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Festas de santo, território e alianças políticas entre comunidades quilombolas de Salvaterra, Marajó, Pará, Brasil

Feast days, territory, and political alliances among quilombola communities in Salvaterra, Marajó Island, Pará, Brazil

Resumo

O artigo trata das festas em homenagem aos santos padroeiros e de devoção, realizadas por moradores de quinze comunidades quilombolas, localizadas no município de Salvaterra, na ilha do Marajó, estado do Pará, Brasil. A análise toma como centrais o conceito de território e a noção de dádiva, para compreender os processos de construção de alianças políticas, envolvendo moradores das comunidades quilombolas Salvá, Mangueiras, Caldeirão, Bairro Alto, Pau Furado, Bacabal, Santa Luzia, Providência, Deus Ajude, São Benedito da Ponta, Siricari, Boa Vista, Paixão, União/Campina e Rosário. O estudo mostra, com base em pesquisa etnográfica, que as festas em homenagem aos santos realizadas nesses locais contribuem para a construção e a reafirmação de alianças políticas, bem como para estabelecer uma ligação entre os territórios, ao enlaçar e envolver as comunidades em um grande circuito de festas, que extrapola as fronteiras dos territórios comunitários. As festas de santo, portanto, são eventos que permitem a reafirmação do sentido de pertencimento a uma comunidade e a um território, reforçando a disposição de lutar pela garantia de direitos territoriais perante o Estado.

Palavras-chave
Quilombola; Festas de santo; Reciprocidade; Alianças políticas

Abstract

This article analyzes patron saint festivals held among 15 quilombola communities located in the municipality of Salvaterra, Ilha do Marajó, in the state of Pará, Brazil. The analysis relies on the central concepts of territory and gifts to understand the construction of political alliances among the quilombola groups. Based on ethnographic research, this study demonstrates that the patron saint festivals held in these communities help build and maintain political alliances, as well as gather and mutually engage communities in one large celebration circuit that extends beyond the borders of these communal territories. In this way, patron saint festivals are events that reaffirm the sense of belonging to a community and a territory, reinforcing the willingness to struggle against the state for guaranteed territorial rights.

Keywords
Quilombo communities; Feasts of saints; Gift; Political aliances

INTRODUÇÃO

No município de Salvaterra, localizado na ilha do Marajó, estado do Pará, desde o ano de 2004, quinze comunidades negras rurais, com longa história de conflitos agrários com fazendeiros, passaram a se autodefinir como quilombolas e adotaram estratégias de luta pelo seu reconhecimento étnico e pela titulação de seus territórios. As comunidades são Salvá, Mangueiras, Caldeirão, Bairro Alto, Pau Furado, Bacabal, Santa Luzia, Providência, Deus Ajude, São Benedito da Ponta, Siricari, Boa Vista, Paixão, União/ Campina e Rosário (Lima Filho et al., 2016).

Desde o surgimento, essas comunidades negras – muitas com mais de cem anos de existência –, ao criarem estratégias de luta para manter ou mesmo conquistar territórios, vêm desenvolvendo laços de fidelidade/confiança e, por esse meio, tecendo alianças políticas entre si.

Com a inclusão do artigo 68 na Constituição Federal (CF) brasileira de 1988, que versa sobre o Ato das Disposições Constitucionais e Transitórias (ADCT)1 1 O artigo 68 (ADCT) da Constituição Federal de 1988 significou, pela primeira vez em muitos séculos de história do Brasil, a criação de um dispositivo jurídico que não apenas reconhece a existência de ‘remanescentes das comunidades dos quilombos’ (Brasil, 2001), como também institui a obrigação do Estado de regularizar e titular os territórios desses ‘remanescentes’. As lutas desses povos foram ampliadas pelo decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, o qual estabeleceu que as terras ocupadas por esses remanescentes, a serem reconhecidas e tituladas pelo Estado, são aquelas utilizadas para a garantia da reprodução física, social, econômica e cultural dessas comunidades, e não apenas as reduzidas áreas utilizadas para moradia (Brasil, 2003, não paginado). – o qual determina o reconhecimento e a titulação dos territórios dos “[...] remanescentes das comunidades dos quilombos [...]” –, criou-se um novo sujeito de direito (Brasil, 2002BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Mensagem nº 370, de 13 de maio de 2002. Dispõe sobre o veto ao Projeto de Lei nº 129, de 1995. Brasília: Senado Federal, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/veto_total/2002/Mv370-02.htm>. Acesso em: 19 out. 2017.
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, não paginado). A partir de então, em todo o Brasil, centenas de grupos sociais2 2 O termo ‘grupo social’ é usado aqui para referir-se a uma coletividade constituída por pessoas que realizam ações conjuntas, unidas por laços de afinidade e por objetivos comuns, e podem ser “[...] definidas por formas comuns de acesso a recursos produtivos e por sua participação em relações sociais similares para ganhar a vida [...]” (Schmink; Wood, 2012, p. 51). autoidentificaram-se3 3 No ano de 2002, o Brasil ratificou a convenção 169 da Organização Intenacional do Trabalho (OIT), a qual assegura o respeito à autodefinição dos povos. Dentro do processo de regularização de territórios quilombolas no Brasil, a Fundação Cultural Palmares (FCP) é responsável por emitir e registrar a certificação das comunidades que se autodefiniram como quilombolas. A autoidentificação referida aqui diz respeito a estes dois processos: tanto à autodefinição destas comunidades como quilombolas quanto à sua certificação pela FCP. como quilombolas, criando intensos processos de ressignificação cultural e de reconstrução de histórias, por meio da recuperação das memórias dos moradores de localidades até então referidas como comunidades negras rurais.

No Brasil, a assunção dessas novas identidades está diretamente vinculada à reivindicação de direitos sociais e coletivos por terra, uma vez que o Estado não disponibiliza outros instrumentos jurídicos de reconhecimento desses direitos. Ressalta-se que, até a promulgação da CF de 1988, grande parte dos grupos sociais habitantes das comunidades que reivindicam o seu reconhecimento como quilombolas era classificada como camponeses, tanto pela forma de reprodução social e de uso da terra quanto pelos tipos de conflitos, que envolviam o acesso às áreas necessárias aos seus modos de vida, considerados como fundiários, e não como de natureza étnica (Steil, 2001STEIL, Carlos Alberto. Pluralismo, modernidade e tradição: transformações do campo religioso. Ciências Sociales y Religión/ Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, v. 3, n. 3, p. 115-129, out. 2001. DOI: http://dx.doi.org/10.22456/1982-2650.2172.
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).

Com a CF de 1988, portanto, a categoria território, e não terra, passa a nortear os processos de reivindicações de direitos de vários grupos sociais, quando há o reconhecimento de uma presença ou de ocupação histórica de um território, partilhando um espaço comum, definido com base em três fundamentos, conforme enfatiza Little (2002)LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Brasília: Departamento de Antropologia, 2002. (Série Antropologia, n. 322).: a história que permeia a memória coletiva referente à ocupação do território; um lugar específico – o território –, que passa a ser objeto de um sentido/ sentimento de pertencimento por estes grupos sociais; e as formas coletivas ou comuns de uso dos recursos naturais desenvolvidas por estes grupos sociais.

Neste contexto, o Centro de Defesa do Negro no Pará (CEDENPA), com o apoio da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do chamado programa Raízes, desenvolvido pelo governo do estado do Pará, foi responsável, a partir dos anos 2000, pela identificação e pelo mapeamento de comunidades negras rurais em todo território estadual paraense. No município de Salvaterra, foram identificadas as comunidades de Pau Furado, Boa Vista, Mangueiras, Bairr Alto, Providência, Deus Ajude, Campina/Vila União, Siricari, Bacabal, Salvá, Paixão e Caldeirão. Antes do mapeamento, as pessoas dessas comunidades negras rurais não conheciam o direito à titulação do território quilombola, garantido pelo artigo 68 do ADCT/CF, apesar de estarem lutando há gerações para recuperar áreas que foram subtraídas por expropriadores (Lima Filho et al., 2016LIMA FILHO, Petrônio Medeiros; SILVEIRA, Flávio Leonel Abreu da; CARDOSO, Luis Fernando Cardoso e. O desfile da raça: identidade e luta quilombola em Salvaterra, ilha do Marajó, Pará. Ambivalências, Sergipe, v. 4, n. 7, p. 87-105, jan.-jun. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.21665/2318-3888.v4n7p87-105.
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).

No processo de autoidentificação, as mulheres destacaram-se como principais protagonistas, como lideranças políticas que trouxeram o debate identitário às suas comunidades e o difundiram nestes espaços. O protagonismo feminino é evidente, por meio da organização e da participação de mulheres negras nos Encontros de Mulheres Negras Quilombolas do Pará, promovidos pelo CEDENPA4 4 Segundo Acevedo Marin (2009, p. 217), “O I Encontro de Mulheres Negras Quilombolas foi promovido pelo Centro de Defesa e Estudos do Negro no Pará (CEDENPA). […] A agenda do encontro incluía, prioritariamente, relações raciais, discriminação do negro, direitos, relações de gênero, saúde, questões de terra e luta pela titulação, economia, renda, organização e mobilização política. […] Os grupos ampliaram e aceleraram o controle de sua identidade social e de estratégia política durante estas mobilizações e discussões, como mostraram os três Encontros de Mulheres Negras quilombolas, realizados em Bacabal (2002), Deus Ajude (2003) e Mangueira (2004), no município de Salvaterra”. nesse município. Elas articularam uma rede de apoio, formada por mães, esposas, avós, filhas e netas, que contribuiu para a construção de um debate sobre a autoidentificação quilombola e ganhou densidade, espalhando-se pelas várias comunidades negras de Salvaterra.

Esses encontros também foram fundamentais para que os agentes pudessem se informar sobre os procedimentos necessários ao reconhecimento de seus territórios. Segundo Acevedo Marin (2009)ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. Quilombolas na ilha de Marajó: território e organização política. In: GODOI, Emília Pietrafesa de; MENEZES, Marilda Aparecida de; ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth (Org.). Diversidade do campesinato: expressões e categorias: construções identitárias e sociabilidades. São Paulo: UNESP; Brasília: Núcleos de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009. v. 1, p. 209-228., não foi por acaso que as mulheres se destacaram como a maioria das presidentas das associações criadas em cada uma das comunidades quilombolas de Salvaterra5 5 “[...] do total das associações quilombolas de Salvaterra que deram entrada em processos no INCRA [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], solicitando o reconhecimento e a titulação de seus territórios quilombolas, 60% tinham mulheres como presidentes e mesmo nas outras associações que eram presididas por homens, as vicepresidentes, 1ª Secretárias entre outros cargos nas associações eram ocupados por mulheres, o que evidencia o aludido protagonismo feminino na organização das associações das comunidades quilombolas de Salvaterra” (Lima Filho, 2014, p. 57). :

O primeiro Encontro de Mulheres Quilombolas do Estado do Pará se realizou em Bacabal, em 2002, e constituiu um fato político para as mulheres participantes. Elas receberam representações das comunidades do território quilombola de Salvaterra e de fora da ilha. Esse tempo dos ‘primeiros encontros’ foi o momento de emergência da identidade coletiva – de quilombola, [do ser quilombola], do ‘ser negra’. Teresa dos Santos Nascimento relata, pausadamente, e interpreta o ato de contar e como o grupo se interrogou sobre a sua história: “não conhecia a gente bem... e cada um começou a contar e através da conversa foi surgindo a história. Cada um conta uma história. As pessoas eram capazes de contar. Ninguém sabia que era quilombola. A gente começou a falar que era nossa identidade. [...] Eu sou negra e tenho o maior orgulho dessa terra”

(Acevedo Marin, 2009ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. Quilombolas na ilha de Marajó: território e organização política. In: GODOI, Emília Pietrafesa de; MENEZES, Marilda Aparecida de; ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth (Org.). Diversidade do campesinato: expressões e categorias: construções identitárias e sociabilidades. São Paulo: UNESP; Brasília: Núcleos de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009. v. 1, p. 209-228., p. 217).

Desta forma, a autoidentificação quilombola passou a se configurar como uma referência fundamental na tessitura das alianças políticas dentro destas comunidades e entre elas; antes, estas alianças baseavam-se principalmente nas relações de compadrio e de parentesco. Nesse contexto, para o que Acevedo Marin (2009, p. 217)ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. Quilombolas na ilha de Marajó: território e organização política. In: GODOI, Emília Pietrafesa de; MENEZES, Marilda Aparecida de; ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth (Org.). Diversidade do campesinato: expressões e categorias: construções identitárias e sociabilidades. São Paulo: UNESP; Brasília: Núcleos de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009. v. 1, p. 209-228. descreveu como “[...] o momento de emergência da identidade coletiva – de quilombola, [do ser quilombola], do ‘ser negra’”, contribuíram de maneira decisiva os encontros de mulheres e os trabalhos desenvolvidos pelo CEDENPA.

Não foi por acaso que, logo após a realização dos encontros de mulheres negras quilombolas, no ano de 2004/2005, a Superintendência Regional do INCRA de Belém (INCRA-SR01) recebeu solicitações de reconhecimento e de titulação dos territórios quilombolas no município de Salvaterra.

A partir desses processos de autoidentificação quilombola e das perspectivas de reconhecimento de direitos criadas pelo artigo 68 do ADCT/CF (Brasil, 2002BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Mensagem nº 370, de 13 de maio de 2002. Dispõe sobre o veto ao Projeto de Lei nº 129, de 1995. Brasília: Senado Federal, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/veto_total/2002/Mv370-02.htm>. Acesso em: 19 out. 2017.
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), foram criadas outras estratégias de luta contra expropriações, entre as quais destacamos a atuação do Conselho das Associações das Comunidades Quilombolas de Salvaterra. Segundo Acevedo Marin (2009, p. 220), esse Conselho:

Em 2007, cumpriu uma agenda de discussões sobre o território quilombola em cada povoado. Atualmente tem uma sede na cidade de Salvaterra. Este Conselho dirigiu documentos de denúncia sobre as cercas aos ministérios do Meio Ambiente, Justiça, Ministério Público do Estado, Grupo Regional de Patrimônio da União e à recémcriada Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável para os Povos e Comunidades Tradicionais - CNPCT [...]

Como se pode ver, o marco da autoidentificação quilombola foi responsável pela tecitura de alianças políticas que originaram uma espécie de unidade de atuação das comunidades quilombolas de Salvaterra, a qual se expressa de inúmeras formas6 6 Um dos símbolos e, ao mesmo tempo, representação da aludida unidade política das comunidades quilombolas de Salvaterra, em termos territoriais, é o fascículo intitulado “Quilombolas da Ilha de Marajó”. Nele, é possível observar o mapa “O território quilombola de Marajó”, indicando um território único envolvendo todas as citadas comunidades (PNCSA, 2006, p. 7). . Longe de ser monolítica, esta unidade é, de fato, permeada por muitas disputas internas e por conflitos, mas permitiu a emergência de uma identidade coletiva e política, relacionada à existência e à atuação conjunta destas comunidades, materializada, entre outras, nas ações do conselho7 7 “Durante a campanha para a prefeitura do município de Salvaterra [no ano de 2012], as comunidades quilombolas elaboraram um documento reunindo o conjunto de suas reivindicações e o Conselho das Associações, em ato solene, convocou todos os candidatos à prefeitura para participarem de uma reunião com os representantes e pessoas das comunidades. Nesse evento, o Conselho apresentou o documento e solicitou o comprometimento dos candidatos em atender suas reivindicações. Apenas dois candidatos se fizeram presentes na reunião com os quilombolas de Salvaterra, e apenas um deles assinou e registrou o compromisso em cartório. Esse [candidato] foi eleito prefeito, tendo iniciado seu mandato no ano de 2013, sob grandes expectativas dos quilombolas” (Lima Filho, 2014, p. 60). .

As atuais alianças envolvendo as comunidades quilombolas de Salvaterra revelam ampla rede de cooperação, de solidariedade e de reciprocidade, fundadas no parentesco, bem como nas trocas materiais e simbólicas existentes entre as famílias que formam as comunidades. Por meio dessas relações, elas reforçam o processo político de luta pelo reconhecimento étnico e dos territórios via titulação. Tais relações reforçam as situações de cooperação, esmaecendo os conflitos inerentes às várias sociabilidades que permeiam a interação destes grupos. Neste contexto, parece fundamental perguntar: como se constroem as alianças políticas entre as comunidades quilombolas do município de Salvaterra?

Abordagens utilitaristas buscam explicar a construção dessas alianças políticas como se fosse um fato recente, fruto de um ‘oportunismo’ gerado pelas possibilidades abertas pelo artigo 68 do ADCT/CF (Brasil, 2002BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Mensagem nº 370, de 13 de maio de 2002. Dispõe sobre o veto ao Projeto de Lei nº 129, de 1995. Brasília: Senado Federal, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/veto_total/2002/Mv370-02.htm>. Acesso em: 19 out. 2017.
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). Esta visão embasou, inclusive, uma campanha midiática com sugestão de que estavam sendo ‘inventados quilombos’, no sentido pejorativo do termo.

Se a autodefinição étnica como “[...] remanescentes das comunidades dos quilombos [...]” (Brasil, 2002BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Mensagem nº 370, de 13 de maio de 2002. Dispõe sobre o veto ao Projeto de Lei nº 129, de 1995. Brasília: Senado Federal, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/veto_total/2002/Mv370-02.htm>. Acesso em: 19 out. 2017.
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, não paginado) pode ser considerada um fenômeno relativamente recente, surgida a partir de 1988, é fato evidente que as comunidades que se autodefiniram como quilombolas não surgiram agora, assim como não são recentes os processos de construção de alianças políticas e as lutas para garantir a reprodução física, social, econômica, cultural e religiosa desses coletivos. Essas comunidades já vêm construindo alianças de diversas naturezas entre si há muitos anos, seja por meio de casamentos, de realização de trabalhos cooperativos ou por pactos políticos visando manter as suas terras, em uma situação histórica marcada pelo confronto com criadores de gado cujas fazendas avançam sobre seus territórios e, mais recentemente, havendo também o avanço da monocultura do arroz.

Neste contexto, para compreender como se constroem as alianças políticas entre as comunidades, ao invés de concentrar a pesquisa nas instituições que usualmente têm sido pensadas como espaço de atuação política, tais como as associações de pescadores e de agricultores, que já existiam nas comunidades, ou mesmo as recentes associações quilombolas, optou-se por analisar as festas de santo, as quais vêm sendo realizadas ao longo de várias décadas (algumas delas são centenárias), cuja organização envolve o conjunto das comunidades quilombolas de Salvaterra. Elas estão relacionadas a rituais coletivos, que evidenciam as formas pelas quais as alianças são firmadas e reforçadas, e têm grande relevância na vida social dessas coletividades. Entre outros aspectos, há gerações, elas propiciam a partilha de um sentido de comunidade como unidade política, simbólica e territorial.

Assim, a questão central suscitada por esta investigação é: como as festas de santo têm contribuído para a construção de alianças políticas entre as comunidades quilombolas do município de Salvaterra, arquipélago do Marajó, estado do Pará?

Para responder a esse questionamento, o texto está divido em tópicos. O primeiro é intitulado “Festas e alianças políticas”, no qual discutimos as referências teóricas para se pensar a festa não apenas como ritual que reproduz solidariedade grupal, mas como epicentro da própria criação do coletivo. No segundo, “Partilha do território: circulação de pessoas e de santos”, apresentamos as maneiras pelas quais os circuitos de festas de santo propiciam a partilha do território, gerando um território comum, que enlaça as pessoas e contribui para a construção de alianças políticas. No terceiro, “A circulação das imagens de santo e a construção de cada comunidade como unidade política, simbólica e territorial”, discutimos como alguns gestos relacionados à circulação de santos durante a preparação das festas são interpretados pelos próprios nativos como ‘símbolos de união’ e estão profundamente vinculados com a construção de cada comunidade como unidade política, simbólica e territorial. Por fim, no tópico “Os circuitos de festas de santo e o território identificado pelo PNCSA”8 8 Segundo apresentação que consta no site oficial do PNCSA: “O Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) tem como objetivo dar ensejo à autocartografia dos povos e comunidades tradicionais na Amazônia. Com o material produzido, tem-se não apenas um maior conhecimento sobre o processo de ocupação dessa região, mas sobretudo uma maior ênfase e um novo instrumento para o fortalecimento dos movimentos sociais que nela existem. Tais movimentos sociais consistem em manifestações de identidades coletivas, referidas a situações sociais peculiares e territorializadas. Estas territorialidades específicas, construídas socialmente pelos diversos agentes sociais, é que suportam as identidades coletivas objetivadas em movimentos sociais. A força deste processo de territorialização diferenciada constitui o objeto deste projeto” (Apresentação..., 2014, não paginado). , evidenciamos a centralidade dos circuitos de festas de santo na constituição do território coletivo, que envolve o conjunto das comunidades quilombolas de Salvaterra, e que foi identificado pelas pessoas das diversas comunidades durante o trabalho do PNCSA no município.

A ideia central que buscamos demonstrar é a de que as festas de santo – entendidas na perspectiva de Mauss (2003a)MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a. como fatos socias totais e como dádivas que vêm sendo dadas, recebidas e retribuídas – possuem uma centralidade na construção das alianças políticas dentro das comunidades quilombolas de Salvaterra e entre elas. São estas alianças políticas, animadas há gerações por meio dos circuitos de festas de santo, que ajudam na compreenção da contrução dos laços de fidelidade e de confiança existentes dentro destas comunidades e entre elas, e que fundamentam a autodefinição quilombola e a luta conjunta pelos direitos socioterritoriais, entre os quais destaca-se a luta pela titulação coletiva dos territórios.

FESTAS E ALIANÇAS POLÍTICAS

Do ponto de vista sociológico, o debate sobre o conceito de festa remete às análises de Durkheim (2003)DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003., que considera a festa como uma manifestação social significante, tendo como função restaurar periodicamente a solidariedade grupal, e que se caracteriza pela suspensão da vida ordinária, a “renovação moral” e o fortalecimento da coesão do grupo (Costa, 2009COSTA, Antônio Maurício Dias da. Festa na cidade: o circuito bregueiro de Belém do Pará. 2. ed. Belém: EDUEPA, 2009., p. 70-71). A abordagem de Durkheim (2003)DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. está na base de quase todas as reflexões subsequentes sobre essa temática. Radicalizando esta perspectiva, Caillois (1950)CAILLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Lisboa: Edições 70, 1950. define a festa como um rito de transgressão, que promove renovação moral, recriação do mundo e, por este meio, renovação da aliança entre os membros do grupo que a realiza.

Contrariando as referidas abordagens, Duvignaud (1983)DUVIGNAUD, Jean. Festas e civilizações. Fortaleza: UFCE; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. indica que as perspectivas de Durkheim (2003)DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. e de Caillois (1950)CAILLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Lisboa: Edições 70, 1950. sobre a festa dão ênfase à sua função de regenerar as alianças sociais, mas, segundo este autor, haveria um erro nessa concepção, já que a festa não tem função nem utilidade, ao contrário, ela é um questionamento, uma ruptura com a própria sociedade. Para ele, a festa é comparada ao jogo, à arte e ao imaginário, e teria “finalidade zero” (Duvignaud, 1983DUVIGNAUD, Jean. Festas e civilizações. Fortaleza: UFCE; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983., p. 22-23).

Para Perez (2012)PEREZ, Léa Freitas. Festas para além da festa. In: PEREZ, Léa Freitas; AMARAL, Leila; MESQUITA, Wania (Org.). Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de Janeiro: Gramond, 2012. p. 21-42., na teoria antropológica clássica, a festa é percebida como objeto/fato e geralmente é estudada sob a rubrica de ritual religioso, sendo abordada de modo apenas descritivo e fazendo referências a coisas que são exteriores a ela. Este tipo de perspectiva, segundo essa autora, faz com que os estudos sobre este tema tenham uma lacuna, ao não a considerar em seus próprios termos. A solução para este problema teórico e epistemológico proposta por Perez (2012)PEREZ, Léa Freitas. Festas para além da festa. In: PEREZ, Léa Freitas; AMARAL, Leila; MESQUITA, Wania (Org.). Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de Janeiro: Gramond, 2012. p. 21-42. é considerá-la como um evento, um mecanismo, um operador de ligações que estabelece não apenas a reprodução ou a renovação do sentimento coletivo, sendo também a sua própria origem, uma das suas fontes criadoras. É com base nessa visão que buscamos interpretar estes eventos, em especial as festas de santo, como situações que possibilitam a construção de alianças políticas.

Por essa via, as festas podem ser interpretadas a partir da teoria do dom, elaborada por Mauss (2003a)MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a., ao tomá-las como dádivas que circulam entre os moradores das comunidades quilombolas de Salvaterra há várias gerações, pois o que importa não é o fato delas em si, mas sim o mecanismo, isto é, o operador de ligações que se instaura em seu interior (Perez, 2012PEREZ, Léa Freitas. Festas para além da festa. In: PEREZ, Léa Freitas; AMARAL, Leila; MESQUITA, Wania (Org.). Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de Janeiro: Gramond, 2012. p. 21-42.).

O sentido maior dessa perspectiva aproxima-se daquela apresentada por Caillé (2002)CAILLÉ, Alain. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis: Vozes, 2002., com relação à teoria da dádiva, quando este autor considera que o mais importante na circulação da dádiva é o laço que se estabelece entre as comunidades e as coletividades, e não o bem trocado. Portanto, em ambas as perspectivas – tanto na festa quanto na dádiva –, o mais importante são as ligações, os laços que são gerados e reafirmados nos momentos festivos.

Dessa forma, tanto a festa como a dádiva ajudam a explicar relações entre coletividades, se interpretarmos ambas como mecanismo, ou operador de ligações, que existe e tem sentido em uma lógica diferente das que movem o mercado e mesmo o Estado. Tanto a festa como a dádiva não desapareceram com o surgimento do capitalismo, da modernidade ou da globalização, elas existiram nas sociedades ditas arcaicas e primitivas do passado, e continuam presentes e vivas nas sociedades atuais. Segundo Perez (2012, p. 36)PEREZ, Léa Freitas. Festas para além da festa. In: PEREZ, Léa Freitas; AMARAL, Leila; MESQUITA, Wania (Org.). Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de Janeiro: Gramond, 2012. p. 21-42.:

O que a festa transgride, no senso de ir além, é o próprio fato social, atingindo o societal, fazendo emergir o individual do coletivo, o afetual do contratual, a socialidade da sociabilidade, fazendo aflorar as emoções, os sentimentos não domesticados. Dito de outro modo: somos e fazemos coletividade porque produzimos imaginário, somos coletividade porque fazemos festa.

A festa é, portanto, mais do que um fato social, ela se abre para a liberdade das ações, fazendo com que aflorem as emoções e os sentimentos não domesticados. Ela é, ao mesmo tempo, livre e obrigada, não está subsumida a uma totalidade que a precede, mas “[...] [faz] emergir o individual do coletivo, o afetual do contratual, a socialidade da sociabilidade [...]” (Perez, 2012PEREZ, Léa Freitas. Festas para além da festa. In: PEREZ, Léa Freitas; AMARAL, Leila; MESQUITA, Wania (Org.). Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de Janeiro: Gramond, 2012. p. 21-42., p. 36). Nem uma lógica utilitária e racional calcada nos interesses individuais consegue submetê-la às suas imposições, pois, segundo a autora, este fato produz o coletivo.

A afirmação de Perez (2012, p. 36)PEREZ, Léa Freitas. Festas para além da festa. In: PEREZ, Léa Freitas; AMARAL, Leila; MESQUITA, Wania (Org.). Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de Janeiro: Gramond, 2012. p. 21-42., de que “[...] somos coletividade porque fazemos festa”, refere-se à tecitura das relações de confiança, de fidelidade, dos vínculos afetivos que produzem o laço coletivo e as alianças, mas, ao invés de submeter a festa ao coletivo, a autora evidencia que ela é um dos fundamentos da gênese da própria coletividade (que se constitui também por meio da festa). A explanação deste assunto feita por Perez (2012)PEREZ, Léa Freitas. Festas para além da festa. In: PEREZ, Léa Freitas; AMARAL, Leila; MESQUITA, Wania (Org.). Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de Janeiro: Gramond, 2012. p. 21-42. segue pressupostos semelhantes aos da abordagem da dádiva feita por Mauss (2003a)MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a. e por Caillé (2002)CAILLÉ, Alain. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis: Vozes, 2002., pois estes evidenciam que a dádiva também está na gênese da constituição da própria coletividade e da tecitura do laço coletivo, das alianças, sobretudo das alianças políticas.

Assim, para interpretar as relações entre festas e alianças políticas que se observam entre as comunidades quilombolas de Salvaterra, adota-se como pressuposto teórico o paradigma da dádiva ou o paradigma da aliança e da associação, como proposto por Caillé (2002, p. 20)CAILLÉ, Alain. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis: Vozes, 2002., que afirma: “[...] o pensamento da aliança e da associação privilegia a dimensão política das relações sociais [...]”. Esse autor filia-se a uma interpretação do texto “Ensaio sobre a dádiva”, de Mauss (2003b)MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003b. p. 183-294., com uma perspectiva antiutilitarista, enfatizando que a dádiva acontece de maneira ao mesmo tempo obrigada e livre e que, para além da noção de contratos individuais, ela é um dos fundamentos principais da tessitura dos vínculos e das alianças entre coletividades, tanto em sociedades ditas primitivas como nas atuais.

Em seu estudo, Mauss (2003a)MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a. demonstrou que a circulação de dádivas estabelece relações entre coletividades, e não entre indivíduos, e que elas são e circulam como festas, feiras, danças, crianças, mulheres, homens, rituais, banquetes, amabilidades, além de bens e de riquezas. Mostrou, ainda, que esta circulação pode ser concebida como uma economia das dádivas, que continua a tecer vínculos e alianças entre coletividades e se constitui como um dos fundamentos constantes na construção dos laços coletivos, mesmo nas ditas sociedades complexas atuais. Por isso, segundo Mauss (2003a, p. 188-189)MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a., tal circulação é “[...] uma das rochas humanas sobre as quais são construídas nossas sociedades [...]”.

Com base nesse pressuposto, é possível afirmar que nas festas de santo são estabelecidas relações não apenas entre indivíduos, mas, sobretudo, entre comunidades, enquanto agentes políticos que possuem uma identidade e controlam um território. As pessoas que organizam e participam dessas festas devem ser vistas como morais (Mauss, 2003aMAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a.), já que as suas ações são de sua coletividade, de sua comunidade.

Portanto, neste artigo, tomamos as festas de santo como fatos sociais totais, no sentido atribuído por Mauss (2003a)MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a., por se tratar de um fenômeno que engloba e movimenta diversas instituições sociais, religiosas, jurídicas e morais ao mesmo tempo. Nessa perspectiva, as festas de santo realizadas pelas comunidades quilombolas de Salvaterra constituem formas de prestações totais, semelhante ao potlatch dos índios do noroeste americano (Mauss, 2003aMAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a.), onde se observa que a circulação de dádivas e as obrigações de liberdade de dar, receber e retribuir se estabelecem nas relações entre coletividades humanas. Isso também ocorre no caso das comunidades quilombolas de Salvaterra, entre estas coletividades e os santos, com as divindades, ou seja, entre humanos e o sagrado, tecendo também vínculos e alianças.

Esse estudo baseia-se em uma etnografia dos ‘circuitos de festas’ de santo realizados na comunidade quilombola de Bacabal, seguindo os ‘circuitos da festa’ de São Raimundo (santo de devoção) e os ‘circuitos da festa’ de Nossa Senhora das Dores (santa padroeira). Foi a partir das festas desta comunidade que buscamos compreender os processos de construção de alianças e o sentido que a festa representa para o conjunto das comunidades quilombolas do município de Salvaterra.

PARTILHA DO TERRITÓRIO: CIRCULAÇÃO DE PESSOAS E DE SANTOS

Nossas festas são o movimento da agulha que serve para ligar as partes do telhado de palha, para que haja um único teto, uma única palavra

(Leenhardt, 1922LEENHARDT, Maurice. La grande terre. Paris: Société des missions évangéliques, 1922., p. 332 apud Mauss, 2003aMAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a., p. 213).

As festas promovidas pelas comunidades quilombolas de Salvaterra ocorrem principalmente entre os meses de junho e dezembro. Esses momentos constituem um ciclo de festas (Maués, 1995MAUÉS, Raymundo Heraldo. Padres, pajés, Santos e festas: catolicismo popular e controle eclesiástico um estudo antropológico numa área do interior da Amazônia. Belém: Cejup, 1995.) ou de estação de festas (Caillois, 1950CAILLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Lisboa: Edições 70, 1950.), que integra várias comunidades. Ao longo de muitas décadas, cada uma das quinze comunidades negras rurais vem homenageando os(as) seus(suas) santos(as) padroeiros(as), que são vistos(as) como uma espécie de protetores(as) da coletividade. Em reverência a essas entidades, os comunitários realizam anualmente as chamadas ‘festas de santo’, também conhecidas pelos nativos como ‘festas de tradição’, as quais, na Amazônia brasileira, têm sido objeto de estudos desde a década de 1940, por Eduardo Galvão, que as considerou como “[...] promessas coletivas com o objetivo do bem-estar da comunidade [...]” (Galvão, 1954GALVÃO, Eduardo. Santos e visagens: um estudo da vida religiosa de Itá, Amazonas. São Paulo: Nacional, 1954. v. 284. (Série Brasiliana, n. 5)., p. 31).

Além da festa alusiva aos santos podroeiros, há também eventos para os ‘santos de devoção’, os quais recebem igual reverência das famílias. Assim, neste artigo, ao nos referirmos às festas de santo, estamos incluindo as celebrações em homenagem às(aos) santas(os) padroeiras(os) e às(aos) santas(os) de devoção. Incluímos também festas organizadas pelos clubes de futebol das comunidades em reverência aos santos, que carregam os nomes de santos padroeiros e realizam celebrações em homenagem a eles, também denominadas pelos nativos como ‘festas de tradição’.

Considerando a permanência temporal, o alcance espacial e o envolvimento de vários agentes e coletivos locais na realização dessas festividades de santo entre as comunidades quilombolas de Salvaterra, verificamos que estas festas são eventos profundamente significativos e que se constituem em um dos elementos centrais na construção dos vínculos entre estas comunidades. Ao evidenciarmos esse fato, precisamos considerar, para além dos significados de uma única festa para uma única comunidade, os significados do conjunto destas festas para a totalidade dessas comunidades. Nesse sentido, é preciso pensar em ‘ciclo de festas’, ‘estação de festas’ ou, como sugerimos chamar, ‘circuitos de festas’, a fim de entender o enlace que a circulação destas festas tece entre tais comunidades ao longo do ano e há várias gerações.

Interpretamos essas festas como dádivas, as quais são, antes de tudo, movimento! Se consideramos, como Mauss (2003a)MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a., que a dádiva somente se estabelece pela circulação, no movimento contínuo de dar, receber e retribuir, verificaremos que a sua própria natureza é gerar movimento, e é neste movimento constante que se (re)estabelecem os vínculos, os laços e as alianças entre coletividades e comunidades.

Mas o movimento da dádiva não se fundamenta em uma relação de igualdade, nem em uma interação que se finda em um único momento ou movimento. Pelo contrário, como nos explica Mauss (2003a)MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a.: aquele que aceita receber também consente o desafio da dádiva, permite-se a entrar no circuito, concorda com o vínculo e, neste momento, encontra-se em uma relação de profunda desigualdade com o seu doador, submetido a uma relação ao mesmo tempo livre e obrigada, que o impele a retribuir, sob pena de ‘perder sua face’, de ser humilhado, de não estar à altura do desafio.

Se o dar e o receber acontecem em um mesmo instante, é o tempo necessário para retribuir que abre espaço para a realização de vários movimentos, para a criatividade, para a iniciativa, para as articulações, para os empreendimentos, para a construção de laços coletivos, necessários para se retribuir à altura. E quando, após um tempo, o ato de retribuir acontece longe de equilibrar a relação entre doador e receptor, a desequilibra novamente9 9 Godbout (1998) explica que o sentido da dádiva é tecer vínculos e alianças. Nesse sentido, o bem que é trocado não é o mais importante, a dádiva é uma relação onde não se objetiva ‘quitar a dívida’, mas permanecer endividado, no sentido do movimento de dar, receber e retribuir. Desta maneira, é a permanência da ‘dívida mútua’ que renova o enlace. Essa lógica é diferente do fundamento do mercado: “O modelo mercante visa à ausência de dívida. Nesse modelo, cada troca é completa. Graças à lei da equivalência, cada relação é pontual, e não compromete o futuro. Não tem futuro e, portanto, não nos insere num sistema de obrigações” (Godbout, 1998, p. 41). , invertendo os papéis e tornando o movimento contínuo, aprofundando a tecitura dos laços, a (re)criação dos vínculos, a produção de alianças.

Dessa forma, retribuir é começar! Longe de ser um fim, é sempre um recomeço, o que dá cada vez mais vida e vitalidade para as alianças. Para os laços sociais entre coletivos, é justamente o movimento recorrentemente gerado pela circulação de dádivas, ainda que sejam pessoas envolvidas nisso, as quais devem ser interpretadas tal como Mauss (2003b)MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003b. p. 183-294. ensinou: como pessoas morais, suas ações são da coletividade, da sua família, da sua comunidade. Não por acaso, este autor destacou, em seus escritos, que existe um ‘tempo necessário’ para que qualquer contraprestação seja executada.

Entre as comunidades quilombolas de Salvaterra, as festas sucedem umas às outras, em um movimento propiciado por esse ‘tempo necessário’, existente entre o dar/receber e o retribuir. Assim, quando se encerra a festa de santo em uma comunidade, os preparativos já foram iniciados em outra, e se desenvolvem vários movimentos, até que a comunidade anfitriã, em um dado momento, torna-se convidada. Durante mais da metade dos meses do ano, as comunidades vivem um circuito de festas, por meio do qual convidam e aceitam os convites umas das outras. Um tempo depois, encontram-se nas festas, quando, então, a retribuição aos convites dados e recebidos acontece por meio da presença e da participação nestes intensos momentos de socialidade, de vida, que ao longo do tempo e do espaço, há gerações, continuam a marcar as relações intra e entre as comunidades quilombolas de Salvaterra. Por estas características, sugerimos chamar as festas de santo de ‘dádivas-festas’, e evidenciar a sua centralidade nas construções de vínculos e de alianças entre estas comunidades.

Caillé (2002)CAILLÉ, Alain. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis: Vozes, 2002., ao se referir às redes de relações sociais tal como concebidas nas ciências sociais, compara-as com a circulação das dádivas e evidencia que em ambas são a fidelidade e a confiança que estão no cerne da construção de vínculos e de alianças. Segundo este autor, são a fidelidade e a confiança que ligam, enlaçam e mantêm conectadas as pessoas e os coletivos. Para Caillé (2002)CAILLÉ, Alain. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis: Vozes, 2002., estes preceitos são o substrato principal dos vínculos tecidos tanto nas redes de relações sociais quanto na circulação de dádivas.

Nesse sentido, o Kula, estudado por Malinowski (1978)MALINOWSKI, Bronislaw. Os argonautas do pacífico ocidental. São Paulo: Abril, 1978., onde a circulação ritual de pulseiras e de braceletes10 10 Mauss (2003a, p. 218) afirma que: “Segundo Malinowski esses vaygu’a são animados de uma espécie de movimento circular; os mwali, os braceletes, transmitem-se regularmente de Oeste a Leste, e os soulava viajam sempre de Leste a Oeste. Esses dois movimentos de sentido contrário ocorrem entre todas as ilhas Trobriand, Entrecasteaux, Amphlett e as ilhas isoladas, Woodlark, Marshall-Bennet, Tube-tube e, finalmente, a extrema costa sudeste da Nova Guiné, de onde vêm os braceletes brutos [...]. Em princípio, a circulação desses signos de riqueza é incessante e infalível. Não se deve nem guardá-los por muito tempo, nem ser lento ou duro em desfazer-se deles, nem tampouco dá-los a outra pessoa que não os parceiros determinados num sentido determinado, ‘sentido bracelete’, ‘sentido colar’. Deve-se e pode-se guardá-los de um Kula a outro, e toda comunidade orgulha-se dos vaygu’a que um de seus chefes obteve [...]” era o elemento central na construção de alianças políticas e na organização social dos moradores das ilhas trobriandesas, serve de inspiração para sugerir a circulação de ‘dádivas-festas’ como central na construção de alianças políticas intra e entre as comunidades quilombolas de Salvaterra.

Mauss (2003a)MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a. descreve o movimento que enlaça tribos, coletivos, coisas, pessoas, relações como um círculo, evidenciando que o próprio significado da palavra Kula quer dizer isso, e explica que é:

[...] como se todas essas tribos, expedições marítimas, coisas preciosas, objetos de uso, alimentos, festas, serviços de todas as espécies, rituais e sexuais, homens, mulheres, fossem pegos dentro de um círculo e seguissem um movimento regular ao redor desse círculo, tanto no tempo como no espaço (Mauss, 2003aMAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a., p. 215).

Nesse sentido, considerando a referência do Kula e pensando nos circuitos de festas de santo entre as comunidades quilombolas de Salvaterra, sugerimos a existência de uma espécie de ‘sistema de festas’, que, além de propiciar, ao longo do tempo e do espaço, a (re)criação de vínculos e de alianças entre as comunidades, possui importância fundamental na dinamização, na vitalidade e na organização das relações intra e intercomunitárias. Nas festas de santo, há circulação de pessoas, de famílias, de objetos, de alimentos, de serviços etc. Ao longo do ano, homens e mulheres de diversas gerações circulam entre as comunidades em um calendário conhecido por todos, onde uma sucessão de festas – repetidas regularmente há anos – impulsiona um movimento destes coletivos, que se encontram intensamente nestes momentos e partilham seus territórios.

Ao acompanhar os circuitos de festas de santo, pudemos observar como foram realizados estes fatos, desde o início das ‘caminhadas do santo’ – designação nativa para a circulação das imagens de santo, que são levadas por comitivas de uma comunidade a outra, com o intuito de convidá-las para a festa – até o momento em que, em retribuição ao convite, as pessoas das comunidades convidadas deslocam-se em direção à anfitriã para participar da festa.

Apresentamos, a seguir, uma breve descrição da circulação da imagem de São Raimundo, que antecede a festa em sua homenagem na comunidade de Bacabal, tomando como base o ano de 2013. Nesse trabalho, buscamos ressaltar as relações que se estabelecem durante as ‘caminhadas do santo’, que evidenciam a construção das alianças políticas entre as comunidades.

A comunidade de Bacabal reverencia Nossa Senhora das Dores como santa padroeira e São Raimundo como santo de devoção, ambos homenageados com festas pelos moradores. Para a realização desses eventos, há uma intensa preparação. Os dirigentes da festividade têm como atribuição e responsabilidade organizar todos os preparativos do evento. A cada dois anos, as famílias elegem novos dirigentes, que, se forem bem-sucedidos na organização e na realização da festa, são reeleitos para mais uma gestão.

A organização da festa representa uma distinção entre os moradores da comunidade. Isso gera um espaço de disputa entre as famílias, pelo fato de ser entregue ao coordenador da celebração a chave da igreja, ‘morada do santo’. Tal situação coloca o sujeito em uma rede de relações sociais e políticas, locais e regionais, à qual a igreja está associada, além estabelecer ligações com os dirigentes da paróquia situada na sede municipal.

Uma das atribuições do coordenador é formar uma comitiva que deverá conduzir a imagem do santo a uma série de visitas, uma peregrinação envolvendo as comunidades participantes do seu círculo de relações sociais, com as quais mantêm vínculos de reciprocidade. Essas visitas servem para estabelecer e cumprir com compromissos, ao mesmo tempo em que se reafirmam laços sociais e políticos, renovados anualmente. Caso os compromissos não sejam cumpridos, o dirigente da festa perde o seu prestígio. Daí, cabe a ele fazer de tudo para que todos os acordos sejam realizados. Ele exige isso porque os que festejam o santo são sujeitos morais (Mauss, 2003aMAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a.).

Durante as várias ‘caminhadas que o santo faz’, há tanto o reforço dos laços entre as duas comunidades quanto o enlaçamento de um conjunto de localidades no entorno delas. Em 2013, a comitiva que realizou a caminhada de São Raimundo de Bacabal circulou pelas comunidades de Pau Furado, Bairro Alto, Santa Luzia e Boa Vista, e durante a caminhada de N. S. das Dores, santa padroeira de Bacabal, além das citadas, também circulou por Salvar, Caldeirão, Mangueiras, Providência, Deus Ajude, Siricari e São Benedito da Ponta. Todas estas se autodefinem como quilombolas e estão localizadas no município de Salvaterra. Mesmo aquelas que não foram visitadas no ano de 2013, entretanto, receberam convite por escrito para participarem da festa, como também foram enviados convites formais aos dirigentes ou aos presidentes de clubes de futebol que organizam as festas em suas comunidades. Movimentos semelhantes também se realizam entre as comunidades quilombolas de Caldeirão, Pau Furado, Bacabal, Boa Vista, Mangueiras, Bairro Alto, Deus Ajude, Rosário. Nessas caminhadas, é possível dimensionar a amplitude da circulação de pessoas propiciada pelas festas de santos e os tipos de relações estabelecidas nessas festividades.

A CIRCULAÇÃO DAS IMAGENS DE SANTO E A CONSTRUÇÃO DE CADA COMUNIDADE COMO UNIDADE POLÍTICA, SIMBÓLICA E TERRITORIAL

Quando realizamos a etnografia acompanhando a comitiva que levou a imagem de São Raimundo, santo de devoção da comunidade quilombola de Bacabal, pudemos verificar alguns gestos muito significativos, que dão pistas sobre a relação entre a festa e a constituição de cada comunidade como uma unidade política, simbólica e territorial.

Um gesto em especial que se repete em todas as caminhadas de santo realizadas pelas comunidades quilombolas em cuja festa ainda há este tipo de procissão, e que aqui destacamos, é o momento no qual a imagem do santo visitante é colocada ao lado da imagem da santa padroeira da comunidade visitada. Antes que qualquer casa no local visitado receba a imagem e a sua comitiva, é na igreja que acontece o gesto simbólico da acolhida ao santo peregrino. Este mesmo gesto também finaliza este momento, o qual marca, portanto, o início e o fim das caminhadas do santo e da ação de convidar comunidades aliadas para a sua festa.

Na Figura 1, observa-se a imagem de Nossa Senhora da Batalha, santa poadroeira da comunidade quilombola de Pau Furado, ao lado da imagem de São Raimundo, santo de devoção da comunidade quilombola de Bacabal. Este encontro aconteceu no ano de 2013, momento em que a comitiva de Bacabal, levando a imagem de seu santo, dirigiu-se a Pau Furado para fazer o convite para a sua festa. Esse gesto revela a histórica construção de cada comunidade como uma unidade política, simbólica e territorial.

Figura 1
Imagens de São Raimundo e de Nossa Senhora da Batalha,na igreja da comunidade de Pau Furado, durante a ‘caminhada dosanto’ realizada em 2013. Foto: Petrônio Medeiros (2013)LIMA FILHO, Petrônio Medeiros. Entre quilombos: circuitos de festas de santo e a construção de alianças políticas entre comunidades quilombolas de Salvaterra – Marajó – Pará. 2014. 237 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2014..

Para refletirmos sobre os significados deste gesto, que marca o encontro entre as comunidades durante a caminhada dos santos, partimos de uma interpretação nativa. Para dona Tereza dos Santos Nascimento, 68 anos, quilombola da comunidade de Bacabal, as duas imagens juntas, no contexto de uma comitiva que vem de uma comunidade convidar outra para sua festa de santo:

É um símbolo de união! Porque a nossa padroeira ou o nosso padroeiro está recebendo um padroeiro ou uma padroeira que vem de outra comunidade saudar a nossa comunidade. Isso é um símbolo de amor e de união entre todos. Eu penso assim

(entrevista realizada em 12 dez. 2013, na comunidade de Bacabal, Pará, Brasil).

A senhora Tereza dos Santos Nascimento e a sua família estiveram ao longo de vários anos à frente da realização das festas de santo na comunidade de Bacabal e conhecem, portanto, os procedimentos que permeiam a construção destas festas. Ao descrever como um ‘símbolo de união’ o gesto de colocar juntas as imagens dos santos, a senhora Tereza evidencia que, neste contexto, a imagem representa a própria comunidade como uma totalidade. Evidencia, dessa forma, que cada imagem de santo simboliza a comunidade que lhe dedica a festa, e a união destas imagens simboliza a união das comunidades. Maffesoli (2010)MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. permite-nos dialogar com esta interpretação nativa e com os significados apontados por ela, ao explicar que essas imagens fazem referência a:

[...] figuras emblemáticas, mas eles são, de certa forma, ideal-tipos, “formas” vazias, matrizes que permitem a qualquer um reconhecer-se e comungar com os outros. Dionísio, D. Juan, o santo cristão ou o herói grego, poderíamos desfiar infinitamente as figuras míticas, os tipos sociais que permitem uma “estética” comum e que servem de receptáculo à expressão do “nós”. A multiplicidade, em tal ou tal emblema, favorece infalivelmente a emergência de um forte sentimento coletivo

(Maffesoli, 2010MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010., p. 37).

Ao considerarmos, tal como Maffesoli (2010)MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010., que a emoção estética gera um potente sentir em comum, podemos vislumbrar que a cena das duas imagens de santo, enquanto símbolos, colocadas juntas no altar da igreja, produzem significados coletivos, múltiplos e totais, que se relacionam profundamente com a construção de alianças intra e entre comunidades, permitindo que compreendamos melhor a afirmação nativa de que esse gesto simboliza união.

Seguindo a trilha de Maffesoli (2010)MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010., pensamos a imagem do santo como uma matriz (forma vazia) que serve de receptáculo à expressão do ‘nós’ de uma comunidade, no contexto de um santo que vem saudar, visitar e convidar outra localidade para a sua festa, e que é recebido por outra matriz. Neste contexto, a imagem da santa padroeira, expressão do ‘nós’ da comunidade visitada, recebe e acolhe o santo peregrino na sua ‘casa’, a igreja. Podemos, assim, vislumbrar a emergência de um potente sentimento coletivo, que percebe cada comunidade como uma unidade política, simbólica e territorial, representada por cada imagem de santo e, ao mesmo tempo, um sentimento de aliança, que envolve as comunidades enlaçadas por aquele gesto, representado pela reunião das imagens dos santos no altar. Não é por acaso que dona Tereza descreve este gesto como de união; não é por acaso que Maffesoli (2010)MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. chama a atenção para a possibilidade de sentimento de comunhão que a estética destas imagens pode produzir.

Para aprofundar ainda mais a referência nativa à união relacionada às imagens dos santos juntos, os gestos que encerram a caminhada no local visitado continuam a iluminar a relação entre as festas de santo e a constituição de cada comunidade como uma unidade política, simbólica e territorial. É justamente ao final da caminhada, após terem sido visitadas todas as casas das famílias que aceitaram receber o santo – e, assim, acolheram o convite para a festa –, momento em que a imagem peregrina retorna à igreja e volta para o lado da santa padroeira local – desta vez enchendo a igreja de pessoas da própria comunidade que se juntaram à comitiva do santo –, que podemos perceber a relação direta entre a imagem do santo e cada comunidade como esta unidade de que falamos aqui.

Neste momento final da caminhada, com a igreja lotada e os santos juntos no altar, acontece uma série de gestos, como a entoação de cantos e de orações em referência às imagens dos santos. Posteriormente, as pessoas fazem fila. Uma a uma se aproxima e toca as fitas das imagens, com muita emoção e respeito. Com as fitas nas mãos, pedem bênçãos, fazem novas orações, conversam com os santos por meio das imagens. Ao fim, beijam as fitas e as tocam nos seus corpos, fazendo o sinal da cruz, interagindo com os santos por meio delas. Esses gestos se repetem dentro de cada casa onde a imagem do santo entrou junto com a sua comitiva. Nesses espaços, as famílias que recebem o santo peregrino fazem oferendas a ele, amarrando notas de dinheiro nas fitas da imagem, presenteando-o, de tal forma que, quando a imagem peregrina volta à igreja, suas fitas estão cheias de notas de dinheiro amarradas.

Quando todos na igreja já realizaram esse gesto, inicia-se então a ação final feita pela comitiva do santo peregrino, de maneira pública, com todos que estão observando. Trata-se do ato de recolher todo o dinheiro arrecadado das fitas da imagem do santo, e conferir, além destes, também todos os outros recursos, como moedas e velas que foram dadas durante a caminhada, anunciando o valor total arrecadado para a comunidade visitada.

Esse gesto acontece no fim da caminhada e evidencia uma relação entre a comitiva da imagem peregrina, a qual representa a comunidade que realizará a festa, e o coletivo de famílias presentes na igreja, que representam a comunidade visitada. Conferir e anunciar o valor arrecadado é, portanto, um gesto político de reconhecimento daquela comunidade como uma unidade política, simbólica e territorial, bem como de respeito com ela.

Essa relação, para além das pessoas e das famílias presentes, se estabelece entre comunidades e envolve emoção, devoção, respeito e conhecimento em relação aos valores e contribuições de uma comunidade com a outra. Por meio deste gesto, as pessoas presentes na igreja – que devem ser percebidas como pessoas morais, na perspectiva de Mauss (2003a)MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a., cujas presença e ações representam a própria comunidade visitada – sabem, então, quanto foi arrecadado em contribuição para a festa.

O fato fundamental e para o qual chamamos atenção é que contar e divulgar o que foi arrecadado não acontece em um lugar qualquer da comunidade visitada, nem em alguma casa específica, mas na igreja e ao lado da imagem da santa padroeira, que são, respectivamente, lugar e símbolo da comunidade como uma totalidade. Trata-se de um gesto de respeito e de relação entre comunidades, de reconhecimento daquela que é visitada como uma unidade política, cuja representação coletiva está presente na igreja naquele momento. Isto é simbólico porque acontece na igreja da comunidade, junto à imagem da santa padroeira, que representa aquela coletividade, e territorial porque acontece somente após a imagem peregrina do santo ter circulado por todo o espaço reconhecido como pertencente àquela comunidade.

Este gesto, repetido há gerações na construção das festas de santo, evidencia que, mesmo antes da autodefinição como quilombola e da necessidade de estabelecer um território quilombola a ser regularizado, as comunidades já se constituíam e se reconheciam como unidades políticas, simbólicas e territoriais, bem como já dialogavam entre si, respeitando estas unidades, ajudando-se mutuamente na realização de seus empreendimentos, com destaque para as festas de santo.

Em outro momento, é a comunidade de Pau Furado que, levando a imagem peregrina da sua santa padroeira N. S. da Batalha, visita Bacabal e, ao fim, também na igreja deste local, confere e anuncia o valor arrecadado. Assim, podemos perceber que o dar inicial – representado pela caminhada do santo e pelo convite para a festa – e o receber – que acontece no mesmo momento no qual a comunidade visitada aceita receber a imagem do santo e presenteá-la – são relações estabelecidas entre comunidades, entre coletivos, e não entre indivíduos. São, portanto, relações de respeito mútuo, reconhecendo cada comunidade como uma unidade política, simbólica e territorial. Para mostrar este fato, apresentamos trecho da etnografia que evidencia nossa afirmação e indica que há um reconhecimento mútuo entre as comunidades como as unidades tratadas neste tópico, aprofundando este debate:

Em outra caminhada que acompanhamos junto com a comitiva da comunidade de Bacabal, a imagem de São Raimundo foi levada para Vila Nova e como de costume visitou e convidou as famílias que moravam neste lugar para participarem da festa do santo, antes, porém, a comitiva tinha passado pelo lugar chamado Santa Luzia, e após ter visitado todas as casas, os membros da comitiva pararam na última e recolheram todas as doações feitas à imagem de São Raimundo, conferiram na frente das pessoas e divulgaram o valor arrecadado em Santa Luzia, depois se despediram e seguiram a caminhada para Vila Nova. Nestes dois lugares, Vila Nova e Santa Luzia, moram praticamente a mesma quantidade de famílias, ambos são mais ou menos do mesmo tamanho, porém, quando a comitiva de São Raimundo encerrou a visita a todas as casas de Vila Nova não realizaram o ritual de recolher, conferir e divulgar para as pessoas daquele lugar o quanto foi arrecadado. Na ocasião ficamos bastante intrigados, afinal, porque o ritual não foi realizado? Posteriormente pudemos compreender que Vila Nova, apesar de ter aproximadamente a mesma quantidade de famílias moradoras e o mesmo tamanho da área que Santa Luzia, não tinha o status de uma unidade política e territorial tal como Santa Luzia, isso porque, enquanto Santa Luzia é tratada e se reconhece como uma comunidade, Vila Nova, mesmo tendo tamanho e quantidade de famílias parecida é apenas uma localidade que pertence à comunidade de Bacabal, ou seja, Vila Nova é uma localidade que pertence à totalidade de Bacabal, tal como as localidades chamadas Bacabal, Mucura (Campo Alegre) e Combate. Todas essas fazem parte da comunidade de Bacabal, por isso o ritual de conferir e divulgar quanto foi arrecadado durante a ‘caminhada do santo’ aconteceu na igreja de Bacabal, e não na Vila Nova

(Lima Filho, 2014LIMA FILHO, Petrônio Medeiros. Entre quilombos: circuitos de festas de santo e a construção de alianças políticas entre comunidades quilombolas de Salvaterra – Marajó – Pará. 2014. 237 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2014., p. 151-152).

Na descrição, percebemos que, mesmo sendo de tamanhos semelhantes, Santa Luzia e Vila Nova possuem reconhecimentos diferentes: enquanto a primeira é reconhecida e se reconhece como uma unidade – uma totalidade – como comunidade de Santa Luzia, a segunda é reconhecida e se reconhece como parte de uma totalidade, parte da comunidade de Bacabal. Note-se que, em Santa Luzia, a contagem e a divulgação do que foi arrecadado na caminhada do santo foram feitas na última casa visitada, isso porque lá não havia igreja construída. Mesmo assim, para além da igreja, o gesto de respeito de contar e de divulgar o que foi arrecadado aconteceu.

Esses fatos permitem-nos aprofundar a compreensão de como a existência e a realização das festas estão intrinsecamente relacionadas à constituição política, simbólica e territorial de cada comunidade e à construção de alianças políticas (construção de laços de fidelidade e de confiança) entre as mesmas. Em seus estudos na comunidade quilombola Bairro Alto, também no município de Salvaterra, Cardoso (2008)CARDOSO, Luís Fernando Cardoso e. A constituição local: direito e território quilombola na comunidade de Bairro Alto, Ilha de Marajó-Pará. 2008. 258 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. mostra que há diversas unidades sociais diferentes dentro de uma mesma comunidade, as quais, como afirma o autor, possuem nome próprio, um sentimento de pertencimento e um território único. Segundo ele, contudo,

[...] quando é necessário afirmar a unidade do grupo diante dos poderes instituídos do Estado, Bairro Alto, uma das nove unidades sociais, aglutina todas as outras ao incorporar a palavra comunidade. Então Bairro Alto deixa de ser uma parte, para tornar-se um todo de reivindicação de direitos ao território. É, portanto, nesse momento que são suspensas as diferenças para surgir a comunidade enquanto unidade política que dialoga com os poderes estatais

(Cardoso, 2008CARDOSO, Luís Fernando Cardoso e. A constituição local: direito e território quilombola na comunidade de Bairro Alto, Ilha de Marajó-Pará. 2008. 258 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008., p. 92-93, grifos do autor).

Cardoso (2010)CARDOSO, Luís Fernando Cardoso e. A constituição local: direito e território quilombola na comunidade de Bairro Alto, Ilha de Marajó-Pará. In: ENCONTRO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA DA REGIÃO NORTE, 2., 2010, Belém. Anais... Belém: SBS, 2010. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/91088>. Acesso em: 30 maio 2017.
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mostra como, diante dos poderes instituídos do Estado e para afirmar a unidade do grupo, Bairro Alto deixa de ser apenas uma unidade social quando aglutina todas as outras unidades, ao incorporar a palavra comunidade. Situação semelhante aconteceu em Bacabal, evidenciada na descrição da caminhada do santo feita anteriormente, quando as unidades sociais se aglutinam na unidade política ‘comunidade de Bacabal’. Mas o que essa etnografia sobre a realização das festas de santo entre as comunidades quilombolas de Salvaterra evidencia é que, sem dúvida, como afirma Cardoso (2010)CARDOSO, Luís Fernando Cardoso e. A constituição local: direito e território quilombola na comunidade de Bairro Alto, Ilha de Marajó-Pará. In: ENCONTRO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA DA REGIÃO NORTE, 2., 2010, Belém. Anais... Belém: SBS, 2010. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/91088>. Acesso em: 30 maio 2017.
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, a comunidade, enquanto unidade política, constitui-se e apresenta-se para o diálogo com o Estado, mas, muito antes e há muito tempo, estas comunidades já vêm se apresentando e dialogando entre si enquanto unidades políticas por meio das festas de santo, independente da relação com o Estado. Por meio desses circuitos, há gerações, estas comunidades já dialogam entre si e se reconhecem como unidades políticas, simbólicas e territoriais.

Antes mesmo do diálogo com o Estado e muito antes de se autoreconhecerem como quilombolas e reivindicarem a titulação de seus territórios, elas vêm, por meio de intensos circuitos de festas que se estabelecem ao longo do tempo (todos os anos e há gerações) e do espaço (enlaçando e envolvendo várias comunidades), construindo-se como unidades políticas, simbólicas e territoriais, ao mesmo tempo que constroem alianças políticas entre si. Diante desses fatos, sugerimos que a festa está no cerne da própria constituição destes coletivos, pois:

O fato de a comitiva não conferir e divulgar o quanto foi arrecado na unidade social Vila Nova significa que há muito tempo já existe uma compreensão de que a unidade política é a comunidade de Bacabal, e essa percepção está para além da marcação do prédio da igreja, pois na comunidade de Santa Luzia, onde não existe igreja construída, no final da caminhada a conferência e divulgação do valor arrecadado pelo santo foi realizado da mesma maneira que nas outras comunidades, porém, ao invés de em uma igreja, aconteceu no interior da última casa visitada em Santa Luzia. Portanto, a comunidade enquanto unidade política vem sendo construída há muito tempo nas relações intra e entre comunidades e se realiza não apenas na relação com o Estado, mas também em várias outras ocasiões como durante as festas de santo. Assim, ao final de cada caminhada de santo, quando a imagem junto com sua comitiva volta para igreja ou para o lugar de onde partiu na comunidade visitada, contabiliza todo o dinheiro arrecadado e anuncia para a comunidade, esse gesto é um ato político de reconhecimento daquela unidade política, simbólica e territorial, e de demonstração de respeito para com a mesma

(Lima Filho, 2014, p. 153).

OS CIRCUITOS DE FESTAS DE SANTO E O TERRITÓRIO IDENTIFICADO NO PNCSA

Buscamos demonstrar como as caminhadas de santo produzem compromissos entre as comunidades, por meio dos rituais de visitas entre elas, dando início a um circuito de reciprocidades. Convidar uma comunidade para a festa é o momento inicial do processo, significa dar. Este dom é recebido por elas quando aceitam o santo peregrino em suas igrejas e em suas casas. Receber o santo em sua casa, em sua comunidade, é estabelecer uma forte aliança, sobretudo, política.

A retribuição, porém, não ocorre na mesma ocasião, apenas parcialmente, com um lanche ou almoço oferecido à comitiva, e pelas joias (dinheiro, ovos, ‘cirimbabos’), que são oferendas dadas ao santo. Isso ocorre somente um tempo depois, quando as famílias das comunidades convidadas vão à comunidade anfitriã para participar da festa, momento no qual se intensificam as socialidades, com farta distribuição de alimentos às famílias convidadas, momento em que todos dançam, bebem e comem.

Na Figura 2, apresentamos os circuitos de festas que propiciaram a construção de uma territorialidade abrangendo o conjunto das comunidades. Na imagem, as linhas coloridas representam os circuitos, os movimentos de dar e de receber, marcados pelo convite e pela ‘caminhada do santo’, e o retribuir, que é o retorno definido pela participação na festa.

Figura 2
Mapa elaborado com base nas informações obtidas no trabalho de campo realizado em todas as comunidades quilombolas de Salvaterra, no qual foram pesquisadas as festas citadas pelos interlocutores como ‘festas de tradição’ e que ainda eram realizadas no ano de 2013 nestas comunidades. Relação entre o ‘sistema de festas’ e o território quilombola de Salvaterra cartografado pelo Projeto Nova Cartografia Social.

Cada linha da Figura 2 possui uma cor específíca, evidenciando os circuitos de cada festa de tradição, podendo-se verificar ainda que as linhas mais grossas representam as relações mais sólidas entre as comunidades ou que o dar, o receber e o retribuir se estabelecem há mais tempo entre estas comunidades. Quando reunimos neste esquema todas as festas de tradição realizadas pelas comunidades quilombolas de Salvaterra até o ano de 201311 11 Ano em que realizamos o último levantamento de pesquisa sobre as chamadas ‘festas de tradição’, denominação nativa para as festas que ainda eram realizadas até aquele momento em todas as comunidades quilombolas de Salvaterra. Portanto, não incluímos os eventos que existiram ao longo de anos, porém não eram mais realizados no período da pesquisa. , verificamos que existem muitas intercessões, sendo impossível distinguir onde começam ou terminam os circuitos nas diferentes comunidades.

A densidade das linhas na Figura 2 demonstra as repetições destes movimentos e a sobreposição destas representa a intensidade da circulação de coisas, de pessoas, de objetos, de homens, de mulheres, de crianças, de famílias, de dádivas, que vêm sendo dadas, recebidas e retribuídas há gerações, impulsionadas pelas festas de santo, e do quanto estes circuitos de festas contribuem para enlaçar estas comunidades por meio da partilha dos territórios e da construção de compromissos que fundamentam alianças políticas entre elas.

Na Figura 2, apresentamos uma representação visual do que seria o que sugerimos chamar de ‘sistema de festas’, que há gerações movimenta as relações intra e entre comunidades quilombolas de Salvaterra. Ao interpretarmos as festas como dádivas, dádivas-festas – que são dadas, recebidas e retribuídas intra e entre comunidades –, pudemos verificar que isto tem contribuído muito significativamente para a intensificação/ampliação das socialidades entre comunidades/famílias, fazendo com que saiam do ciclo restrito de relações intracomunidade, alçando-as em um contexto mais amplo de relações12 12 Sugerimos que as dádivas-festas promovem uma espécie de movimento centrífugo (do centro para fora) – quando lançam seus convites e visitam as outras comunidades com suas imagens peregrinas – e também um movimento centrípeto (de fora para dentro) – quando realizam as festas, já que as pessoas de várias comunidades (de fora) nestas ocasiões deslocam-se e encontram-se na comunidade que está realizando a festa. As dádivas-festas, nessa perspectiva, funcionam como uma pulsação, mandando as pessoas de dentro de cada comunidade para fora, para participar das inúmeras festas nas outras comunidades, e depois reunindo estas pessoas de fora na sua própria comunidade, para dentro, em um processo de ir e vir constante, onde as relações, ao longo do tempo e do espaço, se estabelecem. entre comunidades.

Ao elaborar uma representação gráfica deste sistema (Figura 2), buscamos evidenciar a abrangência em termos territoriais das relações nele movimentadas. Neste sentido, demonstramos a abrangência do ‘sistema de festas’ em relação à circunscrição do município de Salvaterra e ao território único, identificado e cartografado pelo Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA).

Os circuitos de festas das comunidades quilombolas abrangem uma área expressiva do município de Salvaterra, na ilha do Marajó. Este espaço por onde circulam as várias comunidades forma um ‘sistema de festas’, constituído pela reunião dos circuitos de cada comunidade quilombola. Tal cirucuito é, de certo modo, responsável pela intensificação e pela ampliação da circulação de dádivas, as quais se acentuam durante o período de junho a dezembro (época menos chuvosa na região), quando se instaura o ‘tempo da tradição’ – o tempo das festas.

Guardadas as devidas proporções e diferenças, parece haver semelhanças entre este sistema com o do Kula, dos Trobriandeses, tal como descrito por Malinowski (1978)MALINOWSKI, Bronislaw. Os argonautas do pacífico ocidental. São Paulo: Abril, 1978., que se caracteriza pela circulação de braceletes e de pulseiras entre as tribos. Nas comunidades quilombolas, entretanto, circulam os convites, as imagens dos santos e as próprias festas.

O ponto central, portanto, das semelhanças que sugerimos existir entre o Kula, nas ilhas Trobriand, e o ‘sistema de festas’, no município de Salvaterra, arquipélago do Marajó, é que ambos promovem a intensa circulação de dádivas entre os grupos envolvidos, contribuindo para o enlace entre os mesmos. Segundo Mauss (2003a, p. 226)MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a.:

[...] todo o Kula intertribal não é senão, ao nosso ver, o caso exagerado, mais solene e mais dramático, de um sistema mais geral. Ele tira a tribo inteira do círculo estreito de suas fronteiras, e mesmo de seus interesses e direitos; mas normalmente, no interior, os clãs e as aldeias estão ligados por vínculos do mesmo gênero. Só que então são apenas os grupos locais e domésticos, e seus chefes, que saem de suas casas, visitam-se, negociam e casam-se.

Considerando as palavras de Mauss (2003a)MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a., é possível afirmar que há semelhanças entre o Kula e o ‘sistema de festas’, pois este último também tira a comunidade inteira do círculo estreito de suas fronteiras e a insere em um circuito de festas que amplia a circulação das pessoas, das coisas e das dádivas para além das fronteiras de cada comunidade. Essa circulação é responsável por produzir uma territorialidade que conduz a uma intensa partilha de territórios, quando, todos os anos e há gerações, estas comunidades se visitam e compartilham os territórios umas das outras, de modo que, por meio deste sistema, ao longo do tempo, são criados simultaneamente o território de cada comunidade e outro mais amplo, que envolve o conjunto das comunidades e é partilhado por elas. Compreendemos território tal como Little (2002, p. 3)LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Brasília: Departamento de Antropologia, 2002. (Série Antropologia, n. 322)., “[...] como o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu ‘território’ ou homeland”.

Nessa perspectiva, o território, ao contrário de ser algo fixo, está permanentemente em (re)construção, e a territorialidade que o (re)conforma está relacionada a contextos e conflitos sociais, históricos, econômicos, geopolíticos e ambientais. Dessa forma, sugerimos que estas comunidades, hoje autodefinidas como quilombolas, localizadas no município de Salvaterra, vêm, ao longo de sua história, construindo uma territorialização que originou territórios específicos de cada comunidade e, ao mesmo tempo, com decisiva influência dos circuitos de festas, construindo também um território mais amplo, enlaçando, envolvendo e conectando o conjunto destas comunidades com o passar dos anos (Almeida, 1989ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de preto, terras de santo, terras de índio: uso comum e conflito. Cadernos do NAEA, Belém, n. 10, p. 163-196, 1989.; Oliveira, 1998OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 47-77, abr. 1998. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93131998...
).

Esse território mais amplo é permantentemente vivido e animado pela circulação de coisas, de pessoas, de dádivas entre as comunidades, porém há uma intensificação destas circulações e das relações durante a realização das festas, momento em que os encontros se intensificam. Segundo Acevedo Marin (2006)ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth (Coord.). Famílias de providência, herdeiros e donos, Salvaterra – Pará. Belém: UNAMAZ/SEJU, 2006. (Projeto de Pesquisa Estudos e Publicações sobre Grupos Negros no Pará)., existe uma memória coletiva da festa que incorpora a memória dos territórios de festa. Dessa forma, a autora enfatiza a importância das festas de santo nas relações entre comunidades:

Nos povoados do território quilombola de Salvaterra, durante quase todos os meses do ano, assinala-se uma data de comemorações, de festas de santos. O ciclo santoral representa a marcação temporal das festividades na dinâmica do mundo social. Esse calendário religioso e sazonal é compartilhado por todos, e o fato de que as festas continuem vivas é porque o ciclo santoral é observado com zelo. Os povoados de Mangueiras, Deus Ajude, Bacabal, Pau Furado, Caldeirão, Barro Alto realizam as festas maiores, conhecidos pela tradição da festa. Contudo, todas as comunidades se mobilizam para a festa do Santo ou Santa, visita dos esmoleiros, as procissões, que na data da celebração acompanham os rituais; o jogo de futebol, a festa dançante. [...] A festa permite perpetuar certos valores da comunidade (até garantindo sua sobrevivência) e, por outro lado, fazer a crítica da ordem social. A festa não é mera ‘válvula de escape’, desviando a atenção da realidade. A memória coletiva da festa incorpora a memória dos territórios de festa [...]. Nesse fazer coletivo da festa se elaboram memórias; os significados de um fazer festivo é também uma permanente reatualização, renovação e ampliação das redes sociais

(Acevedo Marin, 2006ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth (Coord.). Famílias de providência, herdeiros e donos, Salvaterra – Pará. Belém: UNAMAZ/SEJU, 2006. (Projeto de Pesquisa Estudos e Publicações sobre Grupos Negros no Pará)., p. 79-80, grifo nosso).

Acevedo Marin (2006, p. 79) atribui às festas de santo um papel central na construção do que chama de “[...] o território quilombola de Salvaterra [...]”, que envolve o conjunto das comunidades quilombolas de Salvaterra13 13 A autora Acevedo Marin (2006) enfatiza ainda que todas as comunidades se mobilizam para a festa de santo. Ela evidencia a existência de um ciclo santoral como dinamizador do mundo e como marca temporal, e que esse calendário é compartilhado e realizado com zelo pelas comunidades. Todas estas afirmações corroboram nossa percepção, fruto da pesquisa de que existe uma espécie de sistema de festas, com papel central na construção de alianças políticas intra e entre comunidades. . A autora evidencia que as relações afetivas no fazer festivo elaboram memórias, e os significados desse fazer ampliam, renovam e reatualizam as redes sociais, enfatizando a relação entre isso e o referido território quilombola, que abrange o conjunto das comunidades.

O “[...] território quilombola de Salvaterra [...]”, a que se refere Acevedo Marin (2006, p. 79)ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth (Coord.). Famílias de providência, herdeiros e donos, Salvaterra – Pará. Belém: UNAMAZ/SEJU, 2006. (Projeto de Pesquisa Estudos e Publicações sobre Grupos Negros no Pará)., corresponde à visão dos quilombolas sobre esse território. Ao sobrepor tal forma de ver o território à representação gráfica do ‘sistema de festas’, composto pelas festas que são dadas, recebidas e retribuídas há anos, intra e entre as comunidades quilombolas de Salvaterra, pode-se verificar uma íntima correspondência, na qual esse sistema encontra-se bem no centro do território cartografado pelo PNCSA, como é demonstrado na Figura 2. Assim, podemos afirmar que:

O ‘sistema de festas’ de santo e os ‘circuitos de festas’ que o constituem têm contribuído decisivamente, ao longo do tempo, para a construção de uma territorialidade mais ampla, que ergue pontes, cria laços, vínculos fortes e alianças políticas entre as comunidades – o que identificamos nas relações estabelecidas, criadas e recriadas entre as mesmas a partir dos percursos e gestos realizados durante os circuitos de festas de santo [que propusemos descrever]

(Lima Filho, 2014, p. 162).

Mauss (2003a, p. 226)MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003a. evidencia que “[...] é preciso haver caminhos, trilhas pelo menos, mares ou lagos por onde se possa viajar em paz. É preciso alianças tribais e intertribais ou internacionais [...]”. De certa maneira, pudemos verificar que entre as comunidades quilombolas de Salvaterra o ‘sistema de festas’ vem erguendo estas pontes, construindo estes caminhos e tendo importância fundamental na construção das alianças entre os coletivos que o compõem há gerações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme pudemos evidenciar, o conhecimento sobre o direito à titulação do território quilombola, garantido pela Constituição de 1988 (Brasil, 2001BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 2001.), chegou às comunidades de Salvaterra por meio do trabalho do CEDENPA, da UFPA e do programa Raízes. A partir de então, tendo as mulheres como principais protagonistas, por meio dos encontros de mulheres quilombolas, a autoidentificação propagou-se intra e entre comunidades, seguindo uma rede de alianças políticas que já existia e vinha sendo construída ao longo de várias gerações.

Ao analisarmos os circuitos de festas intra e entre as comunidades quilombolas de Salvaterra, evidenciamos um dos nexos responsáveis pela tessitura das relações entre os vários grupos sociais. As festas de santo são elementos significativos, que criam fortes laços coletivos pelo conjunto de relações de reciprocidade criadas, reforçadas e atualizadas nestes momentos festivos, constituindo-se, assim, em fortes alianças políticas. Elas e a própria imagem do santo padroeiro construíram cada comunidade como uma unidade política, simbólica e territorial e já vinham propiciando a partilha dos territórios ao longo de décadas, criando, ao mesmo tempo, um território específico de cada comunidade e um mais amplo, envolvendo o conjunto destas comunidades.

Com a apropriação do conhecimento sobre o direito ao reconhecimento e à titulação dos territórios coletivos, as comunidades, ao se autodefinirem como quilombolas, criaram um outro marco para as alianças políticas e para o fortalecimento de cada comunidade como unidade política, simbólica e territorial. Esta autodefinição permitiu que a diversidade existente em cada comunidade fosse reunida em torno de uma mesma bandeira – a do quilombo, do reconhecimento e da luta pela titulação dos territórios coletivos, nos moldes do artigo 68 do ADCT/CF (Brasil, 2002BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Mensagem nº 370, de 13 de maio de 2002. Dispõe sobre o veto ao Projeto de Lei nº 129, de 1995. Brasília: Senado Federal, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/veto_total/2002/Mv370-02.htm>. Acesso em: 19 out. 2017.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/vet...
).

No passado, a eleição de um santo padroeiro por uma coletividade era uma forma de autoidentificação como uma comunidade, uma unidade política, simbólica e territorial, além da participação nos circuitos de festas. Atualmente, a autoidentificação quilombola é o marco para as alianças políticas entre estas comunidades, ao se configurar como uma identidade étnica e política, que permite reconhecer uma diversidade ainda maior no interior delas e, com isso, ampliar a sua potencialidade coletiva. Não é por acaso que este novo marco das alianças políticas gerou novas festas, as quais não existiam antes no município de Salvaterra, tais como os “Jogos quilombolas” e os “Desfiles cívicos quilombolas”, cujo protagonismo está condicionado à autoidentificação como quilombola.

Novas festas para novos marcos de alianças continuam a iluminar a ligação estreita entre festas e alianças políticas e a reforçar a concepção de que as festas não apenas reproduzem, mas estão no centro da própria criação destes coletivos. Tanto os “Desfiles cívicos quilombolas” quanto os “Jogos quilombolas” são expressões políticas da vida e da (re)existência das comunidades quilombolas de Salvaterra e sugerem novas perspectivas para interpretar as relações entre festas e alianças políticas. Isso, no entanto, ficará para um próximo artigo.

  • 1
    O artigo 68 (ADCT) da Constituição Federal de 1988 significou, pela primeira vez em muitos séculos de história do Brasil, a criação de um dispositivo jurídico que não apenas reconhece a existência de ‘remanescentes das comunidades dos quilombos’ (Brasil, 2001BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 2001.), como também institui a obrigação do Estado de regularizar e titular os territórios desses ‘remanescentes’. As lutas desses povos foram ampliadas pelo decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, o qual estabeleceu que as terras ocupadas por esses remanescentes, a serem reconhecidas e tituladas pelo Estado, são aquelas utilizadas para a garantia da reprodução física, social, econômica e cultural dessas comunidades, e não apenas as reduzidas áreas utilizadas para moradia (Brasil, 2003BRASIL. Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 21 nov. 2003. Seção 1, p. 4. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm>. Acesso em: 30 abr. 2014.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec...
    , não paginado).
  • 2
    O termo ‘grupo social’ é usado aqui para referir-se a uma coletividade constituída por pessoas que realizam ações conjuntas, unidas por laços de afinidade e por objetivos comuns, e podem ser “[...] definidas por formas comuns de acesso a recursos produtivos e por sua participação em relações sociais similares para ganhar a vida [...]” (Schmink; Wood, 2012SCHMINK, Marianne; WOOD, Charles H. (Org.). Conflitos sociais e a formação da Amazônia. Tradução de Noemi Miyasaka Porro e Raimundo Moura. Belém: EDUFPA, 2012., p. 51).
  • 3
    No ano de 2002, o Brasil ratificou a convenção 169 da Organização Intenacional do Trabalho (OIT), a qual assegura o respeito à autodefinição dos povos. Dentro do processo de regularização de territórios quilombolas no Brasil, a Fundação Cultural Palmares (FCP) é responsável por emitir e registrar a certificação das comunidades que se autodefiniram como quilombolas. A autoidentificação referida aqui diz respeito a estes dois processos: tanto à autodefinição destas comunidades como quilombolas quanto à sua certificação pela FCP.
  • 4
    Segundo Acevedo Marin (2009, p. 217), “O I Encontro de Mulheres Negras Quilombolas foi promovido pelo Centro de Defesa e Estudos do Negro no Pará (CEDENPA). […] A agenda do encontro incluía, prioritariamente, relações raciais, discriminação do negro, direitos, relações de gênero, saúde, questões de terra e luta pela titulação, economia, renda, organização e mobilização política. […] Os grupos ampliaram e aceleraram o controle de sua identidade social e de estratégia política durante estas mobilizações e discussões, como mostraram os três Encontros de Mulheres Negras quilombolas, realizados em Bacabal (2002), Deus Ajude (2003) e Mangueira (2004), no município de Salvaterra”.
  • 5
    “[...] do total das associações quilombolas de Salvaterra que deram entrada em processos no INCRA [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], solicitando o reconhecimento e a titulação de seus territórios quilombolas, 60% tinham mulheres como presidentes e mesmo nas outras associações que eram presididas por homens, as vicepresidentes, 1ª Secretárias entre outros cargos nas associações eram ocupados por mulheres, o que evidencia o aludido protagonismo feminino na organização das associações das comunidades quilombolas de Salvaterra” (Lima Filho, 2014, p. 57).
  • 6
    Um dos símbolos e, ao mesmo tempo, representação da aludida unidade política das comunidades quilombolas de Salvaterra, em termos territoriais, é o fascículo intitulado “Quilombolas da Ilha de Marajó”. Nele, é possível observar o mapa “O território quilombola de Marajó”, indicando um território único envolvendo todas as citadas comunidades (PNCSA, 2006PROJETO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DA AMAZÔNIA (PNCSA). Quilombolas da Ilha de Marajó. Belém: Coordenação Estadual das Associações de Remanescentes de Quilombos do Estado do Pará -Malungu, 2006. (Série Movimentos Sociais, Identidade Coletiva e Conflitos, n. 7). Disponível em: <http://novacartografiasocial.com/download/07-quilombolas-da-ilha-demarajo-para/>. Acesso em: 30 maio 2017.
    http://novacartografiasocial.com/downloa...
    , p. 7).
  • 7
    “Durante a campanha para a prefeitura do município de Salvaterra [no ano de 2012], as comunidades quilombolas elaboraram um documento reunindo o conjunto de suas reivindicações e o Conselho das Associações, em ato solene, convocou todos os candidatos à prefeitura para participarem de uma reunião com os representantes e pessoas das comunidades. Nesse evento, o Conselho apresentou o documento e solicitou o comprometimento dos candidatos em atender suas reivindicações. Apenas dois candidatos se fizeram presentes na reunião com os quilombolas de Salvaterra, e apenas um deles assinou e registrou o compromisso em cartório. Esse [candidato] foi eleito prefeito, tendo iniciado seu mandato no ano de 2013, sob grandes expectativas dos quilombolas” (Lima Filho, 2014, p. 60).
  • 8
    Segundo apresentação que consta no site oficial do PNCSA: “O Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) tem como objetivo dar ensejo à autocartografia dos povos e comunidades tradicionais na Amazônia. Com o material produzido, tem-se não apenas um maior conhecimento sobre o processo de ocupação dessa região, mas sobretudo uma maior ênfase e um novo instrumento para o fortalecimento dos movimentos sociais que nela existem. Tais movimentos sociais consistem em manifestações de identidades coletivas, referidas a situações sociais peculiares e territorializadas. Estas territorialidades específicas, construídas socialmente pelos diversos agentes sociais, é que suportam as identidades coletivas objetivadas em movimentos sociais. A força deste processo de territorialização diferenciada constitui o objeto deste projeto” (Apresentação..., 2014APRESENTAÇÃO do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia em Português no Brasil. Nova Cartografia Social da Amazônia, Manaus, 2014. Disponível em: <http://novacartografiasocial.com/apresentacao/>. Acesso em: 29 abr. 2014.
    http://novacartografiasocial.com/apresen...
    , não paginado).
  • 9
    Godbout (1998)GODBOUT, J. T. Introducão à dádiva. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 13, n. 38, p. 39-51, out. 1998. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69091998000300002.
    http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69091998...
    explica que o sentido da dádiva é tecer vínculos e alianças. Nesse sentido, o bem que é trocado não é o mais importante, a dádiva é uma relação onde não se objetiva ‘quitar a dívida’, mas permanecer endividado, no sentido do movimento de dar, receber e retribuir. Desta maneira, é a permanência da ‘dívida mútua’ que renova o enlace. Essa lógica é diferente do fundamento do mercado: “O modelo mercante visa à ausência de dívida. Nesse modelo, cada troca é completa. Graças à lei da equivalência, cada relação é pontual, e não compromete o futuro. Não tem futuro e, portanto, não nos insere num sistema de obrigações” (Godbout, 1998GODBOUT, J. T. Introducão à dádiva. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 13, n. 38, p. 39-51, out. 1998. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69091998000300002.
    http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69091998...
    , p. 41).
  • 10
    Mauss (2003a, p. 218) afirma que: “Segundo Malinowski esses vaygu’a são animados de uma espécie de movimento circular; os mwali, os braceletes, transmitem-se regularmente de Oeste a Leste, e os soulava viajam sempre de Leste a Oeste. Esses dois movimentos de sentido contrário ocorrem entre todas as ilhas Trobriand, Entrecasteaux, Amphlett e as ilhas isoladas, Woodlark, Marshall-Bennet, Tube-tube e, finalmente, a extrema costa sudeste da Nova Guiné, de onde vêm os braceletes brutos [...]. Em princípio, a circulação desses signos de riqueza é incessante e infalível. Não se deve nem guardá-los por muito tempo, nem ser lento ou duro em desfazer-se deles, nem tampouco dá-los a outra pessoa que não os parceiros determinados num sentido determinado, ‘sentido bracelete’, ‘sentido colar’. Deve-se e pode-se guardá-los de um Kula a outro, e toda comunidade orgulha-se dos vaygu’a que um de seus chefes obteve [...]”
  • 11
    Ano em que realizamos o último levantamento de pesquisa sobre as chamadas ‘festas de tradição’, denominação nativa para as festas que ainda eram realizadas até aquele momento em todas as comunidades quilombolas de Salvaterra. Portanto, não incluímos os eventos que existiram ao longo de anos, porém não eram mais realizados no período da pesquisa.
  • 12
    Sugerimos que as dádivas-festas promovem uma espécie de movimento centrífugo (do centro para fora) – quando lançam seus convites e visitam as outras comunidades com suas imagens peregrinas – e também um movimento centrípeto (de fora para dentro) – quando realizam as festas, já que as pessoas de várias comunidades (de fora) nestas ocasiões deslocam-se e encontram-se na comunidade que está realizando a festa. As dádivas-festas, nessa perspectiva, funcionam como uma pulsação, mandando as pessoas de dentro de cada comunidade para fora, para participar das inúmeras festas nas outras comunidades, e depois reunindo estas pessoas de fora na sua própria comunidade, para dentro, em um processo de ir e vir constante, onde as relações, ao longo do tempo e do espaço, se estabelecem.
  • 13
    A autora Acevedo Marin (2006)ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth (Coord.). Famílias de providência, herdeiros e donos, Salvaterra – Pará. Belém: UNAMAZ/SEJU, 2006. (Projeto de Pesquisa Estudos e Publicações sobre Grupos Negros no Pará). enfatiza ainda que todas as comunidades se mobilizam para a festa de santo. Ela evidencia a existência de um ciclo santoral como dinamizador do mundo e como marca temporal, e que esse calendário é compartilhado e realizado com zelo pelas comunidades. Todas estas afirmações corroboram nossa percepção, fruto da pesquisa de que existe uma espécie de sistema de festas, com papel central na construção de alianças políticas intra e entre comunidades.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2017
  • Aceito
    17 Out 2017
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