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Etnografias da ciência

Ethnographies of science

Fonseca, Cláudia; JARDIM, Denise F.. Promessas e incertezas da ciência: perspectivas antropológicas sobre saúde, cuidado e controle. Porto Alegre: Sulina, 2017. 256 páginas

Promessas e incertezas da ciência: perspectivas antropológicas sobre saúde, cuidado e controle é um livro organizado por Claudia Fonseca e Denise F. Jardim, antropólogas e docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Trata-se de uma coletânea de estudos etnográficos realizados por pesquisadores em um convênio de cooperação interinstitucional, entre o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Portugal e o Núcleo de Antropologia e Cidadania da UFRGS/Brasil, coordenado respectivamente por Helena Machado e Claudia Fonseca. O projeto de cooperação (financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e pela Fundação de Ciência e Tecnologia Portuguesa) tem por objetivo analisar os modos de produção de ciência, política e controle social nos dois países. O livro tem por mérito apresentar resultados de pesquisas etnográficas de alunos e docentes de pós-graduação das universidades, apresentando análises atuais que atravessam os estudos das ciências sociais e da antropologia em temas como ciência, tecnologia, política, documentos e agência estatal.

O conjunto dos textos revela uma inquietação sobre a possibilidade de se analisar as ciências e as práticas de governo levando em consideração suas promessas. Nesse ponto, as contribuições do livro se diferem das análises das tecnologias de governo como formas de controle do comportamento dos cidadãos por meio de prescrições de uma vida saudável. As reflexões que compõem o livro não se limitam em descrever as práticas de governo apenas como uma forma de controle da população. Como encontramos nas reflexões de Michel Foucault – que descreve o direcionamento da vida como ações estratégicas compostas por “mecanismos e procedimentos destinados a conduzir os homens, a dirigir a conduta dos homens, a conduzir a conduta dos homens” (2011a, p. 53), e suas táticas explicitam, definem e, ao mesmo tempo, compõem o Estado, que se utiliza de instrumentos econômicos para controlar a população por meio dos dispositivos de segurança (2004, p. 291). Ou como propõe Rose (2011ROSE, Nikolas.(2011), Inventando nossos selfs: psicologia, poder e subjetividade. Petrópolis: Vozes., p. 64) ao expor o modo como as democracias atuais funcionam cada vez mais com mecanismos que alinham ou conectam a conduta, os desejos e as decisões de organizações e dos cidadãos aos objetivos do governo, e, por isso, elas não utilizam protocolos fixos, mas acionam diferentes técnicas modeladas com base no indivíduo cidadão, como uma forma de orientar (ou persuadir) suas escolhas.

Já no prefácio, Fonseca e Jardim afirmam que as ações de governo que compõem a prática de políticas públicas elaboradas com base nas descobertas científicas podem ser mais adequadas, “eficazes e justas” aos cidadãos. Para as autoras, a ciência deve indicar ou “instruir” as ações de um “bom governo”, que produziria, assim, uma “boa vida” (p. 7). Em outras palavras, as descobertas científicas (novas medicações, cura de doenças, exames laboratoriais, cálculos sociais e intervenções psicossociais) em suas promessas devem ser acessíveis por meio das ações estatais. Nesse sentido, o livro contribui para os estudos das tecnologias estatais ao expor a maneira pela qual as ações de governo compõem as práticas de intervenção (do Estado, uma vez que as práticas de governo podem ser acionadas com outros objetivos que não o estatal).

Os dados etnográficos mostram o direcionamento da vida articulados em engrenagens cotidianas de intervenção. Os autores analisam as diferentes tecnologias acionadas em procedimentos científicos, em conjunturas inesperadas de negociação e em práticas de assistência, revelando as incertezas presentes nas práticas científicas e nas tecnologias governamentais que orientam as formas de vida. Em vez de denunciar as estratégias e o controle da vida, as reflexões apontam para situações inesperadas, contextos incertos e relações complexas. Os autores participam dos contextos de pesquisa, ao mesmo tempo que exploram e explicitam as múltiplas vozes da realidade. A ideia é não limitar a reflexão a uma discussão, mas, com base na pesquisa de campo, analisar a realidade em suas múltiplas possibilidades. Essa forma de atuação política certamente auxilia o estudo científico ao revelar ações criativas e estrategicamente pensadas para dar conta das vicissitudes da vida.

São oito capítulos dispostos em três partes. A primeira parte – “Causas e curas: que tipo de cuidado?” –, composta por três capítulos, destaca os saberes e as intervenções médico-científicas em ações e práticas de cuidado. Glaucia Maricato, a autora do primeiro capítulo, “Combate ao Mycobacterium leprae: saberes e intervenções”, analisa a trajetória da hanseníase (lepra): a princípio considerada uma doença hereditária, foi identificada mais tarde como doença contagiosa, o que provocou o isolamento obrigatório de pessoas. Maricato mostra como as práticas de conhecimento e de intervenção compõem o contexto histórico, descrevendo a produção do discurso sobre a doença, a descoberta do baciloleprae e o surgimento da bacteriologia. A ideia relativa ao contágio legitimou uma política de segregação dos doentes no fim do século XIX e a construção de leprosários na “Era Vargas”.

No segundo capítulo, “Capturando a espiritualidade: pesquisas médico-científicas sobre a dimensão espiritual da saúde no Brasil”, Rodrigo Toniol e Carlos Alberto Steil mostram como a espiritualidade é acionada em normatizações da política, em documentos internacionais de gestão, nas práticas médicas e nos discursos de pesquisadores em contextos institucionais de saúde. A partir da afirmação de que a “espiritualidade é saúde”, os autores discutem as resoluções da Organização Mundial da Saúde (OMS) que induzem a inclusão da espiritualidade em protocolos de práticas clínicas de assistência. A pesquisa de campo foi realizada em grupos de pesquisa que produziram instrumentos para capturar a espiritualidade, como o questionário de anamnese espiritual do Programa de Saúde Espiritualidade e Religiosidade (ProSER) e as tecnologias de neuroimagem do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (Nupes). Segundo os autores, as tecnologias, os procedimentos e os instrumentos produzem a espiritualidade como um objeto “possível de ser capturado e avaliado” (p. 61). Desse modo, o foco está em analisar a espiritualidade, não em suas relações com a religião, mas como resultado de um processo histórico político-discursivo.

Mariana Amorim, Elisabete Alves, Inês Baía e Susana Silva escreveram o terceiro capítulo, intitulado “Percepções parentais sobre os cuidados centrados na família: repensando a governança em neonatologia”, que destaca uma forma de cuidado familiar. A partir de uma pesquisa de campo realizada com familiares de crianças internadas em Unidades de Terapia Intensiva Neonatal, as autoras mostram a mudança de um cuidado “centrado em pessoas” para um cuidado familiar que orienta a prática clínica. Essa nova forma de cuidado faz com que os pais se responsabilizem e participem das ações de cuidado compondo a assistência de seu filho.

A segunda parte – “Redes de controle e bem-estar nas margens do Estado” –, é também composta por três capítulos. O quarto, intitulado “A produção do Estado a partir da observação de uma rede de atenção à fibrose cística”, de Roberta Reis Grudzinski, destaca o modo como são “performadas” (MOL, 2007MOL, Annemarie. (2007),“Política ontológica: algumas ideias e várias perguntas”, in J.A. Nunes e R. Roque (orgs.), Objectos impuros: experiências em estudos sociais da ciência, Porto, Afrontamento.) as noções de cidadania e Estado. Para mostrar que a participação estatal na área da saúde não se restringe à visão de que o Estado apenas distribui medicamentos – ou, nas palavras de Biehl (2007BIEHL, João. (2007),“Pharmaceuticalization: AIDS Treatment and Global Health Politics”. Anthropological Quarterly, 80(4):1083-1126.), de que ele “farmaceuticaliza” a saúde –, a autora descreve o desempenho estatal junto à Associação Carioca de Assistência à Mucoviscidose (Acam-RJ). Como resultado de uma negociação para atender às demandas dos pacientes com fibrose cística, essa associação obteve do Estado, além do acesso aos fármacos, suplementos alimentares, um terreno e a contratação de duas médicas. Ou seja, o Estado realizou ações diversas para solucionar as demandas geradas no interior de uma associação assistencial, garantindo, assim, a assistência aos pacientes.

Silvia Zelaya, autora do quinto capítulo, “Notas etnográficas sobre uma política migratória em construção: alguns dilemas em torno do tratamento humanitário”, apresenta os resultados iniciais de sua pesquisa etnográfica no Comitê de Atenção a Imigrantes, Refugiados, Apátridas e Vítimas de Tráfico de Pessoas do Rio Grande do Sul (Comirat/RS) e no Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem-Teto de São Paulo (Grist). Ela analisa as tensões e as lutas simbólicas dos migrantes e suas relações com o Estado. Além disso, descreve as ações dos agentes estatais, não apenas do ponto de vista do cumprimento da política de direitos humanos,mas da perspectiva dos discursos oficiais do Ministério da Justiça.

No sexto capítulo, “‘É na madrugada que a Constituição é rasgada’: sobre direitos, intervenção e gestão dos ‘indesejáveis’ urbanos”, Tiago Lemões estuda grupos de pessoas “em situação de rua”. Destaca o movimento dinâmico em que as práticas de justiça acionam leis universais, ao mesmo tempo que o acionamento do direito explicita contextos ocidentais de justiça. Há nessa dinâmica a supressão de uma multiplicidade de valores e sensibilidades jurídicas, resultando na constituição de enunciados de poder e agenciamentos de controle. As políticas estatais refletem essa omissão da diversidade social, e, com isso, os grupos precisam reivindicar a garantia de seus direitos. O foco de sua análise recai sobre o acionamento de um discurso sobre direitos que garante visibilidade aos grupos que questionam as ações estatais. Essa dinâmica do direito explicita a conexão entre as ações de controle, a gestão estatal da população vulnerável e a “garantia de direitos”.

A terceira e última parte da coletânea – “Ciência e bioética: confrontando desafios” – apresenta duas contribuições. O sétimo capítulo, “Entre a utopia e a distopia dos biobancos: (d)esperanças, riscos e benefícios pela voz dos cidadãos”, de Marta Martins e Helena Machado, analisa a produção de bioidentidades por meio da doação de material biológico humano para os biobancos (repositórios). Da bioidentidade chegamos à biossocialidade (Rabinow, 1996RABINOW, Paul. (1996), Essays on the anthropology of reason. Princeton, Princeton University Press.) e à “cidadania biológica” (Rose, 2012ROSE, Nikolas. (2012), A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo, Paulus.), noções que encerram a reivindicação de direitos a partir de uma identidade construída em termos biológicos. A pesquisa aconteceu em âmbito virtual com um questionário a esse respeito encaminhado ao Facebook e por correio eletrônico. Marta Martins “assumiu o papel de etnógrafa virtual”, sendo mediadora de um debate on-line num fórum do Facebook.

No último capítulo, “Um olho no gato e outro no peixe: dilemas éticos e os circuitos das ciências”, Denise F. Jardim examina o debate sobre a ética em pesquisa etnográfica nos últimos quarenta anos. Segundo ela, o etnógrafo tem que estar atento aos impactos de sua produção no grupo estudado, o que é um problema presente na antropologia e nas ciências sociais (Fleisher e Schuch, 2010FLEISCHER, Soraya e SCHUCH, Patrice (orgs.).(2010),“Ética e regulamentação na pesquisa antropológica”. Brasília, Letras Livres/UnB.; Sarti e Duarte, 2013SARTI, Cynthia e DUARTE, Luiz Fernando Dias (orgs.). (2013), Antropologia e ética: desafios para a regulamentação. Brasília, ABA.; Schuch, 2013SCHUCH, Patrice. (2013),“A vida social ativa da ética na antropologia (e algumas notas do “campo” para o debate)”, in C. Sarti e L. F. D. Duarte (orgs.), Antropologia e ética: desafios para a regulamentação, Brasília, ABA, pp. 31-85.; Fonseca, 2015FONSECA, Claudia. (2015),“Situando os Comitês de Ética em Pesquisa: o sistema CEP (Brasil) em perspectiva”. Horizontes Antropológicos, 21 (44): 333-369.; Castro e Silva, Mendes e Nakamura, 2012CASTRO E SILVA, Carlos Roberto de; MENDES, Rosilda e NAKAMURA, Eunice. (2012),“A dimensão da ética na pesquisa em saúde com ênfase na abordagem qualitativa”. Revista Saúde e Sociedade, 21 (1): 32-41.; Guerriero, Schmidt e Zicker, 2008GUERRIERO, Iara Coelho Zito; SCHMIDT, Maria Luisa Sandoval e ZICKER, Fábio (orgs). (2008), Ética nas pesquisas em ciências humanas e sociais na saúde. São Paulo, Aderaldo & Rothschild.), já que as normas do Comitê de Ética em Pesquisa orientam de antemão uma forma específica de se fazer pesquisa, muitas vezes contrária à experiência etnográfica, que resulta da relação firmada entre pesquisador e interlocutores. Tal compromisso possibilita o delineamento do campo de observação do pesquisador, que pode ser revisto ou atualizado à luz do vínculo de confiança que compõe essa relação (Bevilaqua, 2010BEVILAQUA, Ciméia B. (2010). “Ética e planos de regulamentação da pesquisa: princípios gerais, procedimentos contextuais”, in Soraya Fleischer e Patrice Schuch (orgs.), Ética e regulamentação na pesquisa antropológica. Brasília, Letras Livres/UnB.). Observa-se que a autorização da pesquisa explicita os compromissos éticos estabelecidos nessa interação, ao invés da aplicação das normas éticas fixadas previamente por uma regulamentação nacional da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Para Denise F. Jardim, o Código de Ética em Pesquisa é uma “preocupação com o fazer etnográfico” (p. 247) e a experiência etnográfica orientada por esse código mostra a criatividade e as estratégias dos pesquisadores que devem ser publicadas.

Para finalizar, creio que esta coletânea apresenta ao leitor reflexões importantes sobre a produção de etnografias em contextos diversos: pessoas que vivem em “situação de rua” e procuram formas de garantir seus direitos; atores que doam seu material biológico para pesquisas científicas e produzem uma bioidentidade; migrantes que procuram acesso ao Estado por meio da reivindicação de direitos; associações que buscam órgãos públicos para sanar suas demandas. Ou ainda, as condições de possibilidades históricas para o surgimento de uma doença contagiosa, ou a espiritualidade ser capturada por meio de uma ficha de anamnese ou por meio de uma tecnologia. Enfim, temas variados e interessantes que contribuem para a discussão recente da antropologia dos estudos de ciência e tecnologia, pois as análises etnográficas destacam os usos de tecnologias, de práticas e atuações políticas que, por vezes, produzem informações, dados e a gestão da vida.

BIBLIOGRAFIA

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2018
  • Data do Fascículo
    2019
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