INTRODUÇÃO
O perfil epidemiológico dos problemas de saúde bucal apresentou mudanças, especialmente na idade de 12 anos. No Brasil, a cárie dentária mostrou queda no índice CPOD (dentes cariados, perdidos e obturados) de 6,7 em 1986 para 2,07 em 2010, e, atualmente, uma parcela significativa dessas crianças é livre de cárie (43,5%). a Sendo assim, outros problemas relacionados à cavidade bucal passaram a ser alvo de atenção, destacando-se as alterações oclusais. 14 Por apresentar uma prevalência alta, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a considerar a má oclusão como o terceiro problema de saúde pública em odontologia. 9 , 10
Dados nacionais relativos à má oclusão apontam prevalência de 40,0% para a idade índice de 12 anos. Para a má oclusão severa e muito severa a prevalência é respectivamente de 10,4 e 7,1%. a Em muitos casos, as más oclusões provocam um impacto na qualidade de vida dessa parcela da população. Podem produzir desvios estéticos nos dentes e/ou face e distúrbios funcionais de oclusão, mastigação, deglutição, fonação e respiração. Também podem causar transtornos psicossociais com potenciais repercussões na autoestima e no relacionamento interpessoal dos indivíduos severamente afetados. 5
Diante dessa realidade, há necessidade de um retrato mais nítido para a compreensão do processo saúde-doença em relação à má oclusão. Assim, além de fatores individuais, outros fatores, denominados modificadores ou moduladores (fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais), estão relacionados com a saúde da população. Atualmente esses fatores são conhecidos como determinantes sociais da saúde. 12
Em termos contextuais, alguns indicadores de saúde e sociais podem contribuir para identificar melhor grupos ou pessoas vulneráveis às doenças. Dentre esses indicadores, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma medida comparativa usada para classificar os países pelo seu grau de “desenvolvimento humano”. b
Outro indicador seria o Programa Bolsa Família (BF), um programa de transferência direta de renda que beneficia famílias (cerca de 16 milhões de brasileiros – 8,5% da população geral) com renda familiar per capita inferior a R$ 70,00 mensais, baseando-se na garantia de renda, inclusão produtiva e acesso aos serviços públicos, c que representa o estado de vulnerabilidade ligado diretamente ao desenvolvimento econômico. O Índice de Desempenho do Sistema Único de Saúde (IDSUS), d que pode variar com notas de zero a dez, avalia o acesso e a qualidade dos serviços de saúde. Os menores escores representam os piores desempenhos do SUS para o Brasil e para cada município e estado. 1
Visando uma melhor compreensão dos fatores intrinsecamente relacionados ao problema, o objetivo deste estudo foi avaliar a associação entre a prevalência de má oclusão em crianças brasileiras aos 12 anos de idade com variáveis individuais e contextuais.
MÉTODOS
O estudo foi do tipo transversal analítico. Foram utilizados dados do inquérito epidemiológico nacional de saúde bucal (SBBrasil 2010). a Esse levantamento epidemiológico analisou as condições de saúde bucal da população brasileira em diferentes grupos etários, nas áreas urbanas e rurais. O Brasil possui um total de 190.755.799 indivíduos, sendo constituído de 3.402.242 crianças com 12 anos de idade. e Foram examinados 37.519 indivíduos em 26 capitais estaduais, no Distrito Federal e em 150 municípios do interior de diferentes portes populacionais.
O banco de dados gerado nesta pesquisa é de domínio público e tem livre acesso em uma página eletrônica do Ministério da Saúde. e
A coleta de dados foi realizada no domicílio, incluindo exame bucal e entrevista por meio de um questionário estruturado. As equipes de saúde bucal foram compostas por um cirurgião-dentista examinador e um auxiliar anotador. Para o exame clínico foram utilizados os instrumentais recomendados pela OMS (espelho bucal e sonda Índice Periodontal Comunitário CPI). 9
A presença de má oclusão foi registrada pelo Índice de Estética Dental (DAI), categorizado como: normal, definida, severa e muito severa. 4 O princípio básico do DAI é uma combinação de medidas, as quais em conjunto expressam o estado oclusal do indivíduo e sua respectiva necessidade de tratamento ortodôntico, que considera comprometimento estético, além da oclusão. Ao todo são 11 medidas, considerando-se três grandes dimensões a serem avaliadas: a dentição, o espaço e a oclusão propriamente dita.
A técnica de amostragem utilizada pelo SBBrasil 2010 foi probabilística por conglomerados. Para a idade de 12 anos utilizaram-se três estratificações: a primeira utilizou domínios e unidades primárias de amostragem: capitais e municípios do interior segundo macrorregião. A segunda consistiu na subdivisão dos municípios participantes: 27 capitais mais 30 municípios do interior em cada macrorregião. E a terceira foi realizada por sorteio para garantir a representatividade nos municípios, setores censitários e domicílios.
Foram avaliados de 1 a 250 participantes por cidade em 172 cidades do Brasil, totalizando 7.328 crianças aos 12 anos de idade, com uma perda amostral de 8,4%. Para o cálculo do tamanho de amostra, os parâmetros utilizados (valor de z, variância, média do CPOD, margem de erro aceitável, efeito do desenho e taxa de não resposta) foram os encontrados no SBBrasil 2003. f
As equipes de campo foram devidamente treinadas em oficinas de trabalho. A técnica de calibração adotada foi a do consenso, calculando-se a concordância entre cada examinador e os resultados obtidos pelo consenso da equipe. Tomou-se como referência o modelo proposto pela OMS. Foi calculado o coeficiente kappa ponderado para cada examinador, grupo etário e agravo estudado, tendo como limite mínimo aceitável o valor de 0,65. Para o DAI a OMS recomenda para a avaliação o valor mínimo de 0,85 para interexaminador e 0,95 para intraexaminador. a
O desfecho estudado foi a má oclusão, mensurada pelo DAI, calculado da seguinte forma:
DAI = (dentes perdidos x 6) + (API) + (ESP) + (DI x 3) + (DMXA) + (DMDA) + (OMXA x 3) + (OMDA x 4) + (MAA x 4) + (RMAP x 3) + 13
Códigos e pesos foram definidos assim:
API: apinhamento no segmento incisal peso 1; ESP: espaçamento no segmento incisal Peso 1; DI: diastema incisal Peso 3, DMXA: desalinhamento maxilar anterior peso 1, DMDA: desalinhamento mandibular anterior peso 1, OMXA: overjet maxilar anterior peso 3, OMDA: overjet mandibular anterior peso 4, MAA: mordida aberta vertical anterior peso 4 e RMAP: relação molar ântero-posterior peso 3.
Dessa forma os escores são calculados e distribuídos de acordo com a severidade da má oclusão e necessidade de tratamento ortodôntico da seguinte forma: ausente (DAI < 25), definida (DAI 26-30), severa (DAI 31-35) e muito severa (DAI ≥ 36). 4
Para a caracterização contextual utilizou-se o IDH, medida que congrega informações sobre longevidade, renda e escolaridade. b
O BF foi obtido pelo número de famílias beneficiadas por município para cada 1.000 habitantes, visando padronizar e facilitar a comparação com outros municípios. c
O registro do IDSUS foi feito por meio da nota que o município recebeu da avaliação e do número do grupo homogêneo em que o município foi agrupado. d
O produto interno bruto (PIB) per capita corresponde à soma dos salários de toda a população do município dividida pelo número de habitantes. e Os dados foram dicotomizados em municípios com presença ou não de flúor na água de consumo. e
Para a análise descritiva, os dados foram avaliados pelo teste qui-quadrado. O modelo multinível foi formado por componentes fixos (variáveis estudadas) e componentes aleatórios (cidades e variâncias nos diferentes níveis). 21
Os ajustes do modelo multinível foram realizados pelo procedimento PROC MIXED do programa estatístico SAS (SAS Institute Inc. 9.2, 2008) de acordo com a metodologia descrita em Singer 15 (1998) e Tellez et al 16 (2006).
No nível 1 foram consideradas as variáveis relativas aos indivíduos. No nível 2 as variáveis relativas às cidades, sendo avaliado o comportamento da variável má oclusão (nível 1) como uma função das variáveis preditoras dos níveis 1 e 2.
Inicialmente foi ajustado um modelo apenas com o intercepto (modelo 1). Em seguida incluíram-se os efeitos preditores do nível dos indivíduos (nível 1) – modelo 2 – e das cidades (nível 2) – modelo 3. Na seleção das variáveis contextuais foram levados em consideração indicadores relacionados a acesso e qualidade dos serviços de saúde (IDSUS), condições socioeconômicas (IDH e PIB per capita ) e vulnerabilidade social (BF).
A qualidade dos ajustes foi avaliada pela convergência do modelo, critérios de Akaike information criterion e o Akaike information criterion corrected , e estatística – 2 vezes o logaritmo da função de verossimilhança. Em todas as análises foi utilizado o nível de 5% de significância.
O Projeto SBBrasil 2010 foi conduzido dentro dos padrões exigidos pela Declaração de Helsinque e aprovado pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa, sob o registro nº 15.498, em 7 de janeiro de 2010.
RESULTADOS
A prevalência de crianças aos 12 anos de idade com má oclusão, classificada como “severa” e “muito severa”, não apresentou diferenças estatísticas entre as regiões, variando de 17,8% na Região Norte a 22,0% na Região Sul, com média nacional de 19,8%. Contudo, houve diferença estatisticamente significante na distribuição dos valores percentuais das categorias entre as diferentes macrorregiões do País (p < 0,0176) ( Tabela 1 ). A má oclusão muito severa foi identificada em 9,4% das crianças examinadas.
Tabela 1 . Distribuição das crianças com 12 anos de idade segundo a prevalência e severidade da má oclusão. SBBrasil, 2010.
Região | Má oclusão |
Valor de p | ||||
Ausente | Definida | Severa | Muito severa | Total | ||
| ||||||
Norte | 962 | 327 | 131 | 147 | 1.567 | 0,0176 a |
61,4% | 20,9% | 8,4% | 9,4% | 100,0% | ||
Nordeste | 959 | 311 | 173 | 164 | 1.607 | |
59,7% | 19,4% | 10,8% | 10,2% | 100,0% | ||
Sudeste | 617 | 245 | 139 | 97 | 1.098 | |
56,2% | 22,3% | 12,7% | 8,8% | 100,0% | ||
Sul | 330 | 124 | 68 | 60 | 582 | |
56,7% | 21,3% | 11,7% | 10,3% | 100,0% | ||
Centro-Oeste | 506 | 196 | 84 | 70 | 856 | |
59,1% | 22,9% | 9,8% | 8,2% | 100,0% | ||
Total | 3.374 | 1.203 | 595 | 538 | 5.710 | |
59,1% | 21,1% | 10,4% | 9,4% | 100,0% |
a Teste qui-quadrado
A análise descritiva das variáveis independentes (frequência e porcentagem) pode ser observada na Tabela 2 . A maior parte dos examinados (76,1%) morava nas capitais, enquanto houve um equilíbrio entre os examinados dos diferentes gêneros, basicamente metade (51,3%) tinha alguma necessidade de tratamento, 75% provinham de famílias com renda mensal até R$ 1.500.00, menos de 5% provinham de famílias onde o responsável cursava ou tinha título universitário. Quanto às variáveis de saúde, 23,7% informavam ter sentido dor de dente nos últimos seis meses, 81,6% tiveram acesso ao dentista, a maioria (60,1%) estava satisfeita com sua dentição, enquanto problemas relacionados à dificuldade, incômodo ou vergonha em relação aos dentes e ambiente oral foram pouco prevalentes. Em relação às variáveis contextuais, a maioria dos participantes (62,5%) morava em cidades com alto índice de desenvolvimento socioeconômico e 79,3% moravam em cidades fluoretadas.
Tabela 2 . Frequência e porcentagem por categoria das variáveis independentes qualitativas. SBBrasil, 2010.
Variável | n | % |
| ||
Demográficas | ||
Domínio | ||
Capital | 5.578 | 76,12 |
Interior | 1.750 | 23,88 |
Região | ||
Norte | 1.743 | 23,79 |
Nordeste | 2.041 | 27,85 |
Sudeste | 1.342 | 18,31 |
Sul | 1.010 | 13,78 |
Centro-Oeste | 1.192 | 16,27 |
Sexo | ||
Masculino | 3.639 | 49,66 |
Feminino | 3.689 | 50,34 |
Cor da pele | ||
Branca | 2.897 | 39,53 |
Preta | 712 | 9,72 |
Amarela | 144 | 1,97 |
Parda | 3.513 | 47,94 |
Indígena | 62 | 0,85 |
Agravos à saúde bucal | ||
Trauma | ||
Nenhum traumatismo | 5.630 | 78,11 |
Fratura de esmalte | 1.282 | 17,79 |
Fratura de esmalte/dentina | 262 | 3,63 |
Fratura com exposição pulpar | 21 | 0,29 |
Ausência devida a trauma | 13 | 0,18 |
Necessidade de tratamento | ||
Não | 3.528 | 48,68 |
Sim | 3.719 | 51,32 |
Socioeconômicas | ||
Número de pessoas | ||
0 | 1 | 0,01 |
1 | 11 | 0,15 |
2 | 235 | 3,21 |
3 | 1.079 | 14,76 |
4 | 2.264 | 30,97 |
5 | 1.745 | 23,87 |
6 | 889 | 12,16 |
7 | 477 | 6,52 |
8 | 258 | 3,53 |
9 | 141 | 1,93 |
> 10 | 211 | 2,89 |
Número de cômodos | ||
0 | 2 | 0,03 |
1 | 539 | 7,37 |
2 | 2.560 | 35,02 |
3 | 1.931 | 26,42 |
4 | 778 | 10,64 |
5 | 602 | 8,24 |
6 | 397 | 5,43 |
7 | 231 | 3,16 |
8 | 121 | 1,66 |
9 | 68 | 0,93 |
> 10 | 81 | 1,08 |
Número de bens | ||
0 | 042 | 0,58 |
1 | 105 | 1,45 |
2 | 138 | 1,90 |
3 | 390 | 5,37 |
4 | 877 | 12,07 |
5 | 1.102 | 15,17 |
6 | 1.070 | 14,73 |
7 | 989 | 13,61 |
8 | 852 | 11,73 |
9 | 528 | 7,27 |
10 | 394 | 5,42 |
11 | 779 | 10,72 |
Renda per capita (R$) | ||
Até 250,00 | 313 | 4,52 |
251,00 a 500,00 | 1.084 | 15,64 |
501,00 a 1.500,00 | 3.694 | 53,31 |
1.501,00 a 2.500,00 | 1.082 | 15,62 |
2.501,00 a 4.500,00 | 494 | 7,13 |
4.501,00 a 9.500,00 | 196 | 2,83 |
Mais de 9.500,00 | 66 | 0,95 |
Anos de estudo | ||
0 | 19 | 0,26 |
1 | 42 | 0,58 |
2 | 75 | 1,03 |
3 | 235 | 3,22 |
4 | 727 | 9,95 |
5 | 1.432 | 19,61 |
6 | 2.241 | 30,69 |
7 | 1.503 | 20,58 |
8 | 625 | 8,56 |
9 | 202 | 2,77 |
10 | 85 | 1,16 |
11 | 49 | 0,67 |
12 | 34 | 0,47 |
13 | 7 | 0,10 |
14 | 5 | 0,07 |
15 | 22 | 0,30 |
Escolaridade, morbidade e utilização dos serviços odontológicos/Autopercepção e impacto à saúde | ||
Percepção da necessidade de tratamento | ||
Não | 2.228 | 32,07 |
Sim | 4.720 | 67,93 |
Dor de dente (últimos 6 meses) | ||
Não | 5.559 | 76,29 |
Sim | 1.728 | 23,71 |
Gravidade da dor (intensidade da dor – de 1 a 5) | ||
1 | 244 | 14,49 |
2 | 323 | 19,18 |
3 | 485 | 28,8 |
4 | 277 | 16,45 |
5 | 355 | 21,08 |
Consulta ao dentista | ||
Não | 1.337 | 18,43 |
Sim | 5.918 | 81,57 |
Frequência da consulta | ||
Menos de 1 ano | 3.570 | 61,19 |
1 a 2 anos | 1.669 | 28,61 |
3 ou mais anos | 595 | 10,20 |
Onde foi a sua última consulta? | ||
Serviço Público | 3.207 | 54,59 |
Serviço Particular | 1.898 | 32,31 |
Plano de saúde/ Convênios | 690 | 1,74 |
Outros | 80 | 1,36 |
Motivo da consulta | ||
Revisão/Prevenção | 2.172 | 37,05 |
Dor | 748 | 12,76 |
Extração | 708 | 12,08 |
Tratamento | 2.082 | 35,52 |
Outros | 152 | 2,59 |
Satisfação com os dentes | ||
Muito satisfeito | 798 | 11,10 |
Satisfeito | 3.522 | 49,01 |
Nem satisfeito nem insatisfeito | 1.215 | 16,91 |
Insatisfeito | 1.540 | 21,43 |
Muito insatisfeito | 111 | 1,54 |
Dificuldade de comer | ||
Não | 6.067 | 83,26 |
Sim | 1.220 | 16,74 |
Incômodo ao escovar | ||
Não | 6.382 | 87,54 |
Sim | 908 | 12,46 |
Nervosismo e irritação | ||
Não | 6.513 | 89,46 |
Sim | 767 | 10,54 |
Influência no lazer | ||
Não | 6.860 | 94,05 |
Sim | 434 | 5,95 |
Influência no esporte | ||
Não | 6992 | 95,82 |
Sim | 305 | 4,18 |
Dificuldade em falar | ||
Não | 6.959 | 95,42 |
Sim | 334 | 4,58 |
Vergonha de sorrir | ||
Não | 6.297 | 86,40 |
Sim | 991 | 13,60 |
Dificuldade no estudo/trabalho | ||
Não | 6.920 | 94,85 |
Sim | 376 | 5,15 |
Dificuldade para dormir | ||
Não | 6.653 | 91,26 |
Sim | 637 | 8,74 |
Contextuais | ||
Grupos homogêneos | ||
Alto IDSE e Muita MAC | 4.581 | 62,51 |
Alto IDSE e Média MAC | 1.297 | 17,70 |
Médio IDSE e Pouca MAC | 436 | 5,95 |
Baixo IDSE e Pouca MAC | 394 | 5,38 |
Médio IDSE e Sem MAC | 277 | 3,78 |
Baixo IDSE e Sem MAC | 343 | 4,68 |
Agua fluoretada | ||
Sem | 1.433 | 20,67 |
Com | 5.501 | 79,33 |
IDSE: (índice de desenvolvimento socioeconômico): renda per capita e percentual de famílias com bolsa família; MAC: atenção de média complexidade e alta complexidade ou estrutura de atenção especializada, ambulatorial e hospitalar.
As cidades dos participantes tinham em média 54,56 famílias beneficiadas para cada 1.000 hab., enquanto o IDSUS médio foi de 5,68 (referência 7 seria o limite para desempenho adequado do SUS), o PIB per capita médio de R$ 17.517,00 e o IDH médio de 0,79, o que é considerado bom ( Tabela 3 ).
Tabela 3 . Média, desvio padrão, mediana, valor mínimo e máximo das variáveis quantitativas contextuais. SBBrasil, 2010. (Em R$)
Contextual | Média | Desvio-padrão | Mediana | Valor mínimo | Valor máximo |
| |||||
Bolsa Família a | 54,56 | 33,82 | 55,81 | 3,59 | 189,10 |
IDSUS | 5,68 | 0,80 | 5,76 | 3,12 | 7,63 |
PIB per capita | 17.517,13 | 12.558,34 | 14.095,00 | 1.721,00 | 71.407,00 |
IDH | 0,79 | 0,06 | 0,80 | 0,80 | 0,89 |
a Número de famílias beneficiadas para cada 1.000 hab.
IDSUS: índice de desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (nota dada para cada município); PIB: produto interno bruto;
IDH: índice de desenvolvimento humano
Quanto à análise multinível, no modelo 1 observou-se que a média do escore do índice de má oclusão nas cidades foi de 1,68 com erro-padrão de 0,03 ( Tabela 4 ). A variação da má oclusão entre as cidades foi significativa (p < 0,001), porém a variação entre os participantes dentro das cidades foi cerca de 15 vezes maior do que a variação entre as cidades. Pelo coeficiente de correlação intraclasse pode-se afirmar que a variação entre as cidades representou aproximadamente 6,0% da variação total.
Tabela 4 . Modelos multinível para as variáveis individuais e contextuais para má oclusão em adolescentes de 12 anos de idade. SBBrasil, 2010.
Modelo 1 | Modelo 2 | Modelo 3 | ||||
| ||||||
Só o intercepto | Variáveis do nível 1 | Modelo completo | ||||
| ||||||
Estimativa | p-valor | Estimativa | p-valor | Estimativa | p-valor | |
(Erro padrão) | (Erro padrão) | (Erro padrão) | ||||
| ||||||
Variáveis do nível 1 (indivíduo) | ||||||
Intercepto | 1,689 (0,029) | < 0,001 | 1,425 (0,077) | < 0,001 | 0,955 (0,193) | < 0,001 |
Sexo | ||||||
(Ref a Feminino) | 0,056 (0,026) | 0,033 | 0,059 (0,026) | 0,032 | ||
Renda (Ref mais de R$ 9.500,00) | 0,026 (0,013) | 0,051 | 0,025 (0,013) | 0,005 | ||
Consulta b (Ref Sim) | -0,090 (0,034) | 0,009 | -0,881 (0,034) | 0,011 | ||
Satisfação (Ref Muito satisfeito) | 0,115 (0,014) | < 0,001 | 0,114 (0,014) | < 0,001 | ||
Vergonha ao Sorrir (Ref Não) | 0,267 (0,042) | < 0,001 | 0,267 (0,042) | < 0,001 | ||
Variáveis do nível 2 (cidades) | ||||||
Bolsa Família (Ref menos bolsa) | 0,001 (0,001) | 0,018 | ||||
IDSUS (Ref maior IDSUS) | 0,054 (0,028) | 0,054 | ||||
PIB per capita (Ref maior PIB) | 5,89 x 10 -6 (3,04 x 10 -6 ) | 0,052 | ||||
Variâncias | ||||||
Variância entre cidades | 0,062 (0,015) | < 0,001 | 0,058 (0,014) | < 0,001 | 0,053(0,014) | 0,001 |
Variância entre participantes dentro de cidade | 0,945 (0,028) | < 0,001 | 0,921 (0,018) | < 0,001 | 0,921(0,018) | < 0,001 |
a Ref: referência
b Consulta: Alguma vez na vida já foi ao dentista?
IDSUS: índice de desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (Nota dada para cada município); PIB: produto interno bruto.
Quando incluídas as variáveis do nível individual (modelo 2), observou-se que as crianças do sexo masculino (p = 0,03), de menor renda (p = 0,05), que consultaram o dentista (p = 0,01), com menor satisfação com a boca e os dentes (p < 0,001) e com vergonha de sorrir (p < 0,001) apresentaram maior média no escore do índice de má oclusão. Todas essas significâncias foram controladas pelos outros preditores do modelo.
No modelo 3 as variáveis do segundo nível (cidades) foram incluídas a fim de se avaliar a influência delas na explicação da variabilidade da má oclusão. Verificou-se que as características das cidades com maior número de famílias beneficiadas com BF por 1.000 habitantes, pior nota do IDSUS e menor PIB per capita foram associadas com severidade da má oclusão. Todas essas significâncias foram controladas pelas variáveis preditoras significativas do indivíduo e das cidades.
DISCUSSÃO
O conhecimento da situação de saúde bucal de grupos populacionais por meio de inquéritos epidemiológicos é fundamental para o desenvolvimento de propostas de ações adequadas às suas necessidades e riscos, bem como para possibilidade de comparações que, a posteriori , permitam avaliar o impacto dessas ações, planejar e executar com equidade os serviços.
O declínio da cárie dentária, problema de saúde bucal ainda de maior prevalência, permitiu um novo planejamento de saúde bucal por gestores de saúde, trazendo consigo um novo olhar para outros problemas, principalmente devido à maior consciência e expectativa com relação à saúde bucal ou de maior disponibilidade de tratamento odontológico. 2 Nesse quadro, a ortodontia passou a ser considerada elegível para acesso tanto no setor privado quanto no público, devido à sua alta prevalência, impacto na estética e influência em alguns problemas respiratórios, por exemplo.
No Brasil, os últimos inquéritos epidemiológicos sobre os agravos bucais da população realizados nos anos de 2003 e 2010 mostraram uma redução de 19,3% na frequência de má oclusão, variando de 58,1% para 38,8% na idade de 12 anos. Em relação à severidade, em 2003 a condição severa foi de 15,7% e a muito severa de 20,7%. Em 2010, para as mesmas condições, houve uma redução de 5,3% e 13,6%, respectivamente. a , f Mesmo havendo uma queda da prevalência de má oclusão nas crianças com 12 anos de idade, esse acometimento ainda pode ser considerado um problema de saúde pública.
Além disso, a influência do estilo de vida sobre os níveis de saúde e qualidade de vida de diferentes grupos populacionais, incluindo crianças e adolescentes, é amplamente documentada na literatura na área da saúde. 8 Nesse sentido, o levantamento, o monitoramento e a intervenção sobre comportamentos de risco à saúde são considerados prioridades de saúde pública por diversas agências de saúde. 3
Os resultados obtidos no presente estudo mostram uma associação de variáveis do nível individual na severidade da má oclusão. O sexo masculino apresentou maior severidade de má oclusão em relação ao feminino, corroborando com outros achados na literatura que mostraram que o sexo exerceu uma influência significativa na severidade da doença. 2 , 8 Acredita-se que isso tenha acontecido devido ao fato de as mulheres serem mais resolutivas no tratamento de problemas de saúde.
Observou-se maior severidade de má oclusão naquelas crianças que afirmaram ter menor satisfação com a boca e com os dentes e sentir-se envergonhadas ao sorrir. Entretanto, parece razoável que autopercepção não seja coincidente com a real situação de má oclusão, pois o problema não é impactante por preceitos culturais e, sim, visto como um atributo de beleza e masculinidade ou feminilidade, como observado na cultura ocidental. 19 Portanto, a influência desses fatores depende das características culturais e sociais de cada grupo populacional.
Essas descobertas sugerem que, por meio da severidade da má oclusão, se pode prever a autopercepção da necessidade de tratamento ortodôntico entre crianças. Isto é, a autopercepção em crianças deve ser vista como de fundamental importância na compreensão do impacto da má oclusão em sua vida diária, especialmente em relação às limitações funcionais e ao bem-estar psicossocial, uma vez que se valoriza muito a aparência física. 19
Com relação ao acesso, os resultados deste estudo mostram maior severidade de má oclusão naquelas crianças que já frequentaram o dentista pelo menos uma vez na vida. De acordo com Peres et al 11 (2008), há um aumento da utilização de serviços odontológicos e redução na proporção de pessoas que nunca consultaram um dentista. Embora as diferentes necessidades em saúde não possam ser totalmente eliminadas apenas com o uso de serviços de saúde, eles podem favorecer o acesso qualificado e reduzir as desigualdades em saúde. 12 Provavelmente as pessoas com acesso ao dentista normalmente apresentam maiores necessidade de tratamento, inclusive o ortodôntico.
Os resultados mostraram que, no contexto individual, crianças do grupo com menor renda familiar apresentaram maior severidade de má oclusão, corroborando com os relatos da literatura quanto à influência dos fatores socioeconômicos na determinação da má oclusão. 6 , 12 , 17
A opção pela análise multinível deveu-se ao fato da importância de se investigarem interações entre variáveis de diferentes níveis (individual e contextual), que mostrou maior eficiência estatística, maior poder e menos viés que aquele contido numa análise multivariável como a regressão logística. 7
O estudo destacou a influência de variáveis relacionadas ao contexto socioeconômico na severidade da má oclusão. As cidades com mais famílias recebendo o BF, com menores IDSUS e menor PIB per capita foram associadas à severidade da má oclusão. As desigualdades sociais em saúde tornaram-se, ao longo das duas últimas décadas, uma das temáticas mais relevantes em saúde pública, tanto nos países ricos quanto naqueles com renda econômica média ou baixa. 12 Alguns autores ressaltaram que as famílias mais vulneráveis são mais suscetíveis aos agravos das más oclusões. 17 Especificamente em relação à má oclusão, Tomita et al 18 (2000) elaboraram um modelo teórico que postula a influência de fatores socioeconômicos na má oclusão por meio de hábitos bucais, fatores psicológicos e padrões de doenças gerais. Modelos conceituais nos permitem esclarecer que fatores socioeconômicos e de acesso a serviço podem influenciar na exposição e desenvolvimento de agravos em saúde bucal. 1 , 20
Embora o desenho do SBBrasil seja forte, o estudo possui algumas limitações. Uma fraqueza dos estudos transversais é a dificuldade em estabelecer relações causais baseada em uma secção transversal no tempo, limitando a confiança no estabelecimento da direção da associação. O desenho do estudo e instrumento de avaliação utilizado para quantificar má oclusão não identificam há quanto tempo os indivíduos pesquisados têm estado em uma situação da doença. Essa informação pode ser útil para uma melhor compreensão do papel de variáveis individuais e influências contextuais em má oclusão como uma condição do indivíduo episódica ou cíclica. Assim, estudos longitudinais são necessários para permitir um melhor entendimento da associação entre má oclusão e variáveis individuais e contextuais. Outra limitação é a cárie dentária, que não foi usada no modelo por ser um fator de confusão do estudo, principalmente na questão que avalia se os adolescentes já foram ao dentista.
Embora existam dados disponíveis sobre prevalência e severidade das más oclusões, o cálculo de amostra foi baseado em parâmetros para a cárie, a qual se mantém como padrão de referência pelo fato de estar entre as doenças mais importantes da cavidade bucal. Além disso, é a única que tem dados disponíveis para todos os grupos etários, e sua prevalência e gravidade geram tamanhos de amostra que permitem inferências adequadas para os outros agravos. a
Apesar dos importantes avanços dos últimos anos na melhoria dos indicadores de saúde, o Brasil ainda está entre os países com maiores iniquidades em saúde, ou seja, as desigualdades de saúde entre grupos populacionais são sistemáticas e relevantes, mas também evitáveis, injustas e desnecessárias. Essas iniquidades em saúde são produto de grandes desigualdades entre os diversos estratos sociais e econômicos da população brasileira. 11 Os principais desafios para o futuro serão traduzir o conhecimento já existente e as experiências efetivas de prevenção e promoção da saúde em programas de ação estratégica, a fim de se alcançarem avanços sustentáveis em saúde bucal, reduzindo-se, assim, as iniquidades. 13
Baseado nas variáveis contextuais, sugere-se, portanto, que incentivos governamentais poderiam ser direcionados a cidades com pior estruturação do SUS e com maior vulnerabilidade, utilizando, por exemplo, a Portaria Ministerial nº 718/SAS de 20/12/2010, a qual discrimina financiamento para procedimentos especializados em Ortodontia. g
A identificação dos indicadores de risco para má oclusão deve considerar as variáveis individuais em conjunto com as variáveis contextuais, construindo um quadro epidemiológico mais claro e passível de ações de planejamento em saúde bucal.
Associações significativas entre a presença e severidade da má oclusão foram observadas em nível individual e contextual, sendo importantes parâmetros que podem auxiliar no planejamento das políticas públicas sob a referência dos princípios constitucionais de integralidade e equidade.