Acessibilidade / Reportar erro

Diabetes subdiagnosticado e necrose miocárdica: preditores de hiperglicemia no infarto do miocárdio

Resumos

FUNDAMENTO: Hiperglicemia na fase aguda do infarto do miocárdio é importante fator prognóstico. Entretanto, sua fisiopatologia não está completamente elucidada. OBJETIVO: Analisar simultaneamente correlação entre hiperglicemia e marcadores bioquímicos relacionados ao estresse,metabolismo glicídico e lipídico, coagulação, inflamação e necrose miocárdica. MÉTODOS: Oitenta pacientes com infarto agudo do miocárdio foram incluídos prospectivamente. Os parâmetros analisados foram: glicose, hormônios do estresse (cortisol e norepinefrina), fatores do metabolismo glicídico [hemoglobina glicada (HbA1c), insulina], lipoproteínas (colesterol total, LDL, HDL, LDL eletronegativa minimamente modificada e adiponectina), glicerídeos (triglicérides, VLDL e ácido graxo), fatores da coagulação (fator VII, fibrinogênio,inibidor do ativador do plasminogênio-1), inflamação (proteína C reativa ultrassensível) e necrose miocárdica (CK-MB e troponina). Variáveis contínuas foram convertidas em graus de pertinência por intermédio de lógica fuzzy. RESULTADOS: Houve correlação significativa entre hiperglicemia e metabolismo glicídico (p < 0,001), lipoproteínas (p = 0,03) e fatores de necrose (p = 0,03). Na análise multivariada, somente metabolismo glicídico (OR = 4,3; IC = 2,1-68,9 e p < 0,001) e necrose miocárdica (OR = 22,5; IC = 2-253 e p = 0,012) mantiveram correlação independente e significativa.Para análise da influência da história de diabetes mellitus , modelo de regressão, incluindo somente pacientes sem diabetes mellitus foi desenvolvido, e os resultados não alteraram. Finalmente, no modelo ajustado para idade, sexo e variáveis clínicas(história de diabetes mellitus, hipertensão arterial e dislipidemia), três variáveis mantiveram associação significativa e independente com hiperglicemia: metabolismo glicídico (OR = 24,1; IC = 4,8-122,1 e p < 0,001) necrose miocárdica (OR = 21,9; IC = 1,3-360,9 e p = 0,03) e história de DM (OR = 27, IC = 3,7-195,7 e p = 0,001). CONCLUSÃO: Marcadores do metabolismo glicídico e necrose miocárdica foram os melhores preditores de hiperglicemia em pacientes com infarto agudo do miocárdio.

Infarto do Miocárdio; Diabetes Mellitus; Hiperglicemia; Hemoglobina A Glicosilada


BACKGROUND: Hyperglycemia in the acute phase of myocardial infarction is an important prognostic factor. However, its pathophysiology is not fully understood. OBJECTIVE: To analyze simultaneously the correlation between hyperglycemia and biochemical markers related to stress, glucose and lipid metabolism, coagulation, inflammation, and myocardial necrosis. METHODS Eighty patients with acute myocardial infarction were prospectively included. The following parameters were analyzed: blood glucose; stress hormones (cortisol and norepinephrine); glucose metabolism factors [glycated hemoglobin (HbA1c); insulin]; lipoproteins (total cholesterol, LDL, HDL, minimally modified electronegative LDL, and adiponectin); glycerides (triglycerides, VLDL and fatty acids); coagulation factors (factor VII, fibrinogen, plasminogen activator inhibitor-1); inflammation (high-sensitivity C reactive protein); and myocardial necrosis (CK-MB and troponin). Continuous variables were converted into degrees of relevance using fuzzy logic. RESULTS: Significant correlation was observed between hyperglycemia and glucose metabolism (p < 0.001), lipoproteins (p = 0.03), and necrosis factors (p = 0.03). In the multivariate analysis, only glucose metabolism (OR = 4.3; CI = 2.1-68.9; and p < 0.001) and myocardial necrosis (OR = 22.5; CI = 2-253; and p = 0.012) showed independent and significant correlation. For the analysis of the influence of history of diabetes mellitus, a regression model including only patients without diabetes mellitus was developed, and the results did not change. Finally, in the model adjusted for age, gender, and clinical variables (history of diabetes mellitus, hypertension and dyslipidemia), three variables maintained a significant and independent association with hyperglycemia: glucose metabolism (OR = 24.1; CI = 4.8-122.1; and p < 0.001), myocardial necrosis (OR = 21.9; CI = 1.3-360.9; and p = 0.03), and history of DM (OR = 27; CI = 3.7-195.7; and p = 0.001). CONCLUSION: Glucose metabolism and myocardial necrosis markers were the best predictors of hyperglycemia in patients with acute myocardial infarction.

Myocardial Infarction; Diabetes Mellitus; Hyperglicemia; Hemoglobin A, Glycosylated


Diabetes subdiagnosticado e necrose miocárdica: preditores de hiperglicemia no infarto do miocárdio

Renata Teixeira Ladeira; Luciano Moreira Baracioli; Tanize Espírito Santo Faulin; Dulcinéia Saes Parra Abdalla; Talita Matttos Seydell; Raul Cavalcante Maranhão; Berenice Bilharinho Mendonça; Célia Cassaro Strunz; Isac de Castro; José Carlos Nicolau

Instituto do Coração (InCor) - Hospital da Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade Federal de São Paulo; Divisão de Endocrinologia e Metabolismo do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Renata Teixeira Ladeira Av. Sargento Geraldo Santana, 94/181, Jardim Taquaral CEP 04674-225, São Paulo, SP - Brasil E-mail: rtlad@cardiol.br, rtlad@terra.com.br

RESUMO

FUNDAMENTO: Hiperglicemia na fase aguda do infarto do miocárdio é importante fator prognóstico. Entretanto, sua fisiopatologia não está completamente elucidada.

OBJETIVO: Analisar simultaneamente correlação entre hiperglicemia e marcadores bioquímicos relacionados ao estresse,metabolismo glicídico e lipídico, coagulação, inflamação e necrose miocárdica.

MÉTODOS: Oitenta pacientes com infarto agudo do miocárdio foram incluídos prospectivamente. Os parâmetros analisados foram: glicose, hormônios do estresse (cortisol e norepinefrina), fatores do metabolismo glicídico [hemoglobina glicada (HbA1c), insulina], lipoproteínas (colesterol total, LDL, HDL, LDL eletronegativa minimamente modificada e adiponectina), glicerídeos (triglicérides, VLDL e ácido graxo), fatores da coagulação (fator VII, fibrinogênio,inibidor do ativador do plasminogênio-1), inflamação (proteína C reativa ultrassensível) e necrose miocárdica (CK-MB e troponina). Variáveis contínuas foram convertidas em graus de pertinência por intermédio de lógica fuzzy.

RESULTADOS: Houve correlação significativa entre hiperglicemia e metabolismo glicídico (p < 0,001), lipoproteínas (p = 0,03) e fatores de necrose (p = 0,03). Na análise multivariada, somente metabolismo glicídico (OR = 4,3; IC = 2,1-68,9 e p < 0,001) e necrose miocárdica (OR = 22,5; IC = 2-253 e p = 0,012) mantiveram correlação independente e significativa.Para análise da influência da história de diabetes mellitus , modelo de regressão, incluindo somente pacientes sem diabetes mellitus foi desenvolvido, e os resultados não alteraram. Finalmente, no modelo ajustado para idade, sexo e variáveis clínicas(história de diabetes mellitus, hipertensão arterial e dislipidemia), três variáveis mantiveram associação significativa e independente com hiperglicemia: metabolismo glicídico (OR = 24,1; IC = 4,8-122,1 e p < 0,001) necrose miocárdica (OR = 21,9; IC = 1,3-360,9 e p = 0,03) e história de DM (OR = 27, IC = 3,7-195,7 e p = 0,001).

CONCLUSÃO: Marcadores do metabolismo glicídico e necrose miocárdica foram os melhores preditores de hiperglicemia em pacientes com infarto agudo do miocárdio.

Palavras-chave: Infarto do Miocárdio, Diabetes Mellitus, Hiperglicemia, Hemoglobina A Glicosilada.

Introdução

O primeiro estudo que avaliou a prevalência de glicosúria em pacientes com infarto agudo do miocárdio (IAM), sem diabetes mellitus (DM) foi publicado em 19311. Desde então, muitos outros têm demostrado a importância da hiperglicemia (HG) nos pacientes com IAM a curto2-6 e longo prazo7-9. Além disso, os níveis glicêmicos são preditores do remodelamento ventricular após IAM10.

Entretanto, não há consenso na literatura médica sobre a definição de hiperglicemia durante as síndromes coronarianas agudas, e publicações recentes sugerem que múltiplas dosagens durante a hospitalização podem acrescentar informações prognósticas para essa população11. Outra controvérsia é sobre o tratamento intensivo da HG, em que algumas publicações demonstram benefício12,13enquanto outras não14-16.

Finalmente, pouco é descrito sobre os mecanismos envolvidos no aumento da mortalidade relacionada à HG durante o IAM, com a maioria dos estudos correlacionando a HG com somente uma das diversas variáveis que podem explicar a elevação dos níveis glicêmicos. Assim, o objetivo principal deste estudo é analisar simultaneamente, na mesma população, a glicemia com marcadores bioquímicos relacionados ao sistema hormonal de estresse, metabolismo glicídico e lipídico, coagulação, inflamação e à necrose miocárdica. Parte deste estudo foi publicada como resumo em congresso17.

Métodos

Pacientes

Foram incluídos prospectivamente 80 pacientes com IAM (idade média de 60,5 anos; 81% sexo masculino), admitidos na unidade coronariana de um hospital terciário.

Critérios de inclusão: pacientes com IAM com ou sem supradesnivelamento do segmento ST com intervalo entre o início da dor e inclusão no estudo de 24-48h.

Critérios de exclusão: pacientes com idade < 21, ou > 80 anos, uso prévio de corticoide, doença inflamatória conhecida, insuficiência renal crônica (clearence de creatinina < 60 mL/min), doença neurológica grave, hipo ou hipertireoidismo, instabilidade hemodinâmica (Forester modificado > IIa)18, doença hematológica conhecida, uso prévio de anticoagulante, uso de fibrinolítico durante o evento em estudo, ou comorbidade com expectativa de vida < 6 meses.

Avaliações laboratoriais

As amostras de sangue foram colhidas em jejum, 24-48h do início da dor e os seguintes parâmetros (e valores de referência) foram avaliados: glicose (70-100 mg/dL), cortisol (7,3-24,7 ;µg ;/ ;dL), norepinefrina (40-268 pg ;/ ;mL), HbA1c (< ;6,1%), insulina (2,3-26,4 µU/ml), ácido graxo não esterificado (NEFA) (0,1-0,6 mEq/L), fator VII da coagulação (50-150%) e proteína C reativa ultrassensível (PCRus) (< ;5mg/L). Adicionalmente, dosagens lipídicas e de marcadores de necrose miocárdica foram determinadas de acordo com a rotina dos pacientes com IAM e os valores de referência são: colesterol total (< 200 mg/dL), lipoproteína de baixa densidade (LDL) (< 100 mg/dL), lipoproteína de alta densidade (HDL) (> 40 mg/dL para homens e > 50 mg ;/ ;dL para mulheres), lipoproteína de muito baixa densidade (VLDL) (sem referência), triglicérides (< 150 mg/dL), fração MB da creatinofosfoquinase (CK-MB) (< 4 ng/mL) e troponina I (< ;0,1 ng/mL).

LDL minimamente modificada eletronegativa [LDL (-)], anticorpo anti-LDL(-), adiponectina, inibidor do ativador do plasminogêncio (PAI-1) e fibrinogênio não possuem valor de referência, e as dosagens foram comparadas entre grupos com e sem hiperglicemia.

Glicose, colesterol total, HDL, LDL e triglicérides foram determinados por meio de método enzimático no analisador Cobas Integra 700 (Roche, Alemanha). PCRus foi medida por ensaio imunoturbimétrico (Roche). A dosagem da HbA1c foi feita no analisador Hitachi 902 (Roche). VLDL foi calculado. Cortisol e insulina foram analisados com kits AutoDELFIA (PerkinElmer, Finlândia). Norepinefrina foi medida com cromatografia líquida de alta performance. LDL (-) e anticorpos contra LDL (-) foram determinados com ELISA19. Para dosagem do NEFA foi usado kit HR Series NEFA C (Wako, Japão). Fator VII da coagulação foi dosado com kit AMAX (Trinity, Estados Unidos). O kit LINCOplex Human Disease Panel I foi usado para dosagem simultânea da adiponectina e PAI-1 e SINGLEplex human cardiovascular disease (LINCO, Estados Unidos) foram usados para medir o fibrinogênio.

Definições

DM: DM conhecido, sob tratamento com dieta, hipoglicemiante oral, ou insulina.

IAM: típico aumento com queda gradual (troponina), ou aumento com redução mais rápida (CK-MB) de marcadores de necrose miocárdica com no mínimo um dos seguintes itens: sintomas de isquemia, desenvolvimento de onda Q patológica no eletrocardiograma, alterações sugestivas de presença de isquemia no eletrocardiograma (supra ou infradesnivelamento do segmento ST), ou intervenção em artéria coronária20

Hiperglicemia: glicemia > 108 mg/dL (glicemia mediana em nossa amostra). Inclusive já foi demonstrado que glicemia > 110 mg/dL está associada a maior mortalidade em pacientes em terapia intensiva21.

Análises estatísticas

Variáveis contínuas são apresentadas como médias (± DP) ou medianas (percentis 25-75%) e as categóricas como números (proporções).

Análise univariada: regressão não linear, qui-quadrado e teste de Kruskal Wallis foram usados quando indicados.

Análise multivariada: convertemos os valores originais das variáveis contínuas em graus de pertinência por meio da utilização dos princípios da lógica fuzzy. Assim, com a curva ROC, foram calculados os valores de sensibilidade e especificidade das variáveis para glicemia > 108 mg/dL. A seguir foram selecionados valores de coorte das variáveis segundo a maior soma e maior produto da sensibilidade e especificidade. Os graus de pertinência para soma e produto foram derivados do quociente do valor da variável por estes valores de corte.

Assim podem-se associar as variáveis nos seus grupos originais com sete domínios:

1 - Sistema hormonal de estresse: cortisol e norepinefrina.

2 - Metabolismo glicídico: HbA1c e insulina.

3 - Lipoproteínas: colesterol total, LDL, HDL, LDL (-), anticorpo anti LDL (-), adiponectina.

4 - Glicerídeos: triglicérides, VLDL (uma vez que triglicérides é seu maior componente) e NEFA.

5 - Coagulação: fator VII coagulação, PAI-1 e fibrinogênio.

6 - Inflamação: PCRus.

7 - Necrose miocárdica: CK-MB e troponina.

Foram criadas médias ponderais com base dos valores fuzzy para soma e produto da sensibilidade e especificidade. Então, novamente utilizando curva ROC, selecionou-se o valor de corte para os sete grupos de variáveis, categorizando-se os mesmos.

Análises univariadas foram feitas por meio de qui-quadrado e multivariada por regressão logística binominal.

Diferenças foram consideradas estatisticamente significativas com p < 0,05. Dados foram analisados usando programa estatístico SPSS, versão 19.0 para Windows.

Considerações éticas

O protocolo do estudo foi aprovado pelo Comitê de ética desta instituição, em consoante à Declaração de Helsinki e o termo de consentimento livre e esclarecido foi obtido de cada participante.

RESULTADOS

Características dos pacientes

Características basais da população, medicações e terapia invasiva utilizada durante a hospitalização estão especificadas na tabela 1. Há uma maioria de pacientes do sexo masculino, como é frequente no IAM, apesar de um crescente aumento de mulheres com síndrome coronariana aguda. Os fatores de risco têm uma incidência similiar à da literatura. Como nosso hospital é terciário, temos um número elevado de pacientes com IAM com supradesnivelamento do segmento ST. No protocolo institucional é preconizado usar como segundo antiagregante, associado ao ácido acetil salicílico, o inibidor de glicoproteína IIb/IIIa e clopidogrel é dado apenas no seguimento para aqueles que estiverem em tratamento clínico ou após angioplastia coronariana. Assim se somarmos o uso de clopigogrel e inibidor de glicoproteína IIb/IIIa teremos 96,3% dos pacientes com dois antiagregantes. Apenas 16,3% dos pacientes fizeram angioplastia primária uma vez que 30% dos IAM eram com supradesnivelamento do segmento ST e assim a grande maioria não tinha indicação.

Correlação entre glicemia e variáveis estudadas - análise univariada

Como demonstrado na Tabela 2, as variáveis que tiveram correlação estatisticamente significativa com glicemia na análise univariada foram: HbA1c, insulina, LDL, HDL, adiponectina, triglicérides, VLDL, NEFA, e fibrinogênio. A correlação positiva entre glicose e insulina sugere um aumento da resistência à insulina. De fato, HOMA-IR22 teve uma mediana de 2,4 (1,1-4,5).

A correlação entre hiperglicemia e os sete domínios: sistema hormonal de estresse, metabolismo glicídico, lipoproteínas, glicerídeos, coagulação, inflamação e necrose miocárdica são apresentados na Tabela 3. Houve uma correlação positiva e significante entre hiperglicemia e metabolismo glicídico e necrose miocárdica, e correlação negativa e significante com lipoproteínas.

Correlação entre glicemia e variáveis estudadas - análise multivariada

Na análise multivariada, incluindo os sete domínios de variáveis, somente metabolismo glicídico e necrose miocárdica mantiveram correlação significativa e independente com a hiperglicemia (Tabela 4).

Para analisar a influência da história do DM nos resultados, um segundo modelo ajustado, incluindo os sete domínios, porém somente paciente sem DM foi desenvolvido. Como mostrado na Tabela 5, os resultados mantiveram-se inalterados.

Finalmente um terceiro modelo foi desenvolvido, ajustado para idade, sexo e variáveis clínicas associadas à glicemia (história de DM, hipertensão arterial e dislipidemia). Neste modelo (Tabela 6), três variáveis correlacionaram-se significante e independentemente com hiperglicemia: metabolismo glicídico, necrose miocárdica e história de DM. Ou seja, durante a fase aguda do IAM, há um grupo de pacientes sem DM conhecido que já tem disfunção subdiagnosticada do metabolismo glicídico.

Analisando somente pacientes sem DM conhecido e levando em conta a classificação da HbA1c recentemente publicada pelo American Diabetes Association25,nos encontramos 3,6% de diabéticos (hba1c > 6,5%), 28,6% tinham intolerância à glicose (HbA1c > 5,7% e < 6,4%), e 67,8% foram normais (HbA1c < 5,6%). Houve uma diferença significativa entre níveis glicêmicos durante a fase aguda do IAM e as três classes de HbA1c (Figura 1).


Não houve correlação significativa entre glicemia e mortalidade ou eventos cardíacos adversos (isquemia refratária, reinfarto, choque cardiogênico e óbito), que foi uma análise secundária. Entretanto, o pequeno número de pacientes incluídos no estudo não permite qualquer conclusão sobre essa questão.

Discussão

O presente estudo tem dois principais achados. Primeiro, hiperglicemia durante a fase aguda do IAM, independentemente da história prévia de DM, está associada a variáveis relacionadas ao metabolismo glicídico (HbA1c e insulina), sugerindo que a hiperglicemia, inicialmente considerada de estresse, pode ser em virtude da intolerância à glicose ou DM que não foram diagnosticadas até o IAM. O segundo achado importante foi que os níveis glicêmicos estão correlacionados significativamente com a extensão do IAM, representado pelos marcadores de necrose miocárdica (CK-MB e troponina).

Hiperglicemia e intolerância à glicose/DM subdiagnosticados

O fato de ter sido encontrada correlação da glicemia com HbA1c inicialmente parece evidente. Porém, a HbA1c representa a glicemia média dos dois últimos meses e é minimamente afetada pela hiperglicemia aguda24. Se a hiperglicemia na fase inicial do IAM fosse por uma reação de estresse agudo apenas, não teria qualquer correlação com glicose e HbA1c nos pacientes não diabéticos. Assim, uma das etiologias prováveis da hiperglicemia no IAM é a disglicemia, sem diagnóstico prévio.

Analisando pacientes com IAM e sem diagnóstico prévio de DM, Tenerz e cols.25 reportaram que testes de rotina, como teste oral de tolerância à glicose, ou uma glicemia isolada após 60 min da ingestão de 75 g de glicose, no momento da alta hospitalar, pode predizer o diagnóstico de intolerância à glicose em 3 meses. Esse estudo corrobora nosso achado que a hiperglicemia durante o IAM pode estar associada com distúrbio crônico do metabolismo glicídico.

Desde os anos 1980, o papel da HbA1c como marcador prognóstico no IAM tem sido estudado26-30. No estudo OPTIMAAL a HbA1c foi dosada em 2.841 pacientes com IAM e insuficiência cardíaca. Dentre esses pacientes, 495 ;(17%) reportaram uma história de DM. Dos pacientes sem história de DM, aumento dos níveis de HbA1c correlacionou-se com mortalidade: 13% para pacientes com HbA1c < 4,95; 17% para pacientes com HbA1c entre 4,9 e 5,1% e 22% para pacientes com HbA1c ;> ;5,1% (p ;= ;0,02)31. Outro estudo, que também avaliou uma população com IAM e sem história de DM, confirmou DM em 27% dos pacientes, intolerância à glicose em 39% e metabolismo normal da glicose em 34%32. Não havia nenhuma padronização para diagnóstico de HbA1c até 2010 e cada autor usava diferentes valores de coorte. No presente trabalho, aplicamos o critério do American Diabetes Association23 e encontramos 32,2% de pacientes com metabolismo da glicose alterado.

Hiperglicemia e resistência à insulina

Insulina, outro componente do metabolismo glicídico, correlacionou significantemente com níveis de glicose, sugerindo aumento da resistência à insulina, o que ficou demonstrado pela elevação do HOMA-IR. Esse achado é similar aos de Choi e cols.33, que demonstraram uma correlação significativa entre tolerância à glicose e DM com resistência à insulina em pacientes com IAM. Todavia, esse aumento da resistência à insulina poder ser crônico ou relacionado à doença aguda.

Numa avaliação da resistência à insulina e síndrome metabólica em pacientes com IAM, sem DM conhecido foram dosadas glicemia, insulina (no 2º, 5º dias e três meses após IAM), HbA1c e TOTG (cinco dias e três meses após IAM)25. Observou-se aumento significativo da HOMA-IR no 2º em relação ao 5º dia (p < 0,001), entretanto não houve alteração entre o 5º dia e três meses. Houve uma correlação entre a resistência à insulina elevada e pacientes diabéticos (86%), aqueles com intolerância à glicose (65%) e normoglicêmicos (52%) de acordo com o TOTG em três meses (p0.004 ). Esse estudo sugere que os pacientes que não sabiam ter DM ou intolerância à glicose tinham resistência à insulina mais elevada que os normoglicêmicos. Porém, nos primeiros dois dias ocorreu um incremento no HOMA-IR que pode ser pela fase aguda, associada a hormônios de estresse. Ou seja, os dois mecanismos não são excludentes.

Hiperglicemia e necrose miocárdica

A extensão do IAM, representada pelos marcadores de necrose miocárdica, foi um fator relacionado significante e independentemente com a hiperglicemia neste estudo. Essa relação já tinha sido descrita por outros autores34-36. Foi encontrada uma associação entre elevados níveis de glicose e diferentes variáveis associadas com tamanho do IAM, incluindo uma classe elevada de Killip, uma baixa fração de ejeção e elevação dos níveis de CPK, CPK MB, troponina I, pró-BNP e ácido lático36. O uso de ressonância nuclear magnética para determinar o tamanho do IAM revelou uma correlação significativa entre glicemia da admissão e a extensão do IAM, independentemente de alterações prévias do metabolismo da glicose (HbA1c) ou marcadores de necrose37.

O mecanismo exato que explica o impacto da hiperglicemia na extensão do IAM não é completamente conhecido, mas uma correlação significativa entre hiperglicemia e alteração da microcirculação já foi previamente demonstrada38. Estudos clínicos em pacientes com IAM submetidos a terapêuticas de recanalização sugerem que a hiperglicemia se associa a disfunção da microcirculação, o chamado fenômeno de no-reflow39. Além disso, há associação clara entre hiperglicemia e insuficiência cardíaca e choque cardiogênico4,5, que poderia ser explicada por um maior tamanho do IAM.

Limitações do estudo

A maior limitação deste estudo é o fato que nem todas as variáveis que correlacionam significativamente com hiperglicemia em diferentes publicações poderiam ser analisadas em um único estudo, como o presente. Porém uma extensa revisão da literatura foi conduzida para minimizar esta limitação, e os autores procuraram incluir as variáveis com evidência mais robusta. Outra limitação foi a inclusão de diabéticos, a qual foi parcialmente corrigida por construção de modelo estatístico incluindo história de DM e outra análise já pré especificada apenas de pacientes não diabéticos.

Conclusão

Conclui-se que os marcadores de metabolismo glicídico e de necrose miocárdica foram os melhores preditores da hiperglicemia em pacientes com IAM, sugerindo um distúrbio prévio do metabolismo da glicose não diagnosticado. Assim estes achados reforçam a importância de valorizar a hiperglicemia durante a fase aguda do IAM como indicador de intolerância à glicose ou DM prévio.

Agradecimentos

Este estudo recebeu suporte financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e incluiu os resultados principais da tese de doutorado defendida na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo foi financiado pela FAPESP.

Vinculação Acadêmica

Este artigo é parte de tese de Doutorado de Renata Teixeira Ladeira pelo Instituto do Coração (InCor) - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Artigo recebido em 22/5/12;revisado em 22/5/12; aceito em 17/12/12.

  • 1.Cruiksank N. Coronary thrombosis and myocardial infarction, with glycosuria. Br Med J. 1931;1(3666):618-9.
  • 2.Tansey MJ, Opie LH. Plasma glucose on admission to hospital as a metabolic index of the severity of acute myocardial infarction. Can J Cardiol. 1986;2(6):326-31.
  • 3. O'Sullivan JJ, Conroy RM, Robinson K, Hickey N, Mulcahy R. In-hospital prognosis of patients with fasting hyperglycemia after first myocardial infarction. Diabetes Care. 1991;14(8):758-60.
  • 4. Capes SE, Hunt D, Malmberg K, Gerstein HC. Stress hyperglycaemia and increased risk of death after myocardial infarction in patients with and without diabetes: a systematic overview. Lancet. 2000;355(9206):773-8.
  • 5. Wahab NN, Cowden EA, Pearce NJ, Gardner MJ, Merry H, Cox JL. Is blood glucose an independent predictor of mortality in acute myocardial infarction in the thrombolytic era? J Am Coll Cardiol. 2002;40(10):1748-54.
  • 6. Suleiman M, Hammerman H, Boulos M, Kapeliovich MR, Suleiman A, Agmon T, et al. Fasting glucose is an important independent risk factor for 30-day mortality in patients with acute myocardial infarction: a prospective study. Circulation. 2005;111(6):754-60.
  • 7. Norhammar AM, Ryden L, Malmberg K. Admission plasma glucose. Independent risk factor for long-term prognosis after myocardial infarction even in nondiabetic patients. Diabetes Care. 1999;22(11):1827-31.
  • 8. Bolk J, van der Ploeg T, Cornel JH, Arnold AE, Sepers J, Umans VA. Impaired glucose metabolism predicts mortality after a myocardial infarction. Int J Cardiol. 2001;79(2-3):207-14.
  • 9. Pesaro AE, Nicolau JC, Serrano CV Jr, Truffa R, Gaz MV, Karbstein R, et al. Influence of leukocytes and glycemia on the prognosis of patients with acute myocardial infarction. Arq Bras Cardiol. 2009;92(2):84-8.
  • 10. Nicolau JC, Maia LN, Vitola JV, Mahaffey KW, Machado MN, Ramires JA. Baseline glucose and left ventricular remodeling after acute myocardial infarction. J Diabetes Complications. 2007;21(5):294-9.
  • 11. Kosiborod M, Inzucchi SE, Krumholz HM, Masoudi FA, Goyal A, Xiao L, et al. Glucose normalization and outcomes in patients with acute myocardial infarction. Arch Intern Med. 2009;169(5):438-46.
  • 12. Malmberg K. Prospective randomised study of intensive insulin treatment on long term survival after acute myocardial infarction in patients with diabetes mellitus. DIGAMI (Diabetes Mellitus, Insulin Glucose Infusion in Acute Myocardial Infarction) Study Group. BMJ. 1997;314(7093):1512-5.
  • 13. Weston C, Walker L, Birkhead J. Early impact of insulin treatment on mortality for hyperglycaemic patients without known diabetes who present with an acute coronary syndrome. Heart. 2007;93(12):1542-6.
  • 14. Malmberg K, Ryden L, Wedel H, Birkeland K, Bootsma A, Dickstein K, et al. Intense metabolic control by means of insulin in patients with diabetes mellitus and acute myocardial infarction (DIGAMI 2): effects on mortality and morbidity. Eur Heart J. 2005;26(7):650-61.
  • 15. Mehta SR, Yusuf S, Diaz R, Zhu J, Pais P, Xavier D, et al. Effect of glucose-insulin-potassium infusion on mortality in patients with acute ST-segment elevation myocardial infarction: the CREATEECLA randomized controlled trial. JAMA. 2005;293(4):437-46.
  • 16. Cheung NW, Wong VW, McLean M. The Hyperglycemia: Intensive Insulin Infusion in Infarction (HI-5) study: a randomized controlled trial of insulin infusion therapy for myocardial infarction. Diabetes Care. 2006;29(4):765-70.
  • 17. Ladeira, RT, Nicolau, JC, Baracioli LM, Pesaro AEP, Abdalla DSP, Faulin TE, et al. Hyperglycemia during acute myocardial infarction: is it an acute event? Eur Heart J. 2010;31(Abstract Supplement):345-6.
  • 18. Nicolau JC, Serrano CV Jr, Garzon SA, Ramires JA. Prognosis of acute myocardial infarction in the thrombolytic era: medical evaluation is still valuable. Eur J Heart Fail. 2001;3(5):569-76.
  • 19. Santo Faulin Tdo E, de Sena KC, Rodrigues Telles AE, de Mato Grosso D, Bernardi Faulin EJ, Parra Abdalla DS. Validation of a novel ELISA for measurement of electronegative LDL. Clin Chem Lab Med. 2008;46(12):1769-75.
  • 20. Alpert JS, Thygesen K, Antman E, Bassand JP. Myocardial infarction redefined-a consensus document of The Joint European Society of Cardiology/American College of Cardiology Committee for the redefinition of myocardial infarction. J Am Coll Cardiol. 2000;36(3):959-69.
  • 21. Van den Berghe G, Wouters P, Weekers F, Verwaest C, Bruyninckx F, Schetz M, et al. Intensive insulin therapy in critical ill patients. N Engl J Med. 2001;345(19):1359-67.
  • 22. Matthews DR, Hosker JP, Rudenski AS, Naylor BA, Treacher DF, Turner RC. Homeostasis model assessment: insulin resistance and beta-cell function from fasting plasma glucose and insulin concentrations in man. Diabetologia. 1985;28(7):412-9.
  • 23. American Diabetes Association. Diagnosis and classification of diabetes mellitus. Diabetes Care. 2010;33 Suppl 1:S62-9.
  • 24. Jeffcoate SL. Diabetes control and complications: the role of glycated haemoglobin, 25 years on. Diabet Med. 2004;21(7):657-65.
  • 25. Tenerz A, Norhammar A, Silveira A, Hamsten A, Nilsson G, Rydén L, et al. Diabetes, insulin resistance and the metabolic syndrome in patients with acute myocardial infarction without previously known diabetes. Diabetes Care. 2003;26(10):2770-6.
  • 26. Soler NG, Frank S. Value of glycosylated hemoglobin measurements after acute myocardial infarction. JAMA. 1981;246(15):1690-3.
  • 27. Husband DJ, Alberti KG, Julian DG. "Stress" hyperglycaemia during acute myocardial infarction: an indicator of pre-existing diabetes? Lancet. 1983;2(8343):179-81.
  • 28. Yudkin JS, Oswald GA, McKeigue PM, Forrest RD, Jackson CA. The relationship of hospital admission and fatality from myocardial infarction to glycohaemoglobin levels. Diabetologia. 1988;31(4):201-5.
  • 29. Norhammar A, Tenerz A, Nilsson G, Hamsten A, Efendic S, Ryden L, et al. Glucose metabolism in patients with acute myocardial infarction and no previous diagnosis of diabetes mellitus: a prospective study. Lancet. 2002;359(9324):2140-4.
  • 30. Bartnik M, Malmberg K, Hamsten A, Efendic S, Norhammar A, Silveira A, et al. Abnormal glucose tolerance--a common risk factor in patients with acute myocardial infarction in comparison with population based controls. J Intern Med. 2004;256(4):288-97.
  • 31. Gustafsson I, Kistorp CN, James MK, Faber JO, Dickstein K, Hildebrandt PR. Unrecognized glycometabolic disturbance as measured by hemoglobin A1c is associated with a poor outcome after acute myocardial infarction. Am Heart J. 2007;154(3):470-6.
  • 32. Ishihara M, Inoue I, Kawagoe T, Shimatani Y, Kurisu S, Hata T, et al. Is admission hyperglycaemia in non-diabetic patients with acute myocardial infarction a surrogate for previously undiagnosed abnormal glucose tolerance? Eur Heart J. 2006;27(20):2413-9.
  • 33. Choi KM, Lee KW, Kim SG, Kim NH, Park CG, Seo HS, et al. Inflammation, insulin resistance, and glucose intolerance in acute myocardial infarction patients without a previous diagnosis of diabetes mellitus. J Clin Endocrinol Metab. 2005;90(1):175-80.
  • 34. Bhadriraju S, Ray KK, DeFranco AC, Barber K, Bhadriraju P, Murphy SA, et al. Association between blood glucose and long-term mortality in patients with acute coronary syndromes in the OPUS-TIMI 16 trial. Am J Cardiol. 2006;97(11):1573-7.
  • 35. Nakamura T, Ako J, Kadowaki T, Funayama H, Sugawara Y, Kubo N, et al. Impact of acute hyperglycemia during primary stent implantation in patients with ST-elevation myocardial infarction. J Cardiol. 2009;53(2):272-7.
  • 36. Lazzeri C, Chiostri M, Sori A, Valente S, Gensini GF. Postprocedural hyperglycemia in ST elevation myocardial infarction submitted to percutaneous coronary intervention: a prognostic indicator and a marker of metabolic derangement. J Cardiovasc Med. 2010;11(1):7-13.
  • 37. Cochet A, Zeller M, Lalande A, L'huillier I, Walker PM, Touzery C, et al. Utility of cardiac magnetic resonance to assess association between admission hyperglycemia and myocardial damage in patients with reperfused ST-segment elevation myocardial infarction. J Cardiovasc Magn Reson. 2008:10:2.
  • 38. Logstrup BB, Hofsten DE, Christophersen TB, Moller JE, Botker HE, Pellikka PA, et al. Influence of abnormal glucose metabolism on coronary microvascular function after a recent myocardial infarction. JACC Cardiovasc Imaging. 2009;2(10):1159-66.
  • 39. Iwakura K, Ito H, Ikushima M, Kawano S, Okamura A, Asano K, et al. Association between hyperglycemia and the no-reflow phenomenon in patients with acute myocardial infarction. J Am Coll Cardiol. 2003;41(1):1-7.
  • Correspondência:

    Renata Teixeira Ladeira
    Av. Sargento Geraldo Santana, 94/181, Jardim Taquaral
    CEP 04674-225, São Paulo, SP - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Maio 2013

    Histórico

    • Recebido
      22 Maio 2012
    • Aceito
      17 Dez 2012
    • Revisado
      22 Maio 2012
    Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista@cardiol.br