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Elementos básicos da terapia psicanalítica

CONFERÊNCIAS

Elementos básicos da terapia psicanalítica

Dra. Adelaide Kock

Várias conferências já foram feitas, aqui, sôbre psicanálise, abordando, seja casos clínicos, seja a teoria do processo. Procurarei dizer em que consiste o processo analítico, isto é, o que acontece no consultório do psicanalista. A opinião comum é que lá dentro se fala de cousas sexuais, isto é, de assuntos proibidos ou indelicados, que tanto atraem uns quanto repugnam a outros. Quem já leu alguma cousa sôbre psicanálise sabe que o analista liberta o doente dos seus complexos; poucos leigos, porém, têm uma idéia clara do conceito de "complexo". Quem, como paciente, conhece êsse famoso complexo de Édipo, está convencido de que, com éste conhecimento, o tratamento será breve. A verdade, porém, é bem diferente; quanto menos os pacientes sabem da psicanálise, tanto mais fácil a tarefa do analista. Por outro lado, os médicos, conhecendo por experiência própria o poder psíquico que eles, em geral, têm sôbre seus pacientes, são inclinados a atribuir as curas psicanalíticas à sugestão. Muitos já me perguntaram, irônicos, se meus pacientes já acreditam naquilo que lhes sugeri. Na verdade, porém, a sugestão não desempenha papel importante no processo da psicanálise.

Vejamos, primeiramente, em que consiste a diferença entre as psicoterapias gerais - sugestão ou hipnose - e a psicanálise, pois é essa diferença que explicará o processo prático da análise e suas bases teóricas. Freud referiu-se, a propósito dêste fato, à definição que o grande Leonardo da Vinci deu das artes pictórica e plástica: uma trabalha " por via de porre" e a outra " por via de levare"; isto é, o pintor aplica pinceladas na terra, ao passo que o escultor subtrai do mármore. O mesmo acontece nas duas psicoterapias: a sugestão põe alguma cousa que se acredita seja bastante forte para suprimir as idéias patogênicas; ela não cuida da origem nem da importância dos sintomas neuróticos, ao passo que a análise quer tirar alguma cousa e, por isso, procura conhecer a gênese dos sintomas, a conexão psíquica das idéias patogênicas.

Para compreender melhor os efeitos da terapia sugestiva, perguntaremos: por que tem o médico muitas vezes o poder de sugestionar seu paciente, e em que consiste o efeito dessa terapia? Para responder essa pergunta, devemos, primeiramente, tratar do fenômeno da transferência. Esta, no sentido mais amplo, pode ser assim explicada: se uma pessoa, por seu procedimento, produz em outra determinado afeto, esta outra pessoa manifestará os mesmos afetos em situações semelhantes. Se, por exemplo, o pai, por sua atitude severa, produz no filho o sentimento de medo ou angústia, o filho terá o mesmo sentimento diante do professor. Embora êsse professor nada tenha, no seu procedimento, que justifique tal sentimento de medo, a semelhança da situação, isto é, a situação de dependência, determina no aluno, ainda que adulto, a repetição daquele medo que sofreu na infância. Quem não considera a experiência infantil e o fenômeno da transferência, não compreenderá êste medo irrazoável. Ora, na relação entre médico e paciente, repete-se geralmente uma situação de dependência, igual àqueH em que o paciente se achava na infância. Daí a fôrça de sugestão que o médico é capaz de exercer. O paciente atribui ao médico o poder onipotente que, na infância, atribuía aos pais.

Se a fôrça da sugestão nem sempre é capaz de mudar definitivamente as reações neuróticas do paciente, isto se explica por certos aspectos da transferência, que precisamos focalizar. Por que é que uma criança, intimidada pelo pai severo, não é capaz de perder o medo diante de outras pessoas que a tratam com bondade e tolerância? Os atos de severidade e castigo estimulam na criança impulsos hostis e vingativos que ela, por medo do pai, não pode demonstrar nem descarregar: a dependência e o medo obrigam-na a reprimir tais impulsos hostis que, desta forma, se acumulam na sua psique. Grande parte da sua energia psíquica fica, assim, empenhada na repressão contínua de sua agressividade. De mais, esta agressividade reprimida causa um sentimento de culpa bem forte na criança, que, assim, se torna tímida e pouco expansiva. O médico não psicanalista que assumir uma atitude de paciência compreensão e bondade, talvez possa acalmar o paciente pelos meios suaves da sugestão e diminuir sua angústia; êle oferece-se ao paciente como objeto paterno bom que não precisa ser odiado ou-receado c procura reforçar-lhe as energias para suprimir e recalcar ainda mais os impulsos indesejáveis, inconscientes ao próprio paciente; tenta persuadir um agorafóbico de que não precisa ter medo na rua e que deve vencer a sua angústia; ao mesmo tempo, o médico reforça o sistema nervoso do paciente com fortificantes. Desta maneira, com injeções e energia, poderá obter a cura. Quanto às origens da agorafobia, o médico não psicanalista sabe tão pouco quanto o paciente e nem julga necessário indagar; quaisquer que sejam essas origens - impulsos sexuais ou agressivos - sua revelação não interessa. Se, entretanto, o conflito íntimo do paciente entre os impulsos e a moral é forte, se o paciente não é capaz de desenvolver um afeto positivo e estável para com o médico, a sugestão não efetuará uma cura estável e duradoura.

O psicanalista, embora aproveitando, igualmente, a transferência, procede de outro modo. Sabendo que a neurose resulta de um conflito entre os impulsos e a moral do paciente, procura tornar tais impulsos conscientes para que o paciente se torne capaz de enfrentá-los e controlá-los. Compreendemos a dificuldade e complexidade de tal processo. Se foi o medo diante da satisfação de seus impulsos que levou o indivíduo a recalcá-los, êsse mesmo medo, embora inconsciente ao paciente adulto, servirá de barreira contra as tentativas do psicanalista, no sentido de torná-los conscientes. Esta barreira, construída desde a infância, manifesta-se como forte resistência na análise e não há meio de vencê-la senão pela experiência viva e afetiva da transferência, que convence o paciente, gradualmente, da irrazoabilidade de sua conduta neurótica.

Cada pessoa doente tem o desejo e a capacidade de se adaptar à sua doença. Um rapaz que era esportista e adquiriu reumatismo ou qualquer outra doença que o incapacita de continuar o esporte, procura qualquer outra atividade para divertir-se nas horas de folga, tais como colecionar selos, jogar xadrez ou bridge. Do mesmo modo, o indivíduo neurótico tem tendência a adaptar-se à doença mental para poder suportá-la melhor e sentir-se menos inferiorizado por ela. Uma pessoa que sofre de fobia de lugares públicos, como por exemplo o cinema, ficará em casa, lendo ou se divertindo de outra forma e estará inclinado a julgar o cinema um divertimento banal. Uma pessoa de traços compulsivos, como hiper -limpeza, ordem exagerada e meticulosidade, tira dêsses traços uma grande vantagem moral. E assim por diante. Na psicanálise chamamos isso de lucro secundário da neurose' e o atribuímos à função sintética da personalidade que se quer ajustar às dificuldades do próprio caráter. Resulta disso que cada pessoa neurótica tem traços típicos nas atitudes resultantes dêsse processo de adaptação à sua neurose. O psicanalista de experiência conhece bem tais mecanismos. Sabe que determinados traços do caráter neurótico manifestam-se nos hábitos físicos, nos gestos e em tôdas as maneiras do comportamento, como no andar, falar, etc. Por isso, êle observa com atenção o paciente que entra em seu consultório. Um paciente é tímido, hipergentil, tem um sorriso embaraçado, fala com voz baixa, mal olha no rosto do médico; outro parece ser seguro, convicto de si mesmo, esconde os sofrimentos querendo mostrar ao psicanalista um ar de superioridade; um terceiro entra com cara fechada, fala pouco e com muito cuidado, para não revelar suas fraquezas e mostra certa indiferença para com seus sintomas, querendo dar ao analista a impressão de que, no fundo, não se julga doente. E, como êstes, poderiam ser descritos vários outros tipos. Sem o saber, o paciente revela, na primeira consulta, determinados traços do caráter e de sua neurose.

Qual deverá ser a atitude do psicanalista nesta primeira consulta? Êle tem a difícil tarefa de despertar confiança no paciente, de estabelecer um contacto, sem tomar uma atitude expressamente amável. Em geral, basta ouvir atenciosamente, fazer determinadas perguntas, mostrar compreensão e tolerância completa diante de tudo que o paciente contar. O psicanalista que tem preconceitos sociais ou éticos, não deverá demonstrá-los: êle não deve julgar os atos e pensamentos de seus pacientes sob o ponto de vista do bem ou do mal. A única coisa que o deve interessar é saber porque tal paciente age desta ou daquela maneira e porque não pode êle ser como queria ser. Para chegar a uma atitude sinceramente imparcial e intransigente, o analista precisa ter-se submetido a uma análise didática que o liberte praticamente de tôdas as reações irrazoáveis e lhe dê um conhecimento profundo de sua própria personalidade. Os pacientes neuróticos são muito sensíveis às reações do analista e mal perdoam um defeito nele.

Em geral, os pacientes neuróticos, procurando o analista, já estão decepcionados pelo fracasso de outros tratamentos e quase sempre perguntam, com insistência, se a psicanálise os curará. Neste momento, o caminho do analista começa a separar-se daquele de outros psicoterapeutas. Quem trabalha com o instrumento da sugestão, vê-se, neste momento, obrigado a fazer afirmações, pondo em jogo seu poder autoritário e afetivo, para dar confiança ao paciente, prometendo mais do que de fato é capaz de cumprir. Nesta situação dificílima - entre o não querer prometer demais, de um lado, e o não querer desencorajar o paciente, do outro lado - costumo responder: "Não posso prometer a cura; seria insincero e não quero iludí-lo. Garantia de cura não existe em ramo algum da medicina. Só posso dizer que seu caso é próprio para a psicanálise e provavelmente só ela o curará." Em minha clínica nunca encontrei um paciente que, decepcionado por esta resposta, tenha desistido do tratamento. Quem não tem fôrça de enfrentar essa verdade, dificilmente terá a energia e paciência para levar uma análise até o fim. Do mesmo modo, nunca se deve enganar o paciente a respeito da duração da análise. Dizemos que faremos uma análise de prova durante dois ou três meses para ver se adiantará continuar. De fato, nunca se pode prever a duração do tratamento; portanto é melhor dizer que, provavelmente, não durará menos que dois anos e possivelmente mais. Com a mesma sinceridade e desembaraço, trata o analista das questões do pagamento e horário.

Focalizei rapidamente o mecanismo da transferência, mas preciso voltar mais uma vez a êsse assunto, pois que a compreensão e o manejo da transferência é a essência da cura psicanalítica. Os pacientes neuróticos têm, em geral, um caráter difícil, mostrando reações irrazoáveis. Eles são hipersensíveis, meticulosos, desconfiados, angustiados e, por isso, tornam-se insuportáveis ao ambiente. O resultado dessas atitudes é um desajustamento social e familiar. O neurótico raramente é um membro querido dentro da família, um amigo de confiança em sua roda, um chefe admirado ou um empregado apreciado, pois que suas dificuldades de caráter destroem ou, pelo menos, influem nos laços afetivos tão indispensáveis para uma vida social satisfatória. Pode-se dizer que, em última instância, a neurose nada mais é que o fracasso do indivíduo no estabelecimento de suas relações com os objetos de seus impulsos.

Como se dá tal fracasso? Por que é que um moço, iniciando sua carreira na vida, parece ser favorecido pelo destino, ao passo que outro encontra tão sómente dificuldades e decepções? Lancemos, por um momento, um olhar à criança e a seu ambiente. A criança depende, no início, completamente de sua mãe: todos os impulsos da criança dirigem-se à mãe, ou melhor ao seio da mãe que lhe fornece o que ela precisa. A mãe é, portanto, o objeto bom e seria incondicionalmente bom se estivesse sempre ao alcance da criança, como o é no estádio intra-uterino. Uma vez separada do corpo da mãe, a criança tem que se adaptar a uma satisfação menos completa e contínua de seus impulsos. Ela percebe que a mãe não está sempre presente ou não lhe dá bastante leite, e estas frustrações estimulam impulsos agressivos, hostis e angustiosos contra a mãe. Basta observar as manifestações de raiva e angústia da criança quando sua fome não é, imediatamente, satisfeita: ela começa a morder o seio da mãe até causar, às vezes, uma inflamação. Podemos, pois, distinguir, já nas primeiras fases da vida, dois impulsos diferentes que o indivíduo sente em relação ao objeto: o impulso positivo e bom, impulso de amor que procura introjetar-se no seio da mãe, impulso de introjeção ou identificação com o objeto querido, que se apresenta, também, nas relações amorosas de adultos. E, de outro lado, o impulso mau e agressivo, que procura morder ou devorar o objeto para destruí-lo. Melanie Klein demonstrou, em inúmeras análises de crianças, tais impulsos oral-sádicos que se revelam muito mais intensos do que os adultos possam imaginar.

Que faz a criança com seus impulsos destrutivos? Não tendo ainda capacidade de descarregá-los adequadamente, procura desfazer-se deles, projetando-os na própiia mãe que assume, assim, a imagem dum objeto duplamente mau. Ela é má porque recusa a satisfação dos impulsos do filho, e má porque a criança projeta nela tôda a própria agressividade. Tudo o que a criança queria fazer de mal contra a mãe, ela receia que a mãe faça a ela. Tal processo de projeção é bem conhecido, mormente em certas psicoses como a paranóia. Essa projeção é facilitada pelo sentimento de culpa que surge na criança em conseqüência de seus impulsos destrutivos e, assim, se consubstancia aquele estado que Klein denomina de "situação angustiosa prematura". A criança cria dentro de si a imagem da mãe boa como ela a quereria, e da mãe má, conforme seus próprios impulsos maus. Todos os medos e angústias da criança, se bem que bem amparada e tratada com carinho, explicam-se por êste mecanismo de introjeção e projeção. A criança teme as imagens internas criadas por seus próprios impulsos muito mais que as pessoas reais de seu ambiente. Naturalmente, as atitudes das mães contribuem para a formação das imagens internas: mães neuróticas e inconscientemente sádicas estimulam os impulsos destrutivos dos filhos e ajudam, assim, a criação de imagens internas terríveis e assustadoras.

Vemos, portanto, que as reações irrazoáveis, que descrevemos como típicas, no comportamento dos indivíduos neuróticos, podem ser observadas já na criança. Os estudos psicanalíticos modernos explicam bem os motivos dêsse desajuste da criança. Toda a vida afetiva e fantástica da criança, tôdas as suas brincadeiras são influenciadas pelas imagens internas dos seus objetos. Quanto maior a discrepância entre os objetos reais e aqueles introjetados, tanto mais difícil se torna para a criança a adaptação à realidade. Se, no decorrer do desenvolvimento, ela não adquire a capacidade de desfazer as imagens irreais introjetdas e reconhecer os pais como eles são, aparecerão, cada vez mais, sintomas neuróticos. A neurose é, pois, o resultado da fuga, ou melhor, da defesa do indivíduo contra os perigos da vida impulsiva, e esta defesa começa na infância.

Tentei descrever o processo de introjeção e projeção que a criança sofre, ficando fixada, de um lado, às imagens internas e, de outro, às figuras reais dos pais. Sentindo-se perseguida pelas imagens aterrorizantes, a criança agarra-se aos pais. Quem duvida da existência de tais temores na criança, deve lembrar-se dos pesadelos, pavores noturnos e choradeiras sem motivo real. Na procura de amparo, a criança agarra-se cada vez mais aos pais, continuando, desta forma, numa dependência exagerada da família e, mais tarde, de qualquer ambiente. Os pacientes neuróticos, como vimos, são infantis e dependentes: transferem a todos e também ao psicanalista a imagem dos seus objetos arcaicos infantis e reagem como o fizeram na infância. O analista deve sempre lembrar-se de que a transferência é um processo complicado: como deve o analista usar o mecanismo da transferência?

A única regra que êle impõe ao paciente é aquela da associação livre: o paciente deve dizer tudo que lhe passa pela mente, seja o que fôr. O analista não faz perguntas em forma de questionário. Naturalmente, é bastante difícil cumprir esta regra da associação livre e ninguém é capaz de pôr de lado tôdas as restrições e conveniências que impedem, na vida diária, de ser franco e sincero. A vida social obriga a uma certa hipocrisia, pois que seríamos insuportáveis se disséssemos a todos aquilo que pensamos intimamente. Mas o psicanalista não pode abandonar a técnica da associação livre, porque são justamente as resistências contra tal sinceridade que lhe fornecem o material indispensável para o estudo e compreensão da neurose.

A transferência começa, necessariamente, na primeira consulta. Cabe à habilidade do analista e seu conhecimento da técnica fazer com que ela se desenvolva espontaneamente. O psicanalista torna-se, logo, a pessoa mais importante e em torno dêle se desencadearão todos os conflitos neuróticos do paciente: assim, a neurose do paciente transforma-se numa neurose de transferência. O analista assume, no íntimo do paciente, o papel do pai, da mãe, dum irmão, duma pagem, independente do próprio sexo ou da sua personalidade. Ao mesmo tempo, êle representa uma das imagens introjetadas da infância. Para isso o analista deve ser o mais impessoal e reservado: não deve responder a qualquer pergunta referente à sua pessoa, falando o menos possível para poder observar tôdas as reações do paciente como manifestações de sua personalidade; não discute questões políticas, religiosas, sociais ou sexuais, pois que as suas opiniões não importam; nem dá explicações teóricas ou técnicas.

O paciente torna-se afetivamente dependente do psicanalista: surge em cada paciente o desejo forte e mais ou menos consciente de conquistar a simpatia e a admiração do analista, como êle queria, na infância, conquistar o amor dos pais. O paciente precisa do amor do analista para neutralizar no íntimo as imagens introjetadas más e os impulsos destrutivos que o aterrorizam. Mas todos êsses medos, todo êsse conflito íntimo são inconscientes ao paciente. A tarefa do analista consiste em facilitar o processo de identificação e, para êste fim, êle reage a tôdas as tentativas de conquista com uma atitude calma, inacessível e um tanto impessoal. Êle deve ser como um espelho que reflete só as reações do paciente, sem mudar de atitude que, nem por isso, deve ser fria. O analista tem logo a oportunidade de mostrar ao paciente que sua simpatia ou admiração são meros mecanismos de defesa contra o medo e não um afeto sincero de amor. Se o paciente perceber que não pode conquistar a simpatia do analista, começa logo a sentir raiva ou ódio contra o mesmo: decepcionado pela inatingibilidade afetiva do analista, o identifica logo como o objeto mau - introjetado ou real - da sua infância e começa então a sentir os antigos impulsos hostis e agressivos que lhe causaram tanta angústia na infância. Deste modo, a primeira atitude de amizade do paciente, resultante da transferência positiva, transforma-se em irritabilidade, decepção, angústia ou mágua. O analista, que era inatingível ao amor do paciente, mostra agora a mesma atitude de tolerância e compreensão pelo paciente irritável. Sabe e mostra ao paciente que tôdas essas reações são irrazoáveis, derivando-se das decepções sofridas na infância. Nunca o analista deve irritar-se contra o paciente ou criticá-lo porque, desta maneira, êste último perderá tôda a confiança na imparcialidade do analista e seu medo tornar-sc-ia justificado. Os leigos compreendem como transferência tão sómente o amor do paciente para com o analista. Mas uma parte não menos importante da transferência é o mundo de medo, ódio e raiva que todos os pacientes guardam no seu inconsciente contra seus pais e os objetos introjetados, e que transferem com grande violência ao analista. O analista tem "de ouvir às vezes ofensas como tais: êle é um charlatão, é mal educado, só tem interesse no dinheiro dos seus pacientes, é pouco inteligente, veste-se mal, prefere outros pacientes e assim por diante. Às vezes, um paciente adormece durante a sessão mostrando, assim, ao analista, o seu desprezo; outro conta anedotas obscenas para provocá-lo. Um paciente disse, por exemplo, que quem devia falar era o analista ao passo que êle só devia escutar e ser pago por isso. Diante de tôdas essas provocações, o analista nunca deverá perder a serenidade: deve trazer êste ódio à superfície do consciente e mostrar que tais afetos são revivências da infância, e que o paciente não tem qualquer razão real para senti-los.

Compreenderemos melhor, agora, o mecanismo psicanalítico-terapêutico: logo que o analista observe um impulso reprimido, êle dará uma interpretação ao paciente: aquilo que êste pensa, sente, faz ou fala, é algo irracional, irrazoável. Na segunda fase da interpretação - que o analista inglês Strachey chama de interpretação mutativa - o analista logo que tenha bastante material histórico para poder compreender tal impulso ou tal atitude do paciente, relaciona-a com o objeto infantil. Aí o paciente sente que o analista de fato não é como êsse objeto infantil, que não precisa ter ódio, medo,. desconfiança dêle e, com isso, abandonará as reações neuróticas por não serem mais necessárias como foram na sua infância. É preciso ainda dizer que tais interpretações mutativas, que são as únicas eficientes no sentido terapêutico, devem ser precisas, curtas e dadas no momento apropriado. Para poder manter esta atitude de infinita tolerância, é necessário que o psicanalista não tenha recalque algum dos próprios impulsos agressivos, file não deve ter, também, medo da agressividade do paciente. É muito instrutivo o que Sachs relata: Um paciente, cheio de raiva, tirou durante a sessão um revólver do bolso, visando o psicanalista.; êste ficou calmo e imóvel, perguntando apenas: "Que associação lhe ocorre quanto a êste ato?". O mais leve gesto de medo ou defesa da parte do analista poderia talvez ter provocado uma agressão física, mas a calma inabalável do analista desarmou o paciente por completo. Não conheço um único caso em que o analista tivesse sofrido agressão física por parte do paciente.

Compreende-se como é difícil e profunda a tarefa da análise: libertar os pacientes de impulsos violentos e recalcados. É claro que tal análise não pode ser feita em poucos meses. Quem se defendeu inconscientemente durante 15 ou 20 anos contra seus impulsos, não se tornará, tão rapidamente, capaz de enfrentá-los conscientemente. É preciso fazer o paciente experimentar afetivamente sua angústia e medo, para poder mostrar-lhe, depois, contra o que se defendia tanto. Também se vê porque o analista não deve pôr em jogo seus próprios conceitos morais: não é sua tarefa moldar a alma do paciente conforme seus ideais. É preciso estudar quais são os ideais de cada paciente e porque êle não pode realizá-íos; é preciso estudar os dinamismos de sua alma e ajudá-lo a não ter medo de si mesmo. O paciente amiúde não é capaz de se responsabilizar pelos seus impulsos. O analista assume, nestes momentos, tôda a responsabilidade por êle. Só a completa compreensão e neutralidade do analista fazem o paciente recuperar a autoconfiança e a coragem para ser aquilo que realmente pode ser. Freud disse uma ocasião: " Todo aquele que quer ser mais nobre do que sua constituição lhe permite, cái numa neurose". Todos meus casos confirmaram esta frase. Portanto, devemos reduzir os auto-ideais artificialmente exagerados dos pacientes para um nível mais razoável e realizável. Esta redução do ideal é um processo contra o qual o doente luta, às vezes, desesperadamente. Mormente quando imaginou que a psicanálise lhe daria uma perfeição total, não se disporá fácilmente ao abandono de certos ideais. Os analistas devem desistir da pretensão de aperfeiçoar os indivíduos : o que o paciente, curado de seus desajustes, fará com seus impulsos normalizados, não nos deve interessar. O paciente deve chegar a uma verdadeira maturidade, isto é, à capacidade de assumir tôdas as responsabilidades que a vida lhe impõe. Se, depois do tratamento, êle quiser mudar de profissão, tornar-se religioso ou ateu, isto não cabe ao analista decidir. Em paz com sua consciência moral, o paciente será capaz de sublimar seus impulsos trazidos à consciência. Viverá em harmonia com seu ambiente, terá maior capacidade de trabalho e será um membro útil da sociedade.

É desnecessário salientar que esta descrição rápida do processo psicanalítico é esquemática e simplificada. A análise prática é muito variada, revelando diariamente novos aspectos e novos problemas. Gostaria de dar um exemplo prático do decorrer duma análise, mas isso é tarefa dificílima, quase impossível. Um processo que se desenrola diante do analista, em um o'u mais anos, não se pode descrever em poucas palavras. Limito-me a dar alguns exemplos que demonstram o mecanismo da transferência como elemento essencial duma análise.

Num caso, tivemos dificuldades especiais, provenientes de certos traumas da primeira infância. A mãe da paciente, mulher boa e carinhosa para com os filhos,, era sexualmente recalcada e puritana. A paciente compreendeu, na primeira infância, que qualquer atividade sexual traria consigo o perigo do abandono afetivo da mãe e severos castigos. Atividades sexuais infantis e, mais tarde, certas brincadeiras eróticas com um irmão, ela as escondia, ansiosamente, da mãe e recalcou os impulsos sexuais até que se desenvolveu uma frigidez total acompanhada de sintomas histéricos sérios. Quando procurou a psicanalista, a paciente era psiquicamente infantil, incapaz de gozar a vida; os sofrimentos levaram-na a pensar em suicídio. A grande dificuldade de falar livremente revelou-se, depois de muito tempo de análise, como resultado dum grande choque: uma ocasião, quando menina, ela fora castigada pela mãe com um tapa na bôca, por ter pronunciado qualquer palavra feia. A menina recebeu o castigo como injusto e, sem o esquecer, daí por diante não dava mais confiança à mãe: ela fechava a bôca diante da mãe, como fechou-se durante muito tempo diante de mim. É claro que êsse tapa na bôca não foi suficiente para inibir o desenvolvimento da menina: êle serviu, por assim dizer, de símbolo daquilo que a mãe exigiu dela. A menina interpretou o castigo como uma proibição geral de falar, de se expandir em sua afetividade, de fazer perguntas, etc. A paciente descreveu-me como a mãe dominava os filhos com o olhar. Em sonhos, a mãe aparecia como uma cobra que atrai a vítima com um olhar para depois devorá-la. Neste simbolismo será possível reconhecer os impulsos orais-sádicos da paciente transferidos, pelo mecanismo da projeção, à própria mãe. A paciente tinha, muitas vezes, nas sessões psicanalíticas, medo de falar e pediu à analista para ajudá-la. Só quando pude mostrar-lhe que, atrás da atitude tão amável, submissa e meiga para comigo, se escondia o ódio contra a mãe, ela tornava-se capaz de falar mais livremente e sem angústia.

Em outro caso, tratava-se dum moço que sofria de timidez, falta de produtividade profissional, insatisfação e pouca virilidade. Desde o início da psicanálise, êle se mostrou sempre gentil, amável e pouco afetivo em relação à analista. Depois de certo tempo, encorajou-se a confessar que sentia certa hostilidade contra a analista, julgando que ela não queria ajudá-lo em seus conflitos. Esta hostilidade manteve-se durante muito tempo incompreensível, até o dia em que o paciente se lembrou do seguinte: seu pai nunca lhe dera o afeto e o interesse desejado; sua mãe falava pouco e não respondia a suas perguntas conforme seus desejos. O menino chorava muito, era hipersensível e a mãe dizia: " Quando você fôr grande, darei um remédio contra os choros", ou " Quando você fôr grande, saberá aquilo que agora está perguntando". O menino guardou bem essas palavras da mãe, sempre esperando a realização das promessas, nunca cumpridas; assim, sentiu-se enganado e traído pela mãe, não a perdoando por isso. Importava, neste caso, notar que o paciente era o caçula da família: antes de seu nascimento, sua mãe tivera duas meninas que faleceram, acontecimentos com os quais a mãe tinha sofrido muito, levando-a a desejar que o paciente fosse menina para substituir aquelas falecidas. Assim, decepcionada em sua esperança, ela vestiu o menino por vários anos como menina, e o filho sentiu claramente que a mãe o teria amado mais se tivesse nascido menina. A mãe restringiu, mais tarde, o desenvolvimento do menino, castigando-o severamente por qualquer atividade masculina. Se êle brigava com os camaradas, ela o castigava. Assim, êle viu na mãe a pessoa que impedia a expansão de sua masculinidade; por medo dela e para agradá-la, tornou-se um menino meigo, manso e pouco viril. Intimamente culpava a mãe e transferiu para a analista tôda a hostilidade e rancor que tinha contra a mãe mas que havia recalcado por medo das conseqüências.

Chegando ao fim desta palestra, sinto-me um pouco insatisfeita por não ter podido dar uma impressão bem clara e nítida, longe de ser completa, do processo da psicanálise. Talvez só os que se dedicam a esta especialidade podem compreender as dificuldades que se opõem a quem tenta livrar a psique de suas doenças e desajustamentos. A análise é, muitas vezes, comparada a uma operação cirúrgica na alma, mas o que precisa ser extirpado, são forças dinâmicas, às vezes perigosas. Portanto, o analista-cirurgião da alma deve ter boa técnica, baseada no conhecimento profundo da teoria, para bem usar seu instrumental. Uma análise mal guiada pode prejudicar o paciente tanto quanto um bisturi na mão dum cirurgião pouco hábil. O instrumento do analista é, em primeiro lugar, seu próprio equilíbrio mental completo. E, para chegar a isso, Freud e seus discípulos resolveram impor ao candidato a psicanalista o dever de fazer uma psicanálise didática, indispensável para o exercício da profissão. Em nenhum outro ramo da medicina, o médico precisa submeter-se ao tratamento que êle pretende posteriormente aplicar a seus pacientes. Mas o psicanalista não pode aprender a técnica analítica sem sentí-la aplicada à sua própria pessoa. Quem nunca experimentou as emoções da transferência, sentindo amor ou ódio irracional para com o analista, ou conhecendo o processo da conscientificação dum impulso recalcado, nunca será capaz de compreender o que está acontecendo com seus pacientes.

Quanto à eficiência do tratamento psicanalítico, não há dúvida que os resultados, em geral, são satisfatórios. Mais indicados para êsse gênero de tratamento são os casos de psiconeurose, histeria, neurose obsessiva e distúrbios do> caráter. Entre os casos refratários, podemos distinguir vários grupos: 1 - Nas neuroses muito antigas, a análise é difícil e mais longa, malogrando às vezes. A idade do paciente, por si só, não é fator decisivo, pois que uma pessoa idosa pode ter uma neurose recente, ao passo que uma jovem pode sofrer, desde a infância, de distúrbios neuróticos graves. 2 - Papel importante desempenham as dificuldades reais da vida do paciente. O ambiente em que êle vive pode ser um fator desfavorável para a eficiência da psicanálise. Pais ou cônjuges neuróticos ou de pouca compreensão, às vezes dificultam a vida do paciente de tal modo que a neurose se torna uma proteção contra males maiores. Em tais situações, os esforços do analista não são suficientes para contrabalançar a influência nociva do ambiente. 3 - Certos tipos de doenças mentais mostram resistências especiais em relação à psicanálise: psicoses maníaco-depressivas, personalidades esquizóides ; certos vícios como morfinismo e alcoolismo pertencem a êste grupo.

Podemos esperar que o futuro desenvolvimento da teoria e técnica psicanalíticas ensine a vencer as dificuldades acima referidas. A psicanálise é uma ciência viva que não se satisfaz com os descobrimentos feitos até hoje. Continuam a vigorar as palavras de seu criador, Sigmund Freud, quando, com a modéstia do verdadeiro gênio, disse: " Nunca nos orgulhamos de que os nossos conhecimentos sejam completos e perfeitos; estávamos e ainda estamos dispostos a confessar as falhas de nossos conhecimentos, aceitando novos conceitos e modificando a nossa técnica conforme as compreensões cada vez mais aprofundadas."

Conferência feita na Secção de Neuro-Psiquiatria da Associação Paulista de Medicina em 5 outubro 1945.

R. Barão de Itapetininga, 120 - S. Paulo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1945
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