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O insulto racial: as ofensas verbais registradas em queixas de discriminação

Complaints filed against discrimination

L’insulte raciale - les injures verbales enregistrées dans des plaintes de discrimination

Resumos

O objetivo do artigo é investigar o insulto racial, como forma de construção de uma identidade social estigmatizada. Para tanto, o autor toma como fonte as queixas registradas na Delegacia de Crimes Raciais de São Paulo entre maio de 1997 e abril de 1998 procurando analisar os estereótipos socialmente aceitos, tanto pelas vítimas quanto pelos policiais. O autor argumenta que a função do insulto racial é institucionalizar um inferior racial, sendo capaz não só de simbolicamente dirigir a pessoa discriminada a seu lugar inferior historicamente constituído, como também de reinstituir esse lugar.

discriminação racial; insulto racial; crimes raciais; estigma


This paper aims at investigating racial insults as a means of building a stigmatized social identity. With that in mind the author uses complaints filed with the São Paulo Racial Crime Police Headquarters as a source for analyzing stereotypes that are socially accepted by both victims and police officers. The author argues that the function of racial insults is to instate people as racially inferior, and that such attacks can not only symbolically direct those who are discriminated against toward their historically constituted status as inferiors but also reinstate that status.


Le but de cet article est d’enquêter sur l’insulte raciale, comme mode de construction d’une identité sociale stigmatisée. Pour cela, l’auteur prend comme sources les plaintes portées au Commissariat des crimes raciaux de São Paulo entre mai 1997 et avril 1998 et cherche à analyser les stéréotypes socialement acceptés comme tels, autant par les victimes que par les policiers. L’auteur soutient que la fonction de l’insulte raciale est d’institutionaliser un inférieur racial avec la capacité non seulement d’amener symboliquement la personne discriminée à une place inférieure historiquement constituée, mais aussi de réinstituer cette place.


O insulto racial: as ofensas verbais registradas em queixas de discriminação1 1 . Comunicação ao congresso da American Anthropological Association, realizado em Chicago em novembro de 1999. Agradeço a Afrânio Garcia, Jocélio Teles dos Santos e Nadya Araújo Guimarães a leitura cuidadosa de versões preliminares desse texto e suas valiosas sugestões.

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães

Recebido para publicação em junho de 1999

Professor do Departamento de Sociologia da USP

O objetivo do artigo é investigar o insulto racial, como forma de construção de uma identidade social estigmatizada. Para tanto, o autor toma como fonte as queixas registradas na Delegacia de Crimes Raciais de São Paulo entre maio de 1997 e abril de 1998 procurando analisar os estereótipos socialmente aceitos, tanto pelas vítimas quanto pelos policiais. O autor argumenta que a função do insulto racial é institucionalizar um inferior racial, sendo capaz não só de simbolicamente dirigir a pessoa discriminada a seu lugar inferior historicamente constituído, como também de reinstituir esse lugar.

Palavras-chave: discriminação racial, insulto racial, crimes raciais, estigma.

D esde que a lei 7.716 de 1989 definiu o crime racial no Brasil, um dado passou a chamar a atenção tanto dos ativistas e advogados negros quanto dos pesquisadores: a maioria das queixas de discriminação poderia ser enquadrada nos crimes de injúria ou infâmia2 2 . Ao contrário do norte-americano, o código penal brasileiro reconhece o crime contra a honra. Sua mera existência já indica a presença de relações sociais hierarquizadas, pautadas por um código de honra pessoal e estamental (e não apenas ética). . A importância numérica dos casos de insulto racial foi tão grande que em 1997, por pressão dos ativistas, os legisladores modificaram o Código Penal Brasileiro (Lei n. 9459) para que a injúria racial fosse punida com o mesmo rigor dos crimes raciais.

Em outro texto, interpretei a ofensa verbal que acompanha a maioria dos atos de discriminação como a única evidência disponível para o queixoso de que a discriminação sofrida por ele é realmente de cunho racial, e não apenas de classe, como é muito comum no Brasil (Guimarães 1998). Neste artigo, pretendo investigar o insulto racial em si mesmo, como forma de construção de uma identidade social estigmatizada. Para tanto, volto a me valer das queixas registradas na Delegacia de Crimes Raciais de São Paulo, ainda que essa fonte tem a desvantagem de ser um registro feito por um terceiro (o plantonista) a partir do relato de apenas uma das partes, a vítima. Em contrapartida, traz a vantagem de apresentar estereótipos socialmente aceitos tanto pelas vítimas quanto pelos policiais. Tomei para a análise apenas as queixas registradas entre maio de 1997 e abril de 1998.

Em 74 das noventa queixas prestadas na delegacia durante esse período – ou seja, em 82% dos casos – as vítimas fizeram registrar também os insultos verbais recebidos, o que é natural, visto que 76% das queixas registradas foram de ataques à honra pessoal. No entanto, os insultos aparecem na maioria das queixas relativas à discriminação nas esferas do trabalho, da vizinhança e do consumo (cf. tabela 1), o que reforça minha convicção de que as injúrias são usadas de forma bastante licenciosa na sociedade brasileira. Apenas no âmbito das relações de consumo de bens e serviços o número de queixas sem registro de insulto é significativo (dez em 21 casos); nos demais âmbitos da vida social, as queixas com insulto são sempre maiores que 80%.

O que são insultos raciais?

Charles Flynn define o insulto como “um ato, observação ou gesto que expressa uma opinião bastante negativa de uma pessoa ou grupo”. Tratarei aqui apenas das ofensas verbais. Flynn também se propõe a “examinar a natureza das suposições comuns e óbvias concernentes à realidade social, partilhadas por membros de sistemas socioculturais específicos, e demonstrar como os insultos, em uma grande variedade de culturas, consiste principalmente em violações de normas muito significantes, mas substancialmente implícitas” (Flynn 1977: 3, 6). Mais que uma opinião negativa, portanto, o insulto implica o rompimento de uma norma social. Para Edmund Leach, ele significa a violação de um tabu, ou seja, consiste na expressão de nomes, atos ou gestos socialmente interditos que geralmente se referem aos muito próximos ou muito longínquos de si, sejam pessoas, animais ou fatos corpóreos (Leach 1983).

A função ou a intenção do insulto podem variar, mas estão sempre ligadas a uma relação de poder. Flynn lista algumas dessas funções: a) legitimação e reprodução de uma ordem moral; b) legitimação de uma hierarquia entre grupos sociais; c) legitimação de uma hierarquia no interior de um grupo; e d) socialização de indivíduos em um grupo. Essas duas últimas correspondem melhor ao que, na literatura especializada, costuma se chamar de “insultos rituais”, ou seja, contendas verbais em que insultos são trocados de modo regulado, pondo em evidência o domínio verbal e o controle emocional dos participantes3 3 . Tais jogos são muito comuns entre jovens negros americanos. Ver Dolard (1939) e Labov (1972). . No caso de insultos raciais não-rituais, estamos lidando fundamentalmente com tentativas de legitimar uma hierarquia social baseada na idéia de raça4 4 . “Blacks, for example, are subjected to direct or indirect insults aimed at reconfirming the cultural definition of their ‘innate’ inferiority and, perhaps most significantly, of seeking to continually remind them of and hence internalize within them, a sense of the low social esteem in which they are held” (Flynn 1977: 55). .

No estudo da formação de grupos socialmente execrados, Elias & Scotson (1994) propõem um ordenamento no modo como os grupos dominantes estigmatizam os dominados. Segundo eles, isso ocorre quando tais grupos detêm o efetivo poder de fazer crer, a si mesmos e aos próprios execrados, que tais estigmas são (ou podem ser) verdadeiros. O primeiro modo de estigmatizar é a pobreza, e para utilizá-la o grupo dominante precisa monopolizar as melhores posições sociais em termos de poder, prestígio social e vantagens materiais, já que apenas nessa situação a pobreza pode ser vista como decorrência da inferioridade natural dos excluídos. O segundo modo é atribuir como características definidoras do outro grupo a anomia (a desorganização social e familiar) e a delinqüência (o não cumprimento das leis). O terceiro, atribuir ao outro grupo hábitos deficientes de limpeza e higiene. O quarto e último é tratar e ver os dominados como animais, quase animais ou não inteiramente pertencentes à ordem social.

Os insultos também são evocação de estigmas sociais e pessoais, que Erving Goffman (1963) classificou em três tipos: 1) anomalias corporais (deformidades físicas); 2) defeitos de caráter individual (fraqueza de vontade, paixões inaturais, crenças rígidas, desonestidade etc.) inferidos a partir de doença mental, encarceramento, alcoolismo, vício, homossexualidade, desemprego, tentativas de suicídio ou comportamento político; e 3) estigmas tribais (raça, nação, religião, e mesmo classe).

Os termos injuriosos encontrados

Os insultos raciais seguem essa lógica. Como instrumentos de humilhação, sua eficácia reside justamente em demarcar o afastamento do insultador em relação ao insultado, remetendo-o ao terreno da pobreza, da anomia social, da sujeira e da animalidade.

No entanto, como a posição social e racial dos insultados já está estabelecida historicamente através de um longo processo anterior de humilhação e subordinação, o próprio termo que os designa como grupo racial (“preto” ou “negro”) já é em si mesmo um termo pejorativo, podendo ser usado sinteticamente, sem estar acompanhado de adjetivos ou qualificativos. Assim, “negro” ou “preto” passam a ser uma síntese verbal ou cromática para toda uma constelação de estigmas referentes a uma formação racial identitária. Mais que o termo, a própria cor adquire função simbólica, estigmatizante, como bem o demonstram os sinônimos listados em dicionários de língua vernácula: sujo, encardido, lúgubre, funesto, maldito, sinistro, nefando e perverso, entre outros. O estigma pode estar tão bem assentado que é possível a um negro, por exemplo, sentir-se ofendido por uma referência tão sutil quanto “também, olha a cor do indivíduo...”.

A estigmatização, todavia, requer um aprendizado que passa necessariamente pelo processo de ensinar aos “subalternos” o significado da marca de cor. Assim, para humilhar o filho menor de uma vizinha, uma senhora refere-se à sua cor no diminutivo e designa seu corpo com cores “estranhas”: “Pode me deixar passar, seu negrinho de olho roxo?”. Ou, em outro exemplo, agora envolvendo dois adultos, o administrador de uma empresa diz por telefone à gerente de outra empresa que se prontificou a atendê-lo em lugar do chefe: “Não falo com preto. Prefiro esperar”. Tal forma sintética visa criar uma barreira social intransponível entre o agressor e a vítima, muito confortável para o primeiro, uma vez que ele precisa apenas pronunciar o nome do grupo, designação sintética da injúria. Às vezes, a palavra nem mesmo precisa ser pronunciada, bastando reivindicar a segregação: “Você não deveria estar aqui. Qualquer um poderia estar aqui, menos você”.

Nos dados analisados, a forma sintética é minoritária, ocorrendo apenas em dez dos 78 insultos registrados (13%). Na maioria desses casos, a proximidade social entre as partes exigiu que o ritual de afastamento fosse repetido através de insultos qualificados, que procuraram associar a cor do agredido à outra dimensão do estigma.

Tais insultos, obviamente, requerem uma reiteração dos termos ofensivos sintéticos pelo qual o grupo é reconhecido, fazendo com que em 78 das ofensas registradas a palavra “negro” e seus derivados (feminino, diminutivo e corruptelas) fosse citada 55 vezes, e “preto”, 33. Eis um exemplo de reiteração quase histérica que tem por finalidade associar o nome grupal a qualidades desprezíveis: “Preto safado, sangue de preto, negro sem-vergonha, preto vagabundo, você não presta porque tem sangue de preto”.

Quando se trata de insulto propriamente racial, a animalidade é atribuída principalmente através de termos como “macaco” e “urubu”, usados indistintamente para ambos os sexos. No primeiro caso, além de selvagem o animal é considerado pela zoologia o mais próximo do ser humano, devendo portanto, seguindo as idéias de Leach, ser objeto de distanciamento ritual muito rigoroso; no segundo, trata-se de um abutre que tem por hábito devorar cadáveres de outros animais, inclusive humanos.

Quando se trata de mulheres negras, o insulto racial é às vezes acompanhado do insulto sexual, que iguala mulheres a animais para atribuir-lhes devassidão moral, usando termos como “vaca”, “galinha” ou “cadela”5 5 . A sexualidade humana é geralmente referida a animais. A recorrência à animalização está sempre ligada à atribuição de estigma ou à formação de carisma (reivindicação de qualidades excepcionais). Sobre a relação entre sexo e animais, diz Leach: “It is thus a plausible hypothesis that the way in which animals are categorized with regard to edibility will have some correspondence to the way in which human beings are categorized with regard to sex relations” (1983: 212). . Outros animais, como “barata”, são usados para ofender sexualmente e atribuir sujeira (“Filhas de uma barata preta, vagabunda”)6 6 . “Barata”, nesse contexto, tem mais de um sentido, referindo-se simultaneamente à sujeira e à genitália feminina. . A condição de quase humanidade pode ser referida também por qualidades intelectuais negativas como “burro”, “imbecil” e “idiota”. O termo “índio” também foi registrado, utilizado para referir-se à condição de sociabilidade incompleta, selvagem.

A anomia social é referida de três maneiras. Primeiro, através de termos ou qualidades ligadas à delinqüência: “ladrão”, “folgado”, “safado”, “sem-vergonha”, “aproveitador”, “pilantra”, “maconheiro” e “traficante”; segundo, através de termos que se referem à moral sexual: “vagabunda”, “bastardo”, “filho-da-puta”7 7 . É interessante notar que nas culturas latinas seja a relação de rebaixamento social (filho-da-puta), e não um animal doméstico e íntimo (son-of-a-bitch) ou o incesto materno (motherfucker) que expresse a maior vergonha masculina com respeito à sua mãe e, portanto, o insulto sexual mais forte. A esse a respeito, ver Preston & Stanley (1987). , “prostituta”, gigolô”, “sapatão”, “homossexual” e “maria-homem”; terceiro, por estigmatização religiosa, através de termos como “macumba” e “macumbeira”.

O estigma da sujeira é reforçado por termos como “fedida”, “merda”, “podre”, “fedorenta”, “porqueira”, “nojento” e “suja”. A pobreza e a condição social inferior são referidas por palavras como “favelada”, “maloqueira”, “desclassificado” e “analfabeto”. De fato, os estigmas de inferioridade social preferidos são o local e o tipo de moradia e o grau de instrução formal. Outra estratégia lingüística freqüente é o uso de diminutivos como “negrinho” ou “negrinha” para referir-se aos insultados, além da referência direta à “classe” (“Não falo com gente de sua classe”) ou à situação de escravidão (“Lugar de negro é na senzala”), expressões utilizadas para referir-se a uma forma de natureza ou de ordem social estagnada (a laia, a casta, o escravo). Alguns dos termos empregados, como “besta” e “metida”, evocam tentativas de inversão da hierarquia social considerada natural, pois são usados para afirmar que tais pessoas querem usurpar uma posição que não é sua. Finalmente, vale a pena mencionar a ocorrência de referências a doenças ou defeitos físicos do insultado (tais como “queimada” ou “cancerosa”) e a determinações naturais ou teológicas (como “maldito”, “desgraça” e “raça”).

Como estratégia de distanciamento social, os insultos propriamente raciais que encontrei nos registros policiais podem ser agrupados em sete tipos:

1. simples nominação do Outro, de modo a lembrar a distância social ou justificar uma interdição de contato;

2. animalização do Outro ou implicação de incivilidade;

3. acusação de anomia em termos de

3.1. conduta delinqüente ou ilegal;

3.2. imoralidade sexual;

3.4. irreligiosidade ou perversão religiosa;

4. invocação da pobreza ou da condição social inferior do Outro, através de

4.1. termos referentes a tal condição;

4.2. referência a uma origem subordinada;

4.3. uso de diminutivos;

4.4. acusação de impostura (assunção de posição social indevida);

5. acusação de sujeira;

6. invocação de uma natureza pervertida ou de uma maldição divina; e

7. invocação de defeitos físicos ou mentais.

Tomados de per si, anotei 56 termos injuriosos, distribuídos pelas sete categorias elaboradas acima (cf. tabela 2). Os termos sintéticos mais utilizados são “negro/negra”, preferido pelas mulheres, e “preto/preta”, preferido pelos homens. O insulto animal mais empregado é “macaco”. Os termos de anomia que se referem à moral sexual são os mais numerosos e geralmente assacados contra as mulheres (vítimas ou mães das vítimas): “vagabunda” é o insulto preferido pelas mulheres, e “filho-da-puta”, pelos homens. Entre aqueles que se referem à legalidade ou ao caráter, “safado” é o insulto preferido, geralmente dirigido contra homens. As mulheres têm também o privilégio de serem acusadas de “macumbeiras”. Entre as injúrias que se referem à condição social, a preferida é lembrar a condição de ex-escravo, através da referência ao lugar que se crê apropriado às vítimas: a senzala. Esse é geralmente um insulto de branco contra negro, de superior social para inferior. Termos com “favelado” ou “maloqueiro” são atualizações dos locais de moradia apropriados a negros, mas desferidos por pessoas da mesma condição social da vítima. Os termos que remetem à sujeira também não são concentrados: “fedido”, “merda” e “sujo” têm a maior freqüência. Nas demais categorias, chama a atenção apenas o insulto que se refere diretamente à “raça” do indivíduo insultado, evocando uma índole pervertida.

O quadro 1 sintetiza a classificação dos insultos encontrados. Note-se que o recurso à metáfora animal abrange praticamente toda a taxonomia, seguindo a estreita relação entre categoria animal e abuso verbal prescrita por Leach. Os insultos sexuais são referidos por animais domésticos (cadela); de criação, mas ligados à alimentação da casa (galinha e vaca); ou próximos indesejáveis, como a barata – esse uso corresponde de modo geral à lógica das interdições de contato sexual entre os muito próximos. Os insultos relativos à hierarquia e às deficiências físicas e mentais estão referidos a animais de trabalho (burro, besta), bichos domesticados mas não muito próximos, que jamais comemos. Apenas os insultos raciais são referidos por animais distantes (macacos, urubus), selvagens ou que devem ser mantidos distantes da vida social.


As situações de insulto

A situação que propicia a agressão verbal pode ensinar muito sobre o significado sociológico do insulto racial. Quando o insulto é desferido? Quais as posições do agressor e da vítima na relação social? Que tipo de insulto é desferido, dependendo da situação e das características da vítima?

Uma afirmação do senso comum no Brasil é a de que o insulto racial ocorre apenas em situações de conflito, ou seja, de ruptura de uma ordem formal de convivência social. Essa afirmação nada mais é que a conseqüência do pressuposto da ordem igualitária, de respeito aos direitos individuais, resguardada por normas de polidez e formalidade. Ainda que aceito idealmente, esse pressuposto pode não ser verdadeiro na prática social. Além disso, o insulto racial pode tanto ocorrer durante o conflito quanto, ao contrário, ocasionar o conflito. Pode ser uma arma de última instância, mas também um primeiro trunfo a ser sacado. Portanto, o que motiva o insulto racial e a ordem em que ele aparece no conflito são elementos decisivos para esta análise. Hasenbalg aponta que

Com relação aos padrões de sociabilidade inter-racial, é notório que a classe baixa branca carrega um folclore de concepções estereotipadas do negro. Contudo, tais estereótipos são com freqüência verbalizados em contextos amistosos, e as situações raramente evoluem para o conflito interpessoal e para a violência, a menos que a intenção ofensiva esteja claramente presente (Hasenbalg 1979: 252).

Ora, assim como nas situações de insulto ritual, os termos injuriosos podem ser empregados em um sentido oposto ao seu significado corrente. Isso acontece quando são usados entre pessoas muito próximas, amigas, para simbolizar justamente a ausência de formalidade entre elas, ou seja, o grau de intimidade e confiança mútuas. Seu emprego é notado principalmente entre membros de grupos estigmatizados: os epítetos mais insultuosos, normalmente dirigidos a tais grupos por seus detratores, são empregados com enorme ironia, desprovidos de significado subjetivamente ofensivo, uma vez que todos sabem fazer parte da comunidade estigmatizada referida pelo epíteto. Do mesmo modo, o uso de epítetos injuriosos ocorre freqüentemente em situações definidas ambiguamente pelo agressor, situando-se entre a intimidade da brincadeira (a proximidade expressa no insulto ritual) e o distanciamento expresso pelo conteúdo semântico das palavras ofensivas. Nesses casos, apesar de não ser amigo do insultado, o insultante se põe nesse terreno ao usar o termo injurioso de modo que possa ser interpretado como um convite à brincadeira, cabendo ao insultado a responsabilidade de definir a situação: se aceita o outro como um igual e trata o incidente como o início de uma troca de insultos rituais, ou se aproveita a ocasião para coalescer a distância entre ambos. Quando ocorre entre membros de grupos raciais diferentes (brancos e pretos), mas da classe social (pobres), a situação mostra apenas a ambigüidade das pertenças de classe e de “raça”.

Como era de se esperar, essas situações de ambigüidade ou de expressão de intimidade não aparecem nas queixas prestadas em delegacias. De acordo com os dados de que disponho, o insulto racial aparece nas situações agora descritas.

Primeiro, quando, por algum motivo, a relação entre as pessoas envolvidas está tensa e bastante desgastada, seja na convivência vicinal ou familiar, seja na ordem contratual ou qualquer outra. A partir de determinado momento, uma das partes resolve utilizar o insulto como modo de humilhar sistematicamente seu desafeto. A queixa transcrita ilustra tal situação:

Informa a vítima que divide o mesmo quintal com sua cunhada, a indiciada, sendo que, por desentendimentos antigos, a mesma freqüentemente é ofendida verbalmente, bem como seus filhos, sendo chamados de “macacos”, “vagabunda”, “negrinho bastardo”, “negra fedida”, “favelada” etc. Que o fato ocorre freqüentemente, não havendo condições de diálogo pacificamente”.8 8 . Essa e as demais citações foram transcritas tal como constam nos boletins de ocorrência policial, prescindindo de anotações como “sic” ou qualquer outra forma de edição.

Segundo, quando durante uma disputa comum qualquer, esgotados os meios de convencimento e o uso de ameaças plausíveis, diante da recusa ou falta de assentimento da vítima, a injúria é usada para encerrar a disputa através da humilhação. Nesse caso, o insulto sinaliza a passagem da disputa para o conflito. A queixa abaixo se enquadra nessa situação. Note-se que a expressão insultuosa (“nega besta”) procura caracterizar a atitude de resistência como provocada pela petulância e pela arrogância de alguém que usurpa uma posição social (de igualdade com o agressor) que não lhe seria devida (por causa da cor).

Comparece a vítima, informando que, na data e local dos fatos, soube por seu advogado que a 1a. indiciada disse a ele que ela deveria pagar uma dívida que tinha assumido com a imobiliária, na qualidade de fiadora de um imóvel, proferindo as seguintes palavras: “aquela nega besta está bem grandinha pra assumir as coisas que assina, aquela esclerosada”. E a vítima, na mesma data, recebeu uma ligação do advogado da imobiliária (2o. indiciado), cobrando tal débito que, segundo a vítima, foi fiadora de um imóvel involuntariamente, ou seja, citada como fiadora sem seu conhecimento, e como disse ao referido advogado que nada devia à imobiliária, este ofendeu-a dizendo: “por causa de uma merreca, você e seu advogado vão se foder, sua nega besta”.

Terceiro, quando uma falha involuntária da vítima provoca o ódio do agressor. É como se houvesse, por parte deste, uma predisposição racista, uma animosidade gratuita ou motivada por eventos anteriores que, diante do menor fato, manifesta-se como insulto:

Informa a vítima que na data de ontem colocou seu veículo na vaga privativa de vendedores da empresa em que trabalha, com a intenção de tirá-lo assim que começassem a chegar os vendedores, sendo que ninguém o avisou e acabou esquecendo. Assim foi procurado pelo gerente, que estupidamente o repreendeu. Que imediatamente procurou tirar o carro da vaga e surpreendeu o referido gerente falando para a primeira testemunha: – “Preto é uma merda, por isso que eu não gosto dessa raça”. Ao tomar satisfações sobre o que dizia, o mesmo não repetiu tais frases, alegando que se a vítima não tivesse gostado que partisse para cima.

Quarto, quando não há nenhum conflito e o insulto é apenas o meio extremado de demarcar a separação racial entre agressor e vítima. Trata-se da reivindicação de uma segregação social:

Informa a vítima que o indiciado, o qual prestava serviços de convênio de assistência médica à empresa em que a vítima trabalha, e por esse motivo freqüentemente precisava entrar em contato pessoal ou telefônico, na data de hoje ligou para falar com o gerente comercial e a testemunha retro disse que ele não se encontrava mas, se quisesse, poderia falar com a vítima. O indiciado pelo telefone respondeu: “não falo com preto. Prefiro esperar”. A vítima então tomou conhecimento do fato e ficou sabendo que isso era freqüente. Esclarece ainda que nas oportunidades anteriores que falou com o indiciado, ele sempre foi extremamente mal-educado. A vítima sente-se discriminada e ofendida em sua honra e imagem pessoal.

Quinto, quando o agressor se vê na posição de ser corrigido ou repreendido por ter cometido uma falha e, para reverter tal posição, agride verbalmente a vítima. Estão sujeitos a essa situação de risco os negros que, no cumprimento dos deveres do cargo, vêem-se obrigados a fazer cumprir as normas:

Informam as vítimas que na data e local dos fatos, onde são seguranças, após procurarem o averiguado, que é morador do Condomínio, e adverti-lo que poderia ser multado caso não retirasse o seu veículo, que estava ocupando a vaga de outro proprietário, este passou a ofender-lhes dizendo: “quem são vocês, são uns porqueiras, uns pretos folgados, desclassificados” e, ato contínuo, foi entrando em sua residência dizendo: “vou cortar vocês no carango agora”, ao que foi impedido por familiares, que não o deixaram entrar no quarto para pegar alguma arma, segundo informam as vítimas.

Em todos esses casos, à exceção do primeiro, é nítido o sentimento hierárquico de superioridade do agressor, ferido pelo comportamento igualitário do ofendido seja em uma disputa ou em um incidente que o assusta ou desagrada, seja no dia-a-dia do relacionamento social. Mais que uma arma de conflito, o insulto é uma forma ritual de ensinar a subordinação através da humilhação. No cotidiano, é provável que os insultos raciais sejam mais comuns nas situações de conflito, ou mesmo em última instância de ofensa, como muitos acreditam. Pelos dados que analisei, contudo, parece certo acreditar que tais insultos não são especialmente mais ofensivos que outros porventura proferidos durante o conflito, quando são invocados não apenas a raça, mas também o sexo, as preferências sexuais, a origem regional, familiar e de classe, os defeitos físicos, os defeitos morais etc.

Do mesmo modo, poucos insultos (16) ocorreram durante campanhas sistemáticas de humilhação pública como forma de retaliação a alguma ofensa real ou imaginada. Os demais foram decorrentes de situações singulares e fortuitas. Algumas estatísticas podem ajudar a esclarecer esse ponto. Das 74 queixas em que foram registradas injúrias, 29 (39%) se referem a insultos proferidos no ambiente de trabalho por clientes, colegas, superiores ou subordinados; 18 insultos (24%) foram proferidos por vizinhos; 12 (16%) foram sofridos por negros na condição de consumidores, inquilinos ou usuários; os demais insultos ocorreram em situação familiar (6), na rua (2), no trânsito (4), ou em decorrência de realização de negócios (3). Ou seja, as queixas de insulto ocorrem com mais freqüência em âmbitos em que as relações sociais são mais intensas e também mais formalizadas e nas quais, portanto, o insulto é mais contundente.

Das 90 queixas prestadas, 4 referiam-se a minorias étnicas (dois nordestinos, um peruano e uma judia) e, nestas, registraram-se injúrias proferidas em situação de consumo, trabalho ou negócio. No caso dos nordestinos, as injúrias aludiam a seu deslocamento geográfico, isto é, ao fato de serem de outro lugar: “Esses nordestinos desgraçados, vem pra cá querer mandar; sua vaca [...]” ou “você tem complexo de inferioridade por ter nascido naquela terrinha de Arapiraca [...] porque você nasceu na puta que pariu”. No caso do peruano, foi também sua condição de estrangeiro a ser injuriada, juntamente com sua aparência física: “É por isso que eu não gosto de fazer contratos com esses índios nojentos e ainda mais sendo estrangeiro, tem que morar no mato do seu país”. No caso da judia, a injúria foi genérica: “Sua judia fracassada [ ] nenhum judeu presta”.

Examinemos mais de perto os insultos propriamente raciais contra negros.

Insultados e insultantes

Dois fatos chamam a atenção quando observamos as estatísticas. Primeiro, é maior o número de mulheres que se queixam de discriminação, e também e proporcionalmente, maior o número de mulheres com queixas de insultos, ou seja, os insultos às mulheres são mais que proporcionais à razão entre homens e mulheres queixosos. Os insultos são principalmente desferidos por mulheres contra mulheres (36,8%) e por homens contra homens (29,9%), ainda que nos insultos entre sexos sejam os homens que ofendam duas vezes mais as mulheres (23,0%) que o inverso (10,3%). Isso, contudo, não explica a quantidade de insultos à conduta moral ou sexual das vítimas, pois são as mulheres, e não os homens, que abusam de referências desabonadoras à moral sexual das vítimas. De fato, 39% das injúrias proferidas por mulheres contra mulheres e 40% das dirigidas por elas contra homens referiam-se à moral sexual, enquanto entre os homens apenas 12% assacaram contra a honra sexual das mulheres negras e nenhum ofendeu a moral sexual de outro homem, preferindo fazê-lo, em 21% dos casos, em relação à mãe dos mesmos (cf. tabela 3).

Considerando não os casos registrados, mas a freqüência dos termos injuriosos proferidos, chega-se à mesma conclusão. A mulher é muito mais insultada que o homem. No caso de injúrias entre pessoas do mesmo sexo, as mais numerosas (108 em 172), os insultos envolvendo mulheres são quase o dobro daqueles envolvendo homens (38 em 40). Já nos casos de injúrias intersexuais (54 em 172), os homens ofendem 57% mais as mulheres do são ofendidos por elas. Em suma, a maioria dos insultantes é mulher (58%), mas em compensação as mulheres são também as mais insultadas (64%), visto que 45% dos insultos contra mulheres são dirigidos por outras mulheres e que os homens as insultam mais que são insultados por elas (cf. tabela 2).

O segundo fato que merece atenção é a grande quantidade de averiguados, ou seja, de insultadores, de cor ignorada ou não anotada. Como seria de esperar, 93% das vítimas se declararam ou foram declaradas negras; no entanto, apenas 57% dos insultantes foram considerados brancos, sendo que 38% deles não tiveram a cor registrada pelo plantonista ou declarada pela vítima. Desconhecimento, dado sem importância ou silêncio revelador? A presença do insulto mostra que dificilmente a cor do acusado não teria sido notada. Por se tratar de um boletim de ocorrência sobre crime de racismo, peça que fundamenta qualquer ação judicial, também parece difícil crer que a cor do acusado tenha sido esquecida sem propósito. Portanto, o mais provável é que 38% dos acusados também não fossem brancos (cf. tabela 4).

É possível também que o gênero – predominantemente masculino – e a cor – na maioria branca – dos indiciados e as características de gênero e cor das vítimas ganhem importância para a compreensão sociológica apenas no âmbito das relações sociais em que ocorreu o insulto. Voltemo-nos, portanto, para cada situação em separado.

Os insultos proferidos em situação de trabalho

A maioria dos insultos proferidos em locais de trabalho provém de clientes ou usuários de serviços prestados por trabalhadores negros (56%), ocorrendo quando tais empregados cumprem normas ou regras que desagradam ou ferem o sentido de hierarquia dos clientes. Nesse caso, longe de emergir do conflito, o insulto o instala. Não se fazem necessárias palavras ou atitudes bruscas por parte dos negros: é a própria atitude ordinária de cobrança, negação, repreensão ou frieza que é sentida como “ofensa” pelos brancos. Eis um exemplo:

Comparece a vítima informando que na data e local dos fatos, onde prestava serviços autônomos como garçom, ao servir o averiguado que é sócio do Clube, após este pedir-lhe algumas refeições que constavam no cardápio, mas que não tinham disponíveis para serem servidas, somado ao fato de ter pedido para que a conta fosse separada, e por norma do Clube o averiguado fora informado que não poderia ter esse pedido aceito, passou a ofender a vítima com as seguintes ofensas: “Graças a Deus que você não é meu empregado, macaco, se fosse estaria na senzala”. A vítima sentiu-se ofendida em sua honra e imagem pessoal.

Já se pode ver aqui que o insulto tem a função de “ensinar à vitima seu lugar” esperado, ou seja, a subserviência. Para tanto, são sempre mencionados o deslocamento social ou o lugar que as vítimas deveriam ocupar: “a senzala”, “desclassificados”, “essa macaca aí pensa que é o quê?”, “negra metida”.

A inconformidade com a igualdade social dos negros transparece também nas ofensas proferidas por superiores: “Isso é um desperdício de talento. Essa deveria estar lavando roupas. Isso aí é para nos servir”; “É negro, por isso fez errado! Faz as coisas erradas e quer chegar cheio de razão! Esses vigilantes nem estudo têm...”. Ofensas que resvalam para outros âmbitos (honestidade, diligência ou outros aspectos morais) quando direitos trabalhistas são reivindicados ou estão em jogo. Às vezes, os insultados se queixam de que o insulto precede um período de “perseguição”. Também os inferiores hierárquicos invocam o deslocamento social das vítimas (“Não cumprirei ordens daquele negro analfabeto”).

Dependendo do grau de segurança do ofensor quanto à sua própria posição social, os insultos podem apenas sugerir a animalização ou coisificação dos negros (quando o reconhecimento social do ofensor é visível), mantendo-se no terreno da desqualificação social, ou podem progredir para uma completa negação da humanidade do ofendido, situação mais comum quando a distância social entre ofendidos e ofensores é mínima.

Também no caso de clientes e usuários, há, às vezes, a transferência para os “inferiores”, ou seja, para os “empregados”, da raiva que deveria ser dirigida contra o governo ou a organização que os negros momentaneamente representam:

Comparece a vítima nesta Delegacia informando que na data e local dos fatos, onde trabalha como porteiro, logo após entregar o carnê do IPTU para averiguada, foi ofendido pela mesma que disse: “Eu quebro a sua cara, seu nego safado, ladrão sem-vergonha”, entre outras ofensas que foram presenciadas pelas testemunhas retro qualificadas. A vítima sentiu-se ofendida em sua honra e imagem pessoal.

Os clientes ou usuários insultantes são em sua maioria homens. Mas os homens ofendem mais os homens e as mulheres ofendem mais as mulheres. Para o insultante, portanto, além do fato de não suportar o que considera “arrogância” ou “desrespeito” do servidor, o sexo da vítima tem alguma importância. Por que será? Talvez porque a relação entre os sexos imponha mais formalidade e envolva, ao mesmo tempo, uma abordagem mais simpática. Mas é interessante que os homens negros insultados por clientes freqüentemente não declarem a cor dos insultantes (quatro em cinco casos), enquanto as mulheres ofendidas “esqueçam” menos da cor de quem as ofendeu (três em sete). Acaso? O fato é que a não-declaração da cor dos insultantes é mais freqüente em queixas contra clientes e usuários ou contra superiores hierárquicos que contra colegas ou subordinados, e mais freqüente nos homens que nas mulheres.

Os insultos dos vizinhos

O local de moradia é o segundo âmbito social de maior registro policial de insultos raciais. Por tratar-se de um ambiente doméstico, no qual a presença feminina é maior, os registros são em sua maioria de mulheres brancas ofendendo mulheres negras (13 em 19 casos). Quando ocorrem nesse âmbito, as ofensas são respaldadas geralmente por uma história mais longa de desavenças, o que, aliado à proximidade física entre os beligerantes, enseja disputas mais carregadas de emoção, que extravasam em virulência verbal. A moral sexual, a humanidade, a higiene, os defeitos físicos e a inconveniência da vizinhança das vítimas são os alvos do ataque verbal. Eis alguns exemplos:

– Suas negrinhas filhas-da-puta, negas fedorentas, suas vacas, galinhas.

– Estou cheia dessa raça; por que vocês não se mudam? Essa raça não presta!

– Sua macaca, eu odeio negro, eu vou pôr você na cadeia, sua negra!

– Suas negrinhas vagabundas, vocês são negras maloqueiras e não prestam.

– Além de negra, ainda é queimada; na escola que eu dou aula é cheio de negrinhos macaquinhos e eu reprovo mesmo, pois nego tem é que catar papel!

– Márcia sapatão, maldita, vagabunda, negra invejosa, que tinha inveja da mesma por ser branca de olhos claros [...].

– Sua negra maloqueira, você tem que mudar do prédio.

– Essa negra do 4o. andar, eu não agüento esse cheiro! Eu vomito.

– “Maconheiros”, “pretos sujos”, “vagabundos”, “traficantes”, “que odeia essa raça”, “que odeia pretos e nordestinos”.

O que dizer das disputas que geram tais insultos? São disputas entre síndico e condôminos a respeito da honestidade do gerenciamento do condomínio, em torno de brigas e brincadeiras de crianças, filhos das vítimas, a respeito do uso do passeio das casas ou da garagem e, muitas vezes, ódio sem causa aparente, puro desejo de segregação, vontade de evitar a presença de negros no prédio.

Os insultos a consumidores

As queixas de discriminação no âmbito de relações de consumo de bens e serviços são aquelas que menos registram insultos recebidos – apenas 12 entre 22. Esse dado já revela que a relação de consumo é mais formal que as demais (de trabalho, vizinhança ou as relações não sistemáticas, como as que se desenvolvem na rua ou no trânsito), desenrolando-se normalmente sob etiqueta bastante cuidadosa, que visa promover a imagem pública da empresa prestadora de serviços. O contato social, nesse caso, é não apenas secundário, para usar a terminologia clássica da sociologia, mas também padronizado. Como, então, mais de 50% das queixas ainda evocam insultos raciais?

Observando-se caso a caso, tem-se o seguinte: três dos insultos ocorreram na relação entre senhorio e inquilino, dois em estabelecimentos bancários, envolvendo clientes e seguranças, e outros cinco em transporte coletivo (motorista e usuário), lanchonete, hospital público, oficina e loja comercial. Três fatos são dignos de nota: primeiro, os insultos mais fortes partem de pessoas do mesmo nível social da vítima e provavelmente da mesma cor, uma vez que geralmente a cor não é registrada; segundo, quando partem de pessoas de nível social mais elevado ou dos donos do estabelecimento, os insultos são sintéticos (“preto”, “negro”) ou simplesmente aludem à cor da vítima (“Também, olha a cor do indivíduo...”); terceiro, os estabelecimentos pequenos apresentam maior número de casos com insulto que os grandes, provavelmente porque neles a relação com o consumidor é sujeita a menor formalização e disciplinamento.

O insulto no trânsito e em outros âmbitos

Do mesmo modo que a discriminação entre vizinhos, a discriminação no trânsito, nos pequenos negócios ou na rua geralmente é insultuosa, e pelas mesmas razões: a grande tensão emocional a que estão sujeitos os agressores. Trata-se de insultos pesados, sempre carregados de alusões desabonadoras à moral sexual das vítimas ou de suas famílias, desferidos quase sempre por pessoa do mesmo sexo. Obviamente, o insulto proferido por familiares tem a mesma virulência, com a agravante de, nesses casos, o sexo oposto não ter tratamento mais discreto.

Conclusões

Os negros no Brasil se queixam principalmente do insulto racial proferido no âmbito do trabalho, da vizinhança e do consumo de bens e serviços. Fazem-no beneficiando-se da Lei 7.716, modificada pela 9.945, que transformou a injúria racial em crime. Para estudar o insulto racial nesta comunicação, utilizei os registros de queixas na Delegacia de Crimes Raciais de São Paulo entre maio de 1997 e 1998.

Em minha interpretação, a função do insulto racial é institucionalizar um inferior racial. Isso significa que o insulto deve ser capaz de, simbolicamente, a) fazer o insultado retornar a um lugar inferior já historicamente constituído, e b) re-instituir esse lugar.

A atribuição de inferioridade consiste na aposição de uma marca sintética, como a cor, e qualidades e propriedades negativas (em termos de constituição física, moralidade, organização social, hábitos de higiene e humanidade) a um certo grupo de pessoas consideradas “negras” ou “pretas”.

Pelo que pude constatar, no Brasil esse “inferior racial” é constituído pelos seguintes estigmas: 1) pretensa essência escrava; 2) desonestidade e delinqüência; 3) moradia precária; 4) devassidão moral; 5) irreligiosidade; 6) falta de higiene; 7) incivilidade, má-educação ou analfabetismo. Esses estigmas são reiteradamente associados à cor negra ou preta que tais pessoas apresentam, transformando-a em símbolo sintético de estigma. É interessante notar que, além da cor, nenhuma característica física – cabelos, lábios ou nariz, por exemplo – foi invocada nos insultos registrados, ainda que saibamos serem comuns em canções e ditos populares.

As situações de insulto, ou seja, aquelas em que a posição de inferioridade do negro precisa ser reforçada por rituais de humilhação pública, ocorrem principalmente no trabalho e nos negócios, nos quais o cliente ou usuário se sente ameaçado pela autoridade de que o negro está investido, ou em situações em que os brancos se sentem incomodados pela conduta igualitária do negro. No Brasil, existem mesmo expressões, como “tomar liberdade” ou “meter-se à besta”, para alguém que se crê superior se referir à conduta “indevida” de outrem, que se crê socialmente igual a ele.

Ainda segundo meus registros, não foi possível confirmar a idéia presente no senso comum de que no Brasil o insulto racial ocorre como último recurso de ataque em uma disputa interpessoal que se deteriora. Na maioria das queixas que analisei, o insulto foi o fato que instalou o conflito, e não uma decorrência dele.

Todavia, por conta do número restrito de casos, essas conclusões não podem ser consideradas definitivas, mas sim servir de guia para a investigação do insulto racial através de novas fontes e outros métodos de observação.

Notas

SUMMARY

Complaints filed against discrimination

This paper aims at investigating racial insults as a means of building a stigmatized social identity. With that in mind the author uses complaints filed with the São Paulo Racial Crime Police Headquarters as a source for analyzing stereotypes that are socially accepted by both victims and police officers. The author argues that the function of racial insults is to instate people as racially inferior, and that such attacks can not only symbolically direct those who are discriminated against toward their historically constituted status as inferiors but also reinstate that status.

RÉSUMÉ

L’insulte raciale – les injures verbales enregistrées dans des plaintes de discrimination

Le but de cet article est d’enquêter sur l’insulte raciale, comme mode de construction d’une identité sociale stigmatisée. Pour cela, l’auteur prend comme sources les plaintes portées au Commissariat des crimes raciaux de São Paulo entre mai 1997 et avril 1998 et cherche à analyser les stéréotypes socialement acceptés comme tels, autant par les victimes que par les policiers. L’auteur soutient que la fonction de l’insulte raciale est d’institutionaliser un inférieur racial avec la capacité non seulement d’amener symboliquement la personne discriminée à une place inférieure historiquement constituée, mais aussi de réinstituer cette place.

  • DOLARD, John (1939) “The dozens: dialect of insult”, American Imago, n. 1, p. 1-21.
  • ELIAS, Nobert & SCOTSON, John (1994) The established and the outsiders London: Sage.
  • FLYNN, Charles (1977) Insult and society: patterns of comparative interaction Port Washington / New York: Kennikat Press.
  • GOFFMAN, Erving (1963) Stigma: notes on the management of spoiled identity. New York: Simon & Schuster.
  • GUIMARÃES, Antonio Sérgio (1998) Preconceito e discriminação: queixas de ofensas e tratamento desigual dos negros no Brasil Salvador: Novos Toques.
  • HASENBALG, Carlos (1979) Discriminação e desigualdades raciais no Brasil Rio de Janeiro: Graal.
  • LABOV, William (1972) “Rules for ritual insults”. Em: Studies of social interaction New York: Free Press, p. 120-69.
  • LEACH, Edmund (1983) “Aspectos antropológicos da linguagem: categorias animais e insulto verbal”. Em: DA MATTA, Roberto (org). Edmund Leach. Coleção grandes cientistas sociais São Paulo: Ática, p. 170-98.
  • PRESTON, Kathleen & STANLEY, Kimberley (1987) “’What’s the worst thing…? Gender-directed insults”, Sex Roles, v. 17, n. 3/4, p. 209-19.
  • 1
    . Comunicação ao congresso da American Anthropological Association, realizado em Chicago em novembro de 1999. Agradeço a Afrânio Garcia, Jocélio Teles dos Santos e Nadya Araújo Guimarães a leitura cuidadosa de versões preliminares desse texto e suas valiosas sugestões.
  • 2
    . Ao contrário do norte-americano, o código penal brasileiro reconhece o crime contra a honra. Sua mera existência já indica a presença de relações sociais hierarquizadas, pautadas por um código de honra pessoal e estamental (e não apenas ética).
  • 3
    . Tais jogos são muito comuns entre jovens negros americanos. Ver Dolard (1939) e Labov (1972).
  • 4
    . “Blacks, for example, are subjected to direct or indirect insults aimed at reconfirming the cultural definition of their ‘innate’ inferiority and, perhaps most significantly, of seeking to continually remind them of and hence internalize within them, a sense of the low social esteem in which they are held” (Flynn 1977: 55).
  • 5
    . A sexualidade humana é geralmente referida a animais. A recorrência à animalização está sempre ligada à atribuição de estigma ou à formação de carisma (reivindicação de qualidades excepcionais). Sobre a relação entre sexo e animais, diz Leach: “It is thus a plausible hypothesis that the way in which animals are categorized with regard to edibility will have some correspondence to the way in which human beings are categorized with regard to sex relations” (1983: 212).
  • 6
    . “Barata”, nesse contexto, tem mais de um sentido, referindo-se simultaneamente à sujeira e à genitália feminina.
  • 7
    . É interessante notar que nas culturas latinas seja a relação de rebaixamento social (filho-da-puta), e não um animal doméstico e íntimo (son-of-a-bitch) ou o incesto materno (motherfucker) que expresse a maior vergonha masculina com respeito à sua mãe e, portanto, o insulto sexual mais forte. A esse a respeito, ver Preston & Stanley (1987).
  • 8
    . Essa e as demais citações foram transcritas tal como constam nos boletins de ocorrência policial, prescindindo de anotações como “sic” ou qualquer outra forma de edição.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Fev 2002
    • Data do Fascículo
      Dez 2000

    Histórico

    • Recebido
      Jun 1999
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