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Disfunção ventricular esquerda transitória por cardiomiopatia induzida por estresse

Resumos

Apresenta-se o caso de uma paciente de 71 anos que preencheu os critérios diagnósticos para cardiomiopatia induzida por estresse que foi desencadeada por intenso estresse emocional após atropelamento por bicicleta. O quadro clínico mimetizou o infarto agudo do miocárdio, manifestando-se com dor precordial, supradesnivelamento do segmento ST, seguido por ondas T profundas e prolongamento do intervalo QT, elevação discreta de enzimas cardíacas e cursando com disfunção sistólica apical do ventrículo esquerdo e hipercinesia das porções basais (conferindo o aspecto de "abaloamento apical"), mas na ausência de obstrução coronariana subepicárdica. A função ventricular normalizou-se após a segunda semana de evolução.

Cardiomiopatias; disfunção ventricular esquerda; miocárdio atordoado


The case presented here is of a 71-yr-old female patient who met the diagnostic criteria for stress-induced cardiomyopathy, which was triggered by intense emotional stress after being hit by a bicycle. The clinical picture mimicked that of an acute myocardial infarction, manifesting as precordial pain, ST-segment depression followed by deep negative T waves and prolonging of the QT interval, slight increase in cardiac enzymes and coursing with transient apical ballooning of the left ventricle and hyperkinesis of the basal walls (conferring the aspect of "apical ballooning"), although in the absence of subepicardial coronary obstruction. Ventricular function normalized after the second week of clinical evolution.

Cardiomyopathies; ventricular disfunction, left; myocardial stunning


RELATO DE CASO

Disfunção ventricular esquerda transitória por cardiomiopatia induzida por estresse

Marcus Vinicius Simões; José Antonio Marin-Neto; Minna Moreira Dias Romano; João Lucas O’Connell; Giovani Luis de Santi; Benedito Carlos Maciel

Divisão de Cardiologia – Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP – Ribeirão Preto, SP – Brasil

Correspondência Correspondência: Marcus Vinicius Simões Rua Marechal Deodoro, 1085/101 14010-190 – Ribeirão Preto, SP – Brasil E-mail: simoesmv@yahoo.com

RESUMO

Apresenta-se o caso de uma paciente de 71 anos que preencheu os critérios diagnósticos para cardiomiopatia induzida por estresse que foi desencadeada por intenso estresse emocional após atropelamento por bicicleta. O quadro clínico mimetizou o infarto agudo do miocárdio, manifestando-se com dor precordial, supradesnivelamento do segmento ST, seguido por ondas T profundas e prolongamento do intervalo QT, elevação discreta de enzimas cardíacas e cursando com disfunção sistólica apical do ventrículo esquerdo e hipercinesia das porções basais (conferindo o aspecto de "abaloamento apical"), mas na ausência de obstrução coronariana subepicárdica. A função ventricular normalizou-se após a segunda semana de evolução.

Palavras-chave: Cardiomiopatias, disfunção ventricular esquerda, miocárdio atordoado.

Introdução

Nova síndrome cardiológica denominada cardiomiopatia induzida por estresse foi recentemente caracterizada a partir de casos descritos inicialmente em pacientes japoneses1 e de relatos posteriores de sua ocorrência em vários países do Ocidente2,3. Também chamada de síndrome do coração partido (broken heart syndrome) e abaloamento apical transitório do ventrículo esquerdo, caracteriza-se por quadro clínico que mimetiza o infarto agudo do miocárdio, manifestando-se com dor precordial, supradesnivelamento do segmento ST e elevação de marcadores biológicos de necrose miocárdica e cursando com disfunção apical transitória do ventrículo esquerdo, mas na ausência de obstrução coronariana subepicárdica significativa. Caracteristicamente, o quadro clínico é precedido por estresse emocional e/ou físico intensos4,5.

Os autores relatam o caso de paciente de 71 anos em que a disfunção ventricular aguda transitória foi desencadeada após intenso estresse emocional, preenchendo os critérios atuais para diagnóstico dessa síndrome.

Relato do Caso

Paciente do sexo feminino, 71 anos de idade, branca, apresentou quadro súbito de dor na face anterior do tórax com irradiação para membro superior esquerdo, em queimação, de forte intensidade, associada a sudorese, vômitos e dispnéia. O quadro teve início após forte estresse físico e emocional, quando foi atropelada por bicicleta, sem que, contudo, houvesse evidências de trauma torácico. O sintoma persistiu por seis horas, quando foi trazida para atendimento especializado cardiológico. Nos antecedentes, a paciente apresentava apenas hipertensão arterial sistêmica há 30 anos. Negou passado mórbido de diabete, dislipidemia, etilismo ou tabagismo.

Ao exame físico apresentava-se ativa, taquidispnéica, mucosas coradas e hidratadas, afebril, acianótica, anictérica, sem turgência venosa jugular. Estertores de finas bolhas teleinspiratórios em terço inferior de ambos os campos pulmonares. Ausência de sinais de cardiomegalia, ritmo cardíaco regular com bulhas normofonéticas e presença de terceira bulha. Pressão arterial de 130/70 mmHg, freqüência cardíaca de 112 bpm, pulsos amplos e simétricos, e extremidades aquecidas com boa perfusão periférica.

O eletrocardiograma (ECG) inicial (fig. 1) apresentava ritmo sinusal taquicárdico, QRS alargado por distúrbio de condução no ramo esquerdo e alterações secundárias da repolarização ventricular com supradesnivelamento do segmento ST na parede ântero-septal. Dentro das primeiras horas de evolução, o ECG exibiu reversão do bloqueio de ramo esquerdo e aparecimento de ondas T negativas profundas e prolongamento do intervalo QT (640 ms) (fig. 1).


Exame radiológico do tórax demonstrou índice cardiotorácico normal e sinais de congestão venocapilar pulmonar com trama vascular pulmonar redistribuída (fig. 2). Exames bioquímicos demonstraram dosagens de CK-MB sem aumento significativo (valor máximo de 31 UI/l em três dosagens consecutivas) e elevação discreta de troponina (1,06 ng/ml).


A hipótese diagnóstica inicial foi de síndrome coronariana aguda associada a disfunção ventricular esquerda. Instituiu-se tratamento por via endovenosa com heparina não-fracionada, ácido acetilsalicílico (AAS), clopidogrel, nitroglicerina e furosemida.

No quarto dia de evolução, estudo ecocardiográfico transtorácico demonstrou dilatação do átrio esquerdo (47 mm), ventrículo esquerdo com diâmetro diastólico preservado em limite superior da normalidade (55 mm), desempenho sistólico global deprimido em grau leve (fração de ejeção de 42%) e múltiplos defeitos de mobilidade parietal segmentar envolvendo as porções média e apical do ventrículo esquerdo (fig. 3).


O cateterismo cardíaco demonstrou circulação arterial coronariana isenta de lesões obstrutivas significativas e cineventriculografia com acinesia ântero-lateral, inferior, septal e hipocinesia moderada ínfero-apical (fig. 4). Os distúrbios segmentares de mobilidade estendiam-se além do território de irrigação de um único vaso coronariano e conferiam o aspecto muito peculiar de abaloamento apical do ventrículo esquerdo no quadro telessistólico da ventriculografia (fig. 4).


O tratamento clínico foi modificado com inclusão de bloqueador beta-adrenérgico (metoprolol, via oral) e bloqueador do receptor da angiotensina (losartana, via oral), mantendo-se furosemida e AAS, via oral.

A paciente evoluiu apresentando rápida melhora do quadro clínico. Estudo radiológico do tórax (fig. 2) e ecocardiografia (fig. 3) realizados duas semanas após instalação do quadro demonstraram reversão completa da disfunção ventricular esquerda.

Discussão

Ainda que sua real prevalência não tenha sido definida, levantamentos retrospectivos sugerem que a cardiomiopatia induzida por estresse não seja condição muito rara, atingindo cerca de 2% dos casos atendidos com suspeita de síndrome coronariana aguda, sendo mais comum em mulheres pós-menopausa em idade avançada4,5.

Além da apresentação clínica simulando o quadro de infarto agudo do miocárdio com disfunção ventricular, podendo cursar com sinais de congestão, como no caso aqui relatado, o supradesnivelamento acentuado do segmento ST é a alteração mais comum ao ECG inicial. Outras alterações, como ondas T profundas negativas e prolongamento do intervalo QT, também são freqüentemente relatadas.

Nas manifestações mais comumente descritas da cardiomiopatia induzida por estresse, a função dos segmentos distais e apicais do ventrículo esquerdo é deprimida e há hipercinesia compensatória das paredes basais, produzindo o aspecto característico de abaloamento do ápice cardíaco durante a sístole. Aspecto marcante que pode precocemente sugerir seu diagnóstico é a detecção de disfunção segmentar parietal ventricular esquerda, que se estende além do território de irrigação de um único vaso coronariano.

Um dos aspectos mais curiosos dessa síndrome é seu desencadeamento após situações de intenso estresse emocional (morte de familiares, desastres naturais, catástrofes financeiras). Postula-se que o mecanismo fisiopatológico responsável pela síndrome seja descarga adrenérgica exacerbada, induzindo espasmo coronariano multiarterial (possivelmente em nível de microcirculação, mas não se podendo afastar a ocorrência em vasos subepicárdicos), causando stunning miocárdico6. Nesse sentido, há muita semelhança entre a cardiomiopatia induzida por estresse e outras situações de excesso de catecolaminas, como as associadas a lesões cerebrais, feocromocitoma, escorpionismo e infusão acidental de fármacos simpatomiméticos, situações clínicas em que disfunção ventricular esquerda transitória também ocorre7,8.

Por mimetizá-las em vários aspectos, e apesar de sua relativamente baixa freqüência, a cardiomiopatia induzida por estresse deve ser considerada como diagnóstico diferencial para pacientes com suspeita de síndrome coronariana aguda, principalmente quando se apresentam emocionalmente instáveis, e quando a extensão das anormalidades isquêmicas no ECG ou a gravidade da disfunção ventricular esquerda excederem as evidências de necrose miocárdica avaliada pela elevação dos níveis enzimáticos; de forma similar, esse diagnóstico deve ser considerado quando a angiografia coronariana confirmar ausência de lesões obstrutivas. Seu pronto reconhecimento e o tratamento intensivo com agentes farmacológicos ou suporte circulatório mecânico estão indicados, uma vez que a completa recuperação da função ventricular é esperada no intervalo de poucos dias, conferindo prognóstico favorável na quase totalidade dos casos3.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação desse estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 11/04/07; revisado recebido em 28/06/07; aceito em 28/06/07.

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  • Correspondência:

    Marcus Vinicius Simões
    Rua Marechal Deodoro, 1085/101
    14010-190 – Ribeirão Preto, SP – Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Out 2007

    Histórico

    • Revisado
      28 Jun 2007
    • Recebido
      11 Abr 2007
    • Aceito
      28 Jun 2007
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