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Nova Pragmática: fases e feições de um fazer

RESENHA REVIEW

Resenhado por/by: Joana Plaza Pinto

Professora Adjunta, UFG, Goiânia, E-mail: joplazapinto@gmail.com

Rajagopalan, Kanavillil. Nova Pragmática: fases e feições de um fazer. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. 296 p. (Lingua[gem]; 44).

Uma oportuna pergunta, senão a primeira, que surge do título do livro Nova Pragmática: fases e feições de um fazer, de Kanavillil Rajagopalan, é: o que é novo na "nova pragmática"? Depois de uma boa leitura dos capítulos do livro, o adjetivo "nova" mostra-se extraordinariamente adequado e produtivo, pois se aplica ao mesmo tempo à forma de se contar a história dos estudos pragmáticos, à interpretação de um autor em particular, John L. Austin, e à apropriação e circulação de suas ideias no mundo e no Brasil.

O livro reúne doze artigos de Rajagopalan sobre esses temas, em sua maioria já publicada anteriormente em diferentes periódicos e obras coletivas, oito publicados primeiramente em inglês e três em português – única exceção para o primeiro capítulo da obra, um relato atual do autor que ajuda a contextualizar a produção reunida. Essa reunião é, portanto, ela mesma nova, já que disponibiliza em língua portuguesa artigos antes de acesso restrito a leitoras e leitores de inglês, e, principalmente, compila reflexões dispersas nas publicações originais, oferecendo um conjunto concorde do percurso teórico do autor.

Ainda que se possa localizar o início das reflexões de Rajagopalan sobre a Pragmática e as interpretações e apropriações de Austin na década de 1980, quando da sua defesa de doutoramento, o livro apresenta artigos primeiramente publicados entre 1992 e 2009. Este corte temporal não é aleatório: como nos conta o próprio Rajagopalan no primeiro capítulo do livro, é em 1992 que ele, em estágio de pós-doutoramento na Universidade de Berkeley, tem a chance de elaborar aspectos fundamentais de sua posição crítica – crítica de crise e de problematização – em relação a esses temas. Crise porque reflete suas "crescentes desconfianças" (RAJAGOPALAN, 2010, p. 9) em relação a como essa área e esse importante autor vinham sendo representados na literatura hegemônica nacional e internacional. Problematização porque inaugura um confronto direto à "leitura oficial" de Austin, de seus estudos de atos de fala e, consequentemente, da constituição dos estudos pragmáticos. É essa nova posição que orienta as pesquisas de Rajagopalan a partir de 1992. Desde então, ele tem trabalhado no sentido de promover uma re-leitura das reflexões desenvolvidas por Austin, procurando "libertar" tais reflexões da leitura oficial promovida por John Searle e, para isso, usando predominantemente a crítica desconstrucionista de Jacques Derrida.

Para perceber a novidade desta posição, é interessante acompanhá-la como parte da trajetória dos estudos pragmáticos no mundo e no Brasil. A Pragmática, como área de estudos, tem sua história tradicionalmente remontada ao século XIX, com a virada linguística da filosofia "em direção aos problemas relativos ao uso da linguagem" (PINTO, 2011, p. 49). Como afirma Armengaud (2006, p. 9), a Pragmática é "uma das [áreas] mais vivas no cruzamento das pesquisas em filosofia e em linguística, atualmente indissociáveis", iniciadas com C. Peirce e W. James no final do XIX. O desenvolvimento desta área é, portanto, anterior à própria consolidação da Linguística, no início do século XX. Por outro lado, esta antiguidade dá fôlego e dinamicidade à história. Muita água rolou embaixo da ponte entre a Filosofia e a Linguística desde o século XIX até o momento: da tradição dos estudos lógicos aos estudos de atos de fala, da língua como sistema à língua como enunciação e acontecimento (CARDOSO, 2003).

Nesse meio tempo, sem dúvida, uma das águas mais torrenciais embaixo da ponte entre a Linguística e a Filosofia foi aquela jogada pelo filósofo inglês J. L. Austin. Em sua obra póstuma How to do things with words, de 1962, muitos problemas, até então deixados de lado pelos estudos filosóficos e linguísticos, ganham corpo e intensidade. Sob forte influência da filosofia do senso comum de G. E. Moore, Austin ofereceu, naquele momento, uma abordagem nova ao propor uma abordagem da linguagem como ação. No entanto, como ressalta Rajagopalan em diferentes capítulos do livro, a divulgação e a circulação dessa importante obra se deram sob a égide da interpretação oferecida, em 1969, por John Searle, ao lançar sua obra Speech acts. Como bem mostra Rajagopalan (2010, p. 115), desse ponto em diante, "Searle está invocando aí seu próprio (e supostamente merecido) status de herdeiro intelectual de Austin". Herdeiro ortodoxo, Searle apresenta-se também como uma espécie de testamenteiro ao gerir as disposições e cláusulas finais da interpretação de Austin no intrigante debate com o Derrida, por ocasião da tradução para o inglês, em 1977, na revista Glyph, da famosa conferência "Signature événement contexte", realizada em francês em 1971. Depois de quase dez anos de controle exclusivo sobre o espólio teórico de Austin, Searle começa a disputar espaço com um grupo cada vez maior de apropriações diversificadas das reflexões austinianas. Só para dar um exemplo do alcance dessa diversificação, aqui mesmo no Brasil: Nogueira (2005), numa intrigante abordagem da retórica de Searle, chega a apresentar este autor como um anti-Austin, ao invés de seu guardião fiel.

Nos capítulos VII e XI, Rajagopalan argumenta que o "inusitado senso de humor de Austin" (RAJAGOPALAN, 2010, p.144) abriu tantas brechas quanto possíveis em sua argumentação sempre nova e inovadora. É famoso, por exemplo, o fato de que Austin instaura distinções e classificações no decorrer do texto para em seguida professar o seu fim (cf. capítulo IV). Rajagopalan sintetiza (2010, p. 114):

Não é difícil observar que estamos falando, em última análise, de textos e assinaturas – dos textos e das assinaturas de Austin e Searle e, de fato, de centenas de outros que tentaram avaliar exatamente o que Austin tentou fazer com suas palavras (e também o que Searle tentou, em todos esses anos, fazer com Austin).

Mas Rajagopalan não nos oferece apenas um conjunto crítico negativo em oposição à interpretação de Searle; ele nos oferece também um conjunto crítico positivo de apropriação de Austin para se pensar, desde a ciclicidade dos problemas da filosofia, defendendo que a história sobressai no discurso filosófico na forma de narratividade (cf. cap. VIII), até o mito da racionalidade das atitudes linguísticas, criticando a relutância do próprio Austin em abandoná-lo (cf. cap. X)1 1 Agradeço particularmente a Karla Cristina dos Santos por me chamar a atenção para a importância exemplar destes dois capítulos. . Essa difusão plural das ideias de Austin é um interessante episódio na história do pensamento ocidental, tendo ido além das fronteiras disciplinares (ou mesmo confundido as categorias disciplinares). Como prova a variada literatura utilizada por Rajagopalan, é profícua a referência a Austin nos estudos do Direito, da Antropologia, da Literatura, da Sociologia, da Política, nos estudos feministas e nos estudos críticos, sem mencionar os estudos linguísticos teóricos e aplicados.

Toda esta profusão pode ser sentida em todos os capítulos do livro Nova Pragmática. E aqui retomo outro aspecto novo da obra: promover a divulgação capilar de Austin em língua portuguesa. Apesar do debate entre Searle e Derrida ter se difundido em tantas áreas a partir de 1977, criando fissuras na hegemonia interpretativa oferecida por Searle e iniciando a pluralização da abordagem de Austin, a Linguística fica alheia a grande parte desse debate. Santos (2007), ao descrever dois tipos de abordagens da obra de Austin – a cientificista e a desconstrutivista –, localiza autores da Linguística como componentes predominantes do primeiro tipo, e esta localização é consequência direta da mediação da leitura de Austin via Searle. No seu estimulante capítulo V, Rajagopalan (2010, 67 ss.) mostra como Searle procurou aproximar suas ideias das do eminente linguista Noam Chomsky, e dessa forma ganhar legitimidade no campo dos estudos da linguagem. Não por acaso, em pesquisa sobre as obras introdutórias aos estudos linguísticos em língua portuguesa, Franco e Pinto (2005) demonstram que, de vinte e duas obras encontradas, onze apresentam os estudos de atos de fala dentro da Linguística e, destas onze, apenas quatro não citam Searle – o que significa que a introdução a Austin no Brasil tem sido feita, predominantemente, através da interpretação de Searle.

É nesse deserto de pensamento único dos estudos de atos de fala – a Linguística em geral e a Linguística brasileira em particular – que Rajagopalan começa a publicar suas "desconfianças" e "críticas", inicialmente em português. Os três artigos originalmente publicados em português compõem o conjunto de textos mais antigos – capítulo IV de 1992, capítulo IX de 1996 e capítulo XII de 1999. Para quem não dominava a língua inglesa, para quem estava se iniciando e principalmente para quem queria diversificar as interpretações sobre Austin, os artigos de Rajagopalan eram a única fonte em português até o fim do século passado – quando, em 1998, Ottoni (1998) publicou em formato de livro sua tese de doutorado, presenteando as leitoras e leitores em português com uma primorosa tradução de uma conferência de Austin feita na França.

Quando, no início dos anos 2000, Rajagopalan restringe-se a publicar em inglês, o cenário volta a ficar árido, e o pequeno conjunto de seus artigos e mais o livro de Ottoni se tornam as únicas obras de referência para apresentar Austin em português – para estudantes de graduação e profissionais ávidas(os) por novas formas de se abordar os atos de fala para além da interpretação de Searle. A tradução e reunião de parte de seus tantos artigos numa única obra, republicando três de seus importantes textos em português e traduzindo outros oito, não apenas muda o sôfrego cenário, como oferece subsídios para novas leituras.

Como leitora desta longa e instigante produção de Rajagopalan sobre Austin, penso que este livro só é possível neste momento porque, se há vinte anos Rajagopalan era uma voz "excêntrica" (como tantas vezes eu mesma ouvi de colegas e professoras(es)) no contexto dos estudos pragmáticos no Brasil, hoje podemos ouvir ecos de suas ideias, que oferecem a chance de ampliar e pluralizar os pensamentos sobre Austin e oferecem subsídios para novas leituras. Afinal, o novo no livro Nova Pragmática é o que informa um percurso teórico – fases e feições – instigante, uma narrativa plural, viva, uma vasta e rica história de reflexões – a originalidade de um fazer teórico que se sempre se renova.

Recebido em abril de 2011

Aprovado em maio de 2011

  • Alencar, Claudiana Nogueira de. Searle interpretando Austin: a retórica do medo da morte nos estudos da linguagem Tese (Doutorado em Lingüística) - Universidade Estadual de Campinas, 2005.
  • Armengaud, Françoise. A Pragmática Trad.: Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. (Na ponta da língua; 8).
  • Cardoso, Silvia Helena Barbi. A questão da referência Campinas: Autores Associados, 2003.
  • Franco, Andréa Christina Mendes; Pinto, Joana Plaza. Introduções a Austin no Brasil: leituras oficiais ou heterodoxas? Relatório Final de Iniciação Científica, Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica, Universidade Federal de Goiás, 2005.
  • Ottoni, Paulo. Visão performativa da linguagem Campinas: Editora da Unicamp, 1998.
  • Pinto, Joana Plaza. Pragmática. Mussalin, Fernanda; Bentes, Anna Christina (org.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras v. 2. 7Ş ed. São Paulo: Cortez, 2011. p. 47-68.
  • Santos, Karla Cristina dos. Do cientificismo à desconstrução: o(a)s herdeiro(a)s de J. L. Austin e a problemática da teorização sobre a linguagem Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística) Universidade Federal de Goiás, 2007.
  • 1
    Agradeço particularmente a Karla Cristina dos Santos por me chamar a atenção para a importância exemplar destes dois capítulos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      2011
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