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Epidemiologia do transtorno bipolar

Epidemiology of bipolar disorders

Resumos

A formulação de políticas em saúde mental depende essencialmente de informações a respeito da freqüência e distribuição dos transtornos mentais. Nas últimas duas décadas, pesquisas de base populacional em epidemiologia psiquiátrica têm sido conduzidas, gerando informações detalhadas sobre freqüência, fatores de risco, incapacidade social e utilização de serviços de saúde. Neste artigo, dados sobre a epidemiologia do transtorno bipolar (TB) são discutidos, a partir de resultados de recentes pesquisas populacionais: o estudo da Área de Captação Epidemiológica do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos (ECA-NIMH), a Pesquisa Nacional de Comorbidade (NCS), a Pesquisa de Morbidade Psiquiátrica na Grã-Bretanha (OPCS), o Estudo Brasileiro Multicêntrico de Morbidade Psiquiátrica e os estudos longitudinais conduzidos por Angst, em Zurique. As estimativas de prevalências de transtorno bipolar são relativamente baixas, independentemente do lugar onde a pesquisa foi conduzida, do tipo de instrumento diagnóstico usado e dos períodos de tempo para os quais a prevalência se aplica. A partir da introdução do conceito de espectro bipolar, ampliando as fronteiras diagnósticas do TB, as estimativas de prevalências encontradas são substancialmente mais altas. Tais estimativas, entretanto, ainda carecem de validação em estudos populacionais. O transtorno afetivo bipolar é igualmente prevalente entre homens e mulheres, sendo mais freqüente entre solteiros ou separados. Indivíduos acometidos têm maiores taxas de desemprego e estão mais sujeitos a utilizarem serviços médicos e serem hospitalizados. O custo e a eficácia dos tratamentos do TB devem ser balanceados com o alto custo individual e social associados à enfermidade.

Transtorno bipolar; espectro bipolar; prevalência; epidemiologia


Information about the epidemiology of bipolar disorders is essential for providing a framework for the formulation of effective mental health policy. In the last two decades, population surveys of psychiatric morbidity in adults have been conducted and as a result details on the frequency, risk factor, social disabilities, and service use rates of mental disorders are now available. Epidemiological findings on bipolar disorders are discussed on the light of results from recent large population-based surveys namely the Epidemiological Catchment Area Study (ECA), the National Comorbidity Survey (NCS), the OPCS Survey of Psychiatric Morbidity in Great Britain, the Brazilian Multicentric Study of Psychiatric Morbidity, and the longitudinal studies conducted in Zurich by Angst. Prevalence rates for bipolar disorder were generally low, regardless setting, the type of instrument used for generating psychiatric diagnosis, and the time periods by which prevalence is defined. Since the introduction of the concept of bipolar spectrum, broadening the boundaries of the disease, the estimate rates have been found to be substantially higher. Such rates still need to be validated by populational-based studies. Bipolar disorder is as prevalent in women as in men, more common among singles and separated or divorced people. Those affected by the disease are more likely to use medical services and to be hospitalized. The cost-effectiveness of treatments must be balanced with the high individual and social impact associated to the bipolar illness.

Bipolar disorder; bipolar spectrum; prevalence; epidemiology


ARTIGO ORIGINAL

Epidemiologia do transtorno bipolar

Epidemiology of bipolar disorders

Maurício Silva de LimaI; Juliana TassiII; Ingrid Parra NovoIII; Jair de Jesus MariIV

IProfessor Adjunto da Universidade Federal de Pelotas e da Universidade Católica de Pelotas. Honorary Senior Lecture, Section of Epidemiology, Institute of Psychiatry, Londres, Reino Unido

IIPsiquiatra pela Universidade Federal do Paraná

IIIPsiquiatra e Mestre em Psiquiatria (Unifesp). Professora Colaboradora do PROTHA (Programa de Transtornos de Humor e Ansiedade), Hospital de Clínicas, Universidade Federal do Paraná; Supervisora da Residência em Psiquiatria da PUC-Paraná

IVProfessor Titular de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Maurício Silva de Lima Av. Morumbi, 8264 Brooklin 04703-002 – São Paulo – SP e-mail: limama@lilly.com

RESUMO

A formulação de políticas em saúde mental depende essencialmente de informações a respeito da freqüência e distribuição dos transtornos mentais. Nas últimas duas décadas, pesquisas de base populacional em epidemiologia psiquiátrica têm sido conduzidas, gerando informações detalhadas sobre freqüência, fatores de risco, incapacidade social e utilização de serviços de saúde. Neste artigo, dados sobre a epidemiologia do transtorno bipolar (TB) são discutidos, a partir de resultados de recentes pesquisas populacionais: o estudo da Área de Captação Epidemiológica do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos (ECA–NIMH), a Pesquisa Nacional de Comorbidade (NCS), a Pesquisa de Morbidade Psiquiátrica na Grã-Bretanha (OPCS), o Estudo Brasileiro Multicêntrico de Morbidade Psiquiátrica e os estudos longitudinais conduzidos por Angst, em Zurique. As estimativas de prevalências de transtorno bipolar são relativamente baixas, independentemente do lugar onde a pesquisa foi conduzida, do tipo de instrumento diagnóstico usado e dos períodos de tempo para os quais a prevalência se aplica. A partir da introdução do conceito de espectro bipolar, ampliando as fronteiras diagnósticas do TB, as estimativas de prevalências encontradas são substancialmente mais altas. Tais estimativas, entretanto, ainda carecem de validação em estudos populacionais. O transtorno afetivo bipolar é igualmente prevalente entre homens e mulheres, sendo mais freqüente entre solteiros ou separados. Indivíduos acometidos têm maiores taxas de desemprego e estão mais sujeitos a utilizarem serviços médicos e serem hospitalizados. O custo e a eficácia dos tratamentos do TB devem ser balanceados com o alto custo individual e social associados à enfermidade.

Palavras-chave: Transtorno bipolar, espectro bipolar, prevalência, epidemiologia.

ABSTRACT

Information about the epidemiology of bipolar disorders is essential for providing a framework for the formulation of effective mental health policy. In the last two decades, population surveys of psychiatric morbidity in adults have been conducted and as a result details on the frequency, risk factor, social disabilities, and service use rates of mental disorders are now available. Epidemiological findings on bipolar disorders are discussed on the light of results from recent large population-based surveys namely the Epidemiological Catchment Area Study (ECA), the National Comorbidity Survey (NCS), the OPCS Survey of Psychiatric Morbidity in Great Britain, the Brazilian Multicentric Study of Psychiatric Morbidity, and the longitudinal studies conducted in Zurich by Angst. Prevalence rates for bipolar disorder were generally low, regardless setting, the type of instrument used for generating psychiatric diagnosis, and the time periods by which prevalence is defined. Since the introduction of the concept of bipolar spectrum, broadening the boundaries of the disease, the estimate rates have been found to be substantially higher. Such rates still need to be validated by populational-based studies. Bipolar disorder is as prevalent in women as in men, more common among singles and separated or divorced people. Those affected by the disease are more likely to use medical services and to be hospitalized. The cost-effectiveness of treatments must be balanced with the high individual and social impact associated to the bipolar illness.

Key words: Bipolar disorder, bipolar spectrum, prevalence, epidemiology.

Introdução

Nas últimas duas décadas vários estudos epidemiológicos proporcionaram uma compreensão mais ampla da ocorrência e do curso dos transtornos mentais, permitindo que se conheçam as conseqüências diretas e indiretas das doenças, como prejuízo no funcionamento individual, familiar e social. Essas informações servem como uma base para decisões políticas em saúde mental, bem como para a avaliação do acesso à assistência médica e utilização de serviços de saúde (Robbins e Regier, 1991).

Mais recentemente, pesquisas epidemiológicas procuraram determinar a magnitude do TB avaliando sua ocorrência na população geral. O conceito de TB tem sofrido modificações ao longo dos últimos anos, refletidas nas classificações diagnósticas como DSM e CID. O conceito de espectro, que amplia significativamente a prevalência desses transtornos, é ainda polêmico e sua validação na população geral é essencial para que ações específicas em saúde pública possam ser conduzidas, visando à adequada prevenção e ao tratamento do TB.

Neste artigo, é feita uma revisão crítica da literatura, considerando-se a qualidade dos estudos em termos da sua capacidade de gerar informações sobre a distribuição do TB na população geral. Em estudos de prevalência, podem-se considerar as pesquisas transversais, que incluem amostras aleatórias da população geral e são examinadas com critérios diagnósticos padronizados e reproduzíveis, como delineamento "padrão-ouro". Uma breve descrição desses estudos e suas vantagens e limitações é feita a seguir.

Estudos epidemiológicos: delineamentos e medidas resultantes

Em psiquiatria os estudos epidemiológicos descrevem a distribuição dos transtornos psiquiátricos na população e seus possíveis fatores determinantes, além de permitir que se avaliem conseqüências diretas e indiretas das doenças. Com isso, pode-se melhor avaliar a etiologia e a história natural das doenças na comunidade, o que colabora ainda para a elaboração da validade de construto de um determinado diagnóstico. No entanto, o tipo de dado gerado por estudos epidemiológicos depende essencialmente de seu delineamento.

Os estudos baseados em dados secundários, como os de indivíduos admitidos para tratamento ambulatorial e hospitalar, são importantes para avaliar a freqüência dos casos tratados nestes serviços, mas não fornecem estimativas de incidência e prevalência do transtorno na comunidade, as quais são obtidas a partir de denominadores populacionais.

Nos estudos longitudinais ou de coorte, as pessoas, selecionadas a partir de uma característica determinada (exposição ou fator de risco, por exemplo), são acompanhadas ao longo do tempo, registrando-se então a ocorrência de doença. Com isso, é possível saber o número de casos novos ocorridos em determinado período de tempo medida epidemiológica conhecida como incidência.

Estudos transversais verificam a ocorrência de doença, incluindo tanto casos "novos" quanto "velhos", em determinado momento, em uma dada população. Neste caso, as pessoas não são acompanhadas ao longo do tempo, mas sim investigadas em um momento único. A medida de ocorrência derivada desses estudos é conhecida como prevalência. Apesar das limitações (viés de memória, viés de amostra, viés do instrumento), os estudos transversais provêm informações imediatas sobre a prevalência e fatores associados a transtornos mentais, as quais são essenciais para o planejamento de ações em saúde pública.

Desde o final do século passado, antes do advento do DSM-III, as pesquisas epidemiológicas sobre transtornos mentais usaram diferentes métodos e sistemas de classificação, apresentando uma ampla variação nas estimativas de prevalências tanto quanto sobre a importância de fatores de risco como a classe social. A partir do DSM-III, o crescimento dos estudos epidemiológicos tem sido notável, levando à reconsideração do transtorno bipolar, dividindo sua fenomenologia em transtornos específicos com definições operacionais predefinidas.

A maioria dos dados a serem apresentados nesta revisão é relativa aos transtornos afetivos bipolares tipos I e II. As informações são mais limitadas no que diz respeito à distribuição e fatores associados ao espectro bipolar, uma vez que esse conceito, ainda que amplamente estudado em amostras clínicas, ainda não foi adequadamente avaliado em estudos populacionais.

Procura-se neste artigo limitar a discussão a estudos recentes de grandes amostras, cujas características metodológicas essenciais são descritas abaixo. A comparação de diferentes populações, em estudos de base populacional de boa qualidade e que utilizaram métodos semelhantes, pode permitir uma avaliação mais abrangente do conhecimento da distribuição do transtorno bipolar na população geral.

Estratégia de busca de artigos

Foi conduzida uma busca na base de dados MEDLINE (1966-2004), utilizando-se a seguinte estratégia:

#1 prevalence or incidence or epidemiol* or cross-sectional or cohort or follow-up or longitudinal

#2 (Bipolar or Mood or Affective) and disorder

#3 #1 and #2

Além de checadas também as referências dos artigos obtidos, em busca de referências adicionais, foram considerados separadamente estudos com amostras aleatórias da população geral, com delineamento transversal ou longitudinal.

Descrição dos estudos incluídos

Estudos transversais de base populacional

O Estudo da Área de Captação Epidemiológica do Instituto Nacional de Saúde Mental (ECA–NIMH) (Robbins e Regier, 1991; Weissman et al., 1996), conduzido nos Estados Unidos a partir de 1980, foi a primeira grande pesquisa epidemiológica de base populacional com o objetivo de estimar a prevalência de transtornos mentais, tanto em populações não tratadas como tratadas.

Com amostra total de aproximadamente 20 mil pessoas residentes em cinco centros (New Heaven, Eastern Baltimore, St. Louis, Durham e Los Angeles), utilizaram-se critérios diagnósticos padronizados para a definição de transtornos psiquiátricos pelo DIS – Diagnostic Interview Schedule, aplicados por entrevistadores leigos. O índice de perdas nesse estudo variou de 20% a 25%.

Os achados do ECA indicam que sintomas maníacos são raros na população geral (por exemplo, apenas 3% relataram ocorrência de período de uma semana de humor elevado, expansivo ou irritado) em algum momento da sua vida.

Baseado no sucesso do ECA e a partir da ampla aceitação da terceira edição do DSM-III, várias pesquisas na população geral foram conduzidas a partir dos anos de 1980. Essas pesquisas passaram a usar métodos amostrais mais sofisticados, dando a cada indivíduo na população a mesma chance de ser selecionado e também incluíram um número maior de entrevistados, além de a maioria ter utilizado critérios diagnósticos do DSM-III ou DSM-III-R. As informações geradas por essas pesquisas confirmam a baixa freqüência populacional do transtorno bipolar.

Vários outros países basearam-se na metodologia do ECA no desenvolvimento de pesquisas epidemiológicas, o que resultou na criação do Cross-National Collaborative Group (Judd et al., 2003), formado por Alemanha, Canadá, França, Itália, Líbano, Porto Rico, Nova Zelândia, Coréia e Taiwan.

A Pesquisa Nacional de Morbidade Psiquiátrica na Grã-Bretanha (OPCS) (Judd et al., 2003; Mason e Wilkonson, 1996) foi planejada para informar sobre a prevalência de transtornos psiquiátricos, bem como a extensão da incapacidade associada, comorbidade e utilização de uso de serviços de saúde. Além disso, o objetivo também foi investigar fatores precipitantes das doenças e suas associações com diferentes estilos de vida.

Foram entrevistados 10.108 indivíduos entre 16 e 64 anos, vivendo na Inglaterra, País de Gales e Escócia. Os diagnósticos foram gerados a partir de entrevistas utilizando o CIS-R (Clinical Interview Schedule, Revised). Quatro amostras separadas foram entrevistadas: domicílios privados, pessoas sofrendo de psicose e vivendo em suas residências, instituições para doenças mentais e pessoas sem domicílio fixo, vivendo na rua em instituições próprias para indivíduos sem moradia.

A Pesquisa Nacional de Comorbidade (NCS) (Jenkins e Meltzer, 1995), nos Estados Unidos, foi planejada para complementar os dados do ECA. Enquanto o ECA foi delineado para ser um estudo de prevalência, essa pesquisa objetivava avaliar também fatores de risco para os transtornos mentais, utilizando critérios diagnósticos baseados no DSM-III-R. Os diagnósticos foram gerados a partir de uma versão modificada do CIDI (Composite International Diagnostic Interview), que por sua vez é baseada no DIS. Foram entrevistadas 8.098 pessoas, com idades variando entre 15 e 54 anos. A taxa de respondentes foi de 82,4%. Esse estudo mostrou que a maioria das pessoas (56%) com transtornos mentais apresentavam comorbidade com outras condições psiquiátricas.

O Estudo Multicêntrico Brasileiro de Morbidade Psiquiátrica (Kessler et al., 1994) obteve estimativas de prevalência de transtornos mentais em três grandes centros urbanos brasileiros: Brasília, São Paulo e Porto Alegre. Foram entrevistadas 6.476 pessoas, com mais de 14 anos de idade, em duas etapas. Primeiramente aplicou-se um questionário de rastreamento, o Questionário sobre Morbidade Psiquiátrica em Adultos (QMPA) para identificar possíveis casos psiquiátricos. Na segunda fase, foram realizadas entrevistas individuais por psiquiatras treinados em indivíduos com escore acima de 7 no QMPA, para confirmação diagnóstica por meio da lista de checagem de sintomas do DSM-III para confirmação.

A prevalência de transtornos de humor na Hungria (Almeida-Filho et al., 1997) foi estimada em uma amostra populacional da cidade selecionada aleatoriamente e avaliada pelo DIS e com critérios diagnósticos do DSM-III-R. O estudo avaliou 2.953 indivíduos entre 18 e 64 anos de idade.

Apesar do emergente consenso internacional a respeito da mais alta prevalência do espectro bipolar em amostras clínicas e da comunidade, existem poucos dados epidemiológicos consistentes referentes aos variados níveis de sintomas maníacos e depressivos. Judd e Akiskal (2003) propuseram uma análise secundária dos dados do ECA, baseados tanto nos critérios do DSM-III para episódio maníaco ou hipomaníaco ao longo da vida, bem como naqueles com pelo menos dois sintomas maníacos/hipomaníacos por pelo menos uma semana, denominado este grupo de sintomas maníacos subsindrômicos. Os resultados encontrados para episódios maníaco e hipomaníaco foram semelhantes ao estudo original, porém, com a inclusão dos sintomas subsindrômicos, a prevalência ao longo da vida para o espectro bipolar foi de 6,4%.

Estudos longitudinais

O estudo de Zurique (Szádóczky et al., 1998; Chengappa et al., 2003) representa a principal coorte com dados sobre TAB disponíveis até o momento, com uma amostra representativa de 4.547 indivíduos. Uma subamostra de indivíduos com risco aumentado para o desenvolvimento de transtorno psiquiátrico composta de 591 jovens entre 19 e 20 anos foi selecionada. Durante um seguimento de 20 anos foram realizadas cinco entrevistas utilizando-se o instrumento SPIKE. A partir da segunda entrevista, os critérios do DSM-IV para hipomania foram aplicados retrospectivamente (últimos 12 meses). Mais recentemente, as novas categorias propostas para o espectro bipolar, como a hipomania breve, também foram avaliadas. Cerca de 69% da amostra original permaneceram na coorte ao longo de 15 anos de estudo e 90% dos indivíduos participaram de duas ou mais entrevistas.

Freqüência do transtorno afetivo bipolar

Incidência

A incidência dos transtornos de humor representa o número de novos casos da doença que surgem em uma população em risco de adoecer (ou seja, pessoas que não apresentam a doença no início do estudo), em um determinado período de tempo. Os estudos de coorte ou de seguimento fornecem estimativas de incidência, mas são dispendiosos e conduzidos em longo prazo. Por isso, os dados de incidência sobre transtornos mentais em geral são escassos.

O estudo do ECA encontrou uma taxa anual de incidência para transtorno bipolar de 0,5%, muito próxima da prevalência anual de 0,6%, indicando que a duração média de um episódio de humor é em geral maior do que um ano. Vale salientar, no entanto, que o ECA não é um estudo longitudinal por definição, e que os dados obtidos são retrospectivos. Não foram encontrados outros dados sobre a incidência do TB na literatura atualmente disponível.

Prevalência

Estudos populacionais

A tabela 1 mostra as estimativas de prevalência dos estudos populacionais mais relevantes.

Estudos que levam em consideração o conceito de espectro

A tabela 2 mostra as estimativas dos estudos que avaliaram também os sintomas descritos no conceito de espectro bipolar.

Fatores associados ao TAB

Idade de início

Precisar a idade de início representa um desafio clínico. Isso se deve a problemas metodológicos, por exemplo, pode-se considerar como definição de início do TAB o primeiro episódio ou o primeiro internamento. Outro problema se deve ao fato de que muitos pacientes recebem um diagnóstico errado nas primeiras avaliações, freqüentemente de depressão. Nos estudos transversais a principal limitação é relacionada ao viés de memória de pacientes e familiares. Os estudos do ECA encontraram idade de início de 18 anos para bipolar tipo I e de 22 anos para bipolar tipo II.

No entanto, estudos de coorte são os mais indicados para investigação de idade de início. Chenpagga conduziu um estudo examinando dados de 1.218 bipolares que procuraram voluntariamente o Stanley Center da Universidade de Medicina de Pittsburgh, que investiga exclusivamente o TB. Foram analisadas duas coortes, uma de indivíduos nascidos entre 1900 e 1939 e a outra de indivíduos nascidos entre 1940 e 1959. A idade média do primeiro episódio de TAB foi de 23,5 anos na coorte de indivíduos nascidos entre 1900 e 1939 e de 19 anos na de indivíduos nascidos entre 1940 e 1959.

Estudos epidemiológicos prospectivos em populações de crianças e adolescentes são necessários para melhor estimar a prevalência e incidência de TAB.

Sexo

Os grandes estudos populacionais não encontraram diferenças significativas entre os sexos no que se refere ao TAB I e II. No entanto, há divergências quanto à prevalência do espectro bipolar, tendo sido sugerido por Angst uma relação de 1,5 mulher para cada homem. Esses dados não são confirmados no estudo de Szádóczky.

Raça, condição socioeconômica e estado conjugal

Variações étnicas significativas não são encontradas nos grandes estudos populacionais. Embora em amostras clínicas tenham sido identificadas maiores taxas de prevalência entre indivíduos com maior escolaridade, os estudos em comunidade não encontram essa associação. Em relação ao estado conjugal, o ECA constatou que indivíduos casados tinham taxas significativamente mais baixas de TAB que solteiros ou divorciados, o que possivelmente reflete as conseqüências da doença.

História familiar

Ainda que não avaliada em estudos de comunidade, a história familiar deve ser incluída como importante fator de risco. A relação entre TAB e história familiar está bem estabelecida e o risco de TAB é consistentemente aumentado em parentes de primeiro grau quando comparados com controles normais ou com depressão maior.

Uso de serviços de saúde e impacto social

No estudo ECA, a maior taxa de uso de serviços de saúde mental encontrada no grupo de transtornos afetivos foi entre os bipolares, dos quais 60,9% receberam algum tipo de serviço. Quando comparados a controles, entre o grupo de bipolares também são encontradas taxas mais altas de uso de benefícios previdenciários (Judd et al., 2003).

Prognóstico

Com a disponibilidade de terapêuticas mais eficazes e específicas para o TB nas últimas décadas, é possível que o prognóstico descrito inicialmente na literatura anterior aos grandes estudos epidemiológicos tenha mudado. É sabido que amostras clínicas concentram casos mais graves e de pior prognóstico, o que também pode afetar o conhecimento sobre o real prognóstico para a maioria dos pacientes com TB. Somente coortes populacionais podem responder adequadamente a esta questão.

Conclusões

Com base nos grandes estudos populacionais de amostra aleatória, as estimativas de prevalência de TAB são consistentemente baixas, ao redor de 1%, para transtorno bipolar tipo I e II. A partir da introdução do conceito de espectro bipolar, ampliando o limiar para TAB, as estimativas são mais altas, ao redor de 5% a 8%, porém esse conceito ainda não está adequadamente validado por estudos epidemiológicos de base populacional, sendo as principais evidências obtidas em amostras clínicas e em análises retrospectivas dos dados do ECA.

É possível que muitos casos de TB atualmente ainda deixem de ser diagnosticados. Neste sentido, o conceito de espectro é importante, e não somente intervenções terapêuticas como também profiláticas podem ser empregadas na medida em que o reconhecimento do transtorno é mais apurado. No entanto, a questão do espectro ainda precisa ser melhor definida considerando-se não somente sua validade interna, mas também a questão do limiar de tratamento. Os pacientes com síndromes menos graves e incapacitantes também devem ser tratados.

Apesar de a prevalência do TB tipo I (em especial) e II ser melhor conhecida, mais estudos são necessários para avaliar a relevância clínica dos quadros menos graves. Finalmente, mais estudos longitudinais são necessários para que se possa conhecer melhor características do TB como idade de início, resposta a tratamentos e prognóstico.

Recebido: 19/12/2004 - Aceito: 20/01/2005

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  • Endereço para correspondência

    Maurício Silva de Lima
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    04703-002 – São Paulo – SP
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Ago 2005
    • Data do Fascículo
      2005

    Histórico

    • Aceito
      20 Jan 2005
    • Recebido
      19 Dez 2004
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