Introdução
Em 1973, Gilles Deleuze publicou o texto “Em que se pode reconhecer o estruturalismo?”1, no qual fez um esforço de descrição dos elementos constitutivos das abordagens estruturalistas em voga à época. Em um gesto análogo, pretendo fazer, neste artigo, em um primeiro momento, uma breve e sintética exposição do que seria uma resposta à seguinte pergunta: em que se pode reconhecer a sociologia pragmática? Em seguida, pretendo mostrar como esse exercício de exposição teórica da sociologia pragmática2 tem menos um objetivo escolar de apresentação de uma “corrente” ou um “estilo” de se praticar a sociologia (Nachi, 2006; Benatoüil, 1999) – o que já foi feito, em parte, em outro artigo (Corrêa & De Castro, 2016) –, e mais um esforço de introduzir novas perguntas e apontar novos rumos para a agenda da teoria social contemporânea.
Neste sentido, busco incluir questões nos debates da teoria social e da teoria sociológica – mas também no debate metateórico (Vandenberghe, 2013) –, que escapem ao que foi postulado pelo “novo movimento teórico” (Alexander, 1987). Assim, meu objetivo não é propriamente submeter à crítica figuras como Anthony Giddens, Jürgen Habermas, Pierre Bourdieu, Randal Collins e o próprio Jeffrey Alexander, mas sim apontar novos rumos para a teoria social, a partir de três gestos da sociologia pragmática.
Os três gestos dentro de uma ‘virada’?
É sempre uma tarefa árdua e ingrata definir uma perspectiva teórica por elementos, tipologias e etiquetas. Comumente, como no caso das “viradas” (Bachmann-Medick, 2016), procura-se aquilo que a nova perspectiva promete e a imagem ou conceito-chave que sintetize o “novo” movimento. Na virada linguística, em sua versão habermasiana, por exemplo, é possível ver que ela promete uma saída da racionalidade instrumental denunciada pela primeira geração da Escola de Frankfurt, trazendo, ao mesmo tempo, a imagem de um mundo intersubjetivamente mediado, categorizado e em parte consensuado pelo filtro da linguagem. O seu conceito-chave é, como se sabe, a razão comunicativa (Habermas, 1984, 1987). A virada afetiva, de modo diferente, traz-nos a imagem mais imediata e direta do registro infralinguístico dos afetos, das emoções e das sensações, e nos promete um elo mais vital e visceral na relação entre sujeito e mundo. Os conceitos que ela traz para a linha de frente da teoria social são a “potência de agir” (Spinoza, 2007) e a “energia emocional” (Collins, 2004). Várias outras “viradas” poderiam ser evocadas – inclusive a pragmática, trazida por parte da sociologia francesa pós-bourdieusiana.
No entanto, em vez de uma “virada”, dada por uma promessa, ideia ou imagem e um conceito-chave, evocarei três gestos constitutivos do que seja a sociologia pragmática. Primeiro, porque a noção de gesto (De Castro, 2016) traz imediatamente à imaginação um movimento em ato: por definição, ele sempre carrega consigo a ideia de um contorno, uma linha, e nunca um ponto, muito menos um ponto final. O gesto é sempre um fluxo movente que transita de um lugar a outro, em uma dinâmica de transitoriedade sem origem fixa ou fim delimitado. Em segundo lugar, mesmo o gesto “realizado”, parado em um instante do tempo, não deixa de manter um contorno virtual que segue para além de si mesmo. O contorno que o gesto esboça delineia um caminho que vai além do ponto em que ele se encerra. Se isso é verdade, é levando às últimas consequências os contornos fundamentais esboçados pela sociologia pragmática que pretendo indicar uma nova direção retraçável para a teoria social. É neste sentido, que opto pela descrição de três gestos. Porém, quais seriam eles? Dito de outro modo, o que a sociologia pragmática trouxe de novo para o debate da teoria social?
Argumentarei, adiante, que o primeiro gesto que a sociologia pragmática traz à baila é o gesto metafísico de inversão da sociologia clássica durkheimiana. O que os sociólogos pragmáticos fazem é partir de uma ideia ou uma imagem do social (ou da sociedade) que seja a mais abrangente, ampla, inclusiva e desdeterminante possível pela nossa imaginação. Em outros termos, o primeiro gesto proposto pela sociologia pragmática é a definição do social pelo “princípio de liberalidade” ontológica (Garcia, 2014).
Há, com isso, uma espécie de novo jogo na teoria social, mais precisamente em torno do conceito de social, e que pode ser definido pelas seguintes perguntas: como pensar uma ideia de social que não exclua absolutamente nada a priori? Que esteja aberta para se pensar as mais heterogêneas e complexas composições do que convencionamos chamar de sociedade? Como não reduzir o social ou a sociedade unicamente à ordem humana, de modo a incluir a extensão da humanidade aos animais? (Franco, 2015) Como incluir, no conceito de social, o papel dos objetos, dos dispositivos sociotécnicos, dos deuses, dos quark e das entidades não humanas de modo geral? Busca-se, para tanto, um pluralismo ontológico de partida. No entanto, esse movimento coloca um outro problema: abrir maximamente os possíveis, liberar a priori toda e qualquer existência não resolve a questão de como conhecer aquilo que é pertinente para os atores que pesquisamos. A liberalidade ontológica do sociólogo deve corresponder a uma atenção particular às determinações e definições que os atores produzem acerca de si mesmos e do mundo. Eis a importância do segundo gesto.
Trata-se de um gesto epistemológico de delegação, aos atores ou actantes, dos critérios de definição do que é pertinente, justo, real, verdadeiro, autêntico, etc. Em vez de uma ruptura epistemológica com o senso comum, como apregoavam Bourdieu, Passeron e Chamboredon (1973), objetiva-se, neste segundo gesto, uma delegação radical. Importa, aqui, restituir, no limite do possível, o universo expresso pelas definições dos atores e pelo poder de agência das entidades não humanas. O pluralismo de possíveis do primeiro gesto deve corresponder à abertura radical para a experiência concreta daqueles e daquilo (já que os não humanos devem estar incluídos) que se deseja pesquisar e conhecer.
Pretende-se, com isso, não apenas colocar a experiência dos atores e a “actância” (Latour, 2001) das entidades não humanas como o ideal regulativo do conhecimento do pesquisador, mas fazer de suas experiências e da própria actância um dispositivo de permanente desestabilização dos conceitos e conhecimentos prévios da sociologia, da antropologia, da filosofia, ou de qualquer outro saber que corresponda ao arcabouço conceitual inicial do pesquisador. Porém, é preciso reconhecer que uma liberação radical dos possíveis, uma delegação máxima do que, em ato, mostra-se efetivamente “real” na experiência dos atores e na actância das entidades não humanas, não garante uma boa teoria social. É imperativo centrar-se nas situações ou nos momentos em que a experiência dos atores e a actância de entidades não humanas tendem a autoexplicitar-se.
Daí a necessidade de um terceiro gesto, que chamo de gesto metodológico de seleção e enquadramento de situações ou momentos indeterminados, para aqueles ou aquilo que se deseja conhecer. Aqui, trata-se do que se pode chamar de uma heurística das indeterminações (Peters, 2017), dos momentos críticos (Boltanski & Thévenot, 1991; Chateauraynaud, 1991), das situações problemáticas (Cefaï, 2018), das controvérsias (Latour, 2015; 2016), dos casos (affaires) (Boltanski & Clavérie, 2007), dos alertas (Chateauraynaud & Torny, 1999), etc. Tal enquadramento metodológico, que busca se concentrar nos momentos, situações ou ocasiões indeterminados, é justificado pelo fato de aquilo que é constitutivo, fundamental, elementar e essencial para os atores pesquisados tender a ser explicitado por eles e, por derivação, para o pesquisador.
O primeiro gesto: inversão metafísica
Comecemos pelo primeiro ponto: qual seria esta inversão da sociologia clássica durkheimiana? Ela se daria em quais termos? Como toda obra clássica, há uma multiplicidade de entradas e abordagens possíveis da sociologia de Émile Durkheim. No presente artigo, importa enfatizar o modo como o pai fundador da sociologia francesa traz para o universo sociológico aquilo que, na filosofia, Kant chamou de “argumento ontológico” (Crahay, 1949). Contudo, antes de apresentar tal argumento, como também o modo como ele foi incorporado à sociologia por Durkheim, enfatizo apenas que sua exposição cumpre o objetivo estratégico de tornar mais nítida, por contraste, a radicalidade da inversão feita pela sociologia pragmática. Usando a obra de Latour, explicito como se dá a transição do social mais potente e determinante (expresso pelo conceito durkheimiano de sociedade) àquele que é mais fraco e maximamente ligado à ideia do “deixar ser” (expresso pela noção de associação latouriana).
O argumento ontológico
O primeiro a elaborar o argumento ontológico na filosofia foi Santo Anselmo . No livro Proslogion (1986), traduzido em inglês como “Discurso sobre a existência de Deus”, o pensador medieval procura “um argumento único que não tenha necessidade a não ser de si mesmo para se provar e para garantir que Deus existe verdadeiramente” (p. 229). No argumento construído pelo autor, Deus é definido como ens quo maus cogitari non potest; isto é, o ser tal, que nada maior do que Ele possa ser pensado. Ora, reflete Santo Anselmo: se Deus existe ao menos como ideia – e se a ideia afirma que Ele é o maior ser possível –, isto implica que, para ser efetivamente o maior, Ele não pode existir apenas como ideia, posto que um ser que existisse tanto como ideia, quanto na realidade, seria maior do que aquele que existisse somente como ideia. Portanto, se realmente existe algo de que não se pode conceber algo maior, esse algo deve necessariamente existir na inteligência, como conceito, mas também fora dela, no mundo.
Quem retoma o argumento de Anselmo – e possui particular influência sobre Durkheim – é o filósofo moderno René Descartes. Traduzindo tal argumento em seus próprios termos, ao invés de definir Deus como o “maior ser que se pode conceber”, Descartes o define, na quinta meditação (AT, IX, 52), como o “ser soberanamente perfeito”. Assim, em vez de uma definição negativa e comparativa de Deus, como em Anselmo, ele oferece uma definição positiva (a perfeição) e absoluta (soberanamente perfeito). É com base na ideia de perfeição, que Descartes assevera a prova ontológica: “Deus é o ser soberanamente perfeito; ora, a existência é uma perfeição; logo, Deus existe”. Se Deus é aquele dotado de perfeição – e se a existência de Deus é perfeita –, sabe-se, segundo Descartes, que existir é melhor do que não existir, que ser é melhor do que não ser. Logo, para o filósofo francês, é logicamente indubitável a existência de Deus.
O argumento ontológico em Durkheim
Se diversas abordagens que fazem a associação entre a sociologia de Durkheim e a filosofia costumam sublinhar como ele “sociologiza” o sujeito transcendental kantiano – o que, com efeito, está expresso na introdução e na conclusão de sua obra As formas elementares da vida religiosa ([1912] 1968) –, chamo atenção para como esta pode ser lida como uma espécie de sociologização do argumento ontológico – e também, por corolário, como uma ontologização do argumento sociológico.3
Vimos o que seria propriamente o argumento ontológico na filosofia, o qual pode ser resumido a partir da seguinte questão: de que maneira o pensamento pode encontrar em si mesmo os recursos suficientes para chegar à ideia de que há alguma coisa ou um ser que seguramente existe? A resposta à referida questão consistiu na busca por um ser que é de tal modo grande (Santo Anselmo), perfeito (Descartes) e necessário (Leibniz), que, mesmo se fosse possível negá-lo pelo pensamento, ele se imporia por conta própria. Na filosofia, este objeto privilegiado seria Deus. Como vimos, Ele foi tomado como o ser superior, cuja potência é de tal modo forte que, mesmo quando negado, Ele tanto se imporia por si mesmo, como englobaria aquilo que a Ele se opõe.
Como, então, Durkheim transpõe o argumento ontológico para a sociologia? É possível afirmar que, ao longo de sua obra, boa parte de seus esforços teóricos concentra-se na busca por um ser que seguramente existe, uma espécie de incondicionado da vida social.4 Este, como veremos, não é mais o Deus dos filósofos clássicos, mas a própria sociedade. E a maneira como Durkheim incorpora o argumento ontológico exprime-se de modo particularmente nítido no modo como ele se esforça em comprovar que a sociedade é um fato; que ela existe. Como sustenta o filósofo Giovanni Paoletti (2012, p. 207-244), Durkheim estabelece ao menos cinco provas da existência da sociedade.
A primeira está diretamente atrelada ao axioma muito utilizado por ele, segundo o qual “nada vem do nada” (ex nihilo nihil fut) e “a vida coletiva não nasceu da vida individual, mas é, ao contrário, a segunda que nasce da primeira” (Durkheim, 1991[1893], p. 264). Com isso, o autor mostra como um indivíduo não poderia se elevar acima de si mesmo, a não ser em presença de uma instância que lhe fosse superior: “nada vem do nada, e o indivíduo abandonado à própria sorte não poderia se elevar acima de si mesmo” (Durkheim, 1950, p. 124). Um corolário dessa ideia diz respeito à relação entre causa e efeito: segundo Durkheim, o axioma “nada vem do nada” implica na consideração do fato de que é logicamente necessário que a causa seja maior que o efeito. Para exemplificar o seu raciocínio, ele utiliza como exemplo o poder do Estado (Durkheim, [1893]1991, p. 50-51). A função estatal consistiria em defender a consciência comum contra as forças antagonistas e individuais que podem a ele se contrapor. O que efetivamente dota o Estado de estabilidade e força extra não pode advir dos indivíduos, na medida em que, nesse caso, o efeito seria maior que a causa. A superioridade do Estado – e da sociedade – não pode ter como fonte senão “a força que é imanente à consciência comum” (p. 51). A força superior que caracteriza a consciência comum não tem como origem os indivíduos (que são menores do que ela), mas sim a força coletiva. Eis porque Durkheim inverte o raciocínio dos individualistas e delineia uma primeira prova ontológica da sociedade: “a vida coletiva não nasceu da vida individual, mas, ao contrário, a segunda é que nasceu da primeira” (p. 263).
A segunda prova proposta por Durkheim é atrelada à noção de autoridade, pois se o primeiro postulado (“nada vem do nada”) introduz a necessidade da existência de algo superior aos indivíduos, o segundo deve conferir uma maior facticidade ao modo de existência dessa realidade superior. Ela existe de fato? Se sim, qual é o seu modo de manifestação ou de aparição?
Para Durkheim, a autoridade é a maneira pela qual o social se faz presente na sua dimensão exterior e, sobretudo, coercitiva. É ela que permite supor a existência de uma força ou potência superior àquela dos indivíduos, que, mesmo quando contrariada, impõe-se a eles. Por exemplo, quando alguém é investido do papel social de irmão, marido, cidadão, ou - para lembrar a famosa descrição de Sartre - garçom de café, a pessoa tende a se adaptar e se ajustar, pela própria força das coisas, aos códigos de comportamento definidos previamente fora de sua mente.5
Estes dois argumentos de Durkheim indicam a presença de uma base ontológica da sociedade. Eles mostram que ela simplesmente existe. No entanto, há ainda uma terceira forma de exprimir a sua existência ou entidade suprema. No livro O Suicídio (1897), Durkheim pretende demonstrar os resultados concretos que podem ser alcançados pelo uso dos métodos que propõe para conhecer a sociedade. No primeiro capítulo do livro II (p. 245-263), ele introduz uma nova forma de apreensão e de comprovação da sociedade – muito utilizada, posteriormente, por exemplo, por Bourdieu, em diversas obras: a estatística. Nesse mesmo livro, Durkheim correlaciona a prova empírica da existência da sociedade às regularidades estatísticas.
Durkheim também mobiliza o argumento do sentimento coercitivo, muito utilizado na Introdução das Regras do método sociológico (1999[1895]), ao se referir à religião e à moral. Temos, aqui, o quarto argumento que comprova ontologicamente a existência da sociedade: ao falar das representações de forças superiores (pessoais ou abstratas) e, por isso mesmo, imperativas, ele afirma que a causa ou o objeto da representação “deve existir em alguma parte fora do indivíduo”. O que seriam esse objeto ou causa fora da esfera individual? Quando pensamos na filosofia clássica, ou no que Durkheim chama de imaginação do senso comum, trata-se de Deus; para a ciência da sociologia, defendida pelo autor, e que, segundo ele, atém-se às realidades observáveis, é a sociedade.6
Há, ainda, um quinto elemento ao qual Durkheim faz referência para comprovar a existência da sociedade, concernente à relação entre esta e o sentimento da existência da divindade. Ainda que tal sentimento possa ser o produto da imaginação dos povos que acreditam em forças divinas (e sua pluralidade de formas de aparição e de expressão mostra a variabilidade cultural e social dessas manifestações), tudo aquilo que é religioso possui, para Durkheim, um poder real, uma autoridade concreta, conforme expresso na seguinte passagem:
De uma maneira geral, não há dúvida de que uma sociedade tem tudo o que é preciso para despertar nos espíritos, pela simples ação que exerce sobre eles, a sensação do divino; pois ela é para seus membros o que um Deus é para seus fiéis. Com efeito, um Deus é antes de tudo um ser que o homem concebe, sob certos aspectos, como superior a si mesmo, e do qual acredita depender [...] a sociedade provoca em nós a sensação de uma perpétua dependência. Por ter uma natureza que lhe é própria, diferente da nossa natureza de indivíduo, ela persegue fins que lhe são igualmente específicos, mas, como não pode atingi-los, a não ser por intermédio de nós, reclama imperiosamente a nossa colaboração. Exige que, esquecidos de nossos interesses, façamo-nos seus servidores e submete-nos a todo tipo de aborrecimentos, privações e sacrifícios, sem os quais a vida social seria impossível. É assim que a todo instante somos obrigados a sujeitar-nos a regras de conduta e de pensamento que não fizemos nem quisemos, e que, inclusive, são às vezes contrárias às nossas inclinações e nossos instintos mais fundamentais. (Durkheim, [1912]1968, p. 284-5)7.
Na sociologia posterior à de Durkheim, duas são as formas de inversão deste argumento metafísico. Uma primeira via, sobre a qual não me deterei, pode ser denominada de uma inversão moral, feita por Pierre Bourdieu.8 No entanto, para além dessa inversão de ordem moral da sociedade, cuja onipotência divina se mantém, mas ao preço da introdução da ardilosidade de um gênio maligno, pode-se dizer que há também uma outra inversão possível, aquela que considero própria ao primeiro gesto da sociologia pragmática. Nela, não se trata mais de definir, como em Durkheim, o ser mais forte, mais potente e maior que se impõe àquilo que pode inclusive tentar negá-lo. Em vez disso, trata-se de fazer uma verdadeira inversão desse princípio, que visa definir um sentido do social mais fraco, mais dessubstancializado e, por isso mesmo, o mais plástico possível.
Tal ideia já se encontra presente nas primeiras reflexões metafísicas de Bruno Latour, que podem ser lidas na última parte de seu famoso livro Pasteur: Guerre et paix des microbes (Latour, 1984). Neste pequeno e curto tratado, o autor francês expõe as diretrizes de seu projeto de metafísica experimental e estabelece “uma espécie de mínimo vital, de ‘SMIG metafísico’” (p. 119), definido como princípio de irredução.9 Em uma escrita ao modo da Ética, de Espinosa, Latour afirma que “nada é, por si mesmo, redutível ou irredutível a qualquer outra coisa”. Assim, no lugar de uma metafísica geral que advoga por uma grande macro-unidade (Deus ou a sociedade), ele assume um pluralismo metafísico que encoraja a proliferação de tantos objetos, atores e actâncias ou agências, o universo – ou melhor, o pluriverso – for capaz de reunir.10 Com isso, a ambição de Latour é mostrar, primeiro, como a sociedade não é o ser aristocrático que define todos os outros, mas sim uma entidade entre outras, que emerge das entredefinições dos atores. É neste sentido, que há uma espécie de democracia ontológica radical de partida: se há diferenças entre as entidades e as actâncias, elas são permanentemente feitas e refeitas, por meio de provas (épreuves) e de experimentações.11
Consequente com esse princípio de irredução, Latour bane o grande ser ou o Uno, e propõe uma “ontologia plana”12 (De Landa, 2002), na qual todos as entidades e agências são tratadas a priori em um mesmo nível, e, portanto, dotadas de um mesmo estatuto de realidade. Em uma lógica oposta àquela da sociedade durkheimiana, ele defende, assim, uma imanência radical, na qual não há ser transcendente: se a sociedade existe – e ela existe –, ela não é mais o Ser determinante, mas apenas mais uma entidade ou actância, entre tantas outras.
No entanto, é sobretudo no livro Reagregando o social (Latour, 2012), que Latour extrai as implicações de sua metafísica “irreducionista” para a teoria social, desenvolvendo melhor a ideia de uma sociologia das associações. Na introdução da obra, o ex-professor da École de Mines afirma que o social não é uma substância ou “um tipo de material” como “madeira”, “aço”, “biológico”, “linguístico”, mas apenas “um tipo de conexão” (p. 23), “um movimento peculiar de reassociação e reagregação” (p. 25). Para Latour, não se deve mais pensar o social (substantivo), nem em alguma coisa de social (adjetivo), mas em tudo o que se dá, digamos assim, (as)sociadamente (como advérbio). É neste sentido, que ele defende uma sociologia “associal”; uma sociologia das associações, em que “o social parece diluído por toda parte e por nenhuma em particular” (p. 19).
Nessa outra abordagem proposta, Latour se pergunta o que vem a ser o “social” ou a “sociedade”. Na sociologia do social, de tipo durkheimiano, cujos pressupostos ele critica, postula-se a “existência de um tipo específico de fenômeno chamado por vários nomes: ‘sociedade’, ‘ordem social’, ‘prática social’; dimensão social’ ou ‘estrutura social’” (p. 19). Em suma, estima-se, nessa visão, a existência de fenômenos que são intrinsicamente sociais, e a sociedade é, como vimos em Durkheim e em Bourdieu, “uma esfera específica da realidade” (p. 20). Na outra acepção, aquela que inverte a metafísica durkheimiana e pela qual Latour advoga, “não há nada de específico na ordem social”, e o social “é aquilo que outros tipos de conectores amalgamam” (p. 22). Nessa via, social é tudo aquilo que designa apenas “uma série de associações entre elementos heterogêneos”; razão pela qual a sociologia deixa de ser a ciência que vai definir o social ou o que é a sociedade (como em Durkheim), e passa a ter uma tarefa um tanto mais modesta: a “busca de associações” (p. 23). Ora, se tudo que é associável é social, logo o objeto da sociologia pode ser “significar qualquer tipo de agregado, de ligações químicas a vínculos jurídicos, de forças atômicas a corporações, de organismos fisiológicos a partidos políticos” (p. 23).
Segundo esta sociologia, ou melhor, “associologia”, a tarefa do sociólogo não mais consiste em explicitar - como em Durkheim - uma instância aristocrática última, capaz de hierarquizar (ou de se impor a) todos os outros seres, mas sim em instituir um plano maximamente democrático, capaz de colocar todos os seres, em princípio, em pé de igualdade. No lugar do aristocratismo durkheimiano, calcado na potência máxima do social, Latour advoga por uma democracia ontológica baseada na plasticidade radical das associações e no seu princípio de “irredução”.13
No entanto, uma vez explicitado este primeiro gesto, um problema se revela logo de imediato. Entendemos bem que, enquanto pesquisadores, sociólogos ou antropólogos, devemos a priori estipular um conceito do social o mais desdeterminado e desdeterminante possível, levando o princípio de liberalidade à sua máxima potência. Por outro lado, é evidente que os próprios atores que pesquisamos, não param incessantemente de definir, redefinir, determinar e transformar o que lhes parece pertinente, justo, real, verdadeiro, autêntico, etc. Além disso, o próprio mundo dos não humanos não deixa de, a todo momento, falar através das suas agências e actâncias. Por isso, a desdeterminação de partida do sociólogo deve corresponder à atenção radical e a um ímpeto descritivo e explicitador das determinações, definições, critérios, actâncias e agências produzidas constantemente pelos próprios atores (humanos e não humanos) que ele deseja conhecer.
O segundo gesto: da ruptura à delegação
No famoso Le métier de sociologue (Bourdieu, 1973), Pierre Bourdieu, Jean-Claude Chamboredon e Jean Claude Passeron defendem - seguindo a tradição de Gaston Bachelard e de Durkheim - que o “primeiro obstáculo epistemológico” (Bachelard, 1993[1938], p. 23-54) a ser suplantado, por toda sociologia que se pretenda uma ciência rigorosa, é a adesão impensada do sociólogo às pré-noções do senso comum e às suas explicações espontâneas. Segundo tal tradição, a sociologia deve necessariamente romper com o objeto imediato do conhecimento e impor a si mesma, como primeiro imperativo, a “ruptura epistemológica” (Bachelard, 1986[1949] , p. 104) com o senso comum (doxa). Este ato serve para que o conhecimento por ela produzido seja alçado à condição de concepção científica acerca do social.
Bourdieu e seus colegas afirmam, no aludido tratado de epistemologia científica, que para a boa sociologia, o “fato científico” deve ser “conquistado, construído e verificado”. (Bourdieu et al., 1973, p. 24, 81). Por conseguinte, o bom conhecimento produzido pela ciência deve estar submetido à sua conquista contra o senso comum e à sua construção, a qual, em ruptura com as concepções espontâneas do social, deve atender a princípios de verificações posteriores. Porém, qual seria a outra possibilidade para além daquela estipulada por esses autores? Eis aqui a importância do segundo gesto fundamental, “em que se pode reconhecer um sociólogo pragmático”: o gesto de delegação. Ele consiste, primeiro, no ato de colocar entre parênteses todos os critérios de definição do que é pertinente, justo, real, verdadeiro etc. Em um segundo momento, consiste em delegar tal tarefa aos atores que se está pesquisando.
Recentemente, quem melhor definiu o gesto de delegação foi Gildas Salmon (2016, p. 41-60), em seu artigo sobre a “virada ontológica”, na antropologia. Embora sua discussão seja centrada no discurso antropológico, o primeiro exemplo de delegação a que o autor faz referência é, não por acaso, encontrado na sociologia pragmática de Boltanski e Thévenot. Ao dissertar sobre o procedimento de delegação, Salmon diz que
A primeira instância que me vem à mente no contexto francês é o que ocorreu na sociologia em torno de Luc Boltanski, com a substituição de uma ‘sociologia crítica’ por uma ‘sociologia da crítica’. Esse caso ilustra claramente o que está implicado na noção de delegação. Quando uma operação torna-se excessivamente onerosa para o sociólogo ou o antropólogo continuar perseguindo de uma maneira exclusiva ou soberana, ele a delega aos atores, dando à pesquisa um novo ímpeto: ao invés de dar uma interpretação crítica das práticas dos atores, o escopo torna-se agora descrever como estes últimos criticam e, a partir disso, torna-se também formalizar os modelos a que os atores se referem em seus atos de denúncia. (Salmon, 2016, p. 42)
Com efeito, ao fazerem a passagem de uma sociologia, que arroga para si o monopólio da produção da crítica social, para uma sociologia, que toma as operações críticas dos atores como objeto de análise, Boltanski e Thévenot (1991) realizam esse movimento de delegação no plano axiológico. Em De la justification, os dois autores abrem mão de definir o mundo social com base em um princípio único, seja ele de justiça (Rawls) ou de dominação (Bourdieu); e, em vez disso, delegam aos próprios atores pesquisados tal poder de definição do que seria o justo ou injusto, do que merece ser considerado “grande”, digno de valor, e do que se evidencia por sua pequeneza ou mesquinhez.
É com base nesse pressuposto, que Boltanski e Thévenot propõem uma pragmática dos julgamentos ordinários, que visa formalizar a pluralidade de concepções de justo imanentes às críticas e justificações expressas, em momentos críticos, pelos próprios atores pesquisados. (Corrêa & De Castro, 2016). Tal movimento pressupõe, por sua vez, um ato anterior por parte dos sociólogos; a saber, que eles coloquem suas pressuposições normativas entre parênteses, para, com isso, abrirem-se ao senso de justiça daqueles que desejam conhecer. No caso particular da mencionada obra, De la justification (1991), tratou-se de uma delegação específica: uma delegação aos atores dos critérios axiológicos de definição do justo (Heinich, 1998, p. 71-82).
É curioso que Salmon verse sobre a delegação ontológica, mas não avance em exemplos existentes a esse respeito na própria sociologia pragmática. Ele não indica, na sociologia francesa de sensibilidade pragmatista subsequente àquela de Boltanski e Thévenot, os autores que deslocam o gesto delegativo na direção da ontologia. Seus exemplos, após a menção ao trabalho de Luc Boltanski, ficam restritos à antropologia, mais precisamente a autores como Claude Lévi-Strauss, Marylin Strathern e Eduardo Viveiros de Castro. No entanto, na própria sociologia pragmática, notadamente naquela proposta por Francis Chateauraynaud, um antigo aluno de Boltanski, foi realizada a referida passagem de uma delegação axiológica para uma efetiva delegação ontológica.
A importância do livro Experts et faussaires, escrito por Chateauraynaud em coautoria com Christian Bessy (1995), consiste justamente em manter o gesto delegativo, mas operando uma transição do universo axiológico da justiça para o universo ontológico da realidade, delegando aos atores pesquisados a capacidade de produzir a própria definição do que seja o real. Há que se dizer que, na filosofia pragmatista americana de William James, já existe um deslocamento desse gesto delegativo na direção da ontologia. Não é por acaso que Erving Goffman, em seu famoso livro Frame Analysis (1974), abre a ontologia ao gesto delegativo, o que é expresso em seu comentário a respeito do pensamento de William James
Em lugar de interrogar-se sobre o que é a realidade, ele [William James] deu ao assunto uma guinada fenomenológica subversiva, colocando em itálico a seguinte pergunta: em que circunstâncias pensamos que as coisas são reais? O importante acerca da realidade, segundo ele, é a impressão que temos de seu caráter real, em contraposição ao sentimento que temos de que algumas coisas não têm esta qualidade. Alguém pode, então, se perguntar em que condições se produz esse sentimento, e esta pergunta está ligada a um problema pequeno e administrável, que tem a ver com a câmera, e não com aquilo que a câmera fotografa. (Goffman, 2012, p. 24)
Ao pensar não tanto no real, ou sobre o que ele é – ou como a sociologia pode definir a realidade, para além daquilo que os próprios atores definem como real –, mas “em que circunstâncias” ou condições as pessoas pensam “que as coisas são reais”, James e Goffman abrem a possibilidade de incluir o gesto delegativo no plano da ontologia. Assim, eles quebram com as sociologias que, em ruptura (epistemológica) com o senso comum, pretendem fundamentar um plano objetivo de realidade maior do que aquele promulgado pelas concepções espontâneas dos atores pesquisados. E é justamente esta a questão do livro Experts et faussaires. Partindo das investigações empreendias pelos atores para atestar a autenticidade dos objetos e, sobretudo, a facticidade das coisas, Chateauraynaud e Bessy analisaram uma ampla gama de casos, dentre os quais a “falsificação de marcas, polêmicas sobre patentes e direitos autorais, cenas de estimação [do valor de objetos], de narrativas de colecionadores, controvérsias históricas ou arqueológicas, plágios ou farsas literárias, controvérsias em torno de atribuição de autoria de quadros ou casos de degustação”. (Chateauraynaud & Bessy, 1995, p. 17)
A ideia dos autores, no referido livro, foi colocar entre parênteses a sua própria concepção do que seria a realidade ou o real, e buscar entender os critérios utilizados pelos próprios atores pesquisados para definir o seu regime de distribuição do real e do falso, do autêntico e do inautêntico. Com isso, ambos analisaram a economia da percepção mobilizada pelas pessoas, quando elas buscavam não tanto produzir um acordo justo - como interessava a Boltanski e Thévenot, em De la justification -, mas uma realidade sensível e tangível compartilhada e comum (Chateauraynaud, 1997). Ao atribuírem, no gesto delegativo, um primado da experiência dos atores a respeito da (ou do que seja a) realidade, eles procuraram dar visibilidade ao modo como, em situações particulares em que as coisas são postas à prova, os próprios atores atestam a facticidade do mundo.
É bem verdade que os exemplos poderiam ser mais numerosos, a partir de outros autores da própria sociologia pragmática. No entanto, penso que os já citados são suficientes para expressar o segundo gesto, que, em contraposição à ruptura epistemológica com a experiência dóxica do senso comum (como em Bourdieu e Durkheim), pode ser chamado de gesto epistemológico de delegação. Grosso modo, ele consiste em dizer que o conhecimento do mundo pertinente – ou o conhecimento do que é pertinente no mundo – não é e nem pode ser aquele previamente estabelecido pelo sociólogo, mas sim deve ser mostrado em ato pelos próprios atores. Neste sentido, trata-se de um princípio de abertura radical às experiências dos atores, fazendo com que todo sistema conceitual, por mais bem elaborado que seja, não deixe de reformular-se permanentemente à luz da experiência dos atores que o pesquisador deseja conhecer.
O terceiro gesto: da indeterminação tomada como dada à heurística dos momentos críticos
Em suas reflexões sobre o mundo da vida, a sociologia fenomenológica de Alfred Schütz nos ensinou que há, desde sempre, um mundo que nos é disponível e nos antecede, e que funciona como um esquema de referências tipificadas que podemos mobilizar. Desde que somos “jogados” (Heidegger) no mundo e começamos a nos tornar conscientes dele, percebemos que há um modo originário prático de agir, habitual e rotineiro, em que a reflexão e o pensamento se encontram diluídos na ação prática. Esta forma elementar da experiência quotidiana - tematizada também por Goffman (1992) e Garfinkel (1967) - é visível, quando percebemos que a maior parte de nossas ações são guiadas pela experiência imediata e intuitiva, sem a necessidade de, a todo momento, submetermos o que fazemos à peneira das verificações incessantes.
Nessa modalidade prática de agir no mundo, as entidades com as quais nos deparamos - em particular, e com o mundo, de modo geral - possuem uma forma de aparição própria; isto é, apresentam-se na qualidade dóxica e nos são naturalmente anuídas e ratificadas, de modo tácito, por nossas percepções. Garfinkel (1963, p. 210-213), melhor do que qualquer outro autor, arrolou certos atributos comuns a essa forma singular de agir e estar no mundo. Estes seriam: (1) reciprocidade de expectativas em relação ao modus operandi dos objetos materiais e dos sujeitos humanos; (2) ausência de desconfiança a respeito das situações em que estamos envolvidos em nossos contextos práticos de ação; (3) interesse vital e relativamente estável nos eventos mundanos; (4) afinidade ontológica entre expectativas subjetivas e condições objetivas; isto é, antecipações de comportamento que, de modo geral, coadunam-se com o desenrolar habitual e rotineiro do mundo; (5) pressuposição de que os acontecimentos que acabaram de ocorrer podem (e devem) acontecer novamente no futuro; (6) facticidade e plausibilidade do mundo; (7) compartilhamento de um sistema de comunicação intersubjetivo; e, por fim, (8) intercambialidade de pontos de vistas e congruência de relevâncias. Nesta forma dóxica de experimentar o mundo, existimos sob a salvaguarda daquilo que, certa feita, Giddens (2009, p. 58),14 ao citar Erik Erikson, chamou de estado de segurança ontológica. Esta pode ser sintetizada pela modalidade de agir com a qual nos relacionamos com um mundo que se mostra familiar; isto é, em seu caráter apodíctico e não problemático.15
Porém, cabe perguntar o que acontece quando a evidência habitual e rotineira da compreensão e da familiaridade para com o mundo é repentinamente suspensa – e interrompida, de modo a ir além da margem de tolerância em relação à “normalidade” do que se passa. O que sobrevém quando, em dado momento, não nos compreendemos mais, não entendemos mais o que se passa, não temos mais a devida compreensão do sentido das coisas, e o mundo se torna incerto, indeterminado, ambíguo, confuso? Ora, uma falha, uma anomalia ou um problema, cuja intensidade transgride os limites do tolerável, não deixam outra opção - para seguir John Dewey (1998) -, a não ser refletir e agir em uma intenção reparativa. Quando o automatismo habitual do corpo ou o arranjo rotineiro e interobjetivo (Latour, 1996) das coisas não são mais capazes de fazer tudo fluir naturalmente, ou, diante de um problema menor, de “dar conta da situação” - quer dizer, de restitui-la à sua normalidade -, ocorre uma mudança qualitativa na natureza da situação e da tonalidade afetiva própria ao organismo.
Na esteira de Dewey, podemos dizer que a quebra com o regime prático de ação tem por corolário a emergência de um regime em que se instaura a reflexão ou a investigação16 (inquiry). Como salienta Boltanski, trata-se da passagem do regime de ação prática para um regime reflexivo,
[...] no curso do qual a atenção dos participantes se desloca da tarefa a realizar para se virar para a questão de saber como convém qualificar o que se passa. A atenção dos participantes se orienta então na direção da própria ação em comum, de suas modalidades, de suas condições de possibilidade, das formas nas quais ela se inscreve. O que se está fazendo […] parece não mais óbvio. E mesmo que […] a aparência de um acordo não seja colocada em questão, as atenções e energias se viram para o que é preciso fazer, para fazer face às urgências da realidade, se orientando na direção […] de saber o que de fato se faz e qual será o modo como se deve agir para que o que se faz seja feito realmente. (Boltanski, 2009, p. 107)
O regime reflexivo ou de objetivação17 seria aquele no qual o objeto ou a situação são afastados, enquanto tais, passando a ser apreendidos reflexivamente. É precisamente no desnivelamento entre a situação em sua atualização concreta e a expectativa em relação ao que deveria acontecer, que emerge o regime reflexivo. E é, ainda, por meio dele, que podemos chegar ao terceiro gesto.
Tal gesto nos importa, na medida em que nos ajuda a responder à seguinte questão: quais as situações, os momentos, as circunstâncias em que os atores apresentam reflexivamente “em ato” o que lhes é pertinente, justo, real, autêntico, etc.? Quais as ocasiões ou os momentos em que os atores explicitam e tornam visível, aos pesquisadores, aquilo que lhes é constitutivo e elementar? Eis a importância do regime reflexivo e do terceiro gesto. O gesto metodológico de seleção ou enquadramento visa justamente apreender aquilo que os atores explicitam reflexivamente, quando se deparam com momentos críticos, situações de prova, provação (épreuve) ou situações indeterminadas. Dos três gestos, este é, decerto, o mais pragmatista da sociologia pragmática. Trata-se de uma aposta metodológica calcada no que se pode chamar de heurística dos momentos críticos, das situações indeterminadas ou de prova. Estas são ocasiões nas quais os próprios atores tendem a explicitar – transformando ou ratificando –, por meio de sua fala ou de suas ações, os elementos que lhes são fundamentais, constitutivos e pertinentes.
A diferença em relação a Dewey é que, enquanto este faz uma filosofia das formas elementares da investigação, os sociólogos pragmáticos propõem uma sociologia das investigações dos atores. No caso de Boltanski e Thévenot, trata-se, como vimos, de uma sociologia das investigações dos atores que, em meio a disputas, apelam a princípios axiológicos, visando estabelecer um acordo justo. Já no caso de Bessy e Chateauraynaud, trata-se de uma sociologia das investigações dos atores, cujo modo de resolução diante de uma situação crítica implica no apelo ao princípio de realidade que rege a sua economia da percepção. O que esses quatro autores têm em comum é o uso estratégico de um enquadramento metodológico particular: eles apostam que, ao olhar para as situações de crise, problemáticas, indeterminadas (não para o pesquisador, mas para os próprios atores pesquisados), o pesquisador tem acesso aos critérios fundamentais que presidem as ações dos atores que ele busca conhecer e que, em estado habitual e rotineiro, permanecem invisíveis, porque naturalizados e tácitos.
Em De la justification, a aposta de Boltanski e Thévenot - ao buscarem capturar as pressuposições normativas dos atores, olhando não para situações comuns e habituais, mas para o que eles chamam de “momentos críticos” - é de que os próprios atores, quando submetidos a um imperativo de justificação, explicitam as pressuposições normativas que permanecem em estado implícito durante situações rotineiras e habituais. Afinal, como advertem os autores,18
as grandezas [ou valores] tornam-se particularmente proeminentes nas situações de disputa, tais como se pode observá-las nas inúmeras ocasiões da vida quotidiana. Caracterizadas por uma inquietude sobre a avaliação das pessoas, esses momentos são propícios para a localização dos modos de qualificação. (Boltanski & Thévenot, 1991, p. 26)
Em Experts et faussaires (1995), conforme vimos anteriormente, Bessy e Chateauraynaud deslocam o problema da dimensão axiológica para a dimensão ontológica. Contudo, no que diz respeito ao terceiro gesto, o raciocínio segue o mesmo de Boltanski e Thévenot, pois eles olham para as situações nas quais a aparência e a realidade são indiscerníveis para as pessoas pesquisadas, com a finalidade de descrever a economia da percepção tornada visível pelo trabalho que os próprios atores empreendem quando intentam criar uma realidade sensível comum. Nessa lógica, eles afirmam que
os momentos de suspensão da ação, de falha, de início de disputa são [...] primordiais, porque, neles, os próprios atores devem reelaborar as preensões e superar a brutal cisão entre as representações [simbólicas], de um lado, e as dobras [da matéria], de outro”. (Chateauraynaud & Bessy, 1995, p. 246)
Em suma, o mundo só se torna objeto de conhecimento (para os próprios atores pesquisados) e, por derivação, para o pesquisador que os investiga, quando nele aparece algo de problemático.
Eis porque discutir os momentos de prova (épreuve) - isto é, momentos de indefinição, que exigem e instigam um trabalho de definição da parte dos atores - é, do ponto de vista do terceiro gesto da sociologia pragmática, essencial para que o sociólogo ou o pesquisador possam levar a sério a capacidade dos atores de dizer o que para eles é real, pertinente. Assim, o terceiro gesto da sociologia pragmática pretende tirar todas as consequências não apenas do fato de que as pessoas, de tempos em tempos e de maneira relativamente regular, precisam produzir provas acerca do que é o mundo – ou daquilo que é do e no mundo –, de sua facticidade ou tangibilidade, mas também do fato de que, ao fazê-lo, elas manifestam os procedimentos e os conteúdos do que elas acreditam ser pertinente e real. Dito de outro modo, a aposta do terceiro gesto é de que a observação desses momentos de indeterminação e de prova ou provação permite melhor descrever as formas por meio das quais, em face de uma exigência de verdade ou de verificação, as pessoas explicitam provas, modos de comprovação que costumam estar ajustados à epistemologia prática exigida pela situação. Ora, assim como Boltanski e Thévenot observam, em De la justification (1991), a maneira como as pessoas, em situações de disputa, mobilizam uma metafísica moral adequada à situação vigente, de modo a produzir um acordo, o mesmo pode ser dito em relação às concepções de realidade. Nas situações críticas, em que se torna confuso discernir o que é real e o que é falso, as pessoas tendem a mobilizar suas capacidades reflexivas, com o objetivo de reconduzir o estado de coisas a uma dimensão rotineira e habitual.
É preciso enfatizar que essa heurística dos momentos críticos se desdobra em várias pesquisas, na constelação pragmática da sociologia: seja aquela do mapeamento de controvérsias de Latour (2016), da balística sociológica de Chateauraynaud (2011), das arenas públicas de Daniel Cefaï (2017), da tradição pragmatista de Dewey - sobretudo em seu livro The Public and its Problems (1927) - ou, ainda, na relevância que Boltanski e Clavérie (2007) atribuem aos casos (affaires). Todos estes trabalhos compartilham uma sensibilidade em torno da heurística das situações em que ocorre uma disrupção de alguma ordem para os atores, obrigando-os a um trabalho de resolução e, com isso, de explicitação dos fundamentos de sua ação.
Conclusão
O uso dos três gestos, na caracterização do que entendo como constitutivo de um movimento recente na sociologia francesa, ou da sociologia pragmática tal como ela vem sendo atualizada em outros países, é heuristicamente sugestivo, não só em relação à dimensão explicitativa e escolar dos fundamentos dessa sociologia, mas sobretudo no que diz respeito à proposição de contribuições para um esboço de uma outra agenda para a teoria social contemporânea. Foi essa a minha intenção com o presente artigo. Por isso, é importante ressaltar, em particular, não apenas o que os aludidos gestos trazem de importante, mas também como eles ajudam a introduzir novos desafios e questões para a sociologia.
Neste sentido, cabem algumas perguntas, seguindo o contorno dos gestos: (1) Como é possível fazer uma sociologia contemporânea, que respeite a introdução progressiva de novas entidades na composição do social (sejam elas, animais, objetos, entidades não humanas como deuses, encantados, espíritos, etc.)?; (2) Como ser capaz de, respeitando essa pluralidade radical de partida, abrir-se maximamente à experiência daqueles cuja tarefa de conhecer nos colocamos?; (3) Como é possível observar o que é fundamental e pertinente para aqueles a quem delegamos a capacidade de produzir conhecimento sobre o mundo, a realidade, a justiça, etc.?
Penso que tais perguntas ajudam a reposicionar, na teoria social, as questões comumente associadas ao “novo movimento teórico” (Alexander, 1987). Segundo Alexander, por volta do final da década de 1980, a sociologia vivia um momento crucial, em que diversos autores de distintas constelações nacionais (Anthony Giddens, na Inglaterra; Jürgen Habermas, na Alemanha; Randall Collins, nos Estados Unidos; e Pierre Bourdieu, na França, para ficar entre apenas alguns dos mais conhecidos) passaram a buscar sínteses, ao invés de posições polêmicas, entre abordagens parciais que ora enfatizavam o papel macrossocial das estruturas, ora sublinhavam o papel microssociológico do indivíduo ou da agência. Era esta a agenda em curso: a superação de oposições já instituídas nos tradicionais debates da sociologia, tais como indivíduo versus sociedade, micro versus macro e agência versus estrutura. A teoria do habitus de Bourdieu, da estruturação de Giddens, do agir comunicativo de Habermas e das cadeias de interação ritual de Collins buscaram, cada qual ao seu modo, e de forma engenhosa, propor um caminho para a realização de uma nova síntese.
Contudo, é possível afirmar, hoje, que diversos elementos e questões não foram contemplados – ou mesmo deixados de lado – pelos aludidos autores. Há algum tempo, o que foi produzido pelo “novo movimento teórico” não corresponde aos desafios do mundo hodierno, nem, é claro, da sociologia contemporânea. Novas questões emergiram e, longe de esgotá-las no espaço deste artigo, salientei, ao menos, duas. A primeira, oriunda das críticas pós-humanistas, esteve atrelada à capacidade de a sociologia incorporar à sociedade dimensões outras do que aquelas dos humanos. Seja enfatizando o papel dos objetos ( Conein, Dodier & Thévenot, 1993 ; Latour, 1996 ), dos dispositivos (Deleuze, 1989 ; Foucault, 2001; Agamben, 2007 ; Akrich, Callon & Latour, 1988 ) e dos artefatos sociotécnicos (Akrich, 1987 ; Latour, 1985 ; 1989), como também do de outras entidades não humanas, como os deuses (Clavérie, 2003 ; Descola, 2005; Piette, 1999), animais (Bimbenet, 2011), e até Gaia (Chakrabarty, 2009 ; Latour, 2015 ), o ponto passou a ser o de como podemos expressar e descrever o papel actancial de toda e qualquer entidade – humana ou não humana -, no mundo social.
A segunda questão, ligada à primeira, tem a ver com críticas, advindas sobretudo da antropologia, de que a sociologia estaria desde sempre comprometida com o mais basilar dos grandes divisores “moderno” (Latour, 1995) ou “naturalista” (Descola, 2005): a saber, aquele entre natureza e cultura. Ainda que os teóricos da síntese tenham feito progressos na diluição de oposições, como indivíduo e sociedade, agência e estrutura, micro e macro, eles não teriam contribuído para forjar um conceito de sociedade ou de social, que não fosse tributário da divisão a priori entre uma ordem natural das coisas (normalmente, deixada ao encargo da química ou biologia e outras ciências mais “duras”) e outra ordem social dos humanos (sobre a qual a sociologia e as outras ciências humanas devem falar). É neste sentido, que os três gestos analisados anteriormente procuraram não só ir além da grande problemática do “novo movimento teórico” estabelecido por Alexander, como também oferecer uma resposta possível à seguinte pergunta: como propor uma teoria social capaz de incorporar ao mundo social as entidades não humanas, sem ficar, ao mesmo tempo, prisioneira da famosa divisão entre natureza e cultura?
Espero, com o exercício de exposição teórica e metodológica da sociologia pragmática, ter sido capaz tanto de apontar novas questões, quanto de incentivar a teoria social, a partir de três gestos, a caminhar na direção de novos rumos.