriminação e negação (PARKER; AGGLETON, 2001PARKER, Richard; AGGLETON, Peter. Estigma, discriminação e AIDS. Rio de Janeiro: ABIA, 2001. Disponível em: <http://www.abiaids.org.br/_img/media/colecao%20cidadania%20direito.pdf>. Acesso em: 3 out. 2014.
http://www.abiaids.org.br/_img/media/col...
).

Isso posto, percebe-se que a discriminação interseccional – decorrente da participação concomitante em diversas categorias – é uma realidade presente para essas servidoras, as quais sofrem discriminação por sua profissão, somada ao pertencimento de classe social, orientação sexual, racial, entre outras.

Conclusão

Apesar de o significado da palavra “estigma” modificar-se com o tempo, ele continua sempre relacionado a um atributo negativo que seu portador carrega. Nesse sentido, o estigma mantém sua função inicial de promoção de exclusão social, afinal, é a representação de uma “identidade social deteriorada”.

Independentemente do cumprimento de sua pena e da quitação de sua dívida com a “justiça”, a ex-presidiária carregará essa mácula até o fim de seus dias. As oportunidades de emprego estarão restritas ou, até mesmo, não existirão. A “criminosa” será rotulada mesmo que tenha cometido um delito de pouca significância. As marcas do presídio sempre a acompanharão.

Contudo, verifica-se que essas marcas não atingem somente os que nela ingressam para cumprir pena. Ou seja, não só as detentas, mas também as que nela trabalham carregam o estigma penitenciário. O desempenho laboral no ambiente carcerário possui reflexos na vida das APs, tanto intra quanto extramuros.

Percebe-se, assim, que essas servidoras costumam ser estigmatizadas pelos “normais”. Estes não só vinculam a imagem das agentes penitenciárias à das detentas, como também atribuem à sua personalidade características como corrupção, violência e “perversão”, como a homossexualidade (em especial no caso das mulheres). Além dessa estigmatização, as servidoras acabam igualmente sendo estigmatizadas em virtude de patologias desenvolvidas a partir do exercício de suas funções nas instituições de tratamento penal. Com isso, terminam confundidas com as criminosas, vistas como bêbadas, estressadas, insanas etc.

Como se não bastassem os estigmas carregados pela categoria, o trabalho penitenciário está vinculado a diversos casos de discriminação, seja pela sociedade, pela própria instituição prisional, ou pelas famílias e amigos das próprias APs. A funcionária pública está constantemente exposta à mácula que carrega e tem seus direitos violados.

Dentro das instituições prisionais, entre as profissionais, verifica-se ainda que há uma tentativa de manutenção da dominação masculina, de forma que os agentes penitenciários do sexo masculino limitam as funções a serem exercidas pelas APs mulheres e, ao mesmo tempo, têm suas funções limitadas quando desempenhadas em prisões femininas. Nesse sentido, elas ficam restritas à execução de tarefas consideradas “administrativas”, seguras, longe do “fundo da cadeia”, não podendo realizar os procedimentos relativos à segurança. Já eles têm a função de proteger as colegas quando as situações exigirem o uso da força e seu contato com as presas restrito para que não “abusem” de sua condição. Verifica-se a utilização do estigma e da discriminação como ferramentas de poder, objetivando a manutenção da dominação existente, entre classes sociais e gêneros.

Logo, o desrespeito aos direitos humanos das servidoras públicas que trabalham nas prisões acontece de diversas formas e é real para pessoas que vivem em um ambiente no qual a qualidade mínima necessária para uma vida decente não existe, em que há desrespeito às normas de higiene. O mesmo desrespeito que sofrem as presas, sofrem também as APs, com a diferença de que estas se afastam do inóspito ao término do expediente.

Por fim, cumpre ressaltar o desrespeito que toda população sofre ao não perceber garantidos seus direitos humanos de segunda geração (ditos sociais: saúde, educação, lazer etc.); isso também é realidade na vida das APs (das presas e das pessoas pobres). Somem-se outras formas de discriminação, como a violência simbólica que as mulheres agentes sofrem (tal qual as demais mulheres).

Conclui-se que o estigma penitenciário promove a exclusão social não só das presas e das egressas, mas também das servidoras que trabalham nas instituições de tratamento penal. Não é talvez exclusividade delas essa exclusão, mas isso certamente se agrava pelas peculiaridades relativas à profissão.

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  • 1
    Como o objeto deste artigo são as mulheres que atuam na profissão de agente penitenciário, motivo pelo qual a maioria das entrevistadas é servidora da Penitenciária Feminina Madre Pelletier (PFMP) e de outras casas prisionais gaúchas, optamos por fazer referência utilizando os termos no feminino mesmo quando, dentre as envolvidas, encontram-se homens e mulheres. Os termos são empregados no masculino quando apenas homens estiverem envolvidos e quando constituem citações (diretas e indiretas) de outras obras ou de entrevistas.
  • 2
    O programa se destinava à capacitação das servidoras da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), tanto agentes penitenciárias quanto técnicas, que trabalhassem diretamente com mulheres privadas de liberdade, em estabelecimentos femininos e mistos.
  • 3
    Roger Raupp Rios (2008RIOS, Roger Raupp. Direito da antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008., p. 20) define o conceito jurídico de discriminação como “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural ou em qualquer campo da vida pública”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2017

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2016
  • Aceito
    05 Maio 2017
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