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O estranho e o ordinário: o Haiti, o Caribe e o mundo1 1 This text was first prepared as the keynote address at a conference on “Haiti in Comparative Perspective”, sponsored by Columbia/The New York University Consortium on Latin American and Caribbean Studies, New York University, New York, 9 February 1990. It is reproduced here with minor modifications. I thank Susan Lowes for valuable editorial suggestions. Editor’s note: We have updated the Haitian Creole terms that Trouillot used to follow the contemporary orthography. We have also added the complete reference for one of his works (Trouillot, 1992) that had not yet been published at the time the original version came out. Finally, we would like to thank Michel-Rolph Trouillot’s wife, Anne Carine Trouillot, who kindly authorized the republication and translation of this article into Portuguese. [Este texto foi inicialmente preparado como uma conferência de abertura para o seminário Haiti in Comparative Perspective, que ocorreu na Universidade de Nova Iorque, em 9 de fevereiro de 1990. O evento foi realizado com apoio do Consórcio das Universidade de Columbia e da Universidade de Nova Iorque para os Estudos Caribenhos e Latino-Americanos. O texto está reproduzido aqui com pequenas alterações. Agradeço a Susan Lowes pelas valiosas sugestões editoriais. Nota dos editores: Respeitando a ortografia contemporânea do crioulo haitiano, nós atualizamos os termos empregados por Trouillot ao longo do texto. Além disso, também completamos uma referência bibliográfica que, à época, estava ainda no prelo (Trouillot, 1992). Por fim, tornamos públicos nossos agradecimentos à esposa do autor, Anne Carine Trouillot, que gentilmente autorizou a republicação e a tradução deste artigo para o português.]

Como alguém explica o Haiti? Afinal, o que é o Haiti? O Haiti é o filho mais velho da França e da África. É um lugar de beleza, romance, mistério, gentileza, humor, egoísmo, traição, crueldade, massacre, fome e pobreza. É uma sociedade fechada e retraída, cujo distanciamento, diferente de qualquer outra no Novo Mundo, rejeita suas raízes europeias”.

Um belo trecho, não é? Bom, aqueles que conhecem meu trabalho talvez tenham adivinhado que estou tentando pregar uma peça em vocês. Essas palavras não são minhas. Elas constituem o primeiro parágrafo de Written in Blood, uma descrição sensacionalista da história haitiana escrita pelo coronel da Marinha Robert Heinl e por sua esposa, Nancy2 2 The Heiln lived in Haiti the 1960s, when the Colonel acted as an advisor to François Duvalier’s regime. For the introductory passage, see Heinl and Heinl (1978, p. 1). [Os Heinls viveram no Haiti na década de 1960, quando o coronel atuou como conselheiro do regime de François Duvalier. Para o trecho relativo à introdução, ver Heinl e Heinl, 1978, p. 1.] . Eu citei este parágrafo como introdução, pois ele exemplifica um ponto de vista vastamente compartilhado dentro dos estudos haitianos, e que eu gostaria de contrapor, a saber: a ficção do excepcionalismo haitiano. Heinl e Heinl começam com uma questão: “Como alguém explica o Haiti?”. A questão, então, é deixada de lado em favor de uma exaustiva lista de particularidades. Em seguida, ao final da lista, a ênfase muda para o isolamento do Haiti: o Haiti é único. Ele é diferente de qualquer outro país do Novo Mundo. E, de fato, se continuarmos lendo as próximas 700 páginas, logo descobriremos que ele é diferente de qualquer outro país - e ponto final.

A noção de excepcionalismo haitiano permeia tanto a literatura acadêmica quanto a literatura popular sobre o Haiti, sob diferentes disfarces e com diferentes graus de franqueza. À primeira vista, tal insistência no estatuto especial do Haiti parece ser o simples reconhecimento da trajetória espetacular do país. Eu sugiro, entretanto, que existem pautas ocultas - intelectuais e políticas - anteriores a essa insistência, e que essas pautas, no lugar de apresentarem um interesse genuíno pelas particularidades da história do Haiti, sustentam o excepcionalismo haitiano.

O Haiti é único. O Haiti é diferente. O Haiti é especial. Em um nível superficial, essas constatações poderiam simplesmente significar que um conjunto particular de características ambientais, históricas e sociais contribuem de variadas formas para tornar o Haiti diferente de outros lugares: o Haiti não é a Argentina, ou o Canadá, ou a Alemanha, ou o Senegal. Não tenho absolutamente nenhum problema com essas afirmações. Posso garantir que ninguém nascido em Aquin, Gonaïves ou Cité Soleil pensa que esses lugares sejam Buenos Aires, Frankfurt ou Dacar.

Contudo, aqueles que insistem com frequência na singularidade do Haiti não querem dizer apenas que o Haiti é único. Toda e qualquer sociedade é única, distinguível de qualquer outra. De fato, regiões dentro de um mesmo país podem ser distinguíveis de outras regiões. Sociedades, países ou regiões são produtos históricos e todos os produtos históricos são únicos - por definição e por necessidade. E quanto mais sabemos sobre um lugar ou uma pessoa, mais esse lugar ou essa pessoa nos parecerá único. Mas não seguimos repetindo isso: a vida é muito curta para tal. Que eu saiba, escritores estrangeiros ou nativos que escrevem sobre, por exemplo, a República Dominicana, o Paraguai, a Bolívia, a Tailândia, Madagáscar ou o Gabão - para citar apenas alguns lugares notáveis - não repetem ad nauseam o quão únicas essas sociedades são. Eles reconhecem essa singularidade e prosseguem a partir daí. Portanto, a celebrada singularidade da cultura e da sociedade haitianas deve significar mais do que a distinção que caracteriza um produto histórico de quaisquer outros produtos históricos.

Se todos os produtos históricos são únicos, nem todos eles são discerníveis da mesma forma. É bastante provável que uma configuração particular de circunstâncias levará a um produto histórico cuja singularidade é deslumbrante: um indivíduo, um grupo de indivíduos, uma instituição ou um fenômeno que nos chamará a atenção mais do que outras entidades similares. Em resumo, alguns produtos históricos são mais memoráveis do que outros, ao menos para certos grupos de observadores. Por mais singulares que possamos ser, faz sentido insistir que Júlio César, Napoleão, Shaka Zulu, Toussaint Louverture, François Duvalier ou Mikhail Gorbachev são únicos de maneiras que precisam ser reconhecidas. Faz sentido insistir no fato de que a Santa Sé é uma instituição religiosa única, que a Academia Francesa é uma combinação única de cultura e política, que o fascismo alemão foi um movimento político único, que o Estado de Israel é uma entidade geopolítica única, que os Estados Unidos, Cuba, Brasil, Libéria, Tibete ou as Filipinas são países bastante distinguíveis. A singularidade de cada um salta aos olhos e precisa ser enfatizada em seu próprio contexto ou ainda, a depender do caso, no contexto da história mundial.

Nesse sentido, é claro, o Haiti parece ser comparativamente mais singular do que muitos outros países. A lista de características que o fazem especial é longa, a começar pela história de São Domingos e a Revolução Haitiana: primeira e única revolução escrava bem-sucedida na história moderna. O primeiro país independente das Américas e, por muito tempo, o único onde a liberdade significava liberdade para todos. Primeira e, por muito tempo, a única república negra na história mundial e, de fato, o primeiro estado moderno não-branco. O país mais rural das Américas. A maior população falante de crioulo no mundo, etc, etc, etc.

Nesse sentido, é claro, o Haiti é de fato único. E se quisermos fazer um jogo semântico, ele não é apenas único: é excepcional, o resultado de uma impressionante convergência de particularidades históricas. Essa é a singularidade que explica a resiliência cultural do Haiti. Essa é a singularidade que atrai estrangeiros - turistas e acadêmicos, por bem ou por mal. Essa é a singularidade que sustenta o orgulho nacional haitiano - por bem e por mal. Essa é a singularidade na qual apostam os funcionários de turismo no Haiti, há mais de vinte anos, com o slogan de “Vive la différénce!”.

Não tenho problemas com essa visão das particularidades do Haiti, ainda que possa questionar o uso que alguns fazem delas. Por todas as razões que mencionei, e provavelmente por muitas outras, o Haiti é excepcional de muitas formas. Eu insistiria, no entanto, que esse excepcionalismo é apenas uma forma de olhar para a realidade haitiana. Há continuidades muito menos petulantes que compõem essa trajetória espetacular. A maioria dos haitianos vivem vidas bastante ordinárias. Eles comem o que é para eles - e para muitas outras pessoas - uma comida bastante ordinária. Eles morrem mortes bastante ordinárias de acidentes bastante ordinários, de torturas bastante ordinárias, de doenças suficientemente ordinárias. Acidentes tão ordinários que poderiam ser prevenidos. Torturas tão ordinárias que a imprensa internacional sequer as menciona. Doenças tão ordinárias que são facilmente tratadas em qualquer outro lugar do mundo. Excepcional, não é?

Certamente mais excepcional do que a Índia, a ilha de Java, Burma ou a Etiópia - que são, claro, excepcionais à sua própria maneira. Ouçam Blair Niles, autor de Black Haiti: “sou familiarizado com as danças de gestos sutis do Japão, da Índia, de Java, de Burma. Eu assisti a dança da caça às cabeças dos Dayak de Bornéu. Aquilo era selvagem o suficiente; primitivo o suficiente... mas por mais selvagem que fosse, também era, de certa forma, sofisticado”. Então, Blair Niles descobriu o Haiti e suas danças. Elas, Niles afirma, “regrediram muito mais do que a caçada [de Bornéu]; voltaram ao início...” (Niles 1926: 27NILES, Blair. 1926. Bl ack Haiti: A Biography of Africa’s Eldest Daughter. New York: Grosset and Dunlap.).

Nota-se que Blair está escrevendo com admiração, ao menos nessa passagem. Em outras partes do livro, ele critica fortemente os estrangeiros que difamaram o povo haitiano. Além disso, existem muitas evidências ao longo do texto de que Niles fez um esforço genuinamente maior do que grande parte dos autores, antes e depois dele, para entender o Haiti. Em todo caso, ninguém pode acusá-lo de não gostar dos haitianos. É justamente o contrário: ele é atraído por eles. Mas é atraído da mesma forma pela qual alguém pode ser atraído por um fetiche sexual ou um tabu. Isto é, ele é atraído pelo Haiti como uma forma de desvio. O que ele gosta no Haiti é justamente o que crê ser aberrante, a imagem oposta de um mundo de normalidade. Isso não é único e nem mesmo excepcional. Isso é estranho.

Ouçam o professor Heinz Lehman, da Universidade McGill, falando ao estudante Wade Davis, renomado autor de A serpente e o arco-íris: “Deixe-me poupá-lo de qualquer suspense, Sr. Davis. Nós entendemos... que você se sente atraído por lugares incomuns. Propomos enviá-lo para a fronteira da morte” (Davis 1985: 15DAVIS, Wade. 1985. The Serpent and the Rainbow. New York: Warner Books.). Aqui, Davis se sente atraído por lugares “incomuns”. Incomum não significa único e, assim como a referência sobre a fronteira da morte (como na versão hollywoodiana do livro), a palavra está aqui para enfatizar exatamente essa diferença. Não, aqui, incomum significa esquisito, estranho, peculiar, exótico, excêntrico, bizarro. Que estranho, não é mesmo?

De fato, Davis é cuidadoso o suficiente para não usar essas palavras; mas isso pode ser um reflexo do tempo. Até mesmo os guias de viagem e a National Geographic aprenderam a não apresentar lugares considerados exóticos com uma terminologia explicitamente condescendente ou depreciativa. Além disso, desde o século XIX, uma tradição haitiana de refutação afiada tem mantido muitos escritores estrangeiros, norte-americanos e franceses em particular, em estado de alerta. Assim, por exemplo, Davis - logo ele! - tenta se distanciar dos “filmes sensacionalistas e de pulp fiction” (1988:3). Os Heinls (que sintetizaram o pior da interferência norte-americana na política haitiana) dedicaram seu livro aos heróis nacionalistas haitianos. Tornou-se um requinte, entre os escritores estrangeiros, denunciar a imprensa haitiana de má qualidade enquanto davam a ela sua contribuição.

Nesse contexto, o excepcionalismo haitiano tende a funcionar como um subtexto para a maioria dos livros publicados fora do país, na segunda metade desse século. Enquanto ele permeia todo o trabalho de Davis, poucas frases realmente articulam o argumento, exceto talvez pela contracapa e o anúncio publicitário (Davis, 1985DAVIS, Wade. 1985. The Serpent and the Rainbow. New York: Warner Books.; Abbot, 1989ABBOT, Elizabeth. 1988. Haiti. New York: McGraw Hill.). 3 3 Publishers and reviewers are less cautious and more candid than writers themselves. So, Warner Books presents Davis’s The Serpent and the Rainbow as a “journey of discovery across the border between life and death, between good and evil”. The back cover of the paperback edition of the same book quotes reviews from the Wall Street Journal and the Washington Post: “Exotic and far-reaching… just the way Indiana Jones would tell it… Replete with bizarre details to titillate the curious…” (Davis, 1985). [Editores e revisores são menos cautelosos e mais sinceros do que os escritores. A Warner Books apresenta A serpente e o arco-íris como uma “jornada de descobertas através da fronteira entre a vida e a morte, entre o bem e o mal”. A contracapa da versão em brochura do mesmo livro cita frases de resenhas críticas do Wall Street Journal e do Washington Post: “Abrangente e exótico... exatamente da forma como Indiana Jones o contaria... Repleto de detalhes bizarros para deleitar os curiosos...” (Davis, 1985).] Às vezes, porém, escritores - incluindo acadêmicos respeitados - podem ser menos cuidadosos ou indiferentes o suficiente para permitir que o excepcionalismo haitiano apareça no próprio texto. Mais uma frase dentre tantas: “o Haiti, como a Sicília no século XVIII, sempre foi um lugar distante”, um lugar com “uma predileção pelo bizarro e pelo grotesco” (Rotberg, 1971: 7-8ROTBERG, Robert; Clague, Christopher C. 1971. Haiti: The Politics of Squalor. Boston: Houghton Mifflin.). Como os franceses costumam dizer, com uma gentil condescendência: “Singulier petit pays”.

Estou, é claro, incomodado com essa condescendência. Mas isso não é tudo. O problema mais importante na ênfase exagerada na singularidade do Haiti - mesmo quando ela não é formulada em termos depreciativos - é tanto político quanto metodológico. Minha própria intolerância está menos relacionada à limitação frequentemente implícita em tais afirmações (as quais, afinal, dizem mais sobre seus autores do que sobre o Haiti) do que às consequências práticas dessa limitação. Quando nos dizem repetidas vezes que o Haiti é único, bizarro, anormal, esquisito, excêntrico, exótico ou grotesco, também estão nos dizendo, de diversas formas, que o Haiti é anormal, irregular e, portanto, inexplicável. Estão nos dizendo que o Haiti é tão especial que os métodos de investigação aplicáveis a outras sociedades não são relevantes aqui.

Em seu notável livro Haiti and the Great Powers, Brenda Gayle Plummer critica o mito do excepcionalismo haitiano e expõe algumas de suas consequências. Na visão de Plummer, “[a] ideia de que o Haiti não se encaixava em nenhum paradigma proibiu o desenvolvimento de tudo, exceto de políticas mais conservadoras” por parte de poderes internacionais, incluindo os Estados Unidos (Plummer, 1988PLUMMER, Brenda Gayle. 1988. Haiti and the Great Powers. Baton Rouge: University of Louisiana Press.). Poderíamos acrescentar que a mesma visão continua ainda hoje a influenciar alguns políticos nos Estados Unidos, na França ou no Vaticano - para citar apenas três dos Estados envolvidos com as questões haitianas. Plummer, entretanto, é muito mais indulgente do que eu em relação aos políticos e intelectuais haitianos, ainda que ela admita que eles compartilham parte da culpa. Na minha visão, o excepcionalismo haitiano atua como um escudo em ambos os casos.

Embora não se restrinja apenas aos escritores estrangeiros, a ficção de que o Haiti escapa a qualquer análise ou comparação surgiu das mentes de observadores europeus e norte-americanos, homens brancos em sua maioria, que escreviam sobre o Haiti no início do século XIX, momento em que a existência de um estado “negro”, estabelecido a partir de uma revolução anticolonial parecia uma aberração diante de seus olhos. Para uma profusão de escritores, de James Franklin a Gustave d’Alaux, passando por Spencer St. John e por Robert e Nancy Heinl, o excepcionalismo haitiano tem sido um escudo que mascara a contribuição perversa dos poderes ocidentais para a situação haitiana. O excepcionalismo haitiano funciona, assim, como um escudo contra a integração do Haiti a um mundo dominado pelo cristianismo, pelo capitalismo e pela branquitude. Quanto mais o Haiti parecer estranho, mais fácil será esquecer que ele representa o mais longo experimento neocolonial da história do Ocidente.

Até James Leyburn cometeu o mesmo pecado de omissão. No terceiro capítulo do seu importante livro, The Haitian People, Leyburn (1941: 32LEYBURN, James. 1941. The Haitian People. New Haven: Yale University Press.) escreveu: “se alguma vez algum país teve a oportunidade de começar desde o zero a escolha de suas próprias instituições sociais, esse país foi o Haiti, que teve essa oportunidade em 1804... Os haitianos poderiam (ao menos em tese) ter inventado todo um pequeno novo mundo com uma outra vida econômica, política, religiosa e social. Todos os caminhos estavam abertos para eles”. Leyburn conclui que, infelizmente, as limitações de Dessalines colocaram os haitianos na rota para o desastre.

Bom, isso não iria acontecer. Nem na teoria nem na prática. Com uma canetada, Leyburn apagou três séculos de dominação colonial direta e um século e meio de neocolonialismo. E tudo isso foi escrito por um autor que permanece, para mim, como um dos melhores observadores, entre haitianos e estrangeiros, da sociedade haitiana e de sua cultura.

O lado haitiano dessa história não é mais glorioso, ainda que, algumas vezes, pareça, ao menos no papel, muito melhor. De fato, muitos intelectuais e políticos haitianos continuam a repetir a mesma ladainha sem sentido e até mesmo em mais alto volume do que seus equivalentes estrangeiros. A realidade é que essa ficção é tão conveniente para as elites haitianas quanto para muitos estrangeiros, ainda que por diferentes motivos.

Antes do século XX, os escritores haitianos raramente, quando muito, promoviam a singularidade haitiana em seus estudos sobre a realidade de seu país. Na verdade, ocorria justamente o oposto, sobretudo na primeira metade do século XIX. Com efeito, os intelectuais haitianos viram, acertadamente, as teorias do excepcionalismo haitiano que estavam se espalhando na Europa e na América do Norte como implicitamente - e muitas vezes explicitamente - racistas. Logo após a independência, um escritor como Barão de Vastey baseou-se nos princípios universais do Iluminismo para anunciar a Revolução Haitiana e rejeitar teorias que procuravam associar aparência física e caráter nacional4 4 At the same time, yet in a more subtle way, Haitian poets and, later, novelists, replied to the negative mythification of Haitians by the West with myth-making writings of their own, a process that continues today (e.g. Dash 1988). [Ao mesmo tempo, mas de uma forma mais sutil, poetas haitianos e, mais tarde, romancistas, responderam à mitificação pejorativa do Haiti pelo Ocidente com uma escrita que produzia seus próprios mitos, em um processo que continua até os dias de hoje (ver, por exemplo, Dash, 1988).] . No final do século XIX e início do XX, escritores como Demesvar Delorme, Louis-Joseph Janvier, Anténor Firmin, Edmond Paul chegando até Jean Price-Mars e Dantès Bellegarde tentaram, de diversas formas, dar um sentido ao Haiti no contexto internacional, aplicando algumas das teorias predominantes de seu próprio tempo para a situação haitiana. Tal fato é particularmente verdadeiro no caso das ciências sociais e da economia. Ainda que, atualmente, possamos questionar o liberalismo econômico de Edmond Paul, a sociologia de Louis-Joseph Janvier ou a etnologia de Jean Price-Mars, é preciso dizer que esses autores nunca pensaram que o Haiti fugisse dos paradigmas do seu tempo.

Mas à despeito desses autores terem citado pensadores europeus famosos, a prática política no Haiti frequentemente se alimentou do excepcionalismo. As elites haitianas atuaram como se, teorias à parte, o Haiti fosse excepcional e, portanto, devesse ser liderado também de forma excepcional. Desse modo, as políticas de um Delorme ou de um Firmin não diferiam muito das dos generais iletrados que hora os apoiavam hora não e que talvez tenham acreditado no excepcionalismo haitiano. Ainda assim, a suposição pública e incontestada, em todos os círculos intelectuais, de que o Haiti era realmente um país como todos os outros, limitou os danos infligidos pela aceitação de práticas que, em caso contrário, seriam consideradas não-convencionais.

Com a ocupação dos Estados Unidos, entre 1915 e 1934, entretanto, os estudos haitianos sofreram uma notável perda de qualidade, acompanhada pelo crescimento da aceitação de teorias baseadas na singularidade do Haiti. A ocupação levou a uma reavaliação da identidade haitiana entre as elites, incluindo o caso de escritores como Jean Price-Mars. Porém, o mal-estar ideológico daqueles tempos também abriu a porta para a possibilidade de questionamentos com relação aos universais herdados do Iluminismo. Partindo de Price-Mars, mas rejeitando sua herança iluminista, a escola dos Griots - da qual François Duvalier foi um dos membros - insistiu particularmente nas singularidades da mentalité haitiana5 5 Because members of the Griot school claimed to be followers of Jean Price-Mars, Price-Mars has passed for a proponent of Haitian exceptionalism, a charge for which I find no justification in his voluminous writings. Price-Mars (1929) certainly did not at the outset reject what he took for science, not even Justin Dévot’s unsuccessful tentative effort to introduce positivism in Haiti. Rather, in a move that anticipated both Bastide and Herskovits, Price-Mars simply insisted that Haiti could not be studied as if it were an avatar of Europe with no African influence, and that Haiti’s African heritage was itself amenable to scientific study. Both points are now unquestioned among anthropologists, although they may derive from them quite different conclusions. That the first point was also repeated by Duvalier as a part of a new problématique (Denis and Duvalier, 1936) does not make Price-Mars an exceptionalist. At any rate, in Price-Mars’s own words, his seminal Ainsi parla l’oncle (1928) is “an endeavor to integrate the popular Haitian thought into the discipline of traditional ethnography (Price-Mars 1983: 7). [Como os membros da escola dos Griots afirmavam ser seguidores de Jean Price-Mars, ele passou a ser visto como um proponente do excepcionalismo haitiano, uma responsabilidade que não encontra justificativa alguma em seus volumosos escritos. Certamente, desde o início, Price-Mars não recusou o que ele entendia como ciência, nem mesmo os esforços mal-sucedidos de Justin Dévot de introduzir o positivismo no Haiti. Mais do que isso, em um movimento que antecipou tanto Bastide quanto Herskovits, Price-Mars insistiu que o Haiti não poderia ser estudado como se fosse um avatar da Europa sem levar em conta sua influência africana, e que esta era, no Haiti, passível de ser analisada cientificamente. Atualmente, ambos os argumentos são inquestionáveis entre os antropólogos, ainda que diferentes conclusões possam derivar deles. O primeiro ponto, que também foi repetido por Duvalier como parte de uma nova problématique (Denis e Duvalier, 1936), não faz de Price-Mars um excepcionalista. De qualquer forma, nas palavras de Price-Mars, seu livro seminal, Ainsi parla l’oncle (1928), “é um esforço para integrar o pensamento popular haitiano à disciplina tradicional da etnografia tradicional” (Price-Mars, 1983: 7).] .

Assim, a partir de 1930, as pesquisas, a prática política e a legislação enfatizaram a singularidade do Haiti e, de fato, contribuíram para o fortalecimento dessa singularidade produzindo aberrações tais como a infame lei anti-comunista de 1969. Entre as muitas razões citadas para a proibição até mesmo da crença no comunismo, a lei destaca “a incompatibilidade das doutrinas importadas, notadamente o Marxismo-Leninismo, com a ordem social política e econômica do Haiti” (citado em Trouillot e Pascal-Trouillot, 1978, 445TROUILLOT, Ernest; Pascal-Trouillot, Ertha. 1978. Codes de lois usuelles. Port-au-Prince : Editions Henri Deschamps., grifos do autor). De acordo com Duvalier, o Haiti poderia encontrar os ingredientes para o seu progresso apenas em sua própria cultura, uma cultura que seria, evidentemente, única, adquirindo um sentido quase místico enfatizado pela doutrina Griot6 6 Two preceding laws on Communist activities under Presidents Estimé (February 1948) and Magloire (September 1951) make no reference to Haitian culture as such (Trouillot and Pascal-Trouillot, 1978, p. 443-44). [As duas leis promulgadas anteriormente sobre as atividades comunistas, durante os governos dos Presidentes Estimé (fevereiro de 1948) e Magloire (setembro de 1951), não fazem referência alguma à cultura haitiana (Trouillot; Pascal-Trouillot, 1978, pp. 443-44).] .

Eu seria a última pessoa a dizer que a cultura haitiana não é única, ou que o Haiti não deveria lançar mão de suas potencialidades culturais. A questão é que antes e durante os anos Duvalier, as particularidades do Haiti foram utilizadas para defender as elites haitianas. O Haiti é único e portanto escapa às teorias estrangeiras, inclusive às análises sobre classes sociais. De fato, o Haiti escapa de toda e qualquer análise, no sentido estrito do termo. E ele escapa também das comparações. Portanto, podemos governar esse país de formas que parecem desafiar a imaginação da maioria dos estrangeiros e de alguns tantos haitianos. O Haiti é especial; assim, merece instituições feitas sob medida e um governo feito sob medida. A manobra política aqui é evidente. Assim como a falácia intelectual sobre a qual está assentada.

Me parece que aprendemos muito menos sobre o Haiti se o interpretarmos como uma aberração que desafia qualquer explicação do que se o situarmos em uma perspectiva comparativa. Uma das limitações mais sérias dos estudos haitianos, no Haiti e em outros lugares, está ligada à propensão dos haitianistas, sobretudo dos acadêmicos nascidos no país, em estudar o Haiti e nada mais além do Haiti. A hipótese é a de que aquilo que aprendemos observando outra sociedade não pode nos ensinar nada sobre o Haiti, já que o Haiti é tão único. Sem dúvida, o insularismo é uma característica dos estudos caribenhos como um todo. Jamaicanos estudam a Jamaica, cubanos estudam Cuba e alguns estrangeiros estendem suas asas para além dos limites linguísticos do arquipélago. Porém, a ironia nesse caso é que a excepcional história haitiana apresenta muitas características que podem se beneficiar da observação de outras sociedades, especialmente na América Latina e, mais ainda, nas outras Antilhas.

No que resta deste texto, vou mencionar algumas áreas, centrando-me em exemplos de casos vizinhos, que poderiam certamente beneficiar os estudos haitianos. Me inspirei em tantos colegas que não sou capaz de mencionar todos aqui. Tampouco conseguirei apresentar todas as áreas potencialmente interessantes para um estudo comparativo.

O campesinato é uma dessas áreas, e uma das mais importantes. Passei quinze meses fazendo trabalho de campo na Dominica e acredito que aprendi muito mais sobre o campesinato haitiano durante esses meses do que ao longo dos dezoito anos vivendo em Porto-Príncipe. O Haiti, assim como as Ilhas de Barlavento, Jamaica, Porto Rico ou, em menor medida, como Trinidade e Tobago, tem um importante campesinato pós-plantation. Como as teorias sobre o impacto da economia de plantation ou sobre a passagem da plantation ao campesinato em um contexto dominado pelo capitalismo (Trouillot, 1988TROUILLOT, Michel-Rolph. 1988. Peasants and Capital: Dominica in the World Economy. Baltimore: The Johns Hopkins University Press.) se encaixam no caso haitiano? Até onde eu sei, Alex Dupuy talvez seja o primeiro intelectual haitiano a enfrentar essa questão. Os estudos haitianos, em geral, poderiam se beneficiar de leituras mais sistemáticas de Walter Rodney, George Beckford, Raymond Smith e J.R. Mandle. Os ensaios comparativos de Sidney Mintz sobre os campesinatos caribenhos (1979; 1990MINTZ, Sidney W. 1989 [1974]. Caribbean Transformations. New York: Columbia University Press.) podem oferecer um excelente ponto de partida para esse tipo de trabalho.

Dentre as tantas questões sem resposta presentes nos estudos caribenhos, e que poderiam influenciar diretamente a forma como os haitianistas olham para o Haiti, posso apenas esboçar uma lista. Por que existem padrões similares ao plasaj haitiano ou instituições rurais análogas ao lakou ou ao konbit em outros locais do Caribe? Até onde vão essas semelhanças? Estão elas em declínio ou sobrevivendo do mesmo modo e pelas mesmas razões? Como elas se relacionam com as questões de gênero? As mulheres comerciantes haitianas são surpreendentemente parecidas com as mulheres comerciantes da Jamaica - ou do Gana. Por quê? Até onde podemos considerar o paradigma da pós-plantation para os papéis sociais ou para o campesinato reconstituído de Mintz?

Assim como há um campesinato pós-plantation, também há um Estado pós-plantation. Meu próprio trabalho comparando as elites do pós-escravidão da Dominica e do Haiti revela similaridades surpreendentes. Não por acaso, um dos mais importantes bordões do século XIX, no Haiti - “Le plus grand bien au plus grand nombre” (“O bem maior para a maioria”) - o leitmotif dos negros do Parti National em uma sociedade dominada por mulatos (Trouillot, 1992TROUILLOT, Michel-Rolph. 1992. “The Inconvenience of Freedom: Free People of Color and the Aftermath of Slavery in Dominica and Saint-Domingue/Haiti”. In: DRESCHER, S. F. McGlynn (eds.). The Meaning of Freedom: Economics, Politics and Culture after Slavery. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, pp. 147-182.), foi também a máxima da elite mulata na Dominica dominada pelos britânicos. Será que a situação do pós-plantation conduz a formas específicas de poder estatal, incluindo formas específicas de retóricas do Estado (Trouillot, 1990TROUILLOT, Michel-Rolph. 1990. Haiti, State against Nation: The Origins and Legacy of Duvalierism. New York: Monthly Review Press.)?

Podemos aliar a essa questão temas já muito debatidos nos estudos latino-americanos, como o autoritarismo e o papel das forças armadas. Existe algo como um autoritarismo social que pode resultar em formas do poder político? O exército haitiano, assim como o exército do Panamá, da República Dominica e, até recentemente, da Nicarágua, é produto da invasão dos Estados Unidos. Quais são as semelhanças e as diferenças entre essas instituições na medida em que elas funcionam em sociedades reconhecidamente diferentes, mas, de muitas formas, semelhantes?

A religião é outra área importante. Até onde eu sei, ninguém ainda seguiu sistematicamente o caminho aberto por Roger Bastide ao esboçar comparações entre o Brasil e o Haiti. Outro caminho a ser explorado é o dos trabalhos de Melville Herskovits sobre os africanismos - com as correções necessárias, claro, mas também acompanhado de releituras da obra de Price-Mars. Agora que já sabemos mais sobre, digamos, Suriname e Brasil, o quão “africano” parece o Haiti em uma perspectiva continental? E, é claro, poderíamos levar a comparação até a África.

Da mesma forma, devemos olhar para o crioulo haitiano a partir do que sabemos sobre as línguas crioulas em locais tão distantes quanto a ilha da Reunião. No mínimo, os estudos sobre o crioulo haitiano poderão se beneficiar muito de uma familiarização com trabalhos como os de Louis-Félix Prudent sobre Guadalupe e Martinica, e especialmente com os escritos de Marvyn Alleyne sobre o crioulo de Santa Lúcia e outros idiomas afro-americanos. E eu ainda não disse nada sobre a música...

Toquei apenas na ponta de um grande iceberg para fazer uma observação mais geral. Os estudos haitianos têm experimentado uma pequena, mas notável renovação desde o final da década de 1970. Mas ainda há muito a ser feito. Existem caminhos a seguir e novas conexões a serem realizadas. Podemos esperar que, com a diminuição da a ênfase exagerada no duvalierismo - para não dizer nas políticas de Estado - os haitianistas começarão a ler seriamente não apenas Bellegarde e Price-Mars (a quem considero os últimos exemplares de uma linhagem intelectual), mas também seus precursores, os clássicos do pensamento social haitiano do século XIX7 7 A good deal of this corpus is available. Further, publisher Henri Deschamps has recently issued the entire work - including hitherto unpublished volumes - of Thomas Madiou, Haiti’s first comprehensive historian. [Boa parte da obra desse conjunto de autores está disponível. Além disso, a editora Henri Deschamps publicou recentemente o trabalho completo - incluindo volumes até então não publicados - de Thomas Madiou, o primeiro dos mais completos historiadores haitianos.] . De fato, todos os aspectos da vida haitiana no século XIX se beneficiarão de leituras mais comprometidas, já que os estudos sobre este período têm sido injustamente prejudicados pela dupla ênfase dada nos estudos haitianos à revolução escrava de 1791 e à política do século XX. Enfatizo o pensamento social simplesmente porque os escritores daquela época, com sua fé no universalismo e seu desejo de defender o Haiti em um contexto de declarado ostracismo, podem nos oferecer um potente antídoto ao mito do excepcionalismo haitiano: questões específicas, afinadas às particularidades haitianas, mas informadas pelos debates internacionais de seu tempo.

Os estudos haitianos não podem prosseguir sem fazer um salto teórico. Dito de forma direta, precisamos abandonar a ficção, herdada da literatura racista oitocentista, de que o Haiti é único - se por único nos referimos a algo que escapa às análises e comparações. O Haiti não é estranho. É a ficção do excepcionalismo haitiano que é estranha.

References

  • ABBOT, Elizabeth. 1988. Haiti New York: McGraw Hill.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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