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Fisiologia da circulação fetal e diagnóstico das alterações funcionais do coração do feto

Fisiologia da Circulação Fetal e Diagnóstico das Alterações Funcionais do Coração do Feto

Sandra S. Mattos

Recife, PE

O feto cardiopata necessita de cuidados especiais. O útero materno, na maioria das vezes, é a sua melhor UTI. Neste, a temperatura ambiente é constante, nutrição parenteral é administrada com mínimos riscos, não há manuseio reduzindo a incidência de trauma e infecção, e, principalmente, no tocante ao aparelho cardiovascular, ele é mantido em circulação extracorpórea, utilizando o mais eficiente e seguro oxigenador de membranas: a placenta. A compreensão da fisiologia da circulação feto-materno-placentária é de fundamental importância na avaliação do comportamento das diversas alterações do sistema cardiovascular na vida intra-uterina.

Fisiologia da circulação fetal

A circulação fetal difere da extra-uterina anatômica e funcionalmente. Ela é estruturada para suprir as necessidades de um organismo em crescimento rápido num ambiente de hipóxia relativa. A única conexão entre o feto e o meio externo é a placenta, que o serve nas funções de "intestinos" (suprimento de nutrientes), "rins" (retirada dos produtos de degradação) e "pulmões" (trocas gasosas).

Os pulmões fetais estão cheios de líquido, oferecendo alta resistência ao fluxo sangüíneo. A placenta contém grandes seios venosos, funcionando como uma fístula arteriovenosa com baixa resistência ao fluxo sangüíneo sistêmico. Enquanto que na vida extra-uterina os ventrículos trabalham em série, com o débito cardíaco do ventrículo direito (VD) igualando aquele do esquerdo, no feto, através de quatro bypasses principais - o foramen oval, o canal arterial, a placenta e o ducto venoso, os ventrículos trabalham em paralelo. O sangue oxigenado proveniente da placenta chega ao feto através da veia umbilical. Esse sangue passa principalmente (45%) através do ducto venoso "bypassando" o fígado fetal 1. O sangue venoso portal se mistura com este e, conseqüentemente, o sangue da veia cava inferior é menos saturado do que o sangue da veia umbilical. Ainda assim, com aproximadamente 70% de saturação de O2, esse sangue é o mais oxigenado de todo o retorno venoso, tendo a veia cava superior uma saturação de aproximadamente 40% 2. O sangue da cava inferior representa aproximadamente 70% do volume total do retorno venoso. Este chega ao átrio direito (AD) e é parcialmente (33%) dirigido para o átrio esquerdo (AE) através do foramen oval. A energia cinética do fluxo sangüíneo da veia cava inferior é a principal responsável pela manutenção da perviabilidade do foramen oval no feto, já que as diferenças nas pressões médias da veia cava, AD e AE são mínimas 3. O restante do fluxo de retorno da cava inferior mistura-se ao retorno da veia cava superior e seio coronário e passa para o VD. O sangue que chega ao AE e daí ao ventrículo esquerdo e a aorta ascendente, artérias coronárias e cérebro é, conseqüentemente, o mais saturado com aproximadamente 65% em relação a uma saturação de 55% no VD, que será dirigido através do canal arterial para a parte inferior do corpo do feto 4. O istmo da aorta recebe apenas 10% do débito cardíaco total e, pelo seu estreitamento fisiológico, "separa" o fluxo entre a aorta ascendente e a descendente 2. O baixo fluxo pulmonar fetal é mantido às custas da elevada resistência vascular pulmonar. Vários fatores estimulam esta vasoconstricção como acidose, catecolaminas alfa-adrenérgicas e estimulação nervosa simpática, porém não há dúvidas que a hipóxia é o principal fator determinante da vasoconstricção pulmonar fetal. Devido à alta resistência ao fluxo sangüíneo pulmonar, apenas uma pequena quantia (aproximadamente 7% do débito cardíaco combinado) de sangue circula pelos pulmões, o restante é dirigido, através do canal arterial para a aorta descendente. Embora o VD (60%) apresente um débito cardíaco superior ao do VE (40%) na vida intra-uterina, há evidências anatômicas e ecocardiográficas de que o desenvolvimento destas cavidades são semelhantes durante toda a gestação 5.

A figura 1, adaptada de estudos realizados em fetos de carneiro por Rudolph e col 6, e Heyman e col 7, mostra esquematicamente a distribuição do volume sangüíneo, os níveis pressóricos e de saturação de oxigênio fetais. Na tabela I, adaptada também de estudos em fetos de carneiros 8 estão sumarizados freqüência cardíaca, pressão arterial, gasometria, pH, conteúdo de oxigênio, e, ainda, a distribuição sangüínea para os órgãos, débito cardíaco, liberação de O2 e resistência vascular fetais.


Diagnóstico das alterações funcionais do coração do feto

Com o conhecimento da fisiologia da circulação fetal, podemos facilmente entender os diferentes comportamentos das alterações do sistema cardiovascular fetal que nos levam a subdividir as cardiopatias fetais em ativas e passivas. Incluem-se sob o grupo de cardiopatias passivas, todas as malformações do sistema cardiovascular fetal que não provocam repercussão hemodinâmica intra-útero, notadamente as cardiopatias estruturais, sem regurgitação valvar. Muitas cardiopatias graves, canal-dependentes, também se incluem neste grupo, por só manifestarem alterações clínicas no período neonatal, após o fechamento do canal arterial. O outro grupo, ao qual chamamos de cardiopatias ativas, inclui todas as alterações do sistema cardiovascular fetal que provocam repercussão hemodinâmica ainda na vida intra-uterina. Neste, incluímos, as arritmias cardíacas, as cardiopatias estruturais com regurgitação valvar importante que podem evoluir para insuficiência cardíaca fetal, miocardiopatias e miocardites, e as alterações funcionais do coração fetal como resposta a condições adversas. Neste último grupo, destacamos a hidropisia não imune, o crescimento intra-uterino retardado, o diabetes mellitus e a hipertensão arterial materna, a anemia fetal e o uso de drogas.

O principal fator de descompensação cardiovascular fetal, comum a todas as situações acima é a hipóxia. Nesta situação, independente de seu mecanismo etiológico há uma redistribuição do fluxo sangüíneo fetal, que pode ser resumida como: 1) um aumento do fluxo cerebral e adrenal; 2) uma diminuição do fluxo sistêmico conseqüente a aumento da resistência vascular sistêmica (pós-carga); e 3) um aumento na proporção do sangue venoso umbilical que entra o ducto venoso, com aumento do fluxo para o lado esquerdo do coração.

Sob o ponto de vista funcional, as principais respostas do sistema cardiovascular fetal a situações adversas são a dilatação, o aparecimento de efusão pericárdica 9 e a perda da função contrátil. Cardiomegalia com ou sem derrame pericárdico é um importante sinal de disfunção cardíaca fetal 10. A presença e severidade de efusão pericárdica é um dado importante de disfunção cardíaca fetal que também pode ser avaliado com a ecocardiografia bidimensional.

Do ponto de vista hemodinâmico, alterações da pré-carga ou intrínsecas do miocárdio ventricular como àquelas observadas em fetos de mães diabéticas podem alterar a evolução normal do enchimento ventricular, prolongando o período de dominância da contração atrial até após o nascimento 11. Estes achados podem ser mais evidentes no lado direito do coração por ser o volume de fluxo transvalvar tricuspídeo maior que o mitral durante toda a gestação 12.

A utilização criteriosa da ecocardiografia na avaliação do fluxo intra e extracardíaco fetal pode detectar precocemente estas alterações. Esta abordagem precoce vem assumindo um importante papel no manuseio de gestações patológicas como as acima citadas e reitera a importância do trabalho multidisciplinar entre obstetras, fetologistas e cardiologistas fetais no rastreamento e manuseio das alterações do sistema cardiovascular fetal.

Unidade de Cardiologia e Medicina Fetal do Hospital Português - Recife

Correspondência: Sandra S. Mattos - Av. Agamenon Magalhães S/N - 50090-900 - Recife, PE

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  • 2. Rudolph AM, Heymann MA - The circulation of the fetus in utero. Methods for studying blood flow, cardiac output and organ blood flow. Circ Res 1967; 26: 289.
  • 3. Anderson D, Faber J, Morton M, Parks C, Pinson C, Thornburg K - Flow through the foramen ovale in the fetal newborn lamb. J Physiology 1985; 365:19.
  • 4. Elderstone DI, Rudolph AM. Preferential streaming of the ductus venosus blood to the brain and heart in fetal lambs. Am J Obstet Gynecol 1979; 237: H724.
  • 5. St John Sutton MG, Raichlen JS, Reichek N, Huff DS - Quantitative assessment of right and left ventricular growth in the human fetal heart: a pathoanatomic study. Circulation 1984; 70: 935.
  • 6. Rudolph AM, Heymann MA - Control of Fetal Circulation. In: Comline RS, Dawes GS, Nathaniels PW, eds - Fetal and Neonatal Physiology. London: Cambridge University Press, 1983.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2001
  • Data do Fascículo
    Set 1997
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