Acessibilidade / Reportar erro

Prática de mediação corporal com gestantes: orientações e fundamentos

Resumo

Este ensaio versa sobre algumas noções teóricas que fundamentam a intervenção profilática e terapêutica com gestantes por intermédio da mediação corporal. Tendo em conta que os processos relativos à maternidade podem dificultar a aceitação do próprio corpo pela gestante e a construção da identidade de mãe, apresentam-se as alterações psicocorporais inerentes a este período, assim como a importância do estabelecimento de uma relação empática entre mãe-criança do interior. Com base nesse enquadramento teórico, abordam-se indicações teórico-práticas que alicerçam a pertinência da utilização da corporeidade e da mediação corporal na aceitação e utilização do corpo da gestante no cotidiano. Neste sentido, as considerações finais abarcam linhas orientadoras que permitem aos terapeutas, independentemente de serem psicomotricistas, terapeutas ocupacionais ou outros, refletirem sobre a forma de auxiliar na aceitação do corpo pela gestante nos ambientes e contextos que a envolvem, com vista a facilitar o processo de pensar, imaginar e desejar o filho.

Palavras-chave:
Gestação; Corpo Humano; Maternidade

Abstract

This article approaches some theoretical notions that support a prophylactic and therapeutic intervention with pregnant women, through body mediation. Considering that the processes related to motherhood can make it difficult for the pregnant woman to accept their own body and the construction of their mother's identity, we present the psychocorporeal changes inherent to this period, as well as the importance of establishing an empathic relationship between mother and the child inside. Based on this framework, we approach theoretical and practical indications that support the relevance of the use of corporeality and body mediation in the acceptance and use of the pregnant woman's body in daily life. Thus, final considerations include some guidelines that allows psychomotor therapist, occupational therapists and others, to reflect on how to support a pregnant woman to accept her new body in the surrounding environments and contexts, in order to facilitate the process of thinking, imagining and desiring the child.

Keywords:
Pregnation; Human Body; Parenting

1 Introdução

Existem serviços de saúde de assistência materna e neonatal em unidades básicas de saúde, ambulatórios localizados em unidades mistas, hospitais ou maternidades (Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 2014Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. (2014). Serviços de atenção materna e neonatal: segurança e qualidade. Brasília: ANVISA.). Nessas instituições é possível que diferentes profissionais da área da saúde (e.g. psicomotricista, terapeuta ocupacional) utilizem técnicas de mediação corporal e corporeidade para otimizar a relação da gestante com o ambiente externo, auxiliar na expressão de sentimentos, nas trocas afetivas e na percepção da autoimagem (Potel, 2012Potel, C. (2012). Être psychomotricien: un métier du présent, un métier d’avenir. Paris: Érès.; Ferigato et al., 2018Ferigato, S. H., Silva, C. R., & Ambrosio, L. A. (2018). Corporeidade de mulheres gestantes e a terapia ocupacional: ações possíveis na Atenção Básica em Saúde. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(4), 768-783.). Neste contexto, Ferigato et al. (2018Ferigato, S. H., Silva, C. R., & Ambrosio, L. A. (2018). Corporeidade de mulheres gestantes e a terapia ocupacional: ações possíveis na Atenção Básica em Saúde. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(4), 768-783., p. 769) advogam que a terapia ocupacional utiliza a corporeidade por meio da ação, da experiência e da ocupação, “[…] não para corrigir nem normalizar, mas para produzir novos corpos e novos fazeres nos diferentes cotidianos existentes”. JáPotel (2012)Potel, C. (2012). Être psychomotricien: un métier du présent, un métier d’avenir. Paris: Érès. afirma que a Psicomotricidade utiliza a mediação corporal para ajudar a pessoa a habitar o seu corpo, entendido aqui como o ato psíquico de processar as informações sensório-motoras e tônico-emocionais que permitem formar a identidade e adquirir o sentimento de “estar no interior do seu corpo” de forma permanente. As mediações podem ser variadas: por intermédio da arte (dança, canto, música, pintura, entre outras), da palavra pela narração de acontecimentos, do jogo espontâneo ou dirigido, do meio aquático, e pela mediação corporal por intermédio da corporeidade (nome genérico que se dá à unidade do corpo que é real, biológico, neurofisiológico, cognitivo, emocional, simbólico e relacional), ou seja, pela implicação do corpo da pessoa e do terapeuta engajados na relação. Deste modo, para além de facilitar o estabelecimento da relação, favorece as ações necessárias para uma transformação ou desenvolvimento (Gatecel & Giromini, 2012Gatecel, A., & Giromini, F. (2012). La formation des psychomotriciens dans le cadre universitaire. In C. Potel. Être psychomotricien: un métier du present, un métier d’avenir (pp. 435-448). Paris: Érès.; Potel, 2012Potel, C. (2012). Être psychomotricien: un métier du présent, un métier d’avenir. Paris: Érès.).

Cada uma das perspectivas anteriormente descritas, apesar da possibilidade de estarem associadas a diferentes práxis, apoiam-se em conhecimentos teóricos universais que se complementam na busca pela melhoria da cotidianidade da gestante e do desenvolvimento da criança do interior do pré-natal, como refere Missonier (2007aMissonier, S. (2007a). La parentalité prénatale, la péparation à la naissance et l’entretien precoce. Contraste, 26(1), 55-79. Recuperado em 23 de abril de 2018, de https://www.cairn.info/revue-contraste-2007-1-page-55.htm
https://www.cairn.info/revue-contraste-2...
, 2007bMissonier, S. (2007b). Une relation d'objet virtuelle? Le Carnet PSY, 120(7), 43-47. Recuperado em 23 de abril de 2018, de https://www.cairn.info/revue-le-carnet-psy-2007-7-page-43.htm
https://www.cairn.info/revue-le-carnet-p...
). Assim, pretende-se apresentar alguns saberes associados ao conhecimento teórico (Saber-Teórico) necessário à elaboração de uma práxis terapêutica de mediação corporal (Saber-Fazer) que pode constituir, para qualquer equipe de profissionais de saúde ligados à Psicomotricidade (ex.: terapia ocupacional, enfermagem e fisioterapia) informes necessários que permitam desenvolver intervenções interdisciplinares.

A maternidade está associada a processos que podem levar a gestante a ter dificuldades em aceitar o seu novo corpo e em elaborar a sua identidade de mãe. Como refere Spiess (2002)Spiess, M. (2002). Le vacillement des femmes en début de grossesse. Dialogue, 157(3), 42-50. Recuperado em 12 de maio de 2018, de https://www.cairn.info/revue-dialogue-2002-3-page-42.htm
https://www.cairn.info/revue-dialogue-20...
, o corpo é o primeiro local no qual se expressa toda a problemática existencial que afeta a gestante no seu ser, na sua identidade ou nos seus desejos, o que justifica a pertinência e a adequação de uma intervenção profilática ou terapêutica. Neste enquadramento, o objetivo de uma intervenção de mediação corporal centra-se na possibilidade de ajudar a gestante a ter consciência do seu corpo, a elaborar a sua imagem corporal, a vivenciar o seu interior e estrutura corporal, a habitar o seu novo corpo e, assim, facilitar o processo de pensar, imaginar e desejar o filho.

De forma geral, a mediação corporal tem como objetivos: (i) propor um espaço de experiências, de sensações e percepções; (ii) ajudar a transformar as experiências vividas em representações; e (iii) promover vivências corporais em uma relação estruturante (Potel, 2012Potel, C. (2012). Être psychomotricien: un métier du présent, un métier d’avenir. Paris: Érès.). Parte-se da hipótese de que a concretização desses objetivos permite à gestante estabelecer uma boa relação consigo mesma e, assim, facilitar o estabelecimento da relação com o filho do interior. No entanto, qualquer intervenção necessita de um saber-teórico que permita fundamentar um saber-fazer adaptado às necessidades do grupo ou da pessoa em questão (Gatecel & Giromini, 2012Gatecel, A., & Giromini, F. (2012). La formation des psychomotriciens dans le cadre universitaire. In C. Potel. Être psychomotricien: un métier du present, un métier d’avenir (pp. 435-448). Paris: Érès.). Por isso, torna-se relevante conhecer o estado corporal e psíquico da gestante e sua influência no desenvolvimento da criança do pré-natal, de forma a traçar as diretrizes necessárias à aplicação de uma intervenção de mediação corporal com esta população.

2 Maternidade e Relação Mãe-criança

O resultado do encontro íntimo dos corpos de dois progenitores será, no futuro, um novo corpo que, em termos metafóricos, nasce em uma folha de papel em branco e terá de ser desenhado, como corpo de Homem Vitruviano (criado por Leonardo da Vinci) com uma estrutura psicocorporal equilibrada. Essa obra pictórica se inicia por intermédio das representações que os pais projetam sobre o filho antes deste nascer. Essas representações expressam-se, como refere Stern (1997)Stern, D. (1997). A constelação da maternidade. Porto Alegre: Artes Médicas., por meio das interações e diálogos subjetivos entre pais e filho, que são particularmente influenciados pela história e organização inconsciente da mãe.

Durante o período de gravidez, a criança sente-se devidamente envelopada no interior do corpo da mãe por esta lhe proporcionar um ambiente de contrastes, entre hiperatividade e calma, entre angústia e tranquilidade, porém, em uma dimensão emocional e afetiva equilibrada. Neste sentido, Missonier (2007bMissonier, S. (2007b). Une relation d'objet virtuelle? Le Carnet PSY, 120(7), 43-47. Recuperado em 23 de abril de 2018, de https://www.cairn.info/revue-le-carnet-psy-2007-7-page-43.htm
https://www.cairn.info/revue-le-carnet-p...
, 2010Missonier, S. (2010). Introduction aux connaissances de la psychologie Clinique fœtale. EMC-Psychiatrie, 8(2), 1-9.) refere que existe uma Relação de Objeto Virtual (ROV) associada à interação biopsíquica que se estabelece durante o período pré-natal entre os futuros pais e a criança do interior. Para os pais, essa criança encontra-se a meio caminho entre o filho virtual no pré-natal e o filho atualizado no pós-natal (Missonier, 2007bMissonier, S. (2007b). Une relation d'objet virtuelle? Le Carnet PSY, 120(7), 43-47. Recuperado em 23 de abril de 2018, de https://www.cairn.info/revue-le-carnet-psy-2007-7-page-43.htm
https://www.cairn.info/revue-le-carnet-p...
), em um local imaginário no qual vai ser pensado antes de ser percebido no real. Este é o espaço das representações psíquicas, no qual a mãe pensa, sonha, deseja o filho, elabora a imagem de si e define o seu estilo de maternagem (Bayle, 2005Bayle, B. (2005). L’identité conceptionnelle. Tout se joue-t-il avant la naissance? Paris: L’Harmattan.).

Sobre esta dinâmica relacional, Lebovici et al. (2009)Lebovici, S., Golse, B., & Moro, M. R. (2009). Les interactions fantasmatiques. In S. Lebovici. L’arbre de vie: élèments de la psychopatologie du bébé (pp .73-86). Paris: Érès. especificam 4 tipos de representações que a mãe pode realizar sobre o filho: (i) como uma criança imaginada, ao pensar durante a gravidez sobre as características do futuro filho; (ii) como uma criança fantasmática, elaborada com base em sua própria história e vivências quando era criança; (iii) como uma criança mítica que corresponde ao sistema imagético da mãe projetado na criança; (iv) ou como uma criança narcísica associada à ideia de como ela irá representar os pais no futuro, como sucessora da dinastia familiar.

De forma geral, a transparência psíquica da mãe, ou seja, as características psicológicas da mãe durante a gravidez, que são influenciadas pela sua história pessoal (Bydlowski, 2001Bydlowski, M. (2001). Le regard intérieur de la femme enceinte, transparence psychique et représentation de l'objet interne. Devenir, 13(2), 41-52. Recuperado em 23 de junho de 2018, de https://www.cairn.info/revue-devenir-2001-2-page-41.htm
https://www.cairn.info/revue-devenir-200...
), vai condicionar as representações antecipatórias (Missonier & Golse, 2013Missonier, S., & Golse, B. (2013). La consultation thérapeutique périnatal: un psychologue à la maternité. Toulousse: Érès.) anteriormente apresentadas, que, por um lado, induzem o bem-estar da criança no pré-natal e, por outro, permitem, durante o pós-natal, que esta estabeleça vínculos seguros com os seus cuidadores (Missonier, 2010Missonier, S. (2010). Introduction aux connaissances de la psychologie Clinique fœtale. EMC-Psychiatrie, 8(2), 1-9.).

Será por intermédio da ROV que os pais perceberão as necessidades e os desejos do filho, ao decodificar, transformar e responder organizadamente às suas interações com este (Missonier, 2007aMissonier, S. (2007a). La parentalité prénatale, la péparation à la naissance et l’entretien precoce. Contraste, 26(1), 55-79. Recuperado em 23 de abril de 2018, de https://www.cairn.info/revue-contraste-2007-1-page-55.htm
https://www.cairn.info/revue-contraste-2...
, 2007bMissonier, S. (2007b). Une relation d'objet virtuelle? Le Carnet PSY, 120(7), 43-47. Recuperado em 23 de abril de 2018, de https://www.cairn.info/revue-le-carnet-psy-2007-7-page-43.htm
https://www.cairn.info/revue-le-carnet-p...
), de forma a desenhar a sua estrutura PsicoCorporal. As reações e percepções da mãe durante a ROV influenciam o desenvolvimento do filho, o que leva Cotiga (2013)Cotiga, A. C. (2013). Intrauterine Experience and Emotional Development of the Fetus: aspects of group therapy approach. Procedia: Social and Behavioral Sciences, 84, 530-533. a referir que as respostas da mãe e a forma emocional de se relacionar com o envolvimento influenciam o processo de optimização do desenvolvimento genético do feto.

Constata-se que a relação mãe–filho é um fator fundamental e constante na vida pré-natal. No entanto, esta é influenciada pela transmissão transgeracional (Golse, 2007Golse, B. (2007). O ser-bebé. Lisboa: Climepsi.; Lebovici, 1993Lebovici, S. (1993). On intergenerational transmission: from filiation to affiliation. Infant Mental Health Journal, 14(4), 260-272.; Missonier & Golse, 2013Missonier, S., & Golse, B. (2013). La consultation thérapeutique périnatal: un psychologue à la maternité. Toulousse: Érès.), ou seja, está associada ao modo como a mãe de hoje se relacionou no passado com a sua mãe, o que vai influenciar a forma como esta se relaciona hoje com o filho. Assim, considera-se que existe uma relação que condiciona outra relação. Se a relação no passado foi com uma mãe, que Winnicott (1975a)Winnicott, D. (1975a). O papel do espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil. In D Winnicott. O brincar e a realidade (pp. 153-162). Rio de Janeiro: Imago. denomina de suficientemente boa (que cria empatia, adapta-se ao filho e lhe satisfaz as necessidades de forma equilibrada), existirá maior possibilidade de a mãe atual desenvolver, ao longo da gravidez, uma preocupação materna primária, que é o que Winnicott (2000)Winnicott, D. (2000). A preocupação materna primária. In D Winnicott. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (pp. 399-405). Rio de Janeiro: Imago. considera como a condição fundamental para que se estabeleçam os cuidados adequados e as relações necessárias e devidas com o filho.

3 Estado Psicocorporal da Mãe vs. Desenvolvimento da Criança

Perceber que a vida não começa no dia do nascimento e que a criança vive antes de nascer fica evidente por meio de conversas com mulheres sobre os acontecimentos durante a sua gravidez. Assim, será possível perceber que, a partir dos 3 meses de gestação, o filho que transporta no ventre realiza movimentos que estão associados a respostas motoras globais, ou que, a partir dos 6 meses de gestação, realiza respostas motoras a estímulos sensoriais externos (Marx & Nagy, 2015Marx, V., & Nagy, E. (2015). Fetal behavioural responses to maternal voice and touch. PlosOne, 10(6), 1-15. Recuperado em 11 de março de 2019, de https://journals.plos.org/plosone/article? id=10.1371/journal.pone.0129118
https://journals.plos.org/plosone/articl...
). Isso significa que existe vida psicomotora antes do nascimento.

O nascimento psicológico da criança ocorre em algum momento durante o tempo da sua gestação (Waddell, 2003Waddell, M. (2003). Vida interior: psicanálise e desenvolvimento da realidade. Lisboa: Assírio Alvim.). De forma objetiva, a construção e desenvolvimento do corpo, que precede o pensamento, acontece ao longo do período embrionário e fetal, em um espaço de proteção que é o corpo da mãe. Vai ser neste espaço que se operacionaliza uma dupla vivência ao integrar, por um lado, os aspectos sensório-motores e tônico-emocionais e, por outro, a sensação de ser e estar contida (Bourguiba, 2015Bourguiba, L. (2015). Accompagnement en psychomotricité de femmes encentes dans l’eau. In E. Pireyre. Cas pratiques en psychomotricité (pp. 168-183). Paris: Dunod.; Cyrulnik, 2002Cyrulnik, B. (2002). Etologia das interações precoces. In J. Cohen-Solal & B. Golse. No início da vida psíquica (pp. 235-254). Lisboa: Instituto Piaget.). A criança percepciona e integra estas sensações porque está em um espaço de contenção que permite a para-excitação, no sentido de modelar o movimento e filtrar a recepção das sensações. Assim, as múltiplas trocas que se estabelecem entre a mãe e o feto permitem que este percepcione e registre traços mnésicos das sensações corporais e dos movimentos (Cyrulnik, 1995Cyrulnik, B. (1995). Os alimentos do afeto. São Paulo: Ática., 2002Cyrulnik, B. (2002). Etologia das interações precoces. In J. Cohen-Solal & B. Golse. No início da vida psíquica (pp. 235-254). Lisboa: Instituto Piaget.).

Essas sensações, associadas aos sistemas sensoriais cutâneo, olfativo, gustativo, vestibular, auditivo e visual, fazem parte da primeira organização psíquica da criança do interior (Foster & Verny, 2007Foster, S. M., & Verny, T. R. (2007). The development of sensory systems during the prenatal period. Journal of Prenatal & Perinatal Psychology & Health, 21(3), 271-280.; Lacaunet & Schaal, 2002Lacaunet, J. P., & Schaal, B. (2002). Sensory performances in the human foetus: a brief summary of research. Intellectia, 1(34), 29-56.). Nessa perspectiva, Vecchiato (2003)Vecchiato, M. (2003). A terapia psicomotora. Brasília: Editora UnB. refere que as sensações que o feto vivencia no útero podem se agrupar em três tipos: (i) sensação de fusão, associada à não separação entre o feto e a mãe por existir uma indiferenciação constante; (ii) sensação de difusão, associada às sensações de descontinuidade dadas pela alternância sensorial, pelo silêncio consecutivo ao ruído, pela sucessão contínua de imobilidade e agitação, pelo próprio crescimento e movimentos corporais centrípetos e centrífugos, dando ao feto uma sensação rudimentar de ser; e (iii) a sensação rítmica, que o feto vai sentir com os ritmos do batimento cardíaco da mãe e o seu ritmo respiratório, propiciando uma constância perceptiva, que possibilita, mesmo de forma rudimentar, a sensação de existir (Vecchiato, 2003Vecchiato, M. (2003). A terapia psicomotora. Brasília: Editora UnB.).

Nessas interações, os ritmos da mãe nem sempre estão sincronizados com os do filho. A voz grave e melodiosa da mãe contrasta com os silêncios, os seus movimentos contrastam com o repouso, o que produz um efeito estimulante que está na origem da vida psíquica (Cyrulnik, 1995Cyrulnik, B. (1995). Os alimentos do afeto. São Paulo: Ática.). Desta forma, o mundo mental do feto é um mundo de representações que se organiza em torno da sensação e da não-sensação. Esses contrastes que estão associados a uma carga afetiva, ao serem vivenciados por meio de sensações, percepções e expressões motoras que decorrem nessa relação dual mãe-filho, expressam a existência de um viver psicomotor pré-natal (Bayle, 2005Bayle, B. (2005). L’identité conceptionnelle. Tout se joue-t-il avant la naissance? Paris: L’Harmattan.).

Essa relação empática, que se embasa em uma ressonância tônico-emocional-afetiva, é fundamental para o desenvolvimento PsicoMotor da criança do interior e, como refere Bayle (2005)Bayle, B. (2005). L’identité conceptionnelle. Tout se joue-t-il avant la naissance? Paris: L’Harmattan., permite o nascimento de uma protopsicomotricidade fetal. Essas experiências sensoriais, os movimentos, os estados de consciência e os estados afetivos vividos pelo feto no espaço intrauterino, fazem parte da experiência mental e da vida psíquica mais precoce, ou seja, protomental, se utilizarmos a terminologia de Bion (1991)Bion, W. (1991). Elementos de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago..

Como refere Cyrulnik (1995Cyrulnik, B. (1995). Os alimentos do afeto. São Paulo: Ática., 2002Cyrulnik, B. (2002). Etologia das interações precoces. In J. Cohen-Solal & B. Golse. No início da vida psíquica (pp. 235-254). Lisboa: Instituto Piaget.), vai ser pelo encontro entre o aparelho biológico da criança e a informação sensorial, emocional e corporal disponibilizada pela mãe que se cria a organização psíquica e a vida mental pré-natal. Assim, a relação psicocorporal estabelecida entre a mãe e a criança é o elo necessário para o início da organização psíquica e motora, que surge no espaço intrauterino. No entanto, quando se faz referência à vida psíquica da criança do interior, não é no sentido de organização psíquica como estrutura egoica, ou consciência de si, mas no sentido de identidade, que Bayle (2005)Bayle, B. (2005). L’identité conceptionnelle. Tout se joue-t-il avant la naissance? Paris: L’Harmattan. denomina de identidade concepcional ou identidade psicogenética, que é adquirida desde a concepção e faz parte do desenvolvimento ontogenético por estar inserida em uma estrutura psicosociocultural própria. De forma contrária, quando se aborda a organização psíquica da mãe, alude-se à consciência de si, que pressupõe a construção de um envelope corporal e psíquico constituído por uma barreira, que Anzieu (1989)Anzieu, D. (1989). O eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo. denomina de Eu-pele e que permite distinguir o Eu do não-Eu. Neste caso, existe uma organização psíquica que participa na construção da identidade e da consciência de si (Potel, 2012Potel, C. (2012). Être psychomotricien: un métier du présent, un métier d’avenir. Paris: Érès.). Se assim for, existe um espaço-corpo que, ao ser habitado como uma casa, permite à mãe ultrapassar todas as alterações psicocorporais que possam acontecer ao longo da vida e, assim, manter uma boa relação consigo própria, com os outros e, no caso particular, com o filho que transporta no ventre.

4 Processos Psicocorporais Durante a Gestação

A mulher, durante os nove meses de gestação, passa por alterações psicocorporais, que provocam a necessidade de adaptar o seu esquema corporal e imagem corporal a novas realidades. Que realidades são essas? São as diversas modificações anatômicas e fisiológicas a que está sujeita, como as alterações no índice de massa corporal, no equilíbrio geral do corpo e postura, no tamanho do ventre ou na temperatura corporal, por exemplo, assim como um conjunto de alterações metabólicas, hormonais, dermatológicas, respiratórias e cardiovasculares (Soma-Pillay et al., 2016Soma-Pillay, P., Nelson-Piercy, C., Tolppanen, H., & Mebazaa, A. (2016). Physiological changes in pregnancy. Cardiovascular Journal of Africa, 27(2), 89-94. Recuperado em 15 de setembro de 2018, de https://www.cairn.info/revue-dialogue-2002-3-page-42.htm
https://www.cairn.info/revue-dialogue-20...
; Spiess, 2002Spiess, M. (2002). Le vacillement des femmes en début de grossesse. Dialogue, 157(3), 42-50. Recuperado em 12 de maio de 2018, de https://www.cairn.info/revue-dialogue-2002-3-page-42.htm
https://www.cairn.info/revue-dialogue-20...
). Todas essas alterações podem provocar mal-estar psíquico na gestante, por sentir que perde o controle sobre si, por não se reconhecer no seu corpo ou não conseguir se representar nesse corpo (Spiess, 2002Spiess, M. (2002). Le vacillement des femmes en début de grossesse. Dialogue, 157(3), 42-50. Recuperado em 12 de maio de 2018, de https://www.cairn.info/revue-dialogue-2002-3-page-42.htm
https://www.cairn.info/revue-dialogue-20...
).

O ser-mãe é um momento de grande sensibilidade e disponibilidade psicocorporal diante da criança que irá nascer. A futura mãe pode estar preparada e desejar o filho. Não obstante, muitas vezes, quando toma consciência que transporta um estranho, um endoparasita aquático, como denominou Ferenczi (1967)Ferenczi, J.(1967). Thalassa: psicanálise das origens da vida sexual. Rio de Janeiro: Bup., fica perturbada e reage negativamente às transformações do seu corpo, expressando angústias. Assim, podem existir alterações na identidade e problemas psíquicos transitórios, associados a crises narcísicas, problemas emocionais e alterações da personalidade (Rofé et al., 1993Rofé, Y., Blittner, M., & Lewin, I. (1993). Emotional experiences during the three trimesters of pregnancy. Journal of Clinical Psychology, 49(1), 3-12.).

Existem autores que descrevem as alterações que se expressam ao longo dos 3 trimestres de gravidez (Bydlowski, 2004Bydlowski, M. (2004). La relation foeto-maternelle et la relation de la mére à son foetus. In S. Lebovici, R. Diatkine & M. Soulé. Nouveau traite de psychiatrie de l’enfantet de l’adolescent (pp. 1881-1891). Paris: Quadrigue/PUF.; Rofé et al., 1993Rofé, Y., Blittner, M., & Lewin, I. (1993). Emotional experiences during the three trimesters of pregnancy. Journal of Clinical Psychology, 49(1), 3-12.). Durante o 1º trimestre existe uma labilidade emocional que se exterioriza por momentos de ansiedade, irritação, ou estado depressivo sem manifestações clínicas. Essas alterações emocionais muitas vezes estão associadas a modificações fisiológicas que acontecem com o início da gravidez. No entanto, também podem se relacionar ao medo de ter uma criança com problemas, de perdê-la, de ter uma desilusão, ou de sentir que não é capaz de cumprir o papel de mãe (Bydlowski, 2004Bydlowski, M. (2004). La relation foeto-maternelle et la relation de la mére à son foetus. In S. Lebovici, R. Diatkine & M. Soulé. Nouveau traite de psychiatrie de l’enfantet de l’adolescent (pp. 1881-1891). Paris: Quadrigue/PUF.). Nesses 3 primeiros meses as modificações corporais são mínimas e as alterações hormonais diversas, que se manifestam por meio de vômitos, náuseas, fadiga, alterações no apetite, amenorreia, entre outras (Rofé et al., 1993Rofé, Y., Blittner, M., & Lewin, I. (1993). Emotional experiences during the three trimesters of pregnancy. Journal of Clinical Psychology, 49(1), 3-12.).

Ao longo do 2º trimestre, a instabilidade emocional, as angústias e os sintomas físicos diminuem, enquanto as modificações corporais são mais visíveis. É um período de serenidade para a mãe, que aceita a presença do bebê no seu ventre. Os pais vão pensar no seu sexo, no seu nome, com quem será parecido e realizar projeções imaginárias sobre o seu futuro (Rofé et al., 1993Rofé, Y., Blittner, M., & Lewin, I. (1993). Emotional experiences during the three trimesters of pregnancy. Journal of Clinical Psychology, 49(1), 3-12.).

No 3º trimestre a angústia da mãe é provocada pelo medo do parto e o querer que a criança nasça em perfeito estado de saúde. Assim, nessa última fase de gravidez as alterações emocionais da mãe estão fundamentalmente associadas à aproximação do momento do parto e de suas possíveis consequências (Bydlowski, 2004Bydlowski, M. (2004). La relation foeto-maternelle et la relation de la mére à son foetus. In S. Lebovici, R. Diatkine & M. Soulé. Nouveau traite de psychiatrie de l’enfantet de l’adolescent (pp. 1881-1891). Paris: Quadrigue/PUF.). Vai ser nesse período que a mãe identifica os ritmos existentes entre ela e o seu bebê, evoluindo lentamente para uma preocupação materna primária (Winnicott, 2000Winnicott, D. (2000). A preocupação materna primária. In D Winnicott. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (pp. 399-405). Rio de Janeiro: Imago.). Todas essas etapas apresentam sintomas que não são, necessariamente, patológicos, mas sim de adaptação a uma nova condição.

Essas modificações e alterações levam Bydlowski (2004)Bydlowski, M. (2004). La relation foeto-maternelle et la relation de la mére à son foetus. In S. Lebovici, R. Diatkine & M. Soulé. Nouveau traite de psychiatrie de l’enfantet de l’adolescent (pp. 1881-1891). Paris: Quadrigue/PUF. a referir que, tanto a adolescência como a gravidez são períodos de conflitualidade exagerada, como se existisse uma crise maturativa. A mulher, durante a gravidez, passa momentos caracterizados por estados psíquicos específicos, nos quais fragmentos do pré-consciente e do inconsciente retornam à consciência, causando-lhe conflitos de identidade. É nesse cenário que se pretende que a mãe habite o seu novo corpo e estabeleça uma ROV com o filho do interior. É nesse espaço materno destinado à construção psíquica do filho do pré-natal, que Bayle (2005)Bayle, B. (2005). L’identité conceptionnelle. Tout se joue-t-il avant la naissance? Paris: L’Harmattan. denomina de Espaço Materno de Identificação e Diferenciação Psíquica do Ser Humano Concebido, que uma prática de mediação corporal pela solicitação da corporeidade tem o seu foco.

A mediação é um meio que sustenta a relação entre a pessoa e o terapeuta, e que permite a existência de trocas e comunicações intersubjetivas conscientes e inconscientes, que se denomina de diálogo tônico-emocional (Potel, 2012Potel, C. (2012). Être psychomotricien: un métier du présent, un métier d’avenir. Paris: Érès.). A utilização da mediação subentende a existência de uma zona intermediária de encontro, em que se utilizam mediadores para melhorar a relação e facilitar a resolução de conflitos (Potel, 2012Potel, C. (2012). Être psychomotricien: un métier du présent, un métier d’avenir. Paris: Érès.). Toda a mediação terapêutica acontece nesta zona entre vivência interior e realidade exterior, que Winnicott (1975b)Winnicott, D. (1975b). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In D. Winnicott. O brincar e a realidade (pp. 10-47). Rio de Janeiro: Imago. denomina de espaço potencial. Assim, acompanhar a participação corporal da pessoa ao estabelecer uma relação de mediação corporal permite criar espaços intermediários de atuação, nos quais se propõem técnicas (relaxação, expressão motora, toque terapêutico, jogo lúdico, movimentos controlados, entre outros) adaptadas às suas necessidades, de forma a potencializar o controle do movimento, as adaptações do gesto, o sentimento da continuidade de existir e o sentimento da identidade de si (Gatecel & Giromini, 2012Gatecel, A., & Giromini, F. (2012). La formation des psychomotriciens dans le cadre universitaire. In C. Potel. Être psychomotricien: un métier du present, un métier d’avenir (pp. 435-448). Paris: Érès.; Potel, 2012Potel, C. (2012). Être psychomotricien: un métier du présent, un métier d’avenir. Paris: Érès.).

Neste âmbito, a prática de mediação corporal pretende que a mãe habite um corpo a dois (Potel, 2012Potel, C. (2012). Être psychomotricien: un métier du présent, un métier d’avenir. Paris: Érès.; Spiess, 2002Spiess, M. (2002). Le vacillement des femmes en début de grossesse. Dialogue, 157(3), 42-50. Recuperado em 12 de maio de 2018, de https://www.cairn.info/revue-dialogue-2002-3-page-42.htm
https://www.cairn.info/revue-dialogue-20...
) e adquira uma preocupação materna que consubstancie um holding e handling (Winnicott, 2000Winnicott, D. (2000). A preocupação materna primária. In D Winnicott. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (pp. 399-405). Rio de Janeiro: Imago.) pré-natal e, voltando às imagens metafóricas, que lhe permita desenhar um filho vitruviano envolto em um círculo (estrutura psíquica), e em um quadrado (estrutura física), que dão suporte ao seu corpo e ao seu ser. Nesse sentido, as mediações corporais, associadas a uma intervenção específica, modificam o movimento e a sensação ao dar-lhes significado, ou seja, transformam o movimento em gesto, a sensação em vivência afetiva, e o corpo em Eu-corpo (Brun et al., 2013Brun, A., Chouvier, B., & Roussillon, R. (2013). Manuel des médiations thérapeutiques. Paris: Dunod.), o que ajuda a gestante a habitar o seu novo corpo. Assim, terá condições para estabelecer uma relação empática com o filho do interior, o que irá facilitar o seu desenvolvimento psíquico e físico.

5 Considerações Finais

Este ensaio apresentou um conjunto de fundamentos necessários para a realização de uma prática de mediação que solicite o corpo, a corporeidade, a sensório-motricidade e a estrutura tônico-emocional, cuja premissa visa a atuar ao nível da estrutura psicocorporal da gestante e a facilitação do desenvolvimento da criança. Assim, o conhecimento de referência desenvolvido neste ensaio pode ser esquematizado por intermédio dos seguintes tópicos:

  1. 1

    A maternidade é um processo que começa na infância, antes do desejo de ter um bebê e está dependente da transmissão transgeracional (Lebovici, 1993Lebovici, S. (1993). On intergenerational transmission: from filiation to affiliation. Infant Mental Health Journal, 14(4), 260-272.; Missonier & Golse, 2013Missonier, S., & Golse, B. (2013). La consultation thérapeutique périnatal: un psychologue à la maternité. Toulousse: Érès.), ou seja, das relações que a mãe, na atualidade, estabeleceu com a sua mãe enquanto criança;

  2. 2

    A gravidez é caracterizada por um estado psíquico particular a que Bydlowski (2001)Bydlowski, M. (2001). Le regard intérieur de la femme enceinte, transparence psychique et représentation de l'objet interne. Devenir, 13(2), 41-52. Recuperado em 23 de junho de 2018, de https://www.cairn.info/revue-devenir-2001-2-page-41.htm
    https://www.cairn.info/revue-devenir-200...
    denomina de transparência psíquica, em virtude dos fragmentos do inconsciente se expressarem com facilidade no consciente, o que pode levar a mãe, como refere Spiess (2002)Spiess, M. (2002). Le vacillement des femmes en début de grossesse. Dialogue, 157(3), 42-50. Recuperado em 12 de maio de 2018, de https://www.cairn.info/revue-dialogue-2002-3-page-42.htm
    https://www.cairn.info/revue-dialogue-20...
    , a ter dificuldade em elaborar a sua identidade de mãe e a aceitar o seu novo corpo;

  3. 3

    A história pessoal, os fantasmas, os medos e os desejos da gestante podem provocar-lhe mal-estar psíquico (Spiess, 2002Spiess, M. (2002). Le vacillement des femmes en début de grossesse. Dialogue, 157(3), 42-50. Recuperado em 12 de maio de 2018, de https://www.cairn.info/revue-dialogue-2002-3-page-42.htm
    https://www.cairn.info/revue-dialogue-20...
    ), associado a alterações na imagem corporal (identidade, consciência de si, entre outras) e comprometer a capacidade em habitar o seu corpo a dois;

  4. 4

    Por intermédio da mediação corporal, pretende-se que a mãe atualize as representações que tem do corpo, adquira consciência de si e capacidade em habitar um corpo que transporta outro corpo (Bourguiba, 2015Bourguiba, L. (2015). Accompagnement en psychomotricité de femmes encentes dans l’eau. In E. Pireyre. Cas pratiques en psychomotricité (pp. 168-183). Paris: Dunod.);

  5. 5

    A criança do interior (Missonier, 2007aMissonier, S. (2007a). La parentalité prénatale, la péparation à la naissance et l’entretien precoce. Contraste, 26(1), 55-79. Recuperado em 23 de abril de 2018, de https://www.cairn.info/revue-contraste-2007-1-page-55.htm
    https://www.cairn.info/revue-contraste-2...
    , 2007bMissonier, S. (2007b). Une relation d'objet virtuelle? Le Carnet PSY, 120(7), 43-47. Recuperado em 23 de abril de 2018, de https://www.cairn.info/revue-le-carnet-psy-2007-7-page-43.htm
    https://www.cairn.info/revue-le-carnet-p...
    ) que se encontra na cavidade uterina está em constante ligação com a mãe, em uma relação direta sem mediação, na qual se estabelece uma ROV (Missonier, 2007bMissonier, S. (2007b). Une relation d'objet virtuelle? Le Carnet PSY, 120(7), 43-47. Recuperado em 23 de abril de 2018, de https://www.cairn.info/revue-le-carnet-psy-2007-7-page-43.htm
    https://www.cairn.info/revue-le-carnet-p...
    , 2010Missonier, S. (2010). Introduction aux connaissances de la psychologie Clinique fœtale. EMC-Psychiatrie, 8(2), 1-9.). Essas vivências, suportadas por uma relação empática entre a mãe-criança do interior, vão facilitar o desenvolvimento psicomotor do infante;

  6. 6

    Deve-se favorecer um ambiente facilitador, que proporcione uma relação suficientemente boa entre mãe-criança do interior, de forma a favorecer uma preocupação materna primária (Winnicott, 2000Winnicott, D. (2000). A preocupação materna primária. In D Winnicott. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (pp. 399-405). Rio de Janeiro: Imago.);

  7. 7

    A intervenção terapêutica de mediação corporal pretende transformar e atualizar a imagem corporal da gestante, em benefício da construção da imagem corporal do filho do interior, do seu desenvolvimento, da construção da sua protopsicomotricidade (Bayle, 2005Bayle, B. (2005). L’identité conceptionnelle. Tout se joue-t-il avant la naissance? Paris: L’Harmattan.).

Todo esse conhecimento sobre as alterações que o período de gravidez provoca no estado psicocorporal da mulher, bem como a importância do estabelecimento de uma relação empática entre mãe-criança do interior, permite aos terapeutas, independentemente de serem psicomotricistas, terapeutas ocupacionais ou outros profissionais, refletirem sobre a forma de delinear uma intervenção que vá ao encontro das necessidades da gestante, operacionalizada por uma mediação corporal que na cotidianidade ajude a habitar o seu novo corpo e a construir uma nova corporeidade. Para concluir, apresentam-se algumas linhas orientadoras para o estabelecimento de uma intervenção:

  1. a

    Utilizar mediadores (água, expressão corporal, toque terapêutico, entre outras) que permitam solicitar a unidade corporal ao provocar a percepção de uma fronteira que divide o interior do exterior e, assim, solicitar uma imagem corporal positiva, o sentimento de existir e o prazer em transportar o filho que irá nascer;

  2. b

    Utilizar mediadores (água, movimentos controlados, relaxação, entre outras) que (i) solicitem uma consciência corporal dinâmica por meio da percepção de informações exteroceptivas e proprioceptivas, que (ii) solicitem uma maior percepção da superfície do corpo, e que (iii) estimulem a sensação de corpo narcisado, de forma a facilitar a consciência de si e a existência de um novo corpo;

  3. c

    Utilizar mediadores (movimentos, canto, consciência corporal, entre outras) que: (i) associem a respiração com o movimento e estados de tensão corporal e que (ii) permitam a percepção corporal de estímulos externos e internos (sons, vibrações e respiração), para proporcionarem à gestante a sensação de estar envelopada e protegida;

  4. d

    Utilizar situações lúdicas, movimentos suaves e constantes, ou vigorosos e descontinuados, para que a criança que está em um meio aquoso (líquido amniótico), balance e, assim, estimule as células sensoriais da mácula, sáculo e canais semicirculares que, de acordo com Bullinger (2011)Bullinger, A. (2011). Le développement sensori-moteur de l’enfant et ses avatars. Paris: Érès., constituem os alicerces da sensação de presença no mundo, neste caso, no mundo intrauterino, para mais tarde adquirir o sentimento de existir e ser;

  5. e

    Solicitar a consciência corporal, o interior do corpo e o envelope corporal, por intermédio das denominadas percussões ósseas, pelo toque com os dedos no próprio corpo (ou em um trabalho em dupla, pelo toque no corpo do outro), na busca de encontrar pontos de ressonância (testa, face, nariz, esterno, clavícula e partes superiores da omoplata), no sentido caudal-cefálico, seguido de toques com deslizamento das mãos pelos ombros, coluna vertebral, braços e mãos.

Todas essas vivências que solicitam os limites do corpo, as percussões ósseas, a respiração, as sensações cinestésicas, vão permitir a tomada de consciência dos novos volumes do corpo, de um novo espaço interior e, assim, manter a percepção de um corpo unificado. Vai ser a partir da percepção global do corpo que se pode reestruturar a imagem do corpo e possibilitar que a gestante elabore e aceite a sua nova identidade e habite o seu corpo.

O que se torna relevante é entender que não existem receitas, nem receituários, mas a capacidade do terapeuta operacionalizar uma prática que possa ir ao encontro das necessidades específicas das gestantes com quem vai intervir e, assim, decidir e implementar a intervenção mais adequada. Nesse sentido, Fernandes (2012)Fernandes, J. (2012). Abordagens emergentes em psicomotricidade. In J. Fernandes & P. Gutierres Filho. Psicomotricidade: abordagens emergentes (pp. 1-12). Barueri: Manole. refere que o terapeuta deve preconizar uma perspectiva contrária a qualquer intervenção rígida e preestabelecida fundamentada em “guidelines”, mas que vá ao encontro das necessidades, peculiaridades e especificidades da pessoa (mindlines), em que coloca, como refere Potel (2013)Potel, C. (2013). Passer par l'actepsychomoteur. Enfances & Psy, 61(4), 20-31. Recuperado em 28 de abril de 2018, de https://www.cairn.info/revue-enfances-et-psy-2013-4-page-20.htm
https://www.cairn.info/revue-enfances-et...
, a sua criatividade ao serviço do paciente.

  • Como citar: Fernandes, J., Marmeleira, J., & Gutierres Filho, P. (2020). Prática de mediação corporal com gestantes: orientações e fundamentos. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional. Ahead of Print. https://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF1998

Referências

  • Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. (2014). Serviços de atenção materna e neonatal: segurança e qualidade. Brasília: ANVISA.
  • Anzieu, D. (1989). O eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Bayle, B. (2005). L’identité conceptionnelle. Tout se joue-t-il avant la naissance? Paris: L’Harmattan.
  • Bion, W. (1991). Elementos de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.
  • Bourguiba, L. (2015). Accompagnement en psychomotricité de femmes encentes dans l’eau. In E. Pireyre. Cas pratiques en psychomotricité (pp. 168-183). Paris: Dunod.
  • Brun, A., Chouvier, B., & Roussillon, R. (2013). Manuel des médiations thérapeutiques. Paris: Dunod.
  • Bullinger, A. (2011). Le développement sensori-moteur de l’enfant et ses avatars Paris: Érès.
  • Bydlowski, M. (2001). Le regard intérieur de la femme enceinte, transparence psychique et représentation de l'objet interne. Devenir, 13(2), 41-52. Recuperado em 23 de junho de 2018, de https://www.cairn.info/revue-devenir-2001-2-page-41.htm
    » https://www.cairn.info/revue-devenir-2001-2-page-41.htm
  • Bydlowski, M. (2004). La relation foeto-maternelle et la relation de la mére à son foetus. In S. Lebovici, R. Diatkine & M. Soulé. Nouveau traite de psychiatrie de l’enfantet de l’adolescent (pp. 1881-1891). Paris: Quadrigue/PUF.
  • Cotiga, A. C. (2013). Intrauterine Experience and Emotional Development of the Fetus: aspects of group therapy approach. Procedia: Social and Behavioral Sciences, 84, 530-533.
  • Cyrulnik, B. (1995). Os alimentos do afeto. São Paulo: Ática.
  • Cyrulnik, B. (2002). Etologia das interações precoces. In J. Cohen-Solal & B. Golse. No início da vida psíquica (pp. 235-254). Lisboa: Instituto Piaget.
  • Ferenczi, J.(1967). Thalassa: psicanálise das origens da vida sexual Rio de Janeiro: Bup.
  • Ferigato, S. H., Silva, C. R., & Ambrosio, L. A. (2018). Corporeidade de mulheres gestantes e a terapia ocupacional: ações possíveis na Atenção Básica em Saúde. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(4), 768-783.
  • Fernandes, J. (2012). Abordagens emergentes em psicomotricidade. In J. Fernandes & P. Gutierres Filho. Psicomotricidade: abordagens emergentes (pp. 1-12). Barueri: Manole.
  • Foster, S. M., & Verny, T. R. (2007). The development of sensory systems during the prenatal period. Journal of Prenatal & Perinatal Psychology & Health, 21(3), 271-280.
  • Gatecel, A., & Giromini, F. (2012). La formation des psychomotriciens dans le cadre universitaire. In C. Potel. Être psychomotricien: un métier du present, un métier d’avenir (pp. 435-448). Paris: Érès.
  • Golse, B. (2007). O ser-bebé. Lisboa: Climepsi.
  • Lacaunet, J. P., & Schaal, B. (2002). Sensory performances in the human foetus: a brief summary of research. Intellectia, 1(34), 29-56.
  • Lebovici, S. (1993). On intergenerational transmission: from filiation to affiliation. Infant Mental Health Journal, 14(4), 260-272.
  • Lebovici, S., Golse, B., & Moro, M. R. (2009). Les interactions fantasmatiques. In S. Lebovici. L’arbre de vie: élèments de la psychopatologie du bébé (pp .73-86). Paris: Érès.
  • Marx, V., & Nagy, E. (2015). Fetal behavioural responses to maternal voice and touch. PlosOne, 10(6), 1-15. Recuperado em 11 de março de 2019, de https://journals.plos.org/plosone/article? id=10.1371/journal.pone.0129118
    » https://journals.plos.org/plosone/article?
  • Missonier, S. (2007a). La parentalité prénatale, la péparation à la naissance et l’entretien precoce. Contraste, 26(1), 55-79. Recuperado em 23 de abril de 2018, de https://www.cairn.info/revue-contraste-2007-1-page-55.htm
    » https://www.cairn.info/revue-contraste-2007-1-page-55.htm
  • Missonier, S. (2007b). Une relation d'objet virtuelle? Le Carnet PSY, 120(7), 43-47. Recuperado em 23 de abril de 2018, de https://www.cairn.info/revue-le-carnet-psy-2007-7-page-43.htm
    » https://www.cairn.info/revue-le-carnet-psy-2007-7-page-43.htm
  • Missonier, S. (2010). Introduction aux connaissances de la psychologie Clinique fœtale. EMC-Psychiatrie, 8(2), 1-9.
  • Missonier, S., & Golse, B. (2013). La consultation thérapeutique périnatal: un psychologue à la maternité Toulousse: Érès.
  • Potel, C. (2012). Être psychomotricien: un métier du présent, un métier d’avenir. Paris: Érès.
  • Potel, C. (2013). Passer par l'actepsychomoteur. Enfances & Psy, 61(4), 20-31. Recuperado em 28 de abril de 2018, de https://www.cairn.info/revue-enfances-et-psy-2013-4-page-20.htm
    » https://www.cairn.info/revue-enfances-et-psy-2013-4-page-20.htm
  • Rofé, Y., Blittner, M., & Lewin, I. (1993). Emotional experiences during the three trimesters of pregnancy. Journal of Clinical Psychology, 49(1), 3-12.
  • Soma-Pillay, P., Nelson-Piercy, C., Tolppanen, H., & Mebazaa, A. (2016). Physiological changes in pregnancy. Cardiovascular Journal of Africa, 27(2), 89-94. Recuperado em 15 de setembro de 2018, de https://www.cairn.info/revue-dialogue-2002-3-page-42.htm
    » https://www.cairn.info/revue-dialogue-2002-3-page-42.htm
  • Spiess, M. (2002). Le vacillement des femmes en début de grossesse. Dialogue, 157(3), 42-50. Recuperado em 12 de maio de 2018, de https://www.cairn.info/revue-dialogue-2002-3-page-42.htm
    » https://www.cairn.info/revue-dialogue-2002-3-page-42.htm
  • Stern, D. (1997). A constelação da maternidade. Porto Alegre: Artes Médicas.
  • Vecchiato, M. (2003). A terapia psicomotora. Brasília: Editora UnB.
  • Waddell, M. (2003). Vida interior: psicanálise e desenvolvimento da realidade. Lisboa: Assírio Alvim.
  • Winnicott, D. (1975a). O papel do espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil. In D Winnicott. O brincar e a realidade (pp. 153-162). Rio de Janeiro: Imago.
  • Winnicott, D. (1975b). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In D. Winnicott. O brincar e a realidade (pp. 10-47). Rio de Janeiro: Imago.
  • Winnicott, D. (2000). A preocupação materna primária. In D Winnicott. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (pp. 399-405). Rio de Janeiro: Imago.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-June 2020

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2019
  • Aceito
    30 Set 2019
Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Terapia Ocupacional Rodovia Washington Luis, Km 235, Caixa Postal 676, CEP: , 13565-905, São Carlos, SP - Brasil, Tel.: 55-16-3361-8749 - São Carlos - SP - Brazil
E-mail: cadto@ufscar.br