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Justiça como eqüidade: uma concepção política, não metafísica

ÉTICA, POLÍTICA E GESTÃO ECONÔMICA

Justiça como eqüidade: uma concepção política, não metafísica* * John Rawls, "Justice as fairness: political not metaphysical. Philosophy and Public Affairs, vol. 14, 3, 1985. ** Tradução de Regis de Castro Andrade.

John Rawls** * John Rawls, "Justice as fairness: political not metaphysical. Philosophy and Public Affairs, vol. 14, 3, 1985. ** Tradução de Regis de Castro Andrade.

Professor de Filosofia na Universidade de Harvard

Neste trabalho farei algumas observações gerais sobre como entendo neste momento a concepção de justiça a que chamei "justiça como equidade" (Justice as fairness), apresentada no meu livro Uma Teoria da Justiça1 1 Cambridge, MA, Harvard University Press, 1971. (N. T.: Uma Teoria da Justiça, Editora UnB, 1981, Brasília, DF, 461 pgs., Coleção Pensamento Político, Vol. 56, tradução de Vamireh Chacon). .

Faço isso porque pode parecer que tal concepção depende de proposições filosóficas que eu desejaria evitar, como por exemplo a presunção da verdade universal ou de uma natureza e identidade essenciais das pessoas. Meu objetivo é explicar por que não depende dessas proposições.

Discutirei em primeiro lugar o que me parece ser a tarefa da filosofia política em nosso tempo, em seguida, examinarei brevemente a maneira pela qual as idéias intuitivas básicas a que me ative na concepção de justiça como eqüidade combinam-se numa concepção política da justiça para uma democracia constitucional. Isso me levará a esclarecer como e por que essa concepção de justiça evita certas proposições filosóficas e metafísicas. Em síntese, sustento que numa democracia constitucional a concepção pública de justiça deveria ser, tanto quanto possível, independente das controvérsias doutrinárias, filosóficas e religiosas. Assim, para formular tal concepção, aplicamos o princípio da tolerância à própria filosofia: a concepção pública de justiça deve ser política, e não metafísica. Daí o título.

Quero deixar de lado a questão de saber se o texto de Uma Teoria da Justiça dá margem a leituras diferentes da que esboço aqui. Certamente eu modifiquei meu ponto de vista a respeito de um certo número de questões, e sem dúvida mudei meu modo de ver a respeito de algumas outras sem que me tivesse apercebido disso2 2 Várias dessas mudanças, ou deslocamentos de ênfase, são evidentes nas três palestras intituladas "Kantian Constructivism in Moral Theory" in Journal of Philosophy nº 77, Setembro de 1980. Por exemplo, a explanação do que eu chamei "bens primários" foi revista, mostrando que eles dependem claramente de uma concepção particular das pessoas e seus interesses de ordem superior; segue-se que essa explanação não é uma tese puramente psicológica, sociológica, ou histórica. Ver pp. 526 e s. s.. Também se encontra nessas palestras uma ênfase mais explícita no papel de uma concepção da pessoa bem como na idéia de que a justificação de uma concepção da justiça é mais uma tarefa social prática do que um problema epistemológico ou metafísico. Ver pp. 518 e s. s.. A introdução da idéia de "construtivismo kantiano" está relacionada a essa questão, especialmente na terceira palestra. Note-se, contudo, que não proponho essa idéia como uma idéia kantiana; o adjetivo "kantiana" indica analogia, não identidade, isto é, a similitude existe num número suficiente de aspectos fundamentais para tornar apropriado o adjetivo. Esses aspectos fundamentais são certas características da justiça, como equidade e constituem elementos do seu conteúdo, tais como a distinção entre o que podemos denominar o Razoável e o Racional, a prioridade do direito e o papel da concepção das pessoas como livres e iguais, capazes de autonomia, e assim por diante. Similitudes de características estruturais e de conteúdo não podem ser confundidas com a visão de Kant sobre questões de epistemologia e metafísica. Finalmente, devo observar que o título dessas palestras, "Kantian Constructivism in Moral Theory", levou a mal-entendidos: posto que a concepção discutida de justiça é uma concepção política, um título melhor teria sido "Kantian Constructivism in Political Philosophy". A questão de saber se o construtivismo é razoável para a filosofia moral é rama questão separada e mais geral. . Reconheço ainda que certos defeitos de exposição bem como passagens obscuras e ambíguas de Uma Teoria da Justiça levam a mal-entendidos; mas penso que não é necessário preocuparmo-nos com essas questões aqui, e não tratarei delas senão em algumas notas de rodapé. Para os objetivos deste trabalho, bastará, em primeiro lugar, mostrar como uma concepção de justiça com a estrutura e o conteúdo da justiça como equidade pode ser entendida como uma concepção política e não metafísica e, em segundo lugar, explicar por que devemos buscar tal concepção numa sociedade democrática.

I

Que a justiça como equidade pretende ser uma concepção política da justiça é algo que eu não disse em Uma Teoria da. Justiça, ou pelo menos que não enfatizei o bastante. Uma concepção política da.justiça, claro, é uma concepção moral, mas é uma concepção moral elaborada para um certo tipo de questão: especificamente, para as instituições políticas, sociais e econômicas. Em especial, a justiça como equidade é pensada para aplicação ao que chamei a "estrutura básica" de uma democracia constitucional moderna3 3 Theory, seção 2; ver também o índice. Ver também "The Basic Structure as Subject", in Values and Morals, ed. por Goldman, Alvin e Kim, Jaegwon, Dordrecht Reidel, 1978, pp. 47-71. . (Usarei as expressões "democracia constitucional", "regime democrático" e outras semelhantes como expressões intercambiáveis). A estrutura básica designa as principais instituições políticas, sociais e econômicas dessa sociedade, e o modo pelo qual elas se combinam num sistema de cooperação social. As questões de saber se a justiça como equidade pode ser estendida a uma concepção política geral aplicável a outros tipos de sociedades existindo em condições históricas e sociais distintas, ou de saber se pode ser estendida a uma concepção moral geral ou parte significativa dela, são questões que não dizem respeito à presente discussão. Evitarei portanto prejulgá-las num sentido ou noutro.

Também quero deixar claro que a justiça como equidade não se concebe como aplicação de uma concepção moral geral à estrutura básica da sociedade, como se essa estrutura fosse apenas mais um caso ao qual tal concepção moral geral poderia ser aplicada4 4 Ver "Basic Structure as Subject", ibidem, pp. 48-50. . A esse respeito, a justiça como equidade difere das doutrinas morais tradicionais, geralmente consideradas concepções gerais. O utilitarismo é um exemplo familiar, pois o princípio da utilidade, qualquer que seja a sua formulação, vale para tudo, como usualmente se supõe: desde ações individuais até as lei das nações. O ponto essencial é este: do ponto de vista político prático, nenhuma concepção moral geral pode fornecer uma base publicamente reconhecida para uma concepção de justiça num Estado democrático moderno. As condições sociais e históricas de tal Estado originaram-se nas guerras de religião que se seguiram à Reforma e no desenvolvimento subsequente do princípio da tolerância, bem como na expansão do governo constitucional e das instituições das grandes economias industriais de mercado. Essas condições afetam profundamente os requisitos de uma concepção praticável de justiça política: tal concepção tem de dar espaço a uma diversidade de doutrinas e à pluralidade de concepções conflitantes e, na verdade, incomensuráveis, do bem tal como adotados pelos membros das sociedades democráticas existentes.

Finalmente, para concluir essas observações introdutórias: posto que a justiça como equidade se propõe como uma concepção política da justiça para uma sociedade democrática, ela procura valer-se apenas das idéias intuitivas básicas que estão inscritas nas instituições de um regime constitucional democrático e nas tradições públicas da sua interpretação. A justiça como equidade é uma concepção política em parte porque tem origem numa certa tradição política. Espero que essa concepção política da justiça possa pelo menos ser amparada pelo que poderemos chamar uma "interface consensual" ("overlapping consensus"), isto é, por um consenso incluindo todas as doutrinas filosóficas e religiosas opostas que podem persistir e atrair adeptos numa sociedade democrática constitucional mais ou menos justa5 5 Essa idéia foi introduzida em Theory pp. 387 e s. s., como um recurso para reduzir as condições da razoabilidade da desobediência civil numa sociedade democrática quase (nearly) justa. Aqui e depois, nas seções VI e VII, ela é utilizada num contexto mais amplo. .

II

Há várias maneiras, é claro, de entender a filosofia política, e autores vivendo em épocas distintas, defrontados a diferentes circunstâncias sociais e políticas, conceberam seu trabalho de modo diverso. Eu tomaria a justiça como equidade como uma concepção da justiça para uma democracia constitucional que é razoavelmente sistemática e praticável, como uma concepção que oferece uma alternativa ao utilitarismo predominante em nossa tradição de pensamento político. Sua primeira tarefa é propiciar uma base mais segura e mais aceitável do que a base utilitarista para os princípios constitucionais e para os direitos e liberdades fundamentais6 6 Theory, prefácio, p. VIII. . A necessidade de tal concepção política se demonstra como segue.

Há períodos - às vezes longos - na história de qualquer sociedade durante os quais certas questões fundamentais suscitam controvérsias políticas agudas polarizadas, e parece difícil, senão impossível, encontrar qualquer base compartilhada de acordo político. Realmente, certas questões podem revelar-se imanejáveis e não ter solução plena. Uma das tarefas da filosofia política numa sociedade democrática é debruçar-se sobre essas questões e examinar se alguma base subjacente de acordo pode ser descoberta e se um modo mutuamente aceitável de resolvê-las pode ser publicamente estabelecido. Alternativamente, se essas questões não podem ser plenamente resolvidas, como pode ocorrer, talvez se possa diminuir suficientemente a divergência de opinião de modo a que a cooperação política com base no respeito mútuo possa ainda ser mantida7 7 Ib. pp. 582 e s. s.. Sobre o papel de uma concepção de justiça na redução da divergência de opinião, ver pp. 44 e ss., 53, 314 e 564. Em várias passagens indiquei o objetivo limitado no desenvolvimento da concepção de justiça: ver p. 364 a respeito de não se esperar muito de uma explanação da desobediência civil; pp. 200 e ss. sobre a indeterminação inevitável de uma concepção de justiça quanto à especificação de uma série de pontos de vista dos quais questões de justiça podem ser resolvidas; pp. 89 e ss. sobre a sabedoria social em reconhecer que talvez apenas uns poucos problemas morais (teria sido melhor dizer: problemas de justiça política) podem ser satisfatoriamente resolvidos, e, assim, em moldar instituições de maneira a que questões intratáveis não surjam; nas pp. 53 e 87 e ss. a necessidade de aceitar simplificações é enfatizado. A respeito do último ponto, ver também "Kantian Constructivism", p. p. 560-64. .

A trajetória do pensamento democrático nos dois últimos séculos mostra-nos que não há acordo sobre como estabelecer as instituições básicas de uma democracia constitucional que especifiquem e assegurem os direitos e liberdades básicos dos cidadãos e atendam às demandas de igualdade democrática quando os cidadãos são considerados pessoas livres e iguais (conforme explico nos últimos três parágrafos da seção III).

Há um profundo desacordo sobre como os valores da liberdade e da igualdade são realizados, da melhor forma possível, na estrutura básica da sociedade. Simplificando, podemos conceber esse desacordo como um conflito, no âmbito da própria tradição do pensamento democrático, entre a tradição associada a Locke, que dá ênfase ao que Constant denominou "as liberdades dos modernos" - liberdade de pensamento e de consciência, certos direitos básicos da pessoa e de propriedade, e o império da lei - e a tradição associada a Rousseau, que enfatiza o que Constant chamou "as liberdades dos antigos"; as liberdades políticas iguais e os valores da vida pública. Tal como o apresento, esse contraste é estilizado e historicamente impreciso, mas serve para fixar as idéias.

A justiça como equidade tenta decidir a pendência entre essas tradições em confronto propondo, em primeiro lugar, dois princípios de justiça para servir de fios condutores no tratamento de como as instituições básicas podem realizar os valores da liberdade e da igualdade, e em segundo lugar, especificando um ponto de vista do qual esses princípios surgem como mais apropriados do que outros princípios de justiça à natureza dos cidadãos democráticos enquanto pessoas livres e iguais. O que significa conceber os cidadãos como pessoas livres e iguais é com certeza uma questão fundamental; essa questão é discutida nas seções seguintes. O que é preciso demonstrar é que um certo arranjo da estrutura básica, certas formas institucionais, são mais apropriadas à realização dos valores da liberdade e da igualdade quando os cidadãos são considerados pessoas (muito resumidamente) detentoras das necessárias capacidades de personalidade moral que as habilitam a participar da sociedade vista como um sistema de cooperação justa para o benefício mútuo. Continuando, pois, os dois princípios de justiça (mencionados acima) são os seguintes:

1. Cada pessoa tem direito igual a um esquema plenamente adequado de direitos e liberdades básicas iguais, sendo esse esquema compatível com um esquema similar para todos.

2. As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, elas devem estar ligadas a cargos e posições abertos a todos em condições de justa igualdade de oportunidade; segundo, elas devem beneficiar maiormente os membros menos favorecidos da sociedade. Cada um desses princípios aplica-se a uma parte diferente da estrutura básica; ambos dizem respeito não somente aos direitos, liberdades e oportunidades básicos, mas também às demandas de igualdade; a segunda parte do segundo princípio subscreve o valor (worth) dessas garantias institucionais8 8 A explanação desses princípios difere da que fiz na Theory, e acompanha a que apresentei em "The Basic liberties and their Priority", Tanner Lectures on Human Values, vol. III (University of Utah Press, Salt Lake City, 1982), p. 5. As razões dessas mudanças são discutidas nas pp. 46-55 daquela palestra. Elas são importantes para as revisões da exposição das liberdades básicas feita na Theory, revisões essas que visavam responder às objeções levantadas por H. L. A. Hart. Mas não há necessidade de considerá-las aqui. . Em conjunto, e se se dá prioridade ao primeiro, eles regulam as instituições básicas que realizam esses valores9 9 A idéia do valor (worth) dessas garantias é discutido em ib., pp. 40 e s.s.. . Esses detalhes, contudo, embora importantes, não nos interessam aqui.

Temos agora de perguntar-nos: como poderia a filosofia política descobrir uma base de acordo para resolver uma questão tão fundamental como a de estabelecer as formas institucionais mais apropriadas à liberdade e à igualdade? É provável, claro, que o máximo que pode ser feito é reduzir a margem de desacordo público. Ainda assim, mesmo convicções firmes mudam gradualmente: a tolerância religiosa é hoje aceita, e argumentos em favor das perseguições não são apresentadas abertamente; similarmente, a escravidão é rejeitada como algo inerentemente injusto, e por mais que sequelas da escravidão persistam nas práticas sociais, ninguém se dispõe a defendê-la. Nós recolhemos tais convicções consolidadas como a crença na tolerância religiosa e a recusa da escravidão e tentamos organizar as idéias e princípios básicos implícitos nessas convicções numa concepção coerente de justiça. Podemos tomar essas convicções como pontos fixos provisórios que qualquer concepção de justiça razoável para nós deve explicar. Consideramos, então, nossa própria cultura política pública, incluindo nela suas principais instituições e as tradições históricas de sua interpretação, como o fundo compartilhado de idéias e princípios básicos implicitamente reconhecidos. A esperança é de que essas idéias e princípios possam ser formulados com clareza suficiente para que sejam combinados numa concepção de justiça política que tenha afinidade com nossas convicções mais firmes. Expressamos isso dizendo que, para ser aceitável, uma concepção política da justiça deve estar de acordo com nossas convicções refletidas em todos os níveis de generalidade, com base na devida reflexão (ou ainda, devem estar de acordo com nossas convicções no que chamei de "equilíbrio reflexivo")10 10 Theory, pp. 20 e ss., 48-51 e 120 e ss. .

A cultura política pública pode estar cindida mesmo num nível muito profundo. Na verdade, isso deve acontecer no caso de uma controvérsia tão duradoura como a que diz respeito às formas institucionais mais apropriadas à realização dos valores da liberdade e da igualdade. Isso sugere que se pretendemos estabelecer a base de um acordo público, teremos de descobrir uma nova maneira de organizar idéias e princípios familiares numa concepção de justiça política, de tal forma que as proposições em conflito, tal como consideradas acima, sejam vistas sob outra luz. Uma concepção política não tem de ser uma criação original, ela pode apenas articular idéias e princípios familiares intuitivos de modo a que se possa reconhecer a possibilidade de eles se combinarem de maneira nova. Tal concepção, no entanto, pode ir além, pode organizar essas idéias e princípios familiares por meio de uma idéia intuitiva mais fundamental no interior de cuja estrutura complexa as outras idéias familiares intuitivas são então sistematicamente conectadas e relacionadas. Em justiça como equidade, como veremos na próxima seção, essa ideia mais fundamental é a da sociedade como um sistema de cooperação social equitativa entre pessoas livres e iguais. A interrogação desta seção é como poderíamos descobrir uma base pública de acordo político. O ponto central é o de que uma concepção de justiça somente poderá alcançar esse objetivo se oferecer uma maneira razoável de dar forma, numa visão coerente, às bases mais profundas de acordo inscritas na cultura política pública de um regime constitucional e aceitáveis para as suas mais firmes convicções refletidas.

Suponhamos que a justiça como equidade possa alcançar esse objetivo e que uma concepção política publicamente aceitável de justiça seja encontrada, Nesse caso essa concepção, oferece um ponto de vista publicamente reconhecido do qual todos os cidadãos podem examinar, uns perante os outros, se suas instituições políticas e sociais são justas ou não. Ela torna isso possível mencionando o que é reconhecido entre eles como razões válidas e suficientes especificadas por aquela concepção. As principais instituições da sociedade e a maneira pela qual se ajustam num esquema de cooperação social podem ser examinadas sobre a mesma base por cada cidadão, quaisquer que sejam sua posição social ou interesses particulares. Deve-se notar que, nesse modo de ver, não se considera a justificação simplesmente como um argumento válido a partir das premissas apresentadas, ainda que essas premissas sejam verdadeiras. A justificação é antes dirigida aos outros que discordam de nós, e portanto tem de proceder sempre de algum consenso, isto é, de premissas que nós e os outros reconheçamos publicamente como verdadeiras ou, melhor ainda, reconhecemos publicamente como aceitáveis para nós para o fim de estabelecer um acordo operativo sobre as questões fundamentais da justiça política. Não seria necessário dizer que esse acordo deve ser informado e livre de coerções, e alcançado pelos cidadãos de maneira compatível à concepção que deles temos como pessoas livres e iguais11 11 Ib. pp. 580-85. .

Assim, o objetivo da justiça como equidade como uma concepção política é prático, e não metafísico ou epistemológico. Ou seja, apresenta-se não como uma concepção da justiça que é verdadeira, mas como uma concepção que pode servir- de base a um acordo político informado e voluntário entre cidadãos vistos como pessoas livres e iguais. Quando firmemente fundado em atitudes políticas públicas e sociais, esse acordo sustenta os bens de todas as pessoas e associações num regime democrático justo. Para assegurar esse acordo, tentamos, tanto quanto possível, evitar questões filosóficas, bem como morais, religiosas e polêmicas. Não o fazemos porque sejam questões sem importância, ou porque as consideremos com indiferença12 12 Ib. pp. 214 e ss. , mas porque as consideramos como muito importantes, e reconhecemos a impossibilidade de resolvê-las politicamente. A única alternativa ao princípio da tolerância é a utilização autocrática do poder do Estado. Assim, a justiça como equidade permanece delibera -damente na superfície, filosoficamente falando. Dadas as profundas diferenças de crenças e concepções do bem pelo menos desde a Reforma, temos de reconhecer que, assim como em questões de doutrina religiosa ou moral, um acordo público sobre as questões filosóficas básicas não pode ser alcançado sem o desrespeito estatal das liberdades básicas. A filosofia como a busca da verdade a respeito de uma ordem metafísica e moral independente não pode, creio, oferecer uma base compartilhada operativa para uma concepção política da justiça numa sociedade democrática.

Tentamos deixar de lado, portanto, as controvérsias filosóficas sempre que possível, e descobrir maneiras de evitar os permanentes problemas da filosofia. Assim, no que chamei de "construtivismo kantiano" tentamos evitar o problema da verdade e a controvérsia entre realismo e subjetivismo a respeito do estatuto dos valores morais e políticos. Essa forma de construtivismo nem afirma nem nega essas doutrinas13 13 Sobre o construtivismo kantiano, ver especialmente a terceira palestra mencionada na nota 2 acima. . Ela refunde idéias da tradição do contrato social para alcançar uma concepção praticável da objetividade e da justificação fundada num acordo público de entendimento devidamente refletido. O objetivo é o acordo livre, a reconciliação através da razão pública. E de modo semelhante, como veremos na seção V, uma concepção da pessoa numa visão política - por exemplo, na concepção dos cidadãos como pessoas livres e iguais - não envolve necessariamente, creio, questões de psicologia filosófica ou uma doutrina metafísica sobre a natureza do Eu. Nenhuma visão política que dependa dessas questões profundas e não resolvidas pode servir como concepção pública da justiça num Estado democrático constitucional. Como eu disse, temos de aplicar o princípio da tolerância à própria filosofia. A esperança é de que, através desse método de esquiva (method of avoidancé), como poderíamos chamá-lo, as diferenças existentes entre visões políticas concorrentes possam pelo menos ser moderadas, senão inteiramente removidas, de tal maneira que a cooperação social com base no respeito mútuo possa ser mantida. Alternativamente, caso isso seja esperar demais, esse método pode permitir-nos conceber como, dado o desejo de um acordo livre de coerção, um entendimento público coerente com as condições históricas e restrições (constraints) do nosso mundo social pode emergir. Enquanto não pudermos conceber como isso poderia ocorrer, não pode ocorrer.

III

Examinaremos agora brevemente algumas das idéias básicas que constituem a justiça como equidade para mostrar que essas idéias pertencem a uma concepção política da justiça. Como indiquei, a idéia global fundamental intuitiva, no interior da qual outras idéias básicas intuitivas são sistematicamente conectadas, é a idéia da sociedade como um sistema equitativo de cooperação entre pessoas livres e iguais. A justiça como equidade parte dessa idéia como uma das idéias intuitivas básicas que consideramos implícitas na cultura pública de uma sociedade democrática14 14 Embora a Theory utilize essa idéia desde o início (ela é introduzida na p. 4), ela não enfatiza, como faço aqui e em "Kantian Constructivism", que as idéias básicas da justiça como equidade são consideradas implícitas ou latentes na cultura política de uma sociedade democrática. . No seu pensamento político, e no contexto de uma discussão pública de questões políticas, os cidadãos não vêem a ordem social como uma ordem natural fixa, ou como uma hierarquia institucional justificada por valores religiosos ou aristocráticos. Neste ponto é importante sublinhar que de outros pontos de vista - por exemplo, do ponto de vista da moralidade pessoal, ou dos membros de uma associação, ou da doutrina religiosa ou filosófica adotada por uma pessoa - vários aspectos do mundo e da relação de uma pessoa com ele podem ser vistos de maneira diversa. Mas esses outros pontos de vista não devem ser introduzidos na discussão política.

Podemos especificar a idéia de cooperação social mencionando três de seus elementos:

1. A cooperação é distinta da atividade meramente coordenada socialmente, como por exemplo a atividade coordenada por ordens emanadas de uma autoridade central. A cooperação é guiada por normas e procedimentos publicamente reconhecidos, que são aceitos pelos que cooperam como normas e procedimentos que regulam apropriadamente suas condutas.

2. A cooperação envolve a idéia de termos equitativos de cooperação: termos que cada participante pode razoavelmente aceitar, contanto que todos os demais também os aceitem. Termos equitativos de cooperação especificam uma idéia de reciprocidade ou mutualidade: todos os que estão envolvidos na cooperação e fazem sua parte de acordo com o que as normas e procedimentos requerem, devem beneficiar-se de algum modo apropriado com respeito a Um marco de comparação adequada. Uma concepção de justiça política caracteriza os termos equitativos da cooperação social. Visto que a questão primeira da justiça é a estrutura básica da sociedade, isso se consegue na justiça como equidade mediante a formulação de princípios que especificam os direitos e deveres básicos no interior das principais instituições da justiça ao longo do tempo, de tal modo que os benefícios produzidos pelos esforços de todos sejam equitativamente adquiridos e divididos de uma geração para a subsequente.

3. A idéia da cooperação social requer uma idéia da vantagem racional, ou bem, de cada participante. Essa idéia de bem especifica aquilo que os envolvidos na cooperação - sejam eles indivíduos, famílias ou associações, ou mesmo Estados-nação - estão tentando obter, quando o esquema é considerado de seu ponto de vista.

Consideremos agora a idéia de pessoa15 15 Desejo enfatizar que uma concepção da pessoa tal como a entendo aqui é uma concepção normativa, seja ela legal, política, moral ou mesmo filosófica ou religiosa, dependendo da visão geral à qual pertence. Neste caso a concepção da pessoa é moral; ela parte da nossa concepção cotidiana das pessoas como unidades básicas de pensamento, deliberação e responsabilidade; é adaptada a uma concepção política de justiça e não a uma doutrina moral abrangente. Na verdade, é uma concepção política da pessoa, e dados os objetivos da justiça como equidade, é uma concepção de cidadãos. Assim, a concepção da pessoa deve ser distinta de uma explanação da natureza humana formulada pela ciência natural ou pela teoria social. Sobre esse ponto, ver "Kantian Constructivism", pp. 534 e ss. . Evidentemente, há muitos aspectos da natureza humana que podem ser selecionados como especialmente significativos, dependendo de nosso ponto de vista. Testemunham-no expressões como homo politicus, homo oeconomicus, homo faber, e outras que tais. A justiça como equidade parte da idéia de que a sociedade deve ser concebida como um sistema equitativo de cooperação, e adota uma concepção de pessoa adequada a essa idéia. Desde os gregos, na filosofia como no direito, o conceito de pessoa foi entendido como o conceito de alguém que pode participar da vida social, ou nela desempenhar um papel, e que portanto pode exercer e respeitar os vários direitos e deveres a ela inerentes. Desse modo, dizemos que uma pessoa é alguém que pode ser um cidadão, isto é, um membro plenamente cooperativo da sociedade ao longo de uma vida completa. Adiciono a frase "ao longo de uma vida completa" porque a sociedade é vista como um esquema mais ou menos completo e auto-suficiente de cooperação, abrindo espaço em seu interior para todas as necessidades e atividades da vida, do nascimento à morte. Uma sociedade não é uma associação para finalidades mais limitadas; os cidadãos não se agregam à sociedade voluntariamente, mas nascem nela, onde, para nossos fins aqui, presumimos que viverão suas vidas.

Dado que nosso ponto de partida é a tradição de pensamento democrático, também pensamos que os cidadãos são pessoas livres e iguais. A idéia intuitiva básica é a de que, em virtude do que podemos chamar suas capacidades morais, e das capacidades da razão - o pensamento e o juízo, associados a essas capacidades - dizemos que as pessoas são livres. E em virtude de possuírem essas capacidades em grau necessário a que sejam membros plenamente cooperativos da sociedade, dizemos que as pessoas são iguais16 16 Theory, seção 77. . Podemos elaborar essa concepção da pessoa como segue. Como as pessoas podem ser participantes plenos de um sistema equitativo de cooperação social, atribuímos a elas as duas capacidades morais associadas aos elementos presentes na idéia de cooperação social acima exposta, a saber, a capacidade de um senso de justiça e a capacidade de uma concepção do bem. O senso de justiça é a capacidade de entender, de aplicar e de agir a partir da concepção pública de justiça que caracteriza os termos equitativos da cooperação social. A capacidade de concepção do bem é a capacidade da pessoa de formar, de revisar e racionalmente perseguir uma concepção da vantagem racional, ou do bem. No caso da cooperação social, esse bem não pode ser entendido estreitamente, mas como uma concepção do que é valioso na vida humana. Assim, a concepção do bem consiste normalmente num esquema mais ou menos determinado de fins últimos, isto é, fins que desejamos realizar por eles próprios, bem como ligações com outras pessoas e lealdades a vários grupos e associações. Essas ligações e lealdades dão origem a afeições e devoções, e portanto o florescimento das pessoas e associações que são objeto desses sentimentos é também parte da nossa concepção do bem. Além disso, temos de incluir também nessa concepção uma visão da nossa relação com o mundo - religiosa, filosófica ou moral - por referência à qual o valor (value) e o significado de nossos fins e ligações podem ser entendidos.

Além de possuir as duas capacidades morais, as capacidades de senso de justiça e de concepção do bem, as pessoas também têm, a todo momento dado, uma concepção particular do bem que tentam obter. Posto que desejamos partir da idéia da sociedade como um sistema equitativo de cooperação, presumimos que as pessoas como cidadãos possuem todas as capacidades que os habilitam para a condição de membros normais e plenamente cooperativos da sociedade. Isso não implica que ninguém jamais caia doente ou sofra um acidente; tais infelici-dades ocorrem no curso da vida humana, e recursos devem ser previstos para enfrentá-las. Mas para nossos fins aqui, deixo de lado inabilitações físicas permanentes ou afecções mentais severas a ponto de impedir as pessoas de ser membros normais e plenamente cooperativos da sociedade no sentido usual.

A concepção de pessoas como seres que possuem as duas capacidades morais, e que portanto são livres e iguais, é também uma idéia básica intuitiva presumidamente implícita na cultura pública de uma sociedade democrática. Note-se, contudo, que ela se forma mediante idealização e simplificação de várias maneiras. Fazemos isso para obter uma visão clara e distinta do que para nós é a questão fundamental da justiça política, a saber, qual é a concepção de justiça mais apropriada para especificar os termos da cooperação social entre cidadãos considerados como pessoas livres e iguais, e como membros normais e plenamente cooperativos da sociedade ao longo de uma vida completa. Essa questão tem sido o foco da crítica liberal da aristocracia, da crítica socialista da democracia liberal constitucional e do conflito entre liberais e conservadores no presente a respeito das reivindicações da propriedade e a respeito da legitimidade (em oposição à eficiência) das políticas sociais associadas ao assim chamado welfare state.

IV

Tratarei agora da questão da posição originária17 17 Ib. seção 4, capítulo 3, e o índice. . Essa idéia é introduzida para trabalhar a questão de saber que concepção tradicional da justiça, ou que variante de uma dessas concepções, especifica os princípios mais apropriados à realização da liberdade e da igualdade, considerada a sociedade como um sistema de cooperação entre pessoas livres e iguais. Presumindo que tal seja nosso objetivo, vejamos por que introduzimos a idéia da posição originária e como ela serve àquele objetivo.

Consideremos mais uma vez a idéia de cooperação social, e formulemos as seguintes questões: como são determinados os termos equitativos da cooperação? Serão eles simplesmente definidos por uma agência externa, distinta das pessoas em cooperação? Serão eles, por exemplo, postos pela lei de Deus? Ou são eles termos que devem ser reconhecidos por essas pessoas como equitativos, por referência a seu conhecimento de uma ordem morai precedente e independente? Por exemplo, deve-se considerar tais termos como requerimentos da lei natural ou de um reino de valores conhecidos através da intuição racional? Ou ainda, deverão esses termos ser estabelecidos por um empreendimento comum das próprias pessoas, à luz do que elas consideram ser seu mútuo benefício? Dependendo da resposta que dermos, obteremos diferentes concepções da cooperação.

Dado que a justiça como equidade refunde a doutrina do contrato social, ela adota a forma da última resposta: os termos equitativos da cooperação social são concebidos como objeto de um acordo entre os participantes da cooperação, isto é, como objeto de um acordo entre pessoas livres e iguais enquanto cidadãos nascidos na sociedade em que vivem suas vidas. Mas seu acordo, como qualquer outro acordo válido, deve ser estabelecido sob condições apropriadas.. Em particular, essas condições devem situar equitativamente pessoas livres e iguais, e não conceder a algumas pessoas maior poder de barganha que a outras. Além disso, ameaças de força te coerção, mentira e fraude, e assim por diante, devem ser excluídas.

Até aqui, tudo bem. As considerações acima dizem respeito à vida cotidiana, e são familiares. Mas acordos na vida cotidiana são estabelecidos em situações mais ou menos específicas, inscritas no pano de fundo das instituições da estrutura básica. Nossa tarefa, contudo, é estender a idéia de acordo ao próprio pano de fundo. Defrontamo-nos aqui a uma dificuldade de toda concepção política de justiça que usa a idéia de contrato, social ou outro. A dificuldade é esta: temos de descobrir um ponto de vista distante das características e circunstâncias do pano de fundo abrangente, e não distorcida por ele, a partir do qual um acordo equitativo entre pessoas livres e iguais possa ser estabelecido. Tal ponto de vista, que tem a característica que chamei de "véu da ignorância", é a posição originária18 18 "Sobre o véu da ignorância, ver ib, seção 24, e o índice. . A razão pela qual a posição originária tem de ser abstraída das contingências do mundo social e não ser afetada por elas é a de que as condições de um acordo equitativo sobre os princípios da justiça política entre pessoas livres e iguais deve eliminar o poder superior de barganha que inevitavelmente emerge do pano de fundo das instituições de qualquer sociedade, como resultado de tendências cumulativas sociais, históricas e naturais. Esse poder contingente e influências acidentais herdadas do passado não devem influir num acordo sobre os princípios que devem regular as instituições da própria estrutura básica, do presente para o futuro.

Aqui nos defrontamos a uma segunda dificuldade que, no entanto, é apenas aparente. Explicando: depreende-se do que acabei de dizer que a posição originária deve ser vista como um artifício de representação, e portanto qualquer acordo alcançado pelas partes deve ser encarado como ao mesmo tempo hipotético e não-histórico. Mas nesse caso, posto que acordos hipotéticos não são vinculantes, qual é a significação da posição originária?19 19 Essa questão foi levantada por Ronald Dworkin na primeira página do seu ensaio tão iluminador e para mim altamente instrutivo, "Justice and Rights" (1973) republicado em Taking Rights Seriously (Harvard University Press, Cambridge MA, 1977). Dworkin examina várias maneiras de explicar o uso da posição originária numa concepção da justiça que invoca a idéia do contrato social. Na última parte desse ensaio (pp. 173-83), depois de ter examinado algumas das características construtivistas da justiça como equidade (pp. 159-168) e argumentado que ela é uma visão baseada em direitos e não no dever ou em objetivos (pp. 168-77), ele propõe que consideremos a posição originária com o véu da ignorância como modeladora da força do direito natural que as pessoas têm à atenção e respeito iguais na formulação das instituições políticas que os governam (p. 180). Ele pensa que esse direito natural está na base da justiça como equidade e que a posição originária serve como um recurso para testar quais os princípios de justiça são requeridos por esse direito. Essa é uma sugestão engenhosa, mas não a acompanhei no texto. Eu prefiro não conceber a justiça como equidade como uma visão baseada em direitos; na verdade, a classificação de Dworkin - visões baseadas em direitos, no dever ou em objetivos - é muito estreita e não contempla importantes possibilidades. Assim, como expliquei na seção II acima, eu penso que a justiça como equidade elabora em termos de concepções idealizadas certas idéias intuitivas fundamentais, como as de pessoas livres e iguais, de sociedade bem ordenada e do papel público de uma concepção de justiça política; penso ainda que ela conecta essas idéias intuitivas fundamentais com a idéia intuitiva, ainda mais fundamental e abrangente, da sociedade enquanto sistema equitativo de cooperação ao longo do tempo de uma geração à outra. Direitos, deveres e objetivos são apenas elementos dessas concepções idealizadas. Assim, a justiça como equidade é uma visão baseada em concepções, ou, como me foi sugerido por Elizabeth Anderson, baseada em ideais, visto que essas idéias intuitivas fundamentais refletem ideais implícitos ou latentes na cultura pública de uma sociedade democrática. Nesse contexto a posição originária é um artifício de representação que modela não a força do direito natural à atenção e ao respeito iguais, mas dos elementos essenciais dessas idéias intuitivas fundamentais tais como identificadas pelas razões dos princípios de justiça que aceitamos refletidamente. Enquanto tal, esse artifício serve primeiro para combinar e depois para enfocar a força resultante de todas essas razões ao selecionar os princípios de justiça mais apropriados a uma sociedade democrática (fazendo-se isso, a força do direito natural à atenção e ao respeito iguais será coberta de outras maneiras). Essa explanação originária é semelhante em alguns aspectos a uma explanação que Dworkin rejeita na primeira página do seu ensaio especialmente pp. 153 e ss.. Em vista da ambiguidade e obscuridade da Theory em muitos pontos considerados por Dworkin, não é meu objetivo criticar sua valiosa discussão, mas apenas indicar a diferença entre meu entendimento e o dele. Outros poderão preferir a explanação de Dworkin. A resposta está implícita no que já foi dito: a significação é dada pelo papel das várias características da posição originária como um artifício de representação. Assim, requer-se que as partes sejam simetricamente situadas para que se possa vê-las como representativas de cidadãos livres e iguais buscando um acordo sob condições equitativas; Ademais, uma das nossas convicções refletidas, presumo, é esta: o fato de ocuparmos uma posição social particular não é uma boa razão para aceitarmos, ou para esperarmos que outros aceitem, uma concepção de justiça que favorece os que ocupam essa posição. Para que essa convicção se incorpore à posição originária fica vedada às partes conhecer sua posição social; e a mesma idéia estende-se a outros casos. Isso pode ser expresso significativamente dizendo-se que as partes encontram-se atrás de um véu de ignorância. Em suma, a posição originária é simplesmente um artifício de representação: ela descreve as partes, cada uma das quais é responsável pelos interesses essenciais de uma pessoa livre e igual, como partes situadas equitativamente e estabelecendo um acordo sujeito às restrições apropriadas sobre o que se deva tomar como boas razões20 20 A posição originária modela uma característica básica do construtivismo kantiano, a saber, a distinção entre o Razoável e o Racional, com o Razoável precedendo o Racional (para uma explicação dessa distinção, ver "Kantian Constructivism", pp. 528-32 e passim). Aqui a relevância dessa distinção está em que, de maneira mais ou menos coerente, a Theory fala não de condições racionais, mas de condições razoáveis (às vezes, ajustadas ou apropriadas) enquanto restrições aos argumentos sobre os princípios da justiça (ver pp. 18 e ss., 20 e ss., 120 e ss., 130 e ss., 138, 446, 516 e ss., 578, 584 e ss.). Essas restrições são modeladas na posição originária e portanto impostas às partes; suas deliberações são sujeitas, e absolutamente sujeitas, às condições razoáveis cuja modelagem torna equitativa a posição originária. O Razoável, portanto, precede o Racional, e isso nos dá a prioridade do direito. Assim, descrever a teoria da justiça como parte da teoria da escolha racional, como nas pp. 16 e 583, foi um erro que cometi na Theory (e um erro que induziu a grandes enganos). O que eu deveria ter dito é que a concepção da justiça como equidade utiliza uma explanação da escolha racional sujeita a condições razoáveis para caracterizar as deliberações das partes enquanto representantes de pessoas livres e iguais; e tudo isso no âmbito de uma concepção política da justiça que é, por certo, uma concepção moral. Não penso em tentar derivar o conteúdo cia justiça em uma estrutura que utiliza uma idéia do racional como a única idéia normativa. Esse pensamento é incompatível com qualquer espécie de visão kantiana. .

Ambas as dificuldades mencionadas acima, pois, são superadas considerando-se a posição originária como um artifício de representação, isto é, essa posição modela o que tomamos como condições equitativas sob as quais os representantes de pessoas livres e iguais devem especificar os termos da cooperação social no caso da estrutura básica da sociedade, e como ela também modela o que, para esse caso, consideramos como restrições aceitáveis a respeito das razões disponíveis para as partes, pelas quais preferem um acordo e não outro, a concepção de justiça que as partes adotariam identifica a concepção que consideramos - aqui e agora — como equitativa e apoiada nas melhores razões. Tentamos modelar restrições com respeito a razões de tal modo que seja perfeitamente evidente que acordo seria estabelecido pelas partes na posição originária como seguramente haverá, a favor e contra cada concepção disponível de justiça, pode haver um saldo geral de razões claramente favorável a uma concepção em face das demais. Como um artifício de representação a idéia da posição originária serve como um meio de reflexão pública e auto-esclarecimento. Podemos utilizá-la para nos ajudar a elaborar nosso pensamento uma vez capazes de ter uma visão clara e distinta do que requer a justiça quando a sociedade é concebida como um esquema de cooperação entre pessoas livres e iguais ao longo do tempo de uma geração a outra. A posição originária serve de idéia unificadora pela qual nossas convicções refletidas em todos os níveis de generalidade são relacionadas de modo a alcançar maior acordo mútuo e autoconhecimento.

Concluindo: introduzimos uma idéia como a de posição originária porque não há melhor maneira de elaborar uma concepção política da justiça para a estrutura básica a partir da idéia intuitiva fundamental da sociedade como um sistema equitativo de cooperação entre cidadãos como pessoas livres e iguais. Mas há certos riscos. Como um artificio de representação a posição originária pode parecer algo abstrata e por isso prestar-se a mal-entendidos. Pode parecer que a descrição das partes pressupõe alguma concepção metafísica da pessoa, como, por exemplo, a de que a natureza essencial das pessoas é independente de seus atributos contingentes, e anterior a eles, neles incluídos seus fins últimos e ligações, bem como, na verdade, todo o seu caráter. Mas isso é uma ilusão causada por não se ver a posição originária como um artifício de representação. O véu de ignorância, para mencionar uma característica proeminente dessa posição, não tem implicações metafísicas concernentes à natureza do Eu; não supõe que o Eu seja ontologicamente anterior aos fatos sobre as pessoas de cujo conhecimento excluímos as partes. Podemos, por assim dizer, ocupar essa posição a qualquer tempo simplesmente raciocinando sobre os princípios da justiça de acordo com as restrições enumeradas. Quando, dessa maneira, simulamos estar nessa posição, nossa reflexão não nos compromete com uma doutrina metafísica sobre a natureza do Eu, assim como jogar um jogo como "Monopólio" não nos compromete a pensar que somos proprietários envolvidos numa competição desesperada, em que o vencedor ganha tudo21 21 Theory, pp. 138 e ss., 147. Digo (p. 147) que as partes na posição originária são indivíduos teoricamente definidos cujas motivações são especificadas pela explanação daquela posição e não por uma visão psicológica de como os seres humanos são realmente motivados. Isso também é parte do que quero significar ao dizer (p. 121) que a aceitação de princípios particulares da justiça não é conjeturada como uma lei psicológica ou probabilidade; ela decorre da descrição completa da posição originária. Desejo que o argumento seja dedutivo, "uma espécie de geometria moral", embora esse objetivo não possa ser perfeitamente alcançado. Em "Kantian Constructivism" (p. 532) as partes são descritas como agentes meramente artificiais que habitam urna construção. Assim, creio que R. B. Brandt está enganado ao objetar que o argumento a partir da posição originária está baseado numa psicologia errada. Ver o seu A Theory of the Good and the Right (Clarendon Press, Oxford, 1979, pp. 239-42). Alguém poderia objetar, é claro, com respeito à posição originária, que ela modela a concepção da pessoa e as deliberações das partes de maneira inadequada aos objetivos de urna concepção política da justiça; mas para esses objetivos, a teoria psicológica não é diretamente relevante. Por outro lado, a teoria psicológica é relevante para uma explanação da estabilidade de uma concepção da justiça, corno discutida na Theory, parte III. Ver abaixo, nota 33. Similarmente, penso que Michaer Sandel está enganado ao supor que a posição originária envolve uma concepção do Eu "...da qual foram cortados todos os atributos contingentemente atribuídos", um Eu que "assume uma espécie de status supra-empírico... e dado com anterioridade aos seus próprios fins, um puro sujeito de ação e posse, em última análise de pouca consistência" (Ver o seu Liberalism and the Limits of Justice, Cambridge University Press, Cambridge, 1982, pp. 93-95). Não posso discutir essas críticas em detalhe aqui. O ponto essencial (tal como sugerido nas observações introdutórias) não é o de saber se certas passagens da Theory autorizam tal interpretação (coisa que eu duvido), mas se a concepção da justiça como equidade ali apresentada pode ser entendida à luz da interpretação que eu esboço no presente artigo e nas palestras anteriores sobre o construtivismo (como creio que pode). . Devemos ter presente que nossa tentativa é mostrar como a idéia da sociedade como um sistema equitativo de cooperação social pode ser desdobrada de modo a especificar os princípios mais apropriados à realização das instituições da liberdade e da igualdade quando os cidadãos são considerados pessoas livres e iguais.

V

Acabei de observar que a idéia da posição originária e a descrição das partes podem tentar-nos a pensar que uma doutrina metafísica da pessoa é pressuposta. Disse que essa interpretação é errônea; mas não é suficiente negar simplesmente a filiação a doutrinas metafísicas: a despeito do que se pretende, tais doutrinas podem, de fato, estar envolvidas. A refutação de proposições dessa natureza requer sua discussão detalhada e a demonstração de que não precedem. Eu não posso fazer isso aqui22 22 Parte da dificuldade está na inexistência de um entendimento geralmente aceito do que seja uma doutrina metafísica. Seria possível dizer, como me sugeriu Paul Hoffman, que desenvolver uma concepção política da justiça sem pressupor, ou utilizar explicitamente, uma doutrina metafísica, como por exemplo uma concepção metafísica particular da pessoa, já é pressupor uma tese metafísica, a saber, a de que não se requer uma doutrina metafísica particular para aquele fim. Poderíamos também dizer que a nossa concepção cotidiana das pessoas como unidades básicas de deliberação e responsabilidade pressupõe, ou de alguma maneira envolve, certas teses metafísicas sobre a natureza das pessoas como agentes morais ou políticos. Seguindo o método da esquiva, não desejaria negar essas proposições. O que deveria ser dito é o seguinte. Se contemplarmos a explanação da justiça como equidade e notarmos como foi estabelecida, bem como as idéias e concepções que utiliza, veremos que nenhuma doutrina metafísica particular sobre a natureza das pessoas, distinta de outras doutrinas metafísicas e oposta a elas, aparece entre suas premissas, ou parece necessária ao argumento. Se pressuposições metafísicas estão envolvidas, elas talvez sejam tão gerais que não seriam diferenciadas segundo as distintas visões metafísicas — cartesiana, leibniziana, ou kantiana; realistas, idealistas ou materialistas - com as quais a filosofia tradicionalmente tem se preocupado. Nesse caso, não parece que sejam relevantes para a estrutura e o conteúdo de uma concepção política da justiça, num sentido ou noutro. Sou grato a Daniel Brudney e Paul Hoffman pela discussão desses pontos. .

Posso, no entanto, esboçar uma explanação da concepção política da pessoa, isto é, a concepção da pessoa como cidadão (discutida na Seção III), envolvida na posição originária como artifício de representação. Para explicar o que significa descrever a concepção da pessoa enquanto política, consideremos como os cidadãos são representados na posição originária como pessoas livres. A representação da sua liberdade parece constituir uma fonte da idéia de que alguma doutrina metafísica é pressuposta. Disse em outro lugar que os cidadãos consideram-se livres de três pontos de vista; examinaremos brevemente cada um deles, para indicar como a concepção utilizada da pessoa é política23 23 Sobre os dois primeiros ângulos, ver "Kantian Constructivism", pp. 544 e ss. (sobre o terceiro, ver nota 26 abaixo). A explanação dos dois primeiros ângulos naquelas palestras é mais desenvolvida neste artigo, e também sou mais explícito ao fazer a distinção entre o que chamo aqui nossa "identidade pública" e nossa "identidade não-pública ou moral". A razão de ser do termo "moral" na última frase é indicar que as concepções que as pessoas têm do bem (completo) são normalmente um elemento essencial na caracterização da sua identidade não-pública (ou não-política), e que essas concepções são entendidas como contendo normalmente importantes elementos morais, embora também contenham outros elementos, filosóficos ou religiosos. O termo "moral" deve ser tomado como aplicável a todas essas possibilidades. Sou grato a Elizabeth Anderson pela discussão e esclarecimento dessa distinção. .

Primeiro, os cidadãos são livres ao conceber-se, e uns aos outros, como detentores da capacidade moral de ter uma concepção do bem. Isso não quer dizer que, como parte da concepção política que têm de si mesmos, os cidadãos considerem-se inevitavelmente ligados à busca da concepção particular do bem que afirmam em qualquer momento dado. Antes, como cidadãos, consideramos que são capazes de rever e modificar essa concepção em bases racionais, e que podem fazer isso se assim o desejarem. Assim, como pessoas livres, os cidadãos reivindicam o direito de encarar suas pessoas como independentes de quaisquer concepções de bem, esquema, ou fim último, e não identificadas com eles. Dado sua capacidade moral de elaborar, revisar e racionalmente seguir uma concepção do bem, sua identidade pública como pessoas livres não é afetada por mudanças no tempo de sua concepção do bem. Por exemplo, quando os cidadãos se convertem de uma religião a outra, ou deixam de professar uma fé religiosa, não deixam de ser, no que diz respeito à justiça política, as mesmas pessoas que eram antes. Não há perda do que podemos chamar sua identidade pública, ou sua identidade com respeito à lei básica. Em geral, eles ainda têm os mesmos direitos e deveres, eles são donos das mesmas propriedades e podem reivindicar tudo o que reivindicavam antes, exceto na medida em que essas reivindicações estavam ligadas à sua filiação religiosa prévia. Podemos imaginar uma sociedade (na verdade, a história oferece numerosos exemplos) na qual os direitos básicos e reivindicações reconhecidas dependem de filiação religiosa, classe social e assim por diante. Tal sociedade tem uma concepção política diferente da pessoa. Pode mesmo não ter nenhuma concepção da cidadania; a diferença é que essa concepção, tal como a estamos utilizando, vai de par com uma concepção de sociedade como sistema equitativo de cooperação para benefício mútuo entre pessoas livres e iguais.

É essencial sublinhar que em seus negócios particulares, ou na vida interna das associações às quais pertencem, os cidadãos podem encarar seus fins últimos e ligações de modo muito diferente daquela pelo qual a concepção política os encara. Os cidadãos podem ter, e normalmente têm, em qualquer momento dado, afeições, devoções e lealdades das quais, segundo crêem, não se separariam, como de fato não poderiam nem deveriam para avaliá-las do ponto de vista do seu bem puramente racional. Eles podem considerar simplesmente impensável ver-se dissociados de certas convicções religiosas, filosóficas ou morais, ou de certos vínculos e lealdades sólidos. Esses vínculos e convicções são parte do que podemos chamar "identidade não-pública". Esses vínculos e convicções ajudam a organizar e moldar o modo de vida de uma pessoa, aquilo que uma pessoa vê-se fazendo e tentanto conseguir no seu mundo social. Pensamos que se formos subitamente privados desses vínculos e convicções particulares, ficaremos desorientados e incapazes de prosseguir. Na verdade, poderíamos pensar que não há motivo para prosseguir. Mas nossas concepções do bem podem mudar com o tempo, usualmente devagar, mas às vezes de modo súbito. Quando essas mudanças são súbitas, é muito provável dizermos que já não somos a mesma pessoa. Sabemos o que isso significa: referimo-nos à uma mudança, ou inversão profunda e ampla de nossos fins últimos e do nosso caráter; referimo-nos à nossa diferente identidade não-pública, e possivelmente moral ou religiosa. Na estrada de Damasco, Saulo de Tarso tornou-se Paulo o apóstolo. Nem por isso há mudança na nossa identidade pública ou política, nem na nossa identidade pessoal tal como esse conceito é entendido por alguns autores no campo da filosofia do espírito24 24 Presumo aqui que uma resposta ao problema da identidade pessoal procura especificar os vários critérios (como por exemplo a continuidade psicológica das memórias e a continuidade física do corpo ou de alguma de suas partes) segundo os quais dois diferentes estados psicológicos ou ações (quaisquer) que ocorrem em dois momentos diferentes podem ser considerados estados ou ações da mesma pessoa (que perdura no tempo); ela também procura especificar a maneira pela qual essa pessoa que perdura deve ser concebida: por exemplo, como uma substância cartesiana ou leibniziana, como o Eu transcendental kantiano, ou como alguma outra coisa que permanece, corporal ou fisicamente. Ver a coleção de ensaios editados por John Perry, Personal Identity (University of Califórnia Press, Berkeley, CA, 1975), especialmente a introdução de Perry, pp. 3-30; ver também o ensaio de Sydney Shoernaker em Personal Identity (Basil Blackwell, Oxford, 1984); ambos examinam várias visões dessa questão. Às vezes, em discussões desse problema, a continuidade de objetivos e aspirações fundamentais é amplamente ignorada, como, por exemplo, na visão de H. P. Grice (incluída na coletânea de Perry) que enfatiza a continuidade da memória. É claro que quando a continuidade de objetivos e aspirações fundamentais é considerada, como em Reasons and Persons, de Derek Parfit (Clarendon Press, Oxford, 1984, parte III) não há nítida distinção entre o problema da identidade não- pública ou moral das pessoas e o problema da sua identidade pessoal. Este último problema levanta questões profundas sobre as quais visões filosóficas passadas e atuais diferem amplamente, e seguramente continuarão a diferir. Por essa razão, é importante tentar desenvolver uma concepção política da justiça que o evite tanto quanto possível. .

O segundo ângulo do qual os cidadãos percebem-se livres é aquele em que eles consideram-se como fontes auto-suscitantes (self-originating) de reivindicações válidas. Eles pensam que suas reivindicações têm peso independentemente de serem derivadas de deveres ou obrigações especificados pela concepção política de justiça, como, por exemplo, de deveres e obrigações com respeito à sociedade. Reivindicações que os cidadãos consideram fundadas em deveres e obrigações baseados em sua concepção do bem e na doutrina moral que professam na sua vida também devem ser vistos, para nossos propósitos aqui, como auto-suscitantes. Isso é razoável numa concepção política da justiça para uma democracia constitucional porquanto, na medida em que as concepções do bem e as doutrinas morais professadas pelos cidadãos são compatíveis com a concepção pública da justiça, esses deveres e obrigações são auto-suscitantes do ponto de vista político.

Quando descrevemos o modo pelo qual os cidadãos consideram-se livres, estamos descrevendo o que os cidadãos realmente pensam de si próprios numa sociedade democrática, no caso de emergirem questãos de justiça. Em nossa concepção de um regime constitucional, esse é um aspecto da maneira pela qual os cidadãos vêem-se a si próprios. Esse aspecto de sua liberdade pertence a uma concepção política particular; isso torna-se claro se contrastarmos essa concepção com uma concepção política diferente, na qual os membros da sociedade não são considerados como fontes auto-suscitantes de reivindicações válidas. Suas reivindicações não têm peso senão na medida em que podem ser deduzidas de seus direitos e obrigações com relação à sociedade, ou de seus papéis atribuídos na hierarquia social justificada por valores religiosos ou aristocráticos. Para tomar um caso extremo, escravos são seres humanos que não são considerados como fontes de reivindicações, nem mesmo reivindicações baseadas em direitos e obrigações sociais, pois que escravos não são tidos como capazes de ter direitos e obrigações. Leis que proíbem o abuso e maus-tratos de escravos não são baseadas em reivindicações dos escravos em seu próprio nome, mas em reivindicações cuja origem são os escravistas ou o interesse 'geral da sociedade (que não inclui o interesse dos escravos). Os escravos, por assim dizer, são socialmente mortos; eles não são publicamente reconhecidos como pessoas25 25 Sobre a idéia de morte social, ver Orlando Patterson, Slavery and Social Death (Harvard University Press, Cambridge, MA, 1982, especialmente pp. 5-9, 38-45, 337. Essa idéia é desenvolvida de modo interessante nesse livro e tem lugar central no estudo comparativo que o autor fez sobre a escravidão. . Assim, o contraste com uma concepção política que permite a escravidão torna claro por que conceber os cidadãos como pessoas livres e iguais, em virtude de que possuem capacidades morais e uma concepção do bem, acompanha uma concepção política particular de pessoa. Essa concepção das pessoas se ajusta a uma concepção política da justiça fundada na idéia da sociedade como um sistema de cooperação entre seus membros concebidos como livres e iguais.

O terceiro ângulo do qual os cidadãos são tidos como livres é aquele do qual são considerados capazes de assumir a responsabilidade por seus fins, e isso afeta a maneira pela qual suas várias reivindicações são avaliadas26 26 Ver "Social Unity and Primary Goods", in Utilitarianism and Beyond, coletânea organizada por Amartya Sen e Bernard Williams (Cambridge University Press, Cambridge, 1982, seção IV, pp. 167-70). . De maneira muito geral, a idéia é a de que, dadas instituições básicas justas e dado para cada pessoa um montante equitativo de bens primários (como requerido pelos princípios de justiça), supõe-se que os cidadãos sejam capazes de ajustar seus fins e aspirações à luz daquilo com que podem razoavelmente arcar. Além disso, são tidos por capazes de restringir suas reivindicações em matéria de justiça àquilo que os princípios de justiça permitem. Assim, supõe-se que os cidadãos devam reconhecer que o peso das suas reivindicações não é dado pela força e intensidade psicológica das suas necessidades e desejos (em oposição às suas necessidades e demandas como cidadãos), mesmo que suas necessidades e desejos sejam racionais do seu ponto de vista. Não posso desenvolver esse tema aqui. Mas o procedimento é o mesmo que foi adotado antes: partimos da idéia intuitiva básica da sociedade como um sistema de cooperação social. Quando essa idéia se desenvolve numa concepção de justiça, ela supõe que, vendo-nos a nós próprios como pessoas que podem participar da cooperação social ao longo de toda a vida, também podemos assumir a responsabilidade por nossos fins que possam ser perseguidos mediante os meios que esperamos razoavelmente obter dadas nossas perspectivas e situação na sociedade. A idéia de responsabilidade pelos fins está implícita na cultura política pública e é discernível nas suas práticas. Uma concepção política da pessoa articula essa idéia e ajusta-a à idéia de sociedade como sistema de cooperação ao longo de toda a vida.

Resumindo, retomo três pontos centrais desta seção e das duas anteriores:

Primeiro, na seção III as pessoas foram consideradas livres e iguais em virtude de possuírem, no grau necessário, as duas capacidades da personalidade moral (e os poderes de razão, pensamento e julgamento associados a esses poderes) a saber: a capacidade de um senso de justiça e a capacidade de uma concepção do bem. Essas capacidades foram associadas aos dois principais elementos da idéia de cooperação: a idéia de termos equitativos de cooperação e a idéia do beneficio ou bem racional de cada participante.

Segundo, nesta seção (seção V), examinamos brevemente os três ângulos dos quais as pessoas são consideradas livres, e notamos que na cultura política pública de um regime constitucional democrático os cidadãos concebem-se como livres desses três ângulos.

Terceiro, dado que a questão de saber qual concepção da justiça política é mais adequada à realização dos valores da liberdade e da igualdade tem sido por longo tempo profundamente polêmica na própria tradição democrática na qual os cidadãos são considerados pessoas livres e iguais, o objetivo da justiça como equidade é tentar resolver essa questão a partir da idéia intuitiva básica da sociedade como sistema equitativo de cooperação social na qual os termos eqüitativos de cooperação são acordados pelos próprios cidadãos como tais. Na seção IV, vimos por que esse enfoque conduz à idéia de posição originária como um artifício de representação.

VI

Refiro-me agora a um ponto que é essencial para pensar a justiça como equidade como uma perspectiva liberal. Embora essa concepção seja uma concepção moral, não é, como já apontei, concebida como uma doutrina moral abrangente. A concepção do cidadão como pessoa livre e igual não é um ideal moral para a condução da vida em todas as suas dimensões, mas um ideal que pertence a uma concepção de justiça política a ser aplicado à estrutura básica. Enfatizo esse ponto porque pensar de outro modo seria incompatível com o liberalismo como uma doutrina política. Lembremo-nos de que o liberalismo como doutrina política presume que num Estado democrático constitucional nas condições modernas a tendência é haver concepções conflitantes e incomensuráveis do bem. Isso caracteriza a cultura moderna desde a Reforma. Qualquer concepção de justiça política que não se valha do uso autocrático do poder do Estado tem de reconhecer esse fato social fundamental. Isso não significa, é claro, que tal concepção não possa impor restrições a indivíduos e associações, mas quando o faz, essas restrições são explicadas, direta ou indiretamente, pelos requisitos da justiça política para a estrutura básica27 27 As igrejas, por exemplo, são submetidas ao princípio da liberdade igual de consciência e devem conformar-se ao princípio da tolerância, as universidades, ao que possa ser necessário para manter a igualdade equitativa de oportunidade; os direitos dos pais, ao que é necessário para manter o bem-estar físico de seus filhos e assegurar o desenvolvimento adequado de suas capacidades morais e intelectuais. Dado que igrejas, universidades e pais exercem sua autoridade no interior da estrutura básica, eles devem reconhecer as exigências que essa estrutura lhes impõe para manter a justiça de fundo (background justice). .

Dado esse fato, adotamos uma concepção da pessoa elaborada como parte de uma concepção explicitamente política da justiça, e restrita a ela. Nesse sentido, a concepção da pessoa é uma concepção política. Como enfatizei na seção anterior, as pessoas podem aceitar essa concepção de si como cidadãs e utilizá-la na discussão de questões de justiça política sem estar comprometidas em outras dimensões de sua vida com os ideais morais abrangentes com frequência associados ao liberalismo, como por exemplo os ideais da autonomia e da individualidade. A ausência de compromisso com respeito a esses ideais, e na verdade com respeito a qualquer ideal abrangente particular, é essencial ao liberalismo como doutrina política. A razão disso é que qualquer dessas idéias, quando perseguida como ideal abrangente, é incompatível com outras concepções do bem, como formas de vida pessoal, moral e religiosa coerentes com a justiça e que, portanto, têm seu lugar próprio numa sociedade democrática. Como ideais morais abrangentes, a autonomia e a individualidade não são apropriados para uma concepção política da justiça. Tais como os encontramos em Kant e J. S. Mill, esses ideais abrangentes, a despeito de sua importância muito grande no pensamento liberai, são estendidos em demasia quando apresentados como o único fundamento apropriado a um regime constitucional28 28 Quanto à Kant, ver Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Crítica da Razão Prática. Quanto a Mill, ver Sobre a Liberdade em particular o capítulo 3, onde o ideal da individualidade é mais amplamente discutido. . Assim entendido, o liberalismo torna-se apenas uma doutrina sectária entre outras.

Essa conclusão requer um comentário. Ela não significa, é claro, que o liberalismo de Kant e Mill não sejam concepções morais apropriadas a partir das quais se possa chegar a sustentar instituições democráticas. Mas elas são apenas duas de tais concepções entre outras; e são apenas duas entre as doutrinas filosóficas que têm probabilidade de durar e ganhar aderentes num regime democrático razoavelmente justo. Em tal regime as visões morais abrangentes que sustentam suas instituições básicas podem incluir os liberalismos da individualidade e da autonomia; e provavelmente esses liberalismos estão entre as doutrinas mais proeminentes numa interface consensual, isto é, num consenso no qual, como observei anteriormente, doutrinas diferentes e mesmo conflitantes sustentam a base publicamente partilhada dos arranjos políticos. Os liberalismos de Kant e Mill têm uma certa proeminência histórica, pois estão entre as primeiras e mais importantes visões filosóficas a adotar a democracia constitucional moderna e a desenvolver suas idéias subjacentes de modo influente; e pode mesmo ser que sociedades nas quais os ideais da autonomia e da individualidade sejam amplamente aceitos encontrem-se entre as melhores governadas e mais harmoniosas29 29 Esse argumento foi apresentado com respeito aos liberalismos de Kant e Mill, mas para a cultura americana deveríamos mencionar as importantes concepções de individualidade democrática expressas nos trabalhos de Emerson, Thoreau e Whitman. Esses autores são instrutivamente discutidos por George Kateb em seu "Democratic Individuality and the Claims of Politics", Political Theory, 12, agosto de 1984. .

Em contraste com o liberalismo como doutrina moral abrangente, a justiça como equidade tenta apresentar uma concepção de justiça política fundada nas idéias intuitivas básicas encontradas na cultura pública de uma democracia constitucional. Conjeturamos que essas idéias provavelmente serão sustentadas por cada uma das doutrinas morais abrangentes conflitantes que são influentes numa sociedade democrática razoavelmente justa. Assim, a justiça como equidade procura identificar o núcleo de uma interface consensual, isto é, as idéias básicas compartilhadas que, elaboradas numa concepção política da justiça revelam-se suficientes, para garantir um regime constitucional justo. Isso é o máximo que podemos esperar, e não temos necessidade de nada mais30 30 Sobre a idéia do núcleo de uma interface consensual (mencionada acima) ver Theory, última parte da seção 35, pp- 220 e ss.. Sobre a idéia da autonomia plena, ver "Kantian Constructívism", pp. 528 e ss. . É preciso notar, porém, que quando a justiça como equidade é plenamente realizada numa sociedade bem ordenada, o valor de plena autonomia é também realizado. Dessa maneira, a justiça como equidade é realmente similar aos liberalismos de Kant e Mill, mas em oposição a eles, o valor da plena autonomia é aqui especificado por uma concepção política de justiça, e não por uma doutrina moral abrangente.

Pode parecer que, assim entendida, a aceitação pública da justiça como equidade apenas diz respeito à prudência (is no more than prudential); isto é, que aqueles que adotam essa concepção fazem-no simplesmente como um modus vivendi que permite aos grupos na interface consensual buscar seu próprio benefício sujeitos a certas restrições tidas por eles como vantajosas dadas as circunstâncias. A idéia de uma interface consensual pode parecer essencialmente hobbesiana. Contra esse modo de ver, faço duas observações: primeiro, a justiça como equidade é uma concepção moral: ela contém concepções da pessoa e da sociedade, e conceitos dos direitos e da equidade, bem como princípios de justiça com seu complemento das virtudes por meio das quais aqueles princípios encarnam-se no caráter humano e regulam a vida social e política. Essa concepção de justiça fornece uma descrição das virtudes cooperativas adequadas a uma doutrina política em vista das condições e requisitos de um regime constitucional. Não deixa de ser uma concepção moral pelo fato de restringir-se à estrutura básica da sociedade, na medida em que essa restrição é o que permite que ela sirva como uma concepção política da justiça dadas nossas presentes circunstâncias. Assim, numa interface consensual (tal como entendida aqui), a concepção da justiça como equidade não é considerada meramente como um modus vivendi.

Segundo, em tal consenso cada uma das doutrinas filosóficas, religiosas e morais aceita a justiça como equidade à sua maneira; isto é, cada doutrina abrangente, do seu próprio ponto de vista, é levada a aceitar as razões públicas da justiça especificadas pela justiça como equidade. Poderíamos dizer que elas reconhecem seus conceitos, princípios e virtudes como teoremas, por assim dizer, nos quais suas distintas visões coincidem. Mas isso não torna esses pontos de coincidência menos morais nem os reduz a simples meios. Pois que, em geral, cada um aceita esses conceitos, princípios e virtudes como pertencendo a uma doutrina filosófica, religiosa ou moral mais abrangente. Alguns podem mesmo entender que a justiça como equidade é uma concepção moral natural que pode sustentar-se nos seus próprios pés. Eles aceitam essa concepção da justiça como uma base razoável para a cooperação política e social, e mantêm que ela é tão natural e fundamental como os conceitos e princípios da honestidade e confiança mútua, bem como as virtudes da cooperação na vida cotidiana. As doutrinas numa interface consensual diferem em quão longe levam o argumento de que um fundamento mais amplo é necessário e no que deveria consistir. Essas diferenças, porém, são compatíveis com um consenso a respeito da justiça como equidade enquanto concepção política da justiça.

VII

Concluirei com algumas considerações sobre o modo pelo qual a equidade e a estabilidade sociais podem ser entendidas pelo liberalismo como uma doutrina social (em oposição a uma concepção moral e abrangente)31 31 Essa concepção da unidade social está em "Social Unity and Primary Goods", mencionada na nota 27 acima. Ver especialmente pp. 160 e ss., 170-173, 183 e ss. .

Uma das diferenças mais profundas entre concepções políticas da justiça é a que separa aquelas que dão margem a uma pluralidade de concepções opostas e mesmo incomensuráveis do bem, por um lado, e aquelas segundo as quais só existe uma concepção do bem a ser reconhecida por todos na medida em que são plenamente racionais. Concepções que se encaixam numa ou noutra categoria distinguem-se de muitas maneiras fundamentais. Platão e Aristóteles, bem como a tradição cristã tal como representada por Agostinho e Tomás de Aquino, estão entre os que reconhecem apenas um bem racional. Tais perspectivas tendem a ser teleológicas e a afirmar que as instituições são justas na medida em que efetivamente promovem aquele bem. De fato, desde os tempos clássicos a tradição dominante parece ter sido a de que só há uma concepção racional do bem, e que o objetivo da filosofia moral, juntamente com a teologia e a metafísica, é determinar sua natureza. O utilitarismo clássico pertence a essa tradição dominante. O liberalismo, ao contrário, como doutrina política, supõe que há muitas concepções conflitantes e incomensuráveis do bem, sendo cada uma delas compatível com a plena racionalidade das pessoas humanas, tal como podemos verificar no âmbito de uma concepção política praticável da justiça. Em consequência dessa suposição, o liberalismo presume que a adoção pelos cidadãos de uma pluralidade de concepções conflitantes e incomensuráveis do bem é uma característica típica da cultura democrática livre. O liberalismo como doutrina política sustenta que a questão que a tradição dominante tentou responder não tem resposta praticável, isto é, não tem uma resposta adequada a uma concepção política da justiça para uma sociedade democrática. Em tal sociedade uma concepção política teleológica está fora de questão: um acordo público sobre a concepção requerida do bem não pode ser obtido.

Como observei, a origem histórica dessa suposição liberal é a Reforma e suas consequências. Até as guerras da religião nos séculos XVI e XVII, os termos equitativos da cooperação social eram estreitamente definidos: cooperação social com base no respeito mútuo era considerada impossível entre pessoas de fé diferente ou - na terminologia que utilizei -entre pessoas filiadas a concepções fundamentalmente diferentes do bem. Assim, uma das raízes históricas do liberalismo foi o desenvolvimento de várias doutrinas conclamando à tolerância religiosa. Um tema de justiça como equidade é reconhecer as condições sociais que deram origem a essas doutrinas enquanto pertencentes às assim chamadas circunstâncias subjetivas da justiça e, a partir daí, explicitar as implicações do princípio da tolerância32 32 A distinção entre as circunstâncias objetivas e subjetivas da justiça é feita na Theory, pp. 126 e ss. A importância do papel das circunstâncias subjetivas é enfatizada em "Kantian Constructivism", pp. 540-42. . Tal como proposto por Constam, Tocqueville e Mill no século XIX, o liberalismo aceita a pluralidade de concepções incomensuráveis do bem como um fato da moderna cultura democrática, contanto que, é claro, essas concepções respeitem os limites especificados pelos princípios apropriados da justiça. Uma tarefa do liberalismo como doutrina política é responder à seguinte questão: como entender a unidade social, visto que não pode haver acordo público sobre o bem racional único, e que uma pluralidade de concepções opostas e incomensuráveis deve ser tomada como um dado?

Admitindo-se que a unidade social pode ser concebida de alguma forma definida, sob que condições ela é realmente possível?

Na justiça como equidade, o entendimento da unidade social parte de uma concepção da sociedade como um sistema de cooperação entre pessoas livres e iguais. A unidade social e a lealdade dos cidadãos com respeito a suas instituições comuns não se funda em que todas sustentam a mesma concepção do bem, mas em que aceitam publicamente uma concepção política da justiça para regular a estrutura básica da sociedade. O conceito de justiça é independente do conceito de bem, e anterior a ele, no sentido de que seus princípios limitam as concepções do bem que são permissíveis. Uma estrutura básica justa e suas instituições de fundo estabelecem um quadro no interior do qual concepções permissíveis podem ser defendidas. Em outro trabalho, denominei essa relação entre a concepção da justiça e concepção do bem a prioridade do direito (pois que o justo inclui o direito). Creio que essa prioridade é característica do liberalismo como doutrina política, e algo parecido com isso parece essencial a qualquer concepção da justiça razoável para um Estado democrático. Para assim entender como a unidade social é possível dadas as condições históricas de uma sociedade democrática, partimos de nossa idéia intuitiva básica da cooperação social, idéia essa presente na cultura pública de uma sociedade democrática, e daí passamos a uma concepção pública de justiça como base da unidade social da maneira como esbocei.

Quanto à questão de saber se essa unidade é estável, isso depende em grande medida do conteúdo das doutrinas religiosas, filosóficas e morais disponíveis para constituir a interface consensual. Supondo, por exemplo, que a concepção pública é a justiça como equidade, imaginemos que os cidadãos adotem uma das seguintes visões: a primeira visão defende a justiça como equidade porque suas crenças religiosas e entendimento da fé levam ao princípio de tolerância e subscrevem a idéia fundamental da sociedade como um esquema de cooperação social entre pessoas livres e iguais; a segunda visão sustenta a justiça como equidade por considerá-la uma consequência de uma concepção moral liberal abrangente como as de Kant e Mill, a terceira visão sustenta a justiça como equidade não porque proceda de uma doutrina mais ampla, mas porque é suficiente por si própria para expressar valores que normalmente suplantam outros valores aos quais possam opor-se, pelo menos em condições razoavelmente favoráveis. Tal interface consensual parece muito mais estável que outra baseada em visões que expressam ceticismo e indiferença com respeito a valores religiosos, filosóficos e morais ou que consideram a aceitação dos princípios de justiça simplesmente como um modus vivendi prudente, dada o equilíbrio existente de forças sociais. Certamente, há várias outras possibilidades.

A força de uma concepção como a justiça como equidade pode estar em que as doutrinas mais abrangentes que perduram e ganham adeptos numa sociedade democrática regulada por seus princípios têm boa probalidade de ajustar-se Umas às outras numa interface consensual mais ou menos estável. Tudo isso, porém, como é óbvio, é altamente especulativo e levanta questões pouco compreendidas, porquanto doutrinas que perduram e ganham adeptos dependem em parte das condições sociais e, em particular das condições sociais quando reguladas pela concepção pública da justiça. Assim, somos forçados a considerar, em algum momento, os efeitos das condições sociais necessárias a uma concepção de justiça política sobre a aceitação dessa própria concepção. Tudo o mais permanecendo constante, uma concepção será mais ou menos estável dependendo da medida em que as condições às quais ela conduz sustentam doutrinas abrangentes religiosas, filosóficas e morais que podem constituir uma interface consensual estável. Não posso discutir as questões relativas à estabilidade aqui33 33 A parte III da Theory tem principalmente três objetivos: primeiro, fazer uma explanação do bem (goodness) como racionalidade (cap. 7), para servir de base para a identificação dos bens primários, ou seja, os bens que, dada a concepção de pessoas, as partes devem presumir que são necessários às pessoas que elas representam (pp. 397, 433 e ss.); segundo, fazer uma explanação da estabilidade de uma concepção de justiça (Cap. 8-9) e em particular, da justiça como equidade, e mostrar que essa concepção é mais estável que outras concepções tradicionais como quais é comparada, bem como que ela é suficientemente estável, e, terceiro, fazer uma exposição do bem de uma sociedade bem ordenada, isto é, de uma sociedade justa na qual a justiça como equidade é a concepção política da justiça publicamente afirmada e efetivamente realizada (Cap. 8-9, culminando na seção 86). Hoje penso que entre os defeitos da parte III encontram-se os seguintes. A explanação do bem (goodness) como racionalidade com frequência aparece como uma exposição do bem completo para uma concepção moral abrangente; tudo o que ela tem a fazer é explicar a lista dos bens primários e a base dos vários bens naturais reconhecidos pelo senso comum e, em particular, a significação fundamental do auto-respeito e auto-estima (que, como me foi apontado por David Sachs e Laurence Thomas, não foram distinguidos apropriadamente), e daí a significação fundamental das bases sociais do auto-respeito como um bem primário. Também a explanação da estabilidade da justiça como equidade não foi estendida, como deveria, para o importante caso da interface consensual, tal como esboçado no texto; ao invés disso, essa explanação limitou-se ao caso mais simples, em que se afirma que a concepção pública de justiça é em si mesma suficiente para expressar valores que normalmente superam, dado o contexto político de um regime constitucional, quaisquer outros valores que se lhes possam opor (ver a terceira visão na interface consensual indicada no texto). Em vista da discussão da liberdade de consciência apresentada nas seções 32-35 do capítulo 4, a extensão ao caso da interface consensual é essencial. Finalmente, a relevância da idéia de uma sociedade bem ordenada como união social de uniões sociais para fazer uma explanação do bem de uma sociedade justa não foi explicada de modo suficientemente amplo. Ao longo da parte III, um número excessivamente grande de conexões foram omitidas, esperando-se que o leitor as fizesse, a tal ponto que pode-se ficar em dúvida sobre qual é o tema de boa parte dos capítulos 8 e 9. . É suficiente observar que numa sociedade marcada por profundas divisões entre concepções opostas e incomensuráveis do bem, a justiça como equidade permite-nos pelo menos conceber como a unidade social pode ser possível e estável.

  • * John Rawls, "Justice as fairness: political not metaphysical. Philosophy and Public Affairs, vol. 14, 3, 1985.
  • 1 Cambridge, MA, Harvard University Press, 1971. (N. T.: Uma Teoria da Justiça, Editora UnB, 1981, Brasília, DF, 461 pgs., Coleçăo Pensamento Político, Vol. 56, traduçăo de Vamireh Chacon).
  • 2 Várias dessas mudanças, ou deslocamentos de ęnfase, săo evidentes nas tręs palestras intituladas "Kantian Constructivism in Moral Theory" in Journal of Philosophy nş 77, Setembro de 1980.
  • 3 Theory, seçăo 2; ver também o índice. Ver também "The Basic Structure as Subject", in Values and Morals, ed. por Goldman, Alvin e Kim, Jaegwon, Dordrecht Reidel, 1978, pp. 47-71.
  • 8 A explanaçăo desses princípios difere da que fiz na Theory, e acompanha a que apresentei em "The Basic liberties and their Priority", Tanner Lectures on Human Values, vol. III (University of Utah Press, Salt Lake City, 1982), p. 5.
  • 19 Essa questăo foi levantada por Ronald Dworkin na primeira página do seu ensaio tăo iluminador e para mim altamente instrutivo, "Justice and Rights" (1973) republicado em Taking Rights Seriously (Harvard University Press, Cambridge MA, 1977).
  • 21 Theory, pp. 138 e ss., 147. Digo (p. 147) que as partes na posiçăo originária săo indivíduos teoricamente definidos cujas motivaçőes săo especificadas pela explanaçăo daquela posiçăo e năo por uma visăo psicológica de como os seres humanos săo realmente motivados. Isso também é parte do que quero significar ao dizer (p. 121) que a aceitaçăo de princípios particulares da justiça năo é conjeturada como uma lei psicológica ou probabilidade; ela decorre da descriçăo completa da posiçăo originária. Desejo que o argumento seja dedutivo, "uma espécie de geometria moral", embora esse objetivo năo possa ser perfeitamente alcançado. Em "Kantian Constructivism" (p. 532) as partes săo descritas como agentes meramente artificiais que habitam urna construçăo. Assim, creio que R. B. Brandt está enganado ao objetar que o argumento a partir da posiçăo originária está baseado numa psicologia errada. Ver o seu A Theory of the Good and the Right (Clarendon Press, Oxford, 1979, pp. 239-42).
  • Alguém poderia objetar, é claro, com respeito à posição originária, que ela modela a concepção da pessoa e as deliberações das partes de maneira inadequada aos objetivos de urna concepção política da justiça; mas para esses objetivos, a teoria psicológica não é diretamente relevante. Por outro lado, a teoria psicológica é relevante para uma explanação da estabilidade de uma concepção da justiça, corno discutida na Theory, parte III. Ver abaixo, nota 33 Similarmente, penso que Michaer Sandel está enganado ao supor que a posição originária envolve uma concepção do Eu "...da qual foram cortados todos os atributos contingentemente atribuídos", um Eu que "assume uma espécie de status supra-empírico... e dado com anterioridade aos seus próprios fins, um puro sujeito de ação e posse, em última análise de pouca consistência" (Ver o seu Liberalism and the Limits of Justice, Cambridge University Press, Cambridge, 1982, pp. 93-95).
  • 24 Presumo aqui que uma resposta ao problema da identidade pessoal procura especificar os vários critérios (como por exemplo a continuidade psicológica das memórias e a continuidade física do corpo ou de alguma de suas partes) segundo os quais dois diferentes estados psicológicos ou açőes (quaisquer) que ocorrem em dois momentos diferentes podem ser considerados estados ou açőes da mesma pessoa (que perdura no tempo); ela também procura especificar a maneira pela qual essa pessoa que perdura deve ser concebida: por exemplo, como uma substância cartesiana ou leibniziana, como o Eu transcendental kantiano, ou como alguma outra coisa que permanece, corporal ou fisicamente. Ver a coleçăo de ensaios editados por John Perry, Personal Identity (University of Califórnia Press, Berkeley, CA, 1975),
  • especialmente a introduçăo de Perry, pp. 3-30; ver também o ensaio de Sydney Shoernaker em Personal Identity (Basil Blackwell, Oxford, 1984);
  • ambos examinam várias visőes dessa questăo. Ŕs vezes, em discussőes desse problema, a continuidade de objetivos e aspiraçőes fundamentais é amplamente ignorada, como, por exemplo, na visăo de H. P. Grice (incluída na coletânea de Perry) que enfatiza a continuidade da memória. É claro que quando a continuidade de objetivos e aspiraçőes fundamentais é considerada, como em Reasons and Persons, de Derek Parfit (Clarendon Press, Oxford, 1984, parte III) năo há nítida distinçăo entre o problema da identidade năo-
  • 25 Sobre a idéia de morte social, ver Orlando Patterson, Slavery and Social Death (Harvard University Press, Cambridge, MA, 1982, especialmente pp. 5-9, 38-45, 337.
  • 26 Ver "Social Unity and Primary Goods", in Utilitarianism and Beyond, coletânea organizada por Amartya Sen e Bernard Williams (Cambridge University Press, Cambridge, 1982, seçăo IV, pp. 167-70).
  • 29 Esse argumento foi apresentado com respeito aos liberalismos de Kant e Mill, mas para a cultura americana deveríamos mencionar as importantes concepçőes de individualidade democrática expressas nos trabalhos de Emerson, Thoreau e Whitman. Esses autores săo instrutivamente discutidos por George Kateb em seu "Democratic Individuality and the Claims of Politics", Political Theory, 12, agosto de 1984.
  • *
    John Rawls, "Justice as fairness: political not metaphysical.
    Philosophy and Public Affairs, vol. 14, 3, 1985.
    **
    Tradução de Regis de Castro Andrade.
  • 1
    Cambridge, MA, Harvard University Press, 1971. (N. T.:
    Uma Teoria da Justiça, Editora UnB, 1981, Brasília, DF, 461 pgs., Coleção Pensamento Político, Vol. 56, tradução de Vamireh Chacon).
  • 2
    Várias dessas mudanças, ou deslocamentos de ênfase, são evidentes nas três palestras intituladas "Kantian Constructivism in Moral Theory" in
    Journal of Philosophy nº 77, Setembro de 1980. Por exemplo, a explanação do que eu chamei "bens primários" foi revista, mostrando que eles dependem claramente de uma concepção particular das pessoas e seus interesses de ordem superior; segue-se que essa explanação não é uma tese puramente psicológica, sociológica, ou histórica. Ver pp. 526 e s. s.. Também se encontra nessas palestras uma ênfase mais explícita no papel de uma concepção da pessoa bem como na idéia de que a justificação de uma concepção da justiça é mais uma tarefa social prática do que um problema epistemológico ou metafísico. Ver pp. 518 e s. s.. A introdução da idéia de "construtivismo kantiano" está relacionada a essa questão, especialmente na terceira palestra. Note-se, contudo, que não proponho essa idéia como uma idéia kantiana; o adjetivo "kantiana" indica analogia, não identidade, isto é, a similitude existe num número suficiente de aspectos fundamentais para tornar apropriado o adjetivo. Esses aspectos fundamentais são certas características da justiça, como equidade e constituem elementos do seu conteúdo, tais como a distinção entre o que podemos denominar o Razoável e o Racional, a prioridade do direito e o papel da concepção das pessoas como livres e iguais, capazes de autonomia, e assim por diante. Similitudes de características estruturais e de conteúdo não podem ser confundidas com a visão de Kant sobre questões de epistemologia e metafísica. Finalmente, devo observar que o título dessas palestras, "Kantian Constructivism in Moral Theory", levou a mal-entendidos: posto que a concepção discutida de justiça é uma concepção política, um título melhor teria sido "Kantian Constructivism in Political Philosophy". A questão de saber se o construtivismo é razoável para a filosofia moral é rama questão separada e mais geral.
  • 3
    Theory, seção 2; ver também o índice. Ver também "The Basic Structure as Subject", in
    Values and Morals, ed. por Goldman, Alvin e Kim, Jaegwon, Dordrecht Reidel, 1978, pp. 47-71.
  • 4
    Ver "Basic Structure as Subject",
    ibidem, pp. 48-50.
  • 5
    Essa idéia foi introduzida em
    Theory pp. 387 e s. s., como um recurso para reduzir as condições da razoabilidade da desobediência civil numa sociedade democrática quase
    (nearly) justa. Aqui e depois, nas
    seções VI e VII, ela é utilizada num contexto mais amplo.
  • 6
    Theory, prefácio, p. VIII.
  • 7
    Ib. pp. 582 e s. s.. Sobre o papel de uma concepção de justiça na redução da divergência de opinião, ver pp.
    44 e ss., 53, 314 e 564. Em várias passagens indiquei o objetivo limitado no desenvolvimento da concepção de justiça: ver p. 364 a respeito de não se esperar muito de uma explanação da desobediência civil; pp. 200 e ss. sobre a indeterminação inevitável de uma concepção de justiça quanto à especificação de uma série de pontos de vista dos quais questões de justiça podem ser resolvidas; pp. 89 e ss. sobre a sabedoria social em reconhecer que talvez apenas uns poucos problemas morais (teria sido melhor dizer: problemas de justiça política) podem ser satisfatoriamente resolvidos, e, assim, em moldar instituições de maneira a que questões intratáveis não surjam; nas pp. 53 e 87 e ss. a necessidade de aceitar simplificações é enfatizado. A respeito do último ponto, ver também "Kantian Constructivism", p. p. 560-64.
  • 8
    A explanação desses princípios difere da que fiz na
    Theory, e acompanha a que apresentei em "The Basic liberties and their Priority",
    Tanner Lectures on Human Values, vol. III (University of Utah Press, Salt Lake City, 1982), p. 5. As razões dessas mudanças são discutidas nas pp. 46-55 daquela palestra. Elas são importantes para as revisões da exposição das liberdades básicas feita na
    Theory, revisões essas que visavam responder às objeções levantadas por H. L. A. Hart. Mas não há necessidade de considerá-las aqui.
  • 9
    A idéia do valor
    (worth) dessas garantias é discutido em ib., pp. 40 e s.s..
  • 10
    Theory, pp. 20 e ss., 48-51 e 120 e ss.
  • 11
    Ib. pp. 580-85.
  • 12
    Ib. pp. 214 e ss.
  • 13
    Sobre o construtivismo kantiano, ver especialmente a terceira palestra mencionada na nota
    2 2 Várias dessas mudanças, ou deslocamentos de ênfase, são evidentes nas três palestras intituladas "Kantian Constructivism in Moral Theory" in Journal of Philosophy nº 77, Setembro de 1980. Por exemplo, a explanação do que eu chamei "bens primários" foi revista, mostrando que eles dependem claramente de uma concepção particular das pessoas e seus interesses de ordem superior; segue-se que essa explanação não é uma tese puramente psicológica, sociológica, ou histórica. Ver pp. 526 e s. s.. Também se encontra nessas palestras uma ênfase mais explícita no papel de uma concepção da pessoa bem como na idéia de que a justificação de uma concepção da justiça é mais uma tarefa social prática do que um problema epistemológico ou metafísico. Ver pp. 518 e s. s.. A introdução da idéia de "construtivismo kantiano" está relacionada a essa questão, especialmente na terceira palestra. Note-se, contudo, que não proponho essa idéia como uma idéia kantiana; o adjetivo "kantiana" indica analogia, não identidade, isto é, a similitude existe num número suficiente de aspectos fundamentais para tornar apropriado o adjetivo. Esses aspectos fundamentais são certas características da justiça, como equidade e constituem elementos do seu conteúdo, tais como a distinção entre o que podemos denominar o Razoável e o Racional, a prioridade do direito e o papel da concepção das pessoas como livres e iguais, capazes de autonomia, e assim por diante. Similitudes de características estruturais e de conteúdo não podem ser confundidas com a visão de Kant sobre questões de epistemologia e metafísica. Finalmente, devo observar que o título dessas palestras, "Kantian Constructivism in Moral Theory", levou a mal-entendidos: posto que a concepção discutida de justiça é uma concepção política, um título melhor teria sido "Kantian Constructivism in Political Philosophy". A questão de saber se o construtivismo é razoável para a filosofia moral é rama questão separada e mais geral. acima.
  • 14
    Embora a
    Theory utilize essa idéia desde o início (ela é introduzida na p. 4), ela não enfatiza, como faço aqui e em "Kantian Constructivism", que as idéias básicas da justiça como equidade são consideradas implícitas ou latentes na cultura política de uma sociedade democrática.
  • 15
    Desejo enfatizar que uma concepção da pessoa tal como a entendo aqui é uma concepção normativa, seja ela legal, política, moral ou mesmo filosófica ou religiosa, dependendo da visão geral à qual pertence. Neste caso a concepção da pessoa é moral; ela parte da nossa concepção cotidiana das pessoas como unidades básicas de pensamento, deliberação e responsabilidade; é adaptada a uma concepção política de justiça e não a uma doutrina moral abrangente. Na verdade, é uma concepção política da pessoa, e dados os objetivos da justiça como equidade, é uma concepção de cidadãos. Assim, a concepção da pessoa deve ser distinta de uma explanação da natureza humana formulada pela ciência natural ou pela teoria social. Sobre esse ponto, ver "Kantian Constructivism", pp. 534 e ss.
  • 16
    Theory, seção 77.
  • 17
    Ib. seção 4, capítulo 3, e o índice.
  • 18
    "Sobre o véu da ignorância, ver
    ib, seção 24, e o índice.
  • 19
    Essa questão foi levantada por Ronald Dworkin na primeira página do seu ensaio tão iluminador e para mim altamente instrutivo, "Justice and Rights" (1973) republicado em
    Taking Rights Seriously (Harvard University Press, Cambridge MA, 1977). Dworkin examina várias maneiras de explicar o uso da posição originária numa concepção da justiça que invoca a idéia do contrato social. Na última parte desse ensaio (pp. 173-83), depois de ter examinado algumas das características construtivistas da justiça como equidade (pp. 159-168) e argumentado que ela é uma visão baseada em direitos e não no dever ou em objetivos (pp. 168-77), ele propõe que consideremos a posição originária com o véu da ignorância como modeladora da força do direito natural que as pessoas têm à atenção e respeito iguais na formulação das instituições políticas que os governam (p. 180). Ele pensa que
    esse direito natural está na base da justiça como equidade e que a posição originária serve como um recurso para testar quais os princípios de justiça são requeridos por esse direito. Essa é uma sugestão engenhosa, mas não a acompanhei no texto. Eu prefiro não conceber a justiça como equidade como uma visão baseada em direitos; na verdade, a classificação de Dworkin - visões baseadas em direitos, no dever ou em objetivos - é muito estreita e não contempla importantes possibilidades. Assim, como expliquei na seção II acima, eu penso que a justiça como equidade elabora em termos de concepções idealizadas certas idéias intuitivas fundamentais, como as de pessoas livres e iguais, de sociedade bem ordenada e do papel público de uma concepção de justiça política; penso ainda que ela conecta essas idéias intuitivas fundamentais com a idéia intuitiva, ainda mais fundamental e abrangente, da sociedade enquanto sistema equitativo de cooperação ao longo do tempo de uma geração à outra. Direitos, deveres e objetivos são apenas elementos dessas concepções idealizadas. Assim, a justiça como equidade é uma visão baseada em concepções, ou, como me foi sugerido por Elizabeth Anderson, baseada em ideais, visto que essas idéias intuitivas fundamentais refletem ideais implícitos ou latentes na cultura pública de uma sociedade democrática. Nesse contexto a posição originária é um artifício de representação que modela não a força do direito natural à atenção e ao respeito iguais, mas dos elementos essenciais dessas idéias intuitivas fundamentais tais como identificadas pelas razões dos princípios de justiça que aceitamos refletidamente. Enquanto tal, esse artifício serve primeiro para combinar e depois para enfocar a força resultante de todas essas razões ao selecionar os princípios de justiça mais apropriados a uma sociedade democrática (fazendo-se isso, a força do direito natural à atenção e ao respeito iguais será coberta de outras maneiras). Essa explanação originária é semelhante em alguns aspectos a uma explanação que Dworkin rejeita na primeira página do seu ensaio especialmente pp. 153 e ss.. Em vista da ambiguidade e obscuridade da
    Theory em muitos pontos considerados por Dworkin, não é meu objetivo criticar sua valiosa discussão, mas apenas indicar a diferença entre meu entendimento e o dele. Outros poderão preferir a explanação de Dworkin.
  • 20
    A posição originária modela uma característica básica do construtivismo kantiano, a saber, a distinção entre o Razoável e o Racional, com o Razoável precedendo o Racional (para uma explicação dessa distinção, ver "Kantian Constructivism", pp. 528-32 e
    passim). Aqui a relevância dessa distinção está em que, de maneira mais ou menos coerente, a
    Theory fala não de condições racionais, mas de condições razoáveis (às vezes, ajustadas ou apropriadas) enquanto restrições aos argumentos sobre os princípios da justiça (ver pp. 18 e ss., 20 e ss., 120 e ss., 130 e ss., 138,
    446, 516 e ss., 578, 584 e ss.). Essas restrições são
    modeladas na posição originária e portanto impostas às partes; suas deliberações são sujeitas, e absolutamente sujeitas, às condições razoáveis cuja modelagem torna equitativa a posição originária. O Razoável, portanto, precede o Racional, e isso nos dá a prioridade do direito. Assim, descrever a teoria da justiça como parte da teoria da escolha racional, como nas pp. 16 e 583, foi um erro que cometi na
    Theory (e um erro que induziu a grandes enganos). O que eu deveria ter dito é que a concepção da justiça como equidade utiliza uma explanação da escolha racional sujeita a condições razoáveis para caracterizar as deliberações das partes enquanto representantes de pessoas livres e iguais; e tudo isso no âmbito de uma concepção política da justiça que é, por certo, uma concepção moral. Não penso em tentar derivar o conteúdo cia justiça em uma estrutura que utiliza uma idéia do racional como a única idéia normativa. Esse pensamento é incompatível com qualquer espécie de visão kantiana.
  • 21
    Theory, pp. 138 e ss., 147. Digo (p. 147) que as partes na posição originária são indivíduos teoricamente definidos cujas motivações são especificadas pela explanação daquela posição e não por uma visão psicológica de como os seres humanos são realmente motivados. Isso também é parte do que quero significar ao dizer (p. 121) que a aceitação de princípios particulares da justiça não é conjeturada como uma lei psicológica ou probabilidade; ela decorre da descrição completa da posição originária. Desejo que o argumento seja dedutivo, "uma espécie de geometria moral", embora esse objetivo não possa ser perfeitamente alcançado. Em "Kantian Constructivism" (p. 532) as partes são descritas como agentes meramente artificiais que habitam urna construção. Assim, creio que R. B. Brandt está enganado ao objetar que o argumento a partir da posição originária está baseado numa psicologia errada. Ver o seu
    A Theory of the Good and the Right (Clarendon Press, Oxford, 1979, pp. 239-42). Alguém poderia objetar, é claro, com respeito à posição originária, que ela modela a concepção da pessoa e as deliberações das partes de maneira inadequada aos objetivos de urna concepção política da justiça; mas para esses objetivos, a teoria psicológica não é diretamente relevante. Por outro lado, a teoria psicológica é relevante para uma explanação da estabilidade de uma concepção da justiça, corno discutida na
    Theory, parte III. Ver abaixo, nota
    33 33 A parte III da Theory tem principalmente três objetivos: primeiro, fazer uma explanação do bem (goodness) como racionalidade (cap. 7), para servir de base para a identificação dos bens primários, ou seja, os bens que, dada a concepção de pessoas, as partes devem presumir que são necessários às pessoas que elas representam (pp. 397, 433 e ss.); segundo, fazer uma explanação da estabilidade de uma concepção de justiça (Cap. 8-9) e em particular, da justiça como equidade, e mostrar que essa concepção é mais estável que outras concepções tradicionais como quais é comparada, bem como que ela é suficientemente estável, e, terceiro, fazer uma exposição do bem de uma sociedade bem ordenada, isto é, de uma sociedade justa na qual a justiça como equidade é a concepção política da justiça publicamente afirmada e efetivamente realizada (Cap. 8-9, culminando na seção 86). Hoje penso que entre os defeitos da parte III encontram-se os seguintes. A explanação do bem (goodness) como racionalidade com frequência aparece como uma exposição do bem completo para uma concepção moral abrangente; tudo o que ela tem a fazer é explicar a lista dos bens primários e a base dos vários bens naturais reconhecidos pelo senso comum e, em particular, a significação fundamental do auto-respeito e auto-estima (que, como me foi apontado por David Sachs e Laurence Thomas, não foram distinguidos apropriadamente), e daí a significação fundamental das bases sociais do auto-respeito como um bem primário. Também a explanação da estabilidade da justiça como equidade não foi estendida, como deveria, para o importante caso da interface consensual, tal como esboçado no texto; ao invés disso, essa explanação limitou-se ao caso mais simples, em que se afirma que a concepção pública de justiça é em si mesma suficiente para expressar valores que normalmente superam, dado o contexto político de um regime constitucional, quaisquer outros valores que se lhes possam opor (ver a terceira visão na interface consensual indicada no texto). Em vista da discussão da liberdade de consciência apresentada nas seções 32-35 do capítulo 4, a extensão ao caso da interface consensual é essencial. Finalmente, a relevância da idéia de uma sociedade bem ordenada como união social de uniões sociais para fazer uma explanação do bem de uma sociedade justa não foi explicada de modo suficientemente amplo. Ao longo da parte III, um número excessivamente grande de conexões foram omitidas, esperando-se que o leitor as fizesse, a tal ponto que pode-se ficar em dúvida sobre qual é o tema de boa parte dos capítulos 8 e 9. . Similarmente, penso que Michaer Sandel está enganado ao supor que a posição originária envolve uma concepção do Eu "...da qual foram cortados todos os atributos contingentemente atribuídos", um Eu que "assume uma espécie de
    status supra-empírico... e dado com anterioridade aos seus próprios fins, um puro sujeito de ação e posse, em última análise de pouca consistência" (Ver o seu
    Liberalism and the Limits of Justice, Cambridge University Press, Cambridge, 1982, pp. 93-95). Não posso discutir essas críticas em detalhe aqui. O ponto essencial (tal como sugerido nas observações introdutórias) não é o de saber se certas passagens da
    Theory autorizam tal interpretação (coisa que eu duvido), mas se a concepção da justiça como equidade ali apresentada pode ser entendida à luz da interpretação que eu esboço no presente artigo e nas palestras anteriores sobre o construtivismo (como creio que pode).
  • 22
    Parte da dificuldade está na inexistência de um entendimento geralmente aceito do que seja uma doutrina metafísica. Seria possível dizer, como me sugeriu Paul Hoffman, que desenvolver uma concepção política da justiça sem pressupor, ou utilizar explicitamente, uma doutrina metafísica, como por exemplo uma concepção metafísica particular da pessoa, já é pressupor uma tese metafísica, a saber, a de que não se requer uma doutrina metafísica particular para aquele fim. Poderíamos também dizer que a nossa concepção cotidiana das pessoas como unidades básicas de deliberação e responsabilidade pressupõe, ou de alguma maneira envolve, certas teses metafísicas sobre a natureza das pessoas como agentes morais ou políticos. Seguindo o método da esquiva, não desejaria negar essas proposições. O que deveria ser dito é o seguinte. Se contemplarmos a explanação da justiça como equidade e notarmos como foi estabelecida, bem como as idéias e concepções que utiliza, veremos que nenhuma doutrina metafísica particular sobre a natureza das pessoas, distinta de outras doutrinas metafísicas e oposta a elas, aparece entre suas premissas, ou parece necessária ao argumento. Se pressuposições metafísicas estão envolvidas, elas talvez sejam tão gerais que não seriam diferenciadas segundo as distintas visões metafísicas — cartesiana, leibniziana, ou kantiana; realistas, idealistas ou materialistas - com as quais a filosofia tradicionalmente tem se preocupado. Nesse caso, não parece que sejam relevantes para a estrutura e o conteúdo de uma concepção política da justiça, num sentido ou noutro. Sou grato a Daniel Brudney e Paul Hoffman pela discussão desses pontos.
  • 23
    Sobre os dois primeiros ângulos, ver "Kantian Constructivism", pp. 544 e ss. (sobre o terceiro, ver nota 26 abaixo). A explanação dos dois primeiros ângulos naquelas palestras é mais desenvolvida neste artigo, e também sou mais explícito ao fazer a distinção entre o que chamo aqui nossa "identidade pública" e nossa "identidade não-pública ou moral". A razão de ser do termo "moral" na última frase é indicar que as concepções que as pessoas têm do bem (completo) são normalmente um elemento essencial na caracterização da sua identidade não-pública (ou não-política), e que essas concepções são entendidas como contendo normalmente importantes elementos morais, embora também contenham outros elementos, filosóficos ou religiosos. O termo "moral" deve ser tomado como aplicável a todas essas possibilidades. Sou grato a Elizabeth Anderson pela discussão e esclarecimento dessa distinção.
  • 24
    Presumo aqui que uma resposta ao problema da identidade pessoal procura especificar os vários critérios (como por exemplo a continuidade psicológica das memórias e a continuidade física do corpo ou de alguma de suas partes) segundo os quais dois diferentes estados psicológicos ou ações (quaisquer) que ocorrem em dois momentos diferentes podem ser considerados estados ou ações da mesma pessoa (que perdura no tempo); ela também procura especificar a maneira pela qual essa pessoa que perdura deve ser concebida: por exemplo, como uma substância cartesiana ou leibniziana, como o Eu transcendental kantiano, ou como alguma outra coisa que permanece, corporal ou fisicamente. Ver a coleção de ensaios editados por John Perry,
    Personal Identity (University of Califórnia Press, Berkeley, CA, 1975), especialmente a introdução de Perry, pp. 3-30; ver também o ensaio de Sydney Shoernaker em
    Personal Identity (Basil Blackwell, Oxford, 1984); ambos examinam várias visões dessa questão. Às vezes, em discussões desse problema, a continuidade de objetivos e aspirações fundamentais é amplamente ignorada, como, por exemplo, na visão de H. P. Grice (incluída na coletânea de Perry) que enfatiza a continuidade da memória. É claro que quando a continuidade de objetivos e aspirações fundamentais é considerada, como em
    Reasons and Persons, de Derek Parfit (Clarendon Press, Oxford, 1984, parte III) não há nítida distinção entre o problema da identidade não- pública ou moral das pessoas e o problema da sua identidade pessoal. Este último problema levanta questões profundas sobre as quais visões filosóficas passadas e atuais diferem amplamente, e seguramente continuarão a diferir. Por essa razão, é importante tentar desenvolver uma concepção política da justiça que o evite tanto quanto possível.
  • 25
    Sobre a idéia de morte social, ver Orlando Patterson,
    Slavery and Social Death (Harvard University Press, Cambridge, MA, 1982, especialmente pp. 5-9, 38-45, 337. Essa idéia é desenvolvida de modo interessante nesse livro e tem lugar central no estudo comparativo que o autor fez sobre a escravidão.
  • 26
    Ver "Social Unity and Primary Goods", in
    Utilitarianism and Beyond, coletânea organizada por Amartya Sen e Bernard Williams (Cambridge University Press, Cambridge, 1982, seção IV, pp. 167-70).
  • 27
    As igrejas, por exemplo, são submetidas ao princípio da liberdade igual de consciência e devem conformar-se ao princípio da tolerância, as universidades, ao que possa ser necessário para manter a igualdade equitativa de oportunidade; os direitos dos pais, ao que é necessário para manter o bem-estar físico de seus filhos e assegurar o desenvolvimento adequado de suas capacidades morais e intelectuais. Dado que igrejas, universidades e pais exercem sua autoridade no interior da estrutura básica, eles devem reconhecer as exigências que essa estrutura lhes impõe para manter a justiça de fundo
    (background justice).
  • 28
    Quanto à Kant, ver
    Fundamentação da Metafísica dos Costumes e
    Crítica da Razão Prática. Quanto a Mill, ver
    Sobre a Liberdade em particular o capítulo 3, onde o ideal da individualidade é mais amplamente discutido.
  • 29
    Esse argumento foi apresentado com respeito aos liberalismos de Kant e Mill, mas para a cultura americana deveríamos mencionar as importantes concepções de individualidade democrática expressas nos trabalhos de Emerson, Thoreau e Whitman. Esses autores são instrutivamente discutidos por George Kateb em seu "Democratic Individuality and the Claims of Politics",
    Political Theory, 12, agosto de 1984.
  • 30
    Sobre a idéia do núcleo de uma interface consensual (mencionada acima) ver
    Theory, última parte da seção 35, pp- 220 e ss.. Sobre a idéia da autonomia plena, ver "Kantian Constructívism", pp. 528 e ss.
  • 31
    Essa concepção da unidade social está em "Social Unity and Primary Goods", mencionada na nota
    27 27 As igrejas, por exemplo, são submetidas ao princípio da liberdade igual de consciência e devem conformar-se ao princípio da tolerância, as universidades, ao que possa ser necessário para manter a igualdade equitativa de oportunidade; os direitos dos pais, ao que é necessário para manter o bem-estar físico de seus filhos e assegurar o desenvolvimento adequado de suas capacidades morais e intelectuais. Dado que igrejas, universidades e pais exercem sua autoridade no interior da estrutura básica, eles devem reconhecer as exigências que essa estrutura lhes impõe para manter a justiça de fundo (background justice). acima. Ver especialmente pp. 160 e ss., 170-173, 183 e ss.
  • 32
    A distinção entre as circunstâncias objetivas e subjetivas da justiça é feita na
    Theory, pp. 126 e ss. A importância do papel das circunstâncias subjetivas é enfatizada em "Kantian Constructivism", pp. 540-42.
  • 33
    A parte III da
    Theory tem principalmente três objetivos: primeiro, fazer uma explanação do bem
    (goodness) como racionalidade (cap. 7), para servir de base para a identificação dos bens primários, ou seja, os bens que, dada a concepção de pessoas, as partes devem presumir que são necessários às pessoas que elas representam (pp. 397, 433 e ss.); segundo, fazer uma explanação da estabilidade de uma concepção de justiça (Cap. 8-9) e em particular, da justiça como equidade, e mostrar que essa concepção é mais estável que outras concepções tradicionais como quais é comparada, bem como que ela é suficientemente estável, e, terceiro, fazer uma exposição do bem de uma sociedade bem ordenada, isto é, de uma sociedade justa na qual a justiça como equidade é a concepção política da justiça publicamente afirmada e efetivamente realizada (Cap. 8-9, culminando na seção 86). Hoje penso que entre os defeitos da parte III encontram-se os seguintes. A explanação do bem
    (goodness) como racionalidade com frequência aparece como uma exposição do bem completo para uma concepção moral abrangente; tudo o que ela tem a fazer é explicar a lista dos bens primários e a base dos vários bens naturais reconhecidos pelo senso comum e, em particular, a significação fundamental do auto-respeito e auto-estima (que, como me foi apontado por David Sachs e Laurence Thomas, não foram distinguidos apropriadamente), e daí a significação fundamental das bases sociais do auto-respeito como um bem primário. Também a explanação da estabilidade da justiça como equidade não foi estendida, como deveria, para o importante caso da interface consensual, tal como esboçado no texto; ao invés disso, essa explanação limitou-se ao caso mais simples, em que se afirma que a concepção pública de justiça é em si mesma suficiente para expressar valores que normalmente superam, dado o contexto político de um regime constitucional, quaisquer outros valores que se lhes possam opor (ver a terceira visão na interface consensual indicada no texto). Em vista da discussão da liberdade de consciência apresentada nas seções 32-35 do capítulo 4, a extensão ao caso da interface consensual é essencial. Finalmente, a relevância da idéia de uma sociedade bem ordenada como união social de uniões sociais para fazer uma explanação do bem de uma sociedade justa não foi explicada de modo suficientemente amplo. Ao longo da parte III, um número excessivamente grande de conexões foram omitidas, esperando-se que o leitor as fizesse, a tal ponto que pode-se ficar em dúvida sobre qual é o tema de boa parte dos capítulos 8 e 9.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 1992
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