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Repensar os estudos: os impactos do 11 de Setembro no pensamento liberal

RESENHAS

Repensar os estudos: os impactos do 11 de Setembro no pensamento liberal

Reginaldo Mattar Nasser

Francis FUKUYAMA. Construção de Estados, governo e organização no século XXI. Tradução de Nivaldo Montigelli Jr. Rio de Janeiro, Rocco, 2004. 168 páginas.

Pode-se dizer que no plano intelectual a era do pós-Guerra-Fria teve início com a profecia de pensadores como Fukuyama, de que a queda do comunismo e o triunfo das democracias liberais eram os sinais do começo da "etapa final", em que não haveria mais lugar para grandes lutas ideológicas. Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que a história havia terminado. O fim da História não significaria o alcance de um sistema perfeito, mas a eliminação de quaisquer alternativas melhores para ele.1 1 O artigo de Fukuyama, com o título "The end of history", foi publicado em 1989 na revista The National Interest. Em 1992, o autor lançou o livro The end of history and the last man, editado no Brasil com o título O fim da história e o último homem (Rio de Janeiro, Rocco, 1992).

Porém, doze anos depois o mesmo Fukuyama que saudou os anos de liberalização econômica, cujo objetivo dominante foi reduzir o campo de abrangência das atividades do Estado, constatava que as políticas de privatização, liberalização e desregulamentação, motivadas pelo consenso de Washington e pelas instituições financeiras internacionais, como o Fundo Monetário internacional, tiveram um efeito altamente perverso. Estava na hora de conclamar a volta do Estado (Fukuyama, 2004).

O problema, que hoje se tornou dramático, é a constatação de que o projeto implementado com êxito em países como Estados Unidos e Inglaterra não poderia ter a mesma eficácia em outros países. O consenso de Washington, observa Fukuyama, "era uma lista perfeitamente sensata de medidas de política econômica" (p. 32) concebidas para diminuir o escopo das funções do Estado por meio de tarifas de proteção reduzidas, privatizações e desregulamentações. Mas no processo de redução do escopo do Estado, muitos países tiveram que reduzir a força do Estado ou gerar demandas por novos tipos de capacidade do Estado, que eram fracas ou inexistentes.

De acordo com o autor, "as crises financeiras enfrentadas pela Tailândia e pela Coréia do Sul estavam diretamente ligadas à liberalização prematura da conta de capital na ausência de instituições regulamentadoras adequadas para supervisionar os setores bancários nacionais" (p. 35). O Estado russo, por exemplo, passou repentinamente de uma situação em que havia total controle de todos os aspectos da economia e da sociedade civil por parte do Estado, a uma outra em que desde a coleta impostos até a segurança do cidadão tornou-se inviável. Grande parte da crise de legitimidade do Estado russo pós-comunista deve-se ao fato de ele ter sido apropriado pelos oligarcas, que o levaram à falência.

Na verdade, conclui Fukuyama, a maioria dos problemas recentes denota mais a falta de uma ação eficiente do Estado do que propriamente a sua presença excessiva, tornando-se evidente ser mais importante que os Estados existam do que sejam limitados. A construção dos Estados, afirma Fukuyama no prefácio do livro, é "uma das questões mais importantes para a comunidade mundial porque os Estados Fracos ou fracassados constituem a fonte de muitos dos problemas mais graves do mundo, da pobreza à Aids, drogas e terrorismo" (p. 9). Ao formular essa tese estaria o autor de O fim da história finalmente abandonando as hostes liberais que o tornaram célebre na década de 1990?

O livro está dividido em três partes. A primeira procura construir um quadro analítico para que possamos compreender melhor as múltiplas dimensões da "estatidade" (stateness), isto é, as funções, as competências e as bases para a legitimidade dos governos. Na segunda parte, o autor examina as causas da fraqueza do Estado sob o ponto de vista da administração pública. A terceira volta-se para as dimensões internacionais da fraqueza do Estado: instabilidade, crise da soberania e questões de legitimidade democrática.

A primeira grande tarefa de Fukuyama em seu livro é diferenciar claramente entre "o escopo das atividades do Estado, que se refere às diferentes funções e metas assumidas pelos governos, e a força e o poder do Estado, ou a capacidade dos Estados de planejar e executar políticas e fazer respeitar as leis de forma limpa e transparente" (p. 22). Aqui reside um dos momentos-chave do argumento de Fukuyama, pois com freqüência a palavra força é usada indiferentemente para se referir ao que é chamado de escopo e à capacidade. A distinção entre as duas dimensões de estatidade permite criar uma matriz que ajuda a diferenciar os graus de estatidade em vários países do mundo.

Dessa forma, os Estados contemporâneos poderiam situar-se em dois eixos de abrangência (amplitude de atividades) e força (ou eficácia): os Estados Unidos, por exemplo, têm um Estado forte, com abrangência limitada; a França também tem um Estado forte, mas com ampla abrangência; a União Soviética tinha um Estado forte com abrangência máxima; Serra Leoa, por sua vez, tem um Estado extremamente fraco com abrangência limitada; e o Brasil, um Estado fraco com ampla abrangência (p. 28).

Por mais objetividade que se pretenda alcançar na construção dos indicadores há ainda grande controvérsia na utilização de critérios para definir quais são os Estados falidos. Uma lista elaborada pelo Banco Mundial, baseada nos níveis de investimentos, inclui entre os Estados frágeis a maioria dos países africanos, faz uma menção ao Haiti e não inclui nenhum país latino-americano. Já uma outra, elaborada pelo The Fund for Peace (Washington), inclui sessenta países em situação de instabilidade, tomando como variáveis a debilidade e/ou o colapso institucional, a deslegitimação da democracia, a exclusão de setores sociais e até mesmo a possibilidade de secessão. Nesta, o Haiti aparece em décimo lugar, a Colômbia em décimo quarto, seguidos mais a frente por Guatemala, Paraguai, Peru, Honduras, Equador e Cuba.2 2 "Indice de 'Estados Fallidos'", Foreign Policy (edición española), 10: 56-65, ago.-set., 2005.

Um outro estudo pretende definir o que é um Estado em processo de fragilização, detectando sinais evidentes de sua incapacidade a partir de variáveis como o controle de seu território ou grande parte dele, a manutenção da ordem legal interna e a provisão de serviços públicos essenciais à população ou as condições para se ter acesso a eles.3 3 "Failing States: a global responsibility", Advisory Council on International Affairs, n. 35, 2004, p. 11.

Após o final da Guerra Fria formou-se um consenso em relação à visão de que os Estados falidos se tornaram o principal problema de natureza humanitária para a ordem internacional, mas os atentados do 11 de setembro, de acordo com Fukuyama, mostraram uma nova dimensão. O fato de o Afeganistão ser um Estado falido facilitou a instalação, em seu território, de uma organização terrorista (Al Qaeda) em que "as formas tradicionais de intimidação ou contenção não funcionam contra esse tipo de agente não-estatal, e assim as questões de segurança exigem buscas dentro dos Estados e mudanças em seus regimes para evitar o surgimento de futuras ameaças" (p. 124). Mas o que parece ser mais preocupante para Fukuyama é que os atentados mostraram também que esse novo terrorismo pode causar "danos significativos aos Estados Unidos e a outros países desenvolvidos" (p. 24). Talvez seja essa a principal razão que levou o autor a priorizar os estudos sobre a construção dos Estados, já que, de acordo com essa perspectiva, quanto mais fraco um Estado, maior a possibilidade de se converter em base para a ação terrorista global e, conseqüentemente, mais perigoso ele se torna.

Assim, Fukuyama conclama que "o fortalecimento desses Estados [falidos] por várias formas de construção de nações é uma tarefa que se tornou vital para a segurança internacional" (p. 156). Porém, esse desafio coloca as grandes potências diante de um terrível dilema: se intervierem onde os poderes locais fracassaram, há um grande risco de assumir desafios imperiais, mas, se deixarem de intervir, a conseqüência inevitável será a anarquia.

No cerne de toda a argumentação da reconstrução estatal está o desafio de se criar um governo que detenha, efetivamente, o monopólio legítimo dos meios de violência, mas que seja, ao mesmo tempo, capaz de fazer cumprir o império da lei por todo o território. De acordo com Fukuyama, há dois tipos de erro opostos que freqüentemente se repetem. O primeiro refere-se, sobretudo, à tarefa de construção de um Estado com alto poder de coerção entendo que seria importante manter esse trecho pois há possibilidade se ter um Estado com alto de poder de coerção sem um estado de direito. De uma forma em geral as intervenções norte-americanas na América Central e no Caribe salvaram alguns países da anarquia, mas permitiram a criação de ditaduras. No lado oposto está a chamada "democratização prematura", como ocorreu nas eleições do Iraque, que serviram para reforçar o poder político de uma etnia (xiita) sobre outra (sunita). Em outras palavras, seria preciso haver um Estado antes de se pensar em democracia, mas a democracia seria o princípio básico para um Estado ser legítimo e, conseqüentemente, estável (Fukuya ma, 2005).

Contudo, a pergunta fundamental que o livro de Fukuyama não responde e que revela os principais problemas de sua fundamentação teórica diz respeito às razões históricas ou estruturais decorrentes da implementação de estratégias políticas e econômicas que condicionam os Estados a uma situação de fragilidade. Moore (2004/2005) enumera cinco fontes de vulnerabilidade que emanam diretamente dos países mais abastados e que não são mencionadas por Fukuyama: disponibilização de lugares convenientes para ocultar dinheiro pilhado; a segurança proporcionada pelas grandes potências de maus governantes de países que fornecem recursos naturais valiosos; a facilidade com que combatentes podem conseguir armamentos que alimentam as guerras civis; a enorme fortuna que pode ser gerada mediante a venda de commodities, como petróleo, diamantes, drogas ilegais em mercados de países ricos; e, por fim, a disposição de grandes empresas para subornar as autoridades nos países pobres.

Por outro lado, um dos méritos de Construção de Estados, governo e organização no século XXI é desmistificar os que acreditam que a democracia é uma condição para qual caminham os Estados, uma vez que se registra apenas a mudança de regime. O grande desafio no século XXI, segundo o autor, consiste no fortalecimento dos Estados falidos por meio de um prolongado processo de consolidação institucional e de reformas. Porém, ao isentar de responsabilidade os países do mundo desenvolvido nesse processo de fragilização, sua análise não nos permite compreender as verdadeiras causas do declínio dos Estados que preocupam a comunidade internacional, prejudicando seriamente a legitimidade de todo e qualquer projeto de reconstrução.

Notas

BIBLIOGRAFIA

REGINALDO MATTAR NASSER é professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC. E-mail: regmatar@uol.com.br.

  • FUKUYAMA, Francis. (2004), "Bring back the state". Observer, 4, jul.
  • _________. (2005), "Stateness first". Journal of Democracy. Baltimore, 16.
  • MOORE, Mick. (2004/2005), "Rich world, poor world State-Building: governance and world order in the 21st Century". Consultado no site http://bostonreview.net/BR29.6/moore. html (acesso em 21/5/2007).
  • 1
    O artigo de Fukuyama, com o título "The end of history", foi publicado em 1989 na revista
    The National Interest. Em 1992, o autor lançou o livro
    The end of history and the last man, editado no Brasil com o título
    O fim da história e o último homem (Rio de Janeiro, Rocco, 1992).
  • 2
    "Indice de 'Estados Fallidos'",
    Foreign Policy (edición española), 10: 56-65, ago.-set., 2005.
  • 3
    "Failing States: a global responsibility",
    Advisory Council on International Affairs, n. 35, 2004, p. 11.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Jan 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2008
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