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Saúde e direitos da população trans

Em março de 2018, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) julgou que, pela Lei Eleitoral, mulheres transexuais e travestis podem concorrer a cargos eletivos na cota destinada ao sexo feminino e os homens trans nas vagas para o sexo masculino. No mesmo mês, os membros do Supremo Tribunal Federal (STF) autorizaram que transexuais e transgêneros alterem o nome no registro civil sem a realização de cirurgia de mudança de sexo. Novos reconhecimentos têm sido evidenciados nas políticas de inclusão da diversidade sexual e de gênero em instituições de ensino e organizações públicas e privadas, bem como na indústria cultural. Esse elenco de notícias ilustra algumas das recentes conquistas da luta política de travestis, transexuais e transgêneros no Brasil que, no entanto, ainda convivem com uma realidade caracterizada pela extrema marginalização e exclusão social. Situações como conflitos familiares, expulsão de casa, interrupção precoce da trajetória escolar e dificuldade de inserção no mercado de trabalho qualificado constituem aspectos dessa realidade 11. Carrara S, Aguião S, Lopes PVL, Tota M. Retratos da política LGBT no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva; 2017.,22. Kullick D. Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013.,33. Mello L, Perilo M, Braz C, Pedrosa C. Políticas de saúde para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil: em busca de universalidade, integralidade e equidade. Sex Salud Soc (Rio J.) 2011; 9:7-28..

No campo da saúde, a vulnerabilidade de travestis e transexuais pode ser exemplificada pelos alarmantes índices de violência e assassinatos sofridos, pelos agravos relativos à saúde mental (p.ex.: depressão, tentativa de suicídio) e pela alta prevalência do HIV. Ademais, o estigma e a discriminação sexual têm sido apontados como importantes obstáculos ao acesso desse segmento social aos serviços de prevenção e cuidado. Em função de tais problemas, a agenda de direitos de cidadania para esse segmento social inclui ainda demandas por uma atenção integral em saúde e acesso aos serviços livre de discriminação. Essas reivindicações vêm sendo construídas paralelamente aos esforços por consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) e evocam debates acerca das implicações das desigualdades sociais no cuidado em saúde.

Nas duas últimas décadas, como resultado de diálogos e articulações entre o Governo Federal e representantes da sociedade civil organizada, algumas mudanças positivas foram alcançadas no âmbito das normas institucionais envolvendo o setor saúde. Entre elas, destacam-se a formulação do Plano Nacional de Combate à Violência e à Discriminação de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis, de 2004, que prevê ações de promoção de direitos, cooperação internacional, segurança, educação, saúde e trabalho; a Carta dos Direitos de Usuários da Saúde, de 2006, que explicita o direito da pessoa ser identificada no SUS pelo nome que preferir; o Plano de Enfrentamento da Aids entre Gays, HSH e Travestis, de 2007; as regulamentações de 2008 e 2013 acerca do processo transexualizador no âmbito do SUS, que englobam a cirurgia de redesignação sexual, a assistência e o cuidado de transexuais; e a Política Nacional de Saúde Integral para População de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis e Transexuais, de 2010 44. Pelúcio L. Abjeção e desejo uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de AIDS. São Paulo: Annablume; 2009.. Embora sejam instrumentos com grande potencial para lograr a inclusão desse segmento social, seu efetivo cumprimento esbarra atualmente em importantes desafios. O subfinanciamento do SUS que impede a sua efetivação como política nacional de saúde, a resistência de setores sociais conservadores e suas cruzadas morais contra os direitos sexuais e reprodutivos representam hoje ameaças às aspirações de equidade e justiça social para todos e todas na sociedade brasileira.

Nesse sentido, a análise das relações entre saúde e direitos desses segmentos sociais exige uma reflexão sobre os efeitos práticos das leis e normativas mencionadas, tanto no cotidiano das instituições como na experiência imediata dos sujeitos. O tema envolve agentes, práticas e tecnologias da saúde e de outros campos sociais que se intersectam de múltiplas formas. A organização do Espaço Temático dedicado à saúde e ao direito da população trans nasce, portanto, do interesse em reunir contribuições acadêmicas capazes de iluminar distintos aspectos desses cruzamentos com base em diferentes abordagens e estratégicas metodológicas.

O primeiro artigo 55. Magno L, Silva LAV, Veras MA, Pereira-Santos M, Dourado I. Estigma e discriminação relacionados à identidade de gênero e à vulnerabilidade ao HIV/aids entre mulheres transgênero: revisão sistemática. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00112718. analisa a relação entre o estigma e a discriminação, associados à identidade de gênero de mulheres transgêneros e a vulnerabilidade ao HIV/aids. O estudo tem por base uma revisão sistemática da produção acadêmica nacional e internacional. A análise dos 41 artigos selecionados, publicados entre 2004 e 2018, evidenciou o entrelaçamento entre as situações de violência, discriminação e transfobia. Os autores destacam que essas correlações, decorrentes do estigma associado à identidade de gênero, têm uma importante contribuição para o contexto de vulnerabilidade à infecção pelo HIV/aids da população de mulheres transgênero.

O segundo artigo 66. Carrara S, Hernandez JG, Uziel AP, Conceição GMS, Panjo H, Baldanzi ACO, et al. Body construction and health itineraries: a survey among travestis and trans people in Rio de Janeiro, Brazil. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00110618. examina os itinerários de saúde percorridos por 391 travestis, mulheres e homens trans na cidade do Rio de Janeiro e na Região Metropolitana, pertencentes a diferentes classes sociais, níveis educacionais e configurações de identidade de gênero e contatados através das redes sociais dos entrevistadores. O estudo tem o propósito de descrever o perfil sociodemográfico desse universo social e mapear as formas de acesso aos serviços de saúde e às tecnologias de modificação corporal. Os resultados revelam dificuldade de acesso aos processos de transexualização nos serviços público e privado e a necessidade de um maior reconhecimento das pessoas trans como sujeitos de direitos.

Baseando-se em uma pesquisa nas regiões metropolitanas de Goiânia (Brasil) e de Buenos Aires (Argentina) sobre o itinerário terapêutico de homens trans, o terceiro artigo 77. Braz C. Vidas que esperam? Itinerários do acesso a serviços de saúde para homens trans no Brasil e na Argentina. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00110518. analisa o tempo de espera desse segmento social em relação à atenção em saúde e ao processo transexualizador. A comparação entre dois cenários distintos favorece a compreensão das dinâmicas de acesso e as dificuldades na implementação de políticas públicas no campo da saúde frente às demandas dessa população. Diante da dissonância entre o tempo subjetivo e o tempo institucional, os homens trans tomam iniciativas diversas, como a mobilização de recursos próprios, redes de contatos, viagens internacionais, entre outras, na busca por cuidados biomédicos para a transição de gênero.

Tendo por base entrevistas e observações de contextos de prostituição, o quarto artigo 88. Monteiro S, Brigeiro M. Experiências de acesso de mulheres trans/travestis aos serviços de saúde: avanços, limites e tensões. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00111318. analisa as experiências de acesso à rede de saúde de mulheres trans/travestis da Baixada Fluminense (Rio de Janeiro). A despeito das experiências de exclusão social e discriminação das entrevistadas, seus relatos indicam o reconhecimento, em anos recentes, de um convívio mais tolerante da sociedade com a diversidade sexual, no cenário público e no âmbito dos serviços de saúde. Descrevem ainda formas de enfrentamento de situações adversas, acionando redes de contato e discursos sobre direitos de cidadania. Todavia, o acesso à prevenção e ao cuidado na rede pública ficam comprometidos em função da precariedade dos serviços do SUS e da internalização do estigma da aids.

No conjunto, os quatro artigos que compõem este Espaço Temático demonstram como nas trajetórias e histórias de vida estudadas se entrelaçam códigos de gênero, formas de discriminação sexual, processos de resistência individual e coletiva, transmissão de saberes práticos, diferentes usos das tecnologias biomédicas, leis, normas jurídicas e intervenções programáticas. A riqueza dos resultados de pesquisa apresentados atesta o caráter eminentemente político das práticas e concepções de saúde. Os textos coincidem quanto à importância de que as políticas públicas invistam, de forma consistente e continuada, no enfrentamento do estigma e das condições de exclusão social que marcam o cotidiano de travestis, mulheres e homens trans. Aponta ainda para a necessidade de considerar, no processo de construção de programas e ações, tanto a capacidade de agência desses sujeitos como os contextos de vulnerabilidade e os problemas de ordem estrutural da rede pública de saúde.

Há nas páginas que seguem um convite à análise crítica sobre o alcance das transformações propiciadas pelas políticas sexuais e de gênero contemporâneas. Em face do recrudescimento das forças conservadoras - observado nos últimos anos no mundo e, em particular, no Brasil - esperamos que a leitura dos trabalhos aqui reunidos estimule novas reflexões e ações de incidência política afins à manutenção das conquistas alcançadas e defesa de novos avanços no processo de reconhecimento da saúde e dos direitos da população trans.

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    Carrara S, Aguião S, Lopes PVL, Tota M. Retratos da política LGBT no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva; 2017.
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    Kullick D. Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013.
  • 3
    Mello L, Perilo M, Braz C, Pedrosa C. Políticas de saúde para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil: em busca de universalidade, integralidade e equidade. Sex Salud Soc (Rio J.) 2011; 9:7-28.
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    Pelúcio L. Abjeção e desejo uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de AIDS. São Paulo: Annablume; 2009.
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    Magno L, Silva LAV, Veras MA, Pereira-Santos M, Dourado I. Estigma e discriminação relacionados à identidade de gênero e à vulnerabilidade ao HIV/aids entre mulheres transgênero: revisão sistemática. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00112718.
  • 6
    Carrara S, Hernandez JG, Uziel AP, Conceição GMS, Panjo H, Baldanzi ACO, et al. Body construction and health itineraries: a survey among travestis and trans people in Rio de Janeiro, Brazil. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00110618.
  • 7
    Braz C. Vidas que esperam? Itinerários do acesso a serviços de saúde para homens trans no Brasil e na Argentina. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00110518.
  • 8
    Monteiro S, Brigeiro M. Experiências de acesso de mulheres trans/travestis aos serviços de saúde: avanços, limites e tensões. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00111318.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    20192019
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