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Judicialização e estratégias de controle da violência doméstica: a suspensão condicional do processo no Distrito Federal entre 2010 e 2011

Resumo

A pesquisa analisou o tratamento judicial de casos de violência doméstica em cinco juizados especiais do Distrito Federal que apresentam procedimentos e práticas distintas, buscando as consequências de tais tratamentos para a percepção de justiça por parte dos diferentes atores envolvidos. A partir da análise dos autos e das audiências, a pesquisa aponta os condicionantes que interferem nas práticas de atendimento aos casos de violência doméstica para além do que está prescrito pela Lei n.o 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), especialmente no que se refere à prática da suspensão condicional do processo. Os dados apontam para diferenças e semelhanças na interpretação da natureza do conflito bem como para os limites da lei na transformação do tratamento judicial de tais casos.

Palavras-chave:
violência doméstica; Lei Maria da Penha; gênero; justiça; direitos humanos

Abstract

This research analyses practices of justice regarding domestic violence in 5 special courts in Brasilia, DF. Focusing on perceptions of justice held by the parties, we look at differences of procedure followed by the respective courts when applying the law. Analyzing judicial processes and court hearings, the research points out key elements that interfere in the procedures for handling cases, far beyond what is prescribed by law (Lei Maria da Penha). Special attention is given to the so called “conditional suspension” of the process. The results indicate, on the one hand, differences and similarities in the legal interpretation of the nature of conflicts and, on the other hand, they also show the limitations of legislative initiative for changing legal practices on this issue.

Keywords:
domestic violence; Lei Maria da Penha; gender; justice; human rights

Introdução

A busca por soluções judiciais para o combate à violência doméstica no Brasil tem configurado, na última década, um universo tensionado entre discursos e práticas provenientes de diferentes campos sociais - os movimentos feministas, o campo acadêmico e o campo estatal de administração de conflitos, em especial o Judiciário (Rifiotis, 2008RIFIOTIS, Theophilos. Judicialização das relações sociais e estratégias de reconhecimento: repensando a “violência conjugal” e a “violência intrafamiliar”. Revista Katálysis, v. 11, n. 2, 2008.; Castro, 2013CASTRO, Nicholas M. Borges. Agentes estatais e o trabalho em rede: uma experiência institucional de atenção aos conflitos abarcados pela Lei Maria da Penha. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) - Universidade de Brasília, Brasília, 2013. Disponível em: <http://bdm.bce.unb.br/handle/10483/6208>.
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). Nessa arena caracterizada pelo debate entre atores diferentemente posicionados e provenientes de distintos universos de interlocução, destaca-se o debate acerca da eficácia das formas de resolução de conflitos instituídas pelo Estado brasileiro. De um lado, observam-se iniciativas do poder público que enfatizam a importância da utilização e do aprimoramento de formas alternativas de resolução de conflitos como caminho para a justiça (Ministério da Justiça, 2005); de outro, verificam-se críticas à sua aplicação em casos de violência doméstica, tomando tais iniciativas como forma de ignorar - e, com isso, agravar - desigualdades estruturais de gênero.

Apontado como recomendação internacional das Nações Unidas, o desenvolvimento de procedimentos alternativos ao processo judicial tradicional e a formulação de políticas de mediação e de justiça restaurativa expressam valores e conceitos favoráveis a uma leitura alargada da justiça, posta em termos de princípios mais do que de forma. Iniciativas nesse sentido encontram, contudo, resistência não apenas por parte dos operadores do sistema de justiça, mas por setores da sociedade civil que veem com reserva a aplicação de tais princípios em certas áreas (Pasinato, 2004PASINATO, Wânia. Delegacias de defesa da mulher e juizados especiais criminais: mulheres, violência e acesso à Justiça. Trabalho apresentado no XXIX Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, 2004.; Campos, 2003CAMPOS, Carmem Hein. Juizados especiais criminais e seu déficit teórico. Revista Estudos Feministas, v. 11, n. 1, 2003.). O chamado “pensamento penal crítico”, base para muitas das medidas alternativas ao encarceramento no direito penal, tem recebido críticas de autoras atentas à aplicação desses princípios em casos de violência doméstica (Machado, 2003MACHADO, Lia Z. Atender vítimas e criminalizar violências: dilemas das delegacias de mulheres. In: AMORIM, Maria Stella et alii (Orgs.). Juizados especiais criminais, sistema judicial e sociedade no Brasil. Niterói: Intertexto , 2003.; Debert & Beraldo de Oliveira, 2007DEBERT, Guita; BERALDO DE OLIVEIRA, Marcella. Os modelos conciliatórios de solução de conflitos e a “violência doméstica”. Cadernos Pagu, v. 29, p. 305-337, 2007.; Debert & Gregori, 2008). Para essas autoras, ao criticar a dimensão tutelar do direito penal, defendem práticas de justiça que favorecem as decisões autônomas das partes, incorrendo, por vezes, em uma “exaltação ingênua da liberdade de escolha” que, orientada, em práticas judiciais, por uma valorização da família como unidade de valor, acabam por reforçar hierarquias estruturais a partir das quais representações de gênero são acionadas. Na linha de tais críticas, apostar em formas mediadas de negociação entre as partes em conflito contribuiria para ocultar assimetrias de poder - uma perspectiva qualificada por Laura Nader (1994NADER, Laura. Harmonia coerciva: a economia política dos modelos jurídicos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 29, n. 9, p. 18-29, 1994.) como a ideologia da “harmonia coercitiva”.

Este debate encerra uma disputa entre diferentes sentidos para o que seja a resolução equânime de um conflito. Enquanto o discurso favorável à mediação e à justiça restaurativa vê no restabelecimento dos vínculos entre as partes um objetivo desejável e vantajoso, outros atores veem nisso o atropelar de direitos individuais - ou do reconhecimento legal adequado do sofrimento - de uma das partes. Essa tensão vem se acentuando desde a promulgação, em 2006, da Lei Maria da Penha (Lei n.o 11.340/2006), que vetou a aplicação da Lei dos Juizados Especiais (Lei n.o 9.099/1995) para processar casos envolvendo violência doméstica e familiar contra mulheres e instituiu, ao lado de todo um aparelho de apoio psicossocial às vítimas, um agravamento do tratamento dado ao agressor, bem como previu a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher como espaço adequado para o julgamento de casos desta natureza.

A promulgação da Lei Maria da Penha expressou um passo importante para um conjunto de atores sociais mobilizados em torno da proteção especial do Estado para as mulheres. Não há dúvidas de que, da perspectiva desta mobilização, a lei teve e tem o efeito desejado, contribuindo para o reconhecimento no espaço público de um novo sujeito de direito, a “mulher em situação de violência”. Contudo, uma avaliação sobre a efetividade da judicialização como estratégia para o combate à violência doméstica resta ainda a ser feita e, para tanto, é fundamental o acúmulo de estudos etnográficos das práticas judiciais decorrentes da nova lei. Procuramos, neste artigo, contribuir para tal empreendimento, analisando experiências judiciais no Distrito Federal, observadas à luz das estruturas de ação previamente existentes e que marcam práticas judiciais de resolução de conflitos no Brasil.

A discussão sobre os limites da judicialização de conflitos relacionais permite-nos ir além da oposição entre uma perspectiva de direito penal mínimo (que poderia reificar a ideia de livre escolha das partes em conflito para negociar suas diferenças, obliterando desigualdades estruturais marcadas por gênero ou outros marcadores sociais de diferença) e aquela de defesa dos direitos de um ou outro sujeito coletivo específico. Como já indicado por Guita Debert e Maria Filomena Gregori,

é preciso indagar sobre os limites da esfera judiciária [...] no sentido de atenuar, ressarcir, dar justiça àqueles que sofrem abusos em nome da preservação de normatividades relacionadas às configurações de gênero (Debert & Gregori, 2008DEBERT, Guita; GREGORI, Maria Filomena. Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 66, 2008.: 176).

Tais limites se relacionam à dificuldade de se incorporar, na lógica e na linguagem próprias do campo judicial, o caráter relacional característico de dinâmicas conflitivas nas quais se vivenciam violências de gênero. Diversos autores têm apontado para as limitações que o recurso ao sistema judicial traz para se lidar adequadamente com conflitos em relações de proximidade, como os casos de violência doméstica e familiar (Rifiotis, 2008RIFIOTIS, Theophilos. Judicialização das relações sociais e estratégias de reconhecimento: repensando a “violência conjugal” e a “violência intrafamiliar”. Revista Katálysis, v. 11, n. 2, 2008.; Azevedo 2001AZEVEDO, Rodrigo. Juizados especiais criminais: uma abordagem sociológica sobre a informalização da Justiça Penal no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 16, n. 47, 2001.; Amorim 2003AMORIM, Maria Stella et alii (Orgs.). Juizados especiais criminais, sistema judicial e sociedade no Brasil. Niterói: Intertexto, 2003.). Para esta literatura, a tradução do conflito em uma lide judicial, por uma série de mecanismos de filtragem - a começar pela redução a termos, como já indicado por Luís Cardoso de Oliveira (2008____. Existe violência sem agressão moral? Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23 n. 67, p. 135-146, 2008. e 2010) - faz com que a natureza do conflito e seus elementos simbólicos sejam retirados das mãos dos protagonistas, ganhando um significado totalmente distinto quando apropriados pelos chamados “operadores do direito”. Nesse contexto, práticas de justiça mais atentas à escuta das partes e a uma solução negociada tenderiam a ser mais bem compreendidas como justas por parte daqueles envolvidos no processo1 1 . Nesse sentido, os trabalhos de Luís Cardoso de Oliveira (1989; 2002: 31-46), sobre as pequenas causas nos Estados Unidos, e de Daniel Schroeter Simião (2013), sobre formas locais de justiça em Timor-Leste, já apontam, há algum tempo, para direitos que só podem ser reparados por meio de procedimentos não judiciais, como a mediação e a justiça restaurativa. .

O caráter relacional e complexo no qual se dão atos categorizados como “violência doméstica” é bem formulado por Guita Debert e Maria Filomena Gregori ao afirmarem:

para pensar os paradoxos que envolvem as relações violentas, em uma abordagem que não abandona as dinâmicas concretas e experiências de que elas são revestidas, adotamos a perspectiva que acredita na coexistência de vários núcleos de significado que se sobrepõem, se misturam e estão permanentemente em conflito. Na situação das relações familiares, por exemplo, cruzam-se concepções sobre sexualidade, educação, convivência e sobre dignidade de cada um (Debert & Gregori, 2008DEBERT, Guita; GREGORI, Maria Filomena. Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 66, 2008.: 178).

Nesse sentido, pensamos que o debate deve avançar tomando como referência práticas judiciais concretas, buscando entender os dispositivos nelas acionados para a interpretação dos atos judicializados (traduzidos em uma linguagem própria) e sua classificação ou não como “crime”. Colocamo-nos, assim, ao lado de iniciativas que recentemente buscam aferir os desafios concretos da aplicação de Lei Maria da Penha (Pasinato et alii, 2013PASINATO, Wânia et alii (Org.). Violência contra a mulher e acesso à Justiça: estudo comparativo sobre a aplicação da Lei Maria da Penha em cinco capitais. Relatório Final. Rio de Janeiro: Cepia, 2013.). Ao observarmos as práticas usuais nos juizados do Distrito Federal, entre 2011 e 2012, notamos que não se tratava de apostar em um modelo que favorecesse a liberdade de escolha e negociação entre as partes. O encaminhamento dos casos, mesmo quando se recorria a mecanismos próximos da lógica de conciliação, continuava nas mãos de uma autoridade (juiz e ministério público) que, à luz de sua compreensão sobre a normatividade do gênero - em grande medida marcada por concepções prévias de família - definia e encaminhava modos sancionados de agir para mulheres e homens. Boa parte desse encaminhamento se dava, ao menos até 2012, por meio da chamada “suspensão condicional do processo”, um dispositivo pelo qual o processo legal era suspenso desde que o marido, companheiro ou ex-companheiro se comprometesse a mudar seu comportamento em relação à mulher.

Para levar a cabo a análise dessas práticas, iniciamos apresentando um panorama do processo legal nos casos analisados, assinalando o que revelam acerca da lógica judicial brasileira. Em seguida, apresentamos uma etnografia das audiências estudadas, identificando a dinâmica de construção e acionamento do dispositivo de “suspensão”, prática que lembra a construção de um acordo de mediação ou conciliação, mas que guarda características próprias da lógica judicial brasileira. Nas conclusões, desenvolvemos a ideia de que, em um sistema judicial marcado pela lógica inquisitorial e pelas mediações de autoridade de delegados, promotores, defensores e juízes, dificilmente há condições para uma interpretação dos fatos que se aproxime dos sentidos atribuídos pelos sujeitos envolvidos no processo (homens e mulheres). Sugerimos, contudo, que as práticas de suspensão do processo poderiam ser entendidas como estratégia de controle e coerção sobre a conduta de homens agressores bastante gramatical para uma sociedade em que a igualdade não é vivida como valor fundamental.

A suspensão condicional do processo e seu contexto

Até recentemente, observava-se nos juizados especiais do Distrito Federal alguma preocupação em ampliar espaços de escuta das partes por meio de audiências que terminavam não com a oferta de denúncia contra o agressor, mas com um compromisso deste em mudança de atitudes e padrões de comportamento. Isso era feito por meio do recurso de suspensão condicional do processo (Miranda, 2014MIRANDA, Alessandra de La Vega. Em briga de marido e mulher o Judiciário mete a colher... qual a medida? Uma etnografia sobre as práticas judiciárias conciliatórias de conflitos em Juizados de Violência Doméstica do Distrito Federal. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília, Brasília . 2014.). Com isso, o juiz mantinha o processo suspenso, desde que o agressor cumprisse as condições acordadas em audiência.

Em julho de 2013, o Supremo Tribunal Federal (STF) reiterou que a Lei Maria da Penha afasta os benefícios legais previstos pela lei n.o 9.099/95, dentre eles o recurso à suspensão condicional de processo, em casos de violência doméstica. Esse entendimento foi reiterado em decisão posterior do STF, em janeiro de 2014. Contudo, pouco se sabe ainda sobre a dinâmica por meio da qual a suspensão condicional era acionada, nem quais seus efeitos para o controle das relações violentas. Para a compreensão adequada desta dimensão no atual debate, falta-nos uma análise mais detalhada de casos concretos. Este artigo procura contribuir para o esboço de um retrato das práticas judiciais que recorriam, antes de 2013, à suspensão condicional do processo no Distrito Federal (DF). Para tanto, baseamo-nos nos dados da primeira etapa de uma pesquisa que buscou analisar o tratamento judicial de casos de violência doméstica em perspectiva comparada em cinco juizados especiais do Distrito Federal (nomeadamente as três Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Brasília, o 1º Juizado Especial de Competência Geral de Samambaia e o 1º Juizado Especial Criminal de Ceilândia)2 2 . A pesquisa se desenvolveu em três fases: (1) análise documental dos processos abertos em 2009 em três dos juizados pesquisados (Samambaia e 2º e 3º de Brasília); (2) observação de audiências em curso; (3) entrevistas com os atores envolvidos (atores jurídicos e partes). Na primeira etapa, a pesquisa analisou 469 autos de processos em tramitação e arquivados nos cartórios dos juizados selecionados. Destes, 383 casos eram de violência doméstica, submetidos, portanto, ao ordenamento da Lei n.o 11.340/2006. , entre 2010 e 2011, juizados que apresentavam procedimentos e práticas distintas, tanto por sua natureza como por inclinações distintas de seus titulares.

A análise dos dados indicou forte presença do recurso à suspensão condicional do processo, construída nos termos de um “acordo” entre juiz e agressor. Ainda que possam ser questionáveis, tais práticas pareciam, diante do quadro de então, preferíveis ao simples arquivamento do processo. A pesquisa qualitativa indicou que muitos dos “arquivamentos” são, na verdade, o desfecho de um acordo de suspensão condicional. Contudo, o simples arquivamento sem os rituais envolvidos na construção de um compromisso por parte do requerido tende a resultar em grande insatisfação por parte da requerente, sendo tomado por esta, em última instância, como recusa do Estado em intervir no conflito ou em reconhecer a legitimidade de seu sofrimento.

As dinâmicas para suspensão condicional do processo se dão dentro de uma lógica mais geral que marca procedimentos judiciais no Brasil em que a autoridade do juiz e do Ministério Público é intensa e sempre presente. Assim, ao contrário de outros contextos nacionais, em que procedimentos de mediação tendem a retirar de cena a figura de uma autoridade decisória, dando sentido à interpretação de que tais práticas evocariam um “império da escolha” (Debert & Gregori, 2008DEBERT, Guita; GREGORI, Maria Filomena. Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 66, 2008.) feita pelas partes em litígio, aqui a lógica judicial brasileira assegura que a decisão sobre o caso seja produto, não de uma livre negociação entre as partes, mas de uma autoridade que, findo o contraditório, decide o caso ao seu modo. É nesse registro que buscamos compreender a dinâmica de aparente “conciliação” produzida pelo mecanismo de suspensão do processo.

Antes de analisar esse mecanismo, é preciso situar o contexto no qual se dá o tratamento judicial a casos de violência doméstica no Distrito Federal. Para isso, apresentamos a seguir alguns dados gerais levantados durante a pesquisa.

A construção e a tramitação dos processos

É curioso notar como pesa sobre a Lei Maria da Penha, no senso comum, o estigma de ter transformado a violência doméstica em crime. De fato, a lei não instituiu um novo tipo penal, mas definiu um rito judicial próprio para crimes já previstos, nos quais a vítima seja mulher. Nos juizados pesquisados no DF, por exemplo, a quase totalidade dos casos (93%) dizia respeito a lesão corporal, injúria, ameaça e vias de fato, sendo que os três primeiros tipos formavam quase 80% dos casos que entraram em juízo (ver Tabela 1).

Tabela 1
Tipificação principal na entrada do processo

A qualificação de um ato em um tipo penal é elemento central do processo, nada trivial, e que tem início ainda na delegacia de polícia. É comum, por exemplo, que um processo exiba mais de um tipo penal em sua capa. Dos processos estudados, 51% traziam dois ou mais tipos na capa (Tabela 2) - produzidos ainda pelo inquérito policial, mas nem sempre mantidos no momento da sentença. Muitos dos crimes indicados inicialmente são desqualificados pelo juiz na sentença, fazendo com que, ao final, se verifique um aumento no percentual de casos com apenas uma tipificação (Tabela 3).

Tabela 2
Número de tipos por processo na entrada
Tabela 3
Número de tipos por processo na sentença

A tipificação é o primeiro momento em que um conjunto multidimensional de conflitos é reduzido a uma lógica e a uma linguagem propriamente jurídica, que, não necessariamente, guarda conexão com os significados dados pelos sujeitos em relação. O fato de a tipificação passar por sucessivas transformações (iniciando-se com o delegado, passando pelo promotor e terminando com o juiz) indica, desde já, o conjunto de mediações que se deve levar em conta quando se busca analisar o alcance da judicialização como estratégia para promoção de mudanças de significados e atitudes de gênero.

Uma inovação importante da Lei Maria da Penha, no sentido de reforçar a proteção a mulheres em situação de risco, foi a instituição de “medidas protetivas de urgência”, que podem ser solicitadas ainda na Delegacia de Polícia, a juízo da mulher ou dos agentes policiais. No Distrito Federal, elas costumam ser acionadas com frequência. No conjunto, dos quase 400 processos analisados, registramos um total de 1.187 medidas requeridas nas delegacias, uma média de três por processo. Contudo, apenas um quarto delas foram efetivamente deferidas pelos magistrados quando o processo entrou nos juizados.

Em geral, as medidas são indeferidas, especialmente aquelas consideradas graves, como a de afastamento do lar, sob a alegação de insuficiência de provas para caracterizar risco iminente, o que, em muitos casos, se relaciona com o modo pelo qual o processo é instruído desde a Delegacia de Polícia3 3 . A Tabela 4 lista os tipos de medida mais requeridos pelas vítimas nas delegacias de polícia. A que tem maior possibilidade de ser concedida (41% dos casos analisados) é a proibição de aproximação da ofendida que, junto com a de proibição de contato com familiares ou testemunhas, perfazem 73% das medidas concedidas por juízes e juízas. As solicitações de afastamento do lar têm pouca probabilidade de concessão (28%), ainda assim são mais frequentemente concedidas do que várias outras medidas. . A forma como delegados e juízes interpretam, diferentemente, o que seja “urgência” e “proteção” parece, pois, um segundo nível de mediação a se levar em conta na análise dos limites da judicialização.

Embora boa parte das medidas protetivas seja indeferida, chama a atenção a preocupação dos magistrados com uma resposta rápida para os processos, o que não necessariamente indica uma solução definitiva. A maior parte dos processos analisados (63%) chegaram a um encaminhamento logo na primeira audiência - a de instrução. Nela, como veremos adiante, o juiz determina, em geral, a suspensão condicional do processo ou, mediante pedido da vítima, seu arquivamento. É interessante notar que, embora em todos os juizados predomine a sentença logo em primeira audiência, há grande variabilidade entre os juízos (Tabela 5). Os processos com audiência única vão de 48% em um juizado a 84% em outro, indicando o forte caráter idiossincrático característico da atuação de juízes no sistema judicial brasileiro.

Tabela 4
Medidas protetivas de urgência citadas nos processos
Tabela 5
Número de audiências realizadas no processo até a sentença

Ainda assim, o tempo médio de duração de um processo, nos casos analisados, foi de cinco meses. O dado interessante aqui é que nos processos em que há participação de advogado particular para representação de uma ou mais partes, o tempo de tramitação tende a ser maior. Quando o acusado é representado por advogado particular, o processo leva em média quase seis meses, contra três no caso de representação pela Defensoria Pública ou Núcleo de Prática Jurídica (Tabela 6)4 4 . É preciso observar que são poucos os casos em que há interferência de advogados particulares, predominando a atuação de advogados ad hoc (Defensoria Pública ou núcleos universitários). No geral, apenas 24% das requerentes e 23% dos requeridos têm advogado contratado, sendo este número maior nos juizados de Brasília, como se vê nas Tabelas 7 e 8. Nessas tabelas, “Não disponível” significa que não há menção, na ata de audiência, à representação. Normalmente, significa tratar-se de advogado dativo de núcleo de prática jurídica ou Defensoria Pública, mas não há como confirmar apenas pela leitura da ata. Embora haja obrigatoriedade de representação da vítima, conforme a Lei Maria da Penha, em muitos processos não há tal representação e, em algumas oportunidades, o mesmo advogado ad hoc que defende o acusado atua na representação da vítima. .

Tabela 6
Média de dias transcorridos entre entrada em juízo e sentença

Em relação ao maior tempo de tramitação com advogados particulares, isso pode ser analisado como sinal de que nestes casos as partes não tendem a aceitar de pronto as propostas de acordo para extinção ou suspensão do processo que costumam ser apresentada por juízes e promotores. Isso parece estar associado a outra característica da lógica judicial brasileira nomeada por Kant de Lima (2010) como a “lógica do contraditório”. Ao contrário de uma lógica beligerante, em que argumentos são contrastados em busca de uma solução consensual ou com base em fatos consensuados no processo, em nosso sistema judicial predomina a oposição de teses sem compromisso com a negociação de sentidos compartilhados ou com a demonstração dos fatos alegados, que acabam, em muitos casos, por fazer com que um processo se arraste por anos até que a autoridade do juiz ponha fim à discussão. De todo modo, estamos aqui diante de um terceiro nível de mediação a ser levado em conta: a atuação de representantes legais das partes, capazes de mobilizar recursos jurídicos para protelação de um resultado.

Encaminhamentos: retratação, suspensão e serviço psicossocial

A maior parte dos processos é arquivada ou suspensa logo de início. Ao se analisar a situação dos processos no momento da pesquisa, observa-se que 80% dos mesmos se encontram nessas duas situações. É muito pequeno o número de casos que chegam a gerar um processo criminal: apenas 11% do total, entre arquivados e em curso (Tabela 9).

Tabela 7
Representação da requerente
Tabela 8
Representação do requerido
Tabela 9
Situação dos processos no momento da pesquisa

O recurso à suspensão condicional do processo é a forma pela qual são encaminhados os “acordos” feitos em juízo, a despeito do que diz o texto da lei n.o 11.340, que veda expressamente essa medida. Embora a maior parte dos casos seja arquivada por desistência de representação, decadência de prazos ou insuficiência de provas, uma parcela dos casos resulta em acordo entre as partes; um acordo, contudo, que não extingue imediatamente o processo. Constata-se que 12% dos processos estão nesta situação, em que o acusado se compromete a cumprir determinadas condições, afastar-se da requerente, evitar determinados lugares etc., por um período entre um e dois anos, ao fim do qual o processo é extinto sem representação criminal.

A análise das sentenças dadas nos processos espelha essa situação. Como há instauração de poucos processos criminais, quase não há registro de sentença condenatória. A maior parte das sentenças (60%) é pelo arquivamento por desistência de representação da vítima, a chamada “retratação”, e 15% extinguem o processo por outros motivos (em geral, prazos vencidos ou insuficiência de provas).

Isso significa que três quartos dos processos sentenciados são extintos sem qualquer consequência jurídica para a vida das partes. Na quarta parte restante de casos sentenciados, predomina, amplamente, a transação penal sobre a simples condenação ou absolvição do acusado, como indicam os dados da Tabela 10.

Tabela 10
Natureza da sentença proferida nos processos

O recurso à transação penal causa surpresa em se tratando de casos de violência doméstica, uma vez que a Lei n.­o 11.340 veda a aplicação deste recurso. Nas atas de audiência, contudo, encontra-se uma fórmula padrão de manifestação do Ministério Público em que se justifica a solicitação de transação penal, a despeito do que diz a lei Maria da Penha:

MMª. Juíza, é verdade que artigo 41 da LMP [Lei Maria da Penha] diz ser inaplicável a lei n.o 9.099/95 aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Todavia, o artigo 89 da lei dos JEC [Lei dos Juizados Especiais Cíveis] aplica-se tanto aos delitos de pequeno potencial ofensivo (como ameaça) quanto aos de médio potencial (como lesões). Assim é que poderia este instituto ter sido previsto em outra lei qualquer ou até mesmo no CPP, de modo que sua colocação na lei n.o 9099/95 foi por uma conveniência legislativa. Demais disso, parece que uma suspensão, desde que cumuladas com condições judiciais de prestação de serviços, é de muito maior teor educativo do que eventual condenação a três, quatro ou cinco meses de detenção que fatalmente serão substituídos por restritiva de direitos. Se não forem substituídos, aí sim passarão uma mensagem de impunidade, haja vista que o cumprimento será em regime aberto. Ou seja, nada. Por um lado, pode parecer mais pesado para o denunciado aceitar a suspensão do que arcar com eventual condenação. Por outro, ele escapa de abandonar sua primariedade. Assim, oferece o Ministério Público ao acusado a proposta de suspensão processual tendo em vista que o réu preenche os requisitos exigidos para tanto, o MP propõe ao acusado e seu defensor, a suspensão do processo por dois anos, período em que o denunciado deverá, sob pena de revogação, cumprir as seguintes condições...

É interessante salientar que o Ministério Público aciona o padrão de transação penal com o objetivo de “punir melhor” e garantir a efetividade da lei. Nota-se, em todos os juizados pesquisados, uma preferência por penas alternativas, com raras condenações. Isso é justificado nas atas de audiência nos termos de que a transação penal pode representar um sucesso maior no processo da resolução do conflito, levando o magistrado a optar por tratamentos acompanhados por psicólogos ou a designação de prestação de serviços gerais à comunidade durante certo período de tempo. Como sugere o trabalho de Alessandra Miranda (2014MIRANDA, Alessandra de La Vega. Em briga de marido e mulher o Judiciário mete a colher... qual a medida? Uma etnografia sobre as práticas judiciárias conciliatórias de conflitos em Juizados de Violência Doméstica do Distrito Federal. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília, Brasília . 2014.), em todos os juizados pesquisados por ela, os juízes demonstravam dificuldade de aplicar a lei n.o 11.340 por acharem que, em muitos casos, ela não faria jus à natureza do conflito, percebido como um “problema social”, motivado por consumo de bebida alcoólica, falta de melhor compreensão entre as partes etc.

É no registro do “problema social” que muitos casos (cerca de 26% dos processos analisados) incorporam nas sentenças algum tipo de encaminhamento formal para tratamento psicossocial ou de encaminhamento formal para processo civil (pensão de alimentos). O mais comum (33%) é o encaminhamento do acusado para tratamento, como internação em clínicas, em geral de alcoolismo, ou obrigação de atendimento a grupos de apoio, seguido do encaminhamento de ambas as partes ao serviço de atendimento psicossocial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) (Tabela 11).

Tabela 11
Encaminhamentos constantes dos processos

A dinâmica das audiências: uma abordagem etnográfica

Os dados apresentados acima indicam que, em que pese a lei n.o 11.340 ter reforçado o tratamento penal da violência doméstica, os casos levados a juízo raramente terminam em denúncia e condenação do agressor. A observação das audiências confirmou que, em todos os juizados pesquisados, predomina a suposição de que um acordo entre as partes é preferível à persecução penal do agressor. A forma, contudo, como esta disposição se traduz em atos jurídicos varia consideravelmente. Nesta seção apresentaremos os resultados da observação de dezenas de audiências nos cinco juizados pesquisados, bem como de entrevistas e conversas informais com magistrados, advogados e promotores.

A característica mais marcante das audiências observadas é justamente a tendência da busca de um acordo que evite a persecução criminal. Tal disposição pode estar relacionada a inúmeros fatores: desde uma leitura acerca da natureza dos juizados especiais (vistos, por alguns magistrados e promotores, como espaço de negociação célere e informal entre partes em conflitos das mais diversas naturezas) até representações de gênero e modelos de família que embasam a visão de mundo de alguns desses operadores jurídicos, marcadas, muitas vezes, pela ideologia da harmonia familiar como valor a ser exaustivamente buscado.

Essas razões latentes não são objeto de análise deste artigo. Nossa preocupação, aqui, é a de compreender como ocorre o tipo de negociação que resulta em baixos índices de denúncia e persecução penal nesses juizados, bem como os efeitos que esse tipo de prática tem tido sobre o cotidiano de mulheres e homens que recorrem ou são recorridos pela aplicação da lei n.o 11.340. Assim, optamos por estruturar esta seção em torno dos mecanismos acionados na construção do acordo, explorando a dinâmica comum aos juizados e suas peculiaridades, para, ao final, relatar a percepção das partes sobre estes procedimentos. Em primeiro lugar, apresentamos as evidências da disposição ao acordo, por parte de juízes e promotores, tal como ela é externada nos diferentes juizados. Para isso, exploramos, a seguir, a dinâmica de construção do acordo em suas três fases estruturantes: a oitiva das narrativas de requerente e requerido; a construção das bases para um acordo; e a consagração do acordo.

A disposição para o acordo

Na totalidade das audiências observadas, o juiz ou o promotor inicia a audiência pela oitiva da vítima e, quase sempre, perguntando por sua vontade. Neste momento, são comuns fórmulas como “o que nós podemos fazer pela senhora?” ou “o que a senhora deseja que a Justiça faça, no seu caso?”. Em alguns casos, a disposição para um acordo é estimulada já nesse primeiro momento. Em um caso de Brasília, por exemplo, a juíza começou a audiência perguntando: “a senhora deseja as medidas protetivas, ou a senhora acha que só o boletim de ocorrência já é o suficiente?” Diante da postura reticente da requerente, a juíza novamente perguntou se ela ficaria satisfeita com um compromisso da parte do requerido de não mais ofender ou agredir a requerente. A juíza deixou claro que essa prática não está na lei, mas constaria dos autos.

Quando a requerente se exaspera ou se mostra irritada em seu relato, por vezes o magistrado procura acalmá-la, relembrando a importância de um bom acordo. Em um dos casos, a requerida, exaltada, era repetidas vezes interrompida pela juíza. A juíza, no sentido de apaziguar o caso, disse: “quando a gente está com a cabeça quente, a gente não pensa direito”, propondo à vítima apenas o comprometimento do requerido de não mais ofendê-la ou agredi-la. A juíza comentou que a lei é muito dura para esse tipo de caso, reforçando posição que já manifestara para nós de que a Lei Maria da Penha é excessivamente “criminalizadora”. Esta perspectiva é particularmente acentuada se o casal tem filhos. Aqui, como em outras oportunidades, é recorrente a dificuldade de os operadores ouvirem as partes, caracterizando uma instância importante de exclusão discursiva (Cardoso de Oliveira, 2011____. Prefácio. In: Martins, Francisco; Araújo, José Newton; Souza, Mériti (Orgs.). Dimensões da violência: conhecimento, subjetividade e sofrimento psíquico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011. : 10).

A valorização de um acordo é constantemente mencionada durante as audiências. Em um dos juizados, por exemplo, a promotora de justiça mencionou, em mais de uma ocasião, que em um acordo ambos sairiam perdendo em algum ponto e ganhando em outro, mas que provavelmente seria melhor do que deixar a cargo de um terceiro (o juiz) a decisão. É a fórmula observada em práticas de conciliação acionada em audiência criminal. O magistrado, por sua vez, em diferentes ocasiões, se referia a duas opções que se abriam para o requerido: a “letra fria da lei” ou um “compromisso” que o livraria da prisão. Nesse sentido, costumava utilizar metáforas e alegorias para deixar claro o quão preferível seria um acordo:

O senhor tem duas portas pela frente, como naquele programa de televisão. Que porta o senhor vai escolher? Uma, que eu posso lhe oferecer, é um acordo para que o senhor não tenha mais problema com a dona A. [requerente]. Nela, o senhor se compromete a não se aproximar mais dela. A outra porta é o que a Justiça tem de pior: a letra fria da lei [referindo-se, neste caso, à prisão]. A escolha é sua.

O ritual para a suspensão costuma passar por três fases. Em um primeiro momento, ocorre a enunciação das histórias por parte da requerente e do requerido. Em alguns juizados, a história da requerente é narrada primeiramente ao promotor ou à promotora, enquanto o juiz ainda conclui a revisão da ata de audiência anterior. Em seguida, faz-se a oitiva do requerido, em geral na presença da requerente.

Na segunda fase, constroem-se as bases do acordo. Esta é a fase em que o sentido do acordo mais varia entre os juizados. Como veremos, em alguns casos, essas bases são construídas em negociação entre os operadores judiciais (advogado, juiz e promotor), enquanto em outros é feita diretamente entre juiz, arguido e requerente. Nestes casos, ela pode tomar diversas formas, mais ou menos intimidadoras, mas sempre fundada na ideia da autoridade do juiz. Em alguns casos, ainda, há uma preocupação explícita do magistrado em não acenar com ameaça de prisão ou de uso da Lei Maria da Penha. Esses são os casos em que a audiência mais se aproxima da realidade de uma vara de família que de uma criminal. De todo modo, em todos os casos, parece estar presente a mesma perspectiva, que implica a exclusão discursiva das partes.

A etapa final é a de consagração do acordo, em que se firmam os compromissos assumidos. Nesta etapa, as práticas dos juizados variam muito, indo desde a simples lavratura da ata até o uso de variadas estratégias de comunicação para assegurar que as partes tenham compreendido e aceito os termos do acordo.

A enunciação das histórias

Os espaços que as partes têm para enunciar suas histórias durante as audiências costumam ser semelhantes em todos os juizados. No início das audiências, solicita-se à requerente seu depoimento e sua versão sobre os acontecimentos para que os operadores judiciais possam comparar com os relatos do termo circunstanciado, anteriormente dados na delegacia, e então prosseguir com os depoimentos.

Normalmente, a requerente é ouvida antes que se chame o requerido à sala de audiências. Em geral, pergunta-se ainda se a requerente se importaria de falar na presença do ofensor e, caso ela não se incomode, ele pode aguardar dentro da sala de audiências o momento de sua fala.

Em seguida, é dado ao requerido oportunidade para se pronunciar. Se à requerente é quase sempre perguntado “o que deseja”, ao requerido pergunta-se sempre se ele sabe por que está ali. Nesta fase, a requerida não deve interromper o depoente, visto que já teve oportunidade de contar sua versão sobre os fatos. Em umas das audiências observadas, a ofendida tentou interromper o depoimento do ofensor por não concordar com o que estava sendo relatado, mas foi imediatamente lembrada pela promotoria que já havia tido seu momento para falar e que não deveria interrompê-lo. Durante seus depoimentos, as partes podem ter liberdade para contar suas histórias e falar sobre suas intenções em dar prosseguimento ou não ao processo e o que esperam efetivamente resolver na Justiça.

Em geral, os atores legais demonstram claramente o interesse em ouvir somente o que diz respeito a situações que aconteceram no ambiente doméstico e familiar alusivas aos acontecimentos que constam dos autos. Qualquer outro tipo de enunciação referente a outros assuntos tende a levar os atores legais a interromper o depoimento com o pedido de que a parte se atenha apenas aos assuntos que são pertinentes ao entendimento dos conflitos e que constem dos autos. Nesse sentido, reforça-se o papel da redução a termos na filtragem que transforma o conflito (e sua multidimensionalidade) em uma lide judicial, distanciando o processo das expectativas de escuta das partes.

Em Ceilândia, embora as partes também tenham tempo considerável para narrar suas versões, o volume de audiências por dia é incrivelmente maior do que em Brasília, o que obriga o juiz a restringir as falas quando começam a se exceder. Nesse sentido, faz diferença o fato de se ter um juizado específico para violência doméstica, com audiências três ou quatro vezes por semana (como em Brasília), ou um juizado criminal, em que apenas um dia da semana é destinado às audiências de violência doméstica. Enquanto nos juizados de Brasília tem-se em média quatro ou cinco audiências em um dia, em Ceilândia nunca se atende a menos de 25 casos.

A livre enunciação das narrativas é uma faca de dois gumes, especialmente por se dar sem prévia conversa com os advogados, uma vez que a maior parte dos casos processados transcorre sem a presença de advogados particulares e as partes costumam ter seu primeiro contato com o advogado ad hoc (em geral da Defensoria Pública ou de algum núcleo universitário) no momento da audiência. O espírito de informalidade e celeridade dos juizados especiais faz com que a atuação da defensoria seja bastante reduzida, colocando muitas vezes os requeridos em posição delicada, especialmente quando instados a relatar fatos que acabam por comprometê-los.

Sem a orientação de advogados, as partes não têm ideia de como as causas são filtradas pela linguagem jurídica, provocando frequentemente enorme dissintonia entre o que dizem e o que gostariam de estar dizendo. Como os requeridos não têm nenhum contato prévio com os advogados dativos, tendem a falar livremente sobre os acontecimentos, o que cria situações que podem facilmente levar a sua incriminação - não apenas no caso em apreciação, mas por envolvimento com outros ilícitos. Como, contudo, predomina uma disposição para o acordo, os juízes tendem a ser seletivos no que escutam e a desprezar relatos incriminadores.

Um caso do Juizado de Ceilândia é exemplar. O feito envolvia uma queixa por agressão, na qual os autos, segundo o entendimento do juiz, não continham testemunhos ou instrução capaz de manter o processo. Nesse sentido, o juiz já encaminhava pelo arquivamento do processo, por falta de elementos probatórios, quando, depois de já ter deposto, o requerido voltou a falar, iniciando sua fala nestes termos: “Excelência, eu quero dizer o seguinte: quando eu bati nela, eu bati porquê...”. Imediatamente o juiz o interrompeu, dizendo:

Senhor A., não diga mais nada. Não diga, porque o senhor pode se complicar. Converse aí com o seu advogado (advogado do núcleo universitário) que ele pode lhe explicar bem o risco que o senhor está correndo. Agora, está muito barulho aqui, eu não ouvi direito o que o senhor falou, viu. Converse aí com seu advogado.

Depois de trocar palavras com a promotora, o juiz resolveu encaminhar o processo para suspensão condicional, mediante um acordo com o requerido. Em casos como esse, magistrados e Ministério Público tendem a selecionar o que lhes chega aos ouvidos, no sentido de não haver menção a fatos narrados nas atas. Assim, pode-se dizer que há situações em que a exclusão discursiva atua em benefício das partes, apesar das implicações negativas para o status das mesmas como interlocutores no processo.

As bases do acordo

Após ouvir as partes e ler os autos, juízes e Ministério Público procedem a uma identificação e categorização do caso. Os juízes ouvidos pela pesquisa em geral concordam que há diferentes graus de violência doméstica, e mesmo casos em que não há violência alguma, mas para os quais a lei é acionada com outros propósitos. Nesse sentido, todos apontam para a necessidade de diferenciar as naturezas distintas dos casos. Para tanto, contam com uma habilidade já referida por vários autores considerada como inerente ao magistrado: a de “sentir” a verdade dos fatos5 5 . A referência à capacidade de “sentir” a verdade é apontada em outros trabalhos como forma comum dos juízes se referirem ao modo como chegam a uma sentença. Para isso, ver Teixeira Mendes, 2012. .

Não se trata exatamente do processo de formação da convicção do magistrado, mas é parte dele, e vale igualmente para os promotores.

Ao decifrarem os diferentes elementos que operam na construção da credibilidade das narrativas apresentadas na audiência - elementos que vão desde atos performáticos (a postura corporal e gestual dos depoentes, seu tom de voz, a forma como expressam sentimentos etc.) até elementos de composição da persona moral do depoente (situação familiar, histórico de registros policiais, relatos de testemunhas, envolvimento com drogas e álcool, situação profissional etc.) -, juízes e promotores “sentem” a gravidade da situação e identificam as alternativas que podem ser acionadas para a solução do caso.

Vários casos são expressivos deste tipo de movimento. Em Samambaia, por exemplo, a requerente acusava o ex-marido de ameaça. Ao residirem já em casas separadas, os dois eram parte de um processo de divórcio que envolvia a venda de uma casa na qual a mulher ainda habitava. Após ouvirem as partes, juiz e promotor logo se convenceram de que a requerente havia feito a queixa no sentido de evitar que o ex-marido continuasse pressionando pela venda da casa, embora formalmente ela concordasse com a venda e mesmo dissesse que estava agindo para tal. Juiz e promotor “sentiram” que se tratava de uma denúncia “falsa”, motivada por razões alheias à lei n.­o 11.340. Assim, o Ministério Público pediu o arquivamento do processo por atipicidade, no que foi prontamente acolhido pelo magistrado.

No extremo oposto, em Ceilândia, o juizado atendeu a uma mulher que estava se separando do cônjuge que, excessivamente ciumento, não aceitava a separação. O rapaz já não morava com a requerente, que expressava o desejo de não dar outra oportunidade a ele (“Já dei todas as chances”, dizia ela), mas continuava procurando a mulher e insistindo na reaproximação. Após ouvir as partes e tentar propor um acordo ao agressor, o juiz “sentiu” tratar-se de um caso grave. “Esse é um caso gravíssimo” disse para a requerente em um dos momentos em que pediu ao agressor para aguardar fora da sala de audiências. Ainda se dirigindo à requerente disse o juiz:

Esse é o tipo de caso em que homem mata a mulher. Ele diz: se ela não pode ser minha, não será de mais ninguém. A senhora está correndo seriíssimo risco.

A requerente, contudo, não desejava que o agressor fosse preso, pois tinham uma filha que, segundo ela, sofreria muito com a prisão do pai. O juiz então lhe perguntou: “quer ser encaminhada para a casa abrigo?” Diante da afirmativa da mulher, o juiz providenciou o encaminhamento e ordenou ao requerido que mantivesse distância mínima da ex-companheira. Ao fazer uso das alegorias e parábolas comuns em sua prática, deixou claro que qualquer descumprimento da resolução implicaria na prisão imediata do requerido e ainda contou uma história assustadora sobre um requerido em igual situação que, depois de preso por uma semana, teve de fazer uma cirurgia para reconstituição anal em função dos sucessivos abusos sexuais de que foi vítima na prisão.

Na economia interpretativa dos magistrados, casos identificados como de natureza ou gravidade diversas, têm encaminhamentos diversos. Àqueles avaliados como menos graves, em especial quando envolvem casais com filhos, sugeriam imediatamente uma solução acordada. Tal observação é fundamental para se problematizar o sentido de “criminalização”, profundamente dependente da interpretação dos magistrados.

Os casos que parecem aos magistrados sem o devido grau de criminação são imediatamente objeto de uma proposta de suspensão condicional do processo, nos termos do que parece ser um “acordo”. Em geral, o que se apresenta como “acordo” é, antes de tudo, um compromisso assumido pelo requerido com uma indicação de conduta expressa pelo juiz. É, neste sentido, um compromisso do requerido diante da autoridade judicial, e não uma negociação entre as partes mediada pela Justiça. A agência das partes e dos atores jurídicos varia no processo de construção deste compromisso.

Em Samambaia, por exemplo, juiz, promotor e defensor conheciam-se de longa data e partilhavam integralmente uma mesma visão acerca da vocação de um juizado especial, entendendo-o como espaço que recebia conflitos compostos por múltiplas camadas. Nos termos do magistrado, todos os casos que ali chegavam (lembrando tratar-se de um juizado de competência geral) tinham um “pano de fundo”, ou seja, eram a expressão judicializada de conflitos de várias ordens em uma relação persistente. Neste sentido, a aplicação não mediatizada da lei com a criminalização de uma ou outra parte, não resolveria, a seu ver, o problema de fundo. Daí porque um juizado como aquele, na visão compartilhada por juiz, promotor e defensor, não poderia ater-se apenas à lei, mas devia tratar, da maneira mais informal possível, as questões de fundo do processo.

Como os três atores jurídicos tinham uma relação de recíproca confiança e compartilhavam um mesmo entendimento acerca do modus operandi preferencial do juizado, não demoravam em compartilhar uma interpretação acerca do que estava por trás de cada caso (o seu “pano de fundo”). Uma vez compartilhada esta interpretação (por exemplo, a de que a mulher do caso relatado anteriormente estava acusando o ex-marido apenas com o intuito de postergar a venda da casa), rapidamente negociavam, entre si e em linguagem jurídica, a solução que lhes pareceria mais eficaz para o caso. A negociação do acordo, ou do compromisso a ser assumido pelo requerente, era assim um processo feito entre juiz, promotor e defensor, orientado por suas convicções acerca do fato e sem muito espaço para participação das partes. Assim, embora reconhecessem que o caso envolvia problemas que transcendiam as questões legais, paradoxalmente o encaminhamento dado por eles assumia uma certa tutela das partes, deixando pouco espaço para que elas mesmas elaborassem seus conflitos6 6 . Essa prática é classificada por Alessandra de La Vega Miranda (2014), como processo de “triangulação” entre juiz, defensor e promotor; atua como um dos mecanismos possíveis para produção do que Luís Cardoso de Oliveira (2011) chama de “exclusão discursiva”. .

A relação de convívio entre juiz, promotor e defensor torna mais rápido o processo de construção do acordo. Isso pode explicar, em boa medida, o dado levantado na seção anterior, segundo o qual casos que envolvem advogados particulares tendem a demandar um número maior de audiências e maior tempo entre a entrada em juízo e a sentença. Atentos aos meandros do processo legal, advogados, tanto de vítimas como de agressores, tendem a contrapor-se aos consensos construídos, de outra forma muito rapidamente, entre atores legais que compartilham um mesmo modus operandi.

Já em Ceilândia, o processo de negociação de compromisso se desenrola de modo diferente, bem mais centralizado na figura do juiz. Em geral, o juiz utiliza-se de algumas fórmulas prévias para encaminhar a suspensão condicional do processo, determinando que o requerido mantenha afastamento mínimo de 20 metros da requerida e reforçando, por meio de mecanismos de comunicação que serão descritos mais abaixo, o caráter coercitivo da solução proposta. Resta, contudo, a questão de “sentir” em quais casos este mecanismo pode ser disparado. Para isso, o juiz conta, em todas as audiências de violência doméstica (marcadas para um mesmo dia da semana), com a presença, durante as audiências, de pessoal do serviço de apoio psicossocial do tribunal. Este profissional, contudo, só é consultado quando o magistrado fica em dúvida acerca do grau de risco envolvido no relacionamento entre requerente e requerido, ou quando o juiz pensa em encaminhar o casal para acompanhamento do serviço psicossocial.

Em comum, o “acordo” é apresentado nos dois juizados ao requerido como opção de sentença, mas já pronto. Não se trata aqui de costurar os termos de uma conciliação. Em Samambaia os “acordos” são feitos pelo promotor e pelo juiz - o que as partes têm a dizer ou suas expectativas em relação ao processo não são levadas em conta. O advogado dativo não interferia ou questionava qualquer decisão do promotor e do juiz, e muitas vezes tem-se a impressão de que as partes não compreenderam ou não foram informadas do encaminhamento dado ao processo. Em Ceilândia, há maior preocupação em se ouvir o desejo da requerente, mas a proposta de acordo é igualmente apresentada com caráter de sentença. Nesse sentido, essa escuta parece ser marcadamente seletiva e orientada para o enquadramento nos termos previamente definidos pelo juiz. O “acordo” é posto, neste caso, como compromisso que o requerido deve assumir diante do juiz, um trato “entre homens” ou, como dito algumas vezes pelo magistrado, “de homem para homem, olhando nos olhos”.

Em Brasília, contudo, nota-se outra forma de “acordo”, em especial no 1º Juizado. Ali, a magistrada tende a conduzir a audiência como se o caso a ser analisado fosse próprio de uma vara de família. O ato da violência em si e suas consequências jurídicas cedem lugar a uma discussão acerca da melhor forma de equacionar os interesses das partes em questões como pensão de alimentos, divisão de bens e visitas aos filhos. Qualquer decisão unilateral do magistrado é descrita pela juíza como “arbitrariedade”, coisa que a mesma se recusa a fazer.

Após escutar as partes, a juíza conduz a discussão de modo a que a violência não esteja em primeiro plano. Há pouca discussão acerca do fato ocorrido pelo qual houve a queixa. A discussão costuma girar em torno de como está a relação pós-violência, ou então a audiência é usada como mais um meio judicial para influenciar processos que correm na vara de família, como divisão de bens e guarda de crianças, enquanto em outros juizados o juiz evita que esse tipo de discussão entre em pauta, ou que o juizado de violência doméstica seja usado como meio para fins que são de competência do juizado de família.

Assim, enquanto o titular de Ceilândia reforça a todo o momento que “a Lei Maria da Penha é severa com os homens” e que todos os que desobedeceram suas ordens de afastamento foram presos imediatamente, a juíza de Brasília diz: “Aqui ninguém vai preso não. Aqui não tem arbitrariedade”7 7 . Em Ceilândia é veiculado o discurso do quão efetiva é a Lei Maria da Penha e do quanto ela pode ser severa com os homens, sendo que muitos deles já estão presos e pagando pela agressão. Já em Brasília, o discurso dos agentes converge para a resolução do conflito familiar com os menores danos possíveis para o desenvolvimento psicológico e emocional dos filhos do casal. .

Nesse sentido, Brasília e Ceilândia apresentam situações antagônicas. Enquanto a juíza de um Juizado de Brasília praticamente transforma a audiência em sessão da Vara de Família, fazendo o acordo girar em torno de valores de pensão e guarda dos filhos, o juiz de Ceilândia separa claramente as competências de família e criminal, e regozija-se por não ter de se preocupar, também, com essas questões.

A consagração do acordo

A fase final das audiências - quando se faz uso da suspensão condicional - é marcada pela enunciação ritual dos termos do acordo, comportando enfáticas recomendações do juiz e claras indicações das consequências de seu não cumprimento. Essa fase - de consagração do acordo - ocorre também em várias das audiências que acabam com arquivamento do processo. Nesses casos, mesmo decidindo pelo arquivamento (em geral por renúncia da requerente), o juiz não deixa de admoestar o requerido com fórmulas do tipo

o senhor sabe que o arquivamento não significa que isso não ficará registrado aqui. Se houver um novo problema, ela tem todo o direito de prestar nova queixa, e isso aqui vai pesar contra o senhor.

As fórmulas utilizadas para dar efetividade aos termos do compromisso assumido pelo requerido variam bastante entre os juizados, e espelham as diferenças na forma pela qual o acordo é concebido, como descritas acima.

O juiz de Ceilândia faz uso de estratégias retóricas bastante convincentes, tanto para testar e assegurar que o requerido compreendera os termos do compromisso como para atemorizá-lo das reais possibilidades de prisão no caso de descumprimento. Entre essas fórmulas, destacam-se parábolas, metáforas e reiteradas indagações.

Nos demais juizados, não se vê o mesmo nível de preocupação com a comunicação entre o juiz e as partes, o que, como veremos na próxima seção, resulta em diferentes graus de compreensão do que se passa durante a audiência. Contudo, o momento de consagração do acordo não deixa de ser a ocasião para que os magistrados exercitem o que consideram ser uma função civilizadora do direito de educar e disciplinar condutas em direção a um modelo de relacionamento amistoso.

Um caso observado no Juizado de Samambaia é particularmente exemplar desta expectativa de juízes e promotores. As partes já se encontravam separadas e em processo de divórcio. No sentido de evitar confrontos, o ex-marido enviava o seu pai para buscar a filha nos seus dias de visita. A audiência caminhou para o arquivamento do processo, por retratação da vítima, quando, ao final, o ex-marido comentou:

Excelência, eu queria contar uma coisa. Na última vez que meu pai foi buscar a menina, ela disse que não podia ir porque a A. [requerente] mandou que ela ficasse em casa cuidando da irmã [meia-irmã, na verdade]. Eu acho que não está certo uma menina de sete anos ficar cuidando de outra de três

Nisso, a requerente o contestou: “é mentira, juiz!” O juiz interveio:

Calma, dona A. Não é assim. Ele está reportando algo que ouviu. A senhora tem que entender que não se deve reagir assim. Não deve sair retrucando. A mesma coisa poderia acontecer com a senhora. Vai que um dia sua filha volta da visita e diz: mãe, o pai me bateu. O que a senhora tem que fazer? Não vai logo sair brigando. Tem que ligar para ele e, calmamente, perguntar: “Olha J. [o requerido], a menina disse isso e isso. O que está acontecendo? É isso mesmo?” E o senhor, seu J. não vai dizer logo um palavrão, vai explicar calmamente o que se passou.

Em conversa posterior, juiz e promotor reconheceram que buscam educar de algum modo o comportamento das partes e sugerir uma outra ética relacional entre eles. Contudo, frisaram que sabem das limitações que uma interação curta e pontual, como uma audiência, pode ter.

Em Brasília, tanto juízes como promotores recorrem a intervenções semelhantes. Por vezes, referem-se à lei n.o 11.340 com o caráter de ameaça para a mudança de um padrão relacional, dizendo que “com a Lei Maria da Penha, podem até mandar prender”. Um dos promotores, em caso observado, também fez um pequeno discurso dizendo que não existe uma hierarquia em um casal e que o casal se entende no diálogo.

Em alguns casos, a preocupação com um modelo de relacionamento amistoso inclui ainda representações mais gerais sobre organização e até mesmo planejamento familiar. Em um juizado de Brasília, no caso de um casal de baixa renda que já tinha sete filhos e histórico de envolvimento com drogas, o promotor reforçou várias vezes que era importante o acusado continuar sem beber, e também insistiu junto à juíza para que o casal tomasse alguma medida para não ter mais filhos.

Parte dos elementos acionados para sopesar a credibilidade do depoimento (uso de drogas e álcool, testemunhos sobre caráter e conduta, atuação profissional e situação familiar) parece reemergir, neste momento, orientados por um modelo de relação amistosa e de formação familiar, na forma das admoestações de juízes e promotores. O modelo de vínculo familiar, aqui, surge com força8 8 . A fórmula parece se assemelhar aos “termos de bem-viver” da legislação imperial, como lembrado por Wânia Pasinato em comunicação pessoal. De fato, em alguns casos nos quais é difícil o ordenamento de uma distância física entre as partes, o juiz procura extrair do requerido o compromisso em seguir certas regras de convívio (não beber, limpar o que sujar, dormir em quarto separado etc.) até que o mesmo encontre outra casa. Nesses casos, estipula-se um prazo para a mudança e, caso a situação persista após o vencimento do prazo, a requerente é solicitada a fazer queixa por telefone, para que seja ordenada a prisão do requerido. .

Em uma audiência em Ceilândia, por exemplo, uma mulher com uma filha pedia o afastamento do homem da residência familiar. O juiz, depois de ouvidas as partes, disse à mulher que “ele tem o direito de ver a filha”. Só então, depois do protesto da mulher e de uma observação da promotora, o juiz se deu conta de que a filha em questão não era daquele homem. “Ah, desculpe, desculpe. Então muda tudo”. E passou a ser muito mais duro com o requerido.

O juiz de Ceilândia aplica seu modelo de ética familiar também ao recomendar, para casos julgados como menos graves e nos quais as partes demonstrem interesse em continuar junto, que as mesmas frequentem o curso “amor e respeito”, um curso de casais oferecido por um pastor evangélico das redondezas. Ao enfatizar a importância de o casal frequentar o curso, o juiz costuma apresentar sua leitura acerca da ética de um relacionamento conjugal nos seguintes termos:

Homens e mulheres falam linguagens diferentes. Muita briga começa porque eles não se entendem. Então, é preciso ver que o que a mulher mais precisa em um relacionamento é de amor, e o que o homem mais precisa é de respeito. Assim, a mulher, quando não se sente amada, reage com desrespeito, e o homem, quando não se sente respeitado, reage com desamor. E é preciso mudar esse círculo vicioso.

O papel dos serviços de apoio psicossocial

O Juizado de Ceilândia é espaço privilegiado para se compreender os possíveis recursos ao serviço de apoio psicossocial na construção de soluções mediadas para os casos de violência doméstica. O titular do juízo pede que haja sempre um profissional do setor nas audiências e costuma recorrer ao mesmo tanto para identificar a gravidade do caso como para negociar soluções que possam passar por acompanhamento do casal ou do requerido.

As psicólogas ou assistentes sociais que trabalham no núcleo de apoio psicossocial têm como objetivo, quando são chamadas para a audiência, auxiliar o juiz na percepção da gravidade do caso. Os operadores da Justiça, quando falam de casos de violência doméstica, muitas vezes dizem que é preciso “entender” o caso, é preciso ver o “pano de fundo” da situação, e as assistentes sociais e psicólogas são profissionais que podem auxiliar o juiz na hora de entender essas dimensões.

A sala de audiência pode ser um ambiente desconfortável tanto para a requerente como para o requerido, e isso pode interferir no que é relatado pelas partes. O serviço de apoio psicossocial tem por objetivo alcançar uma percepção sobre a gravidade do caso por meio de uma conversa durante a audiência, muitas vezes esses profissionais auxiliam as partes a compreenderem o que está acontecendo na audiência. Em alguns casos, o profissional do serviço de apoio psicossocial pode ser chamado para avaliar se a requerente está efetivamente sendo coagida quando solicita a retirada da queixa.

O Juizado de Ceilândia foi o único no qual o profissional do serviço de apoio esteve presente em todas as audiências. Nos demais juizados observados, os juízes fazem uso do apoio psicossocial, mas não durante a audiência - as partes são encaminhadas ao Serviço de Atendimento a Famílias em Situação de Violência (Serav) dependendo da decisão do juiz. O encaminhamento psicossocial também é defendido, por alguns juízes, como mecanismo de reconhecimento da natureza do conflito, bem como do empenho do requerido em transformar sua conduta.

O recurso aos profissionais do setor de apoio psicossocial em audiência, apresentado como forma de valorizar seu papel no processo, reforça a dimensão não criminal da sessão. Contudo, não é sempre que os profissionais são acionados. Quando o são, por vezes ficam em uma posição delicada, uma vez que devem decidir rapidamente, sem ter uma base sólida para fazer uma avaliação do ocorrido - posição, aliás, não muito diferente daquela dos juízes, em geral. A avaliação que os atores jurídicos naquela vara fazem, contudo, é de que o apoio prestado pelo setor é fundamental, pois permite identificar e encaminhar uma dimensão do conflito que não pode ser apreendida exclusivamente pelos mecanismos legais.

Expectativas de justiça

Por fim, registramos aqui alguns elementos de percepção dos atores acerca da efetividade das audiências que terminam com suspensão condicional do processo. A efetividade do “acordo” é indeterminada e depende em grande medida da maneira como a audiência é conduzida e de como o acordo é construído e comunicado para as partes. Pesam, nesse sentido, elementos como a capacidade de comunicação e convencimento do juiz, a incorporação ativa das partes nas etapas de construção de um acordo e a clara apresentação do acordo como um compromisso construído, não entre a requerente e o requerido, mas deste com a Justiça.

Em geral os casos que acabam arquivados - ou em “acordo” - refletem um tipo de expectativa por parte das mulheres que não buscam a prisão do agressor. Muitas fazem questão de dizer que “não querem mal para ele” e, mesmo nos casos em que a prisão é inevitável, afirmam estarem bastante preocupadas com as consequências do encaminhamento do processo. São comuns frases do tipo:

Eu só quero que ele fique longe de mim e se tivesse como retirar a queixa eu até retiraria, mas, no fundo, eu tenho medo dele.

Eu não quero fazer nenhum mal a ele, mas eu quero que ele se afaste de mim de uma vez por todas.

Há situações em que a desistência da persecução penal tem outro sentido para as mulheres. Algumas sentem-se moralmente ofendidas pelo que consideram um desgaste muito grande. As idas constantes ao juizado, especialmente em casos com mais de uma audiência, são estressantes para algumas mulheres e podem ser tomadas como insultantes.

Da parte do requerido, as expectativas variam, mas não costumam ser muito positivas. Em geral, os requeridos demonstram grande incômodo por serem objeto de suspeição. Isso se traduz em uma postura que oscila entre a submissão humilhada e o protesto indignado. Muitos dos requeridos adotam, em audiência, uma postura cabisbaixa, até com receio de falar, já que alguns consideram que só o fato de estar na “Justiça” e perante um juiz já é humilhante, mostrando-se dispostos a acatar a decisão que ali for tomada para evitar passar por futuros novos constrangimentos. Outros requeridos expressam indignação com o fato de estarem intimados a depor, mas temperam essa demonstração em função da reação do juiz.

Vale ressaltar que muitos requeridos tinham dificuldade em compreender o acordo como solução justa, especialmente quando envolvia transação penal. É comum ouvir dos homens expressões irritadas de indignação com o que consideram um tratamento absolutamente injusto por parte da lei n.o 11.340.

Conclusões

O debate acerca da dimensão jurídica da Lei Maria da Penha passa por uma melhor compreensão dos processos de criminação dos atos envolvidos em situações que podem ser caracterizadas como de “violência doméstica”. Muito oportunamente, Guita Debert e Maria Filomena Gregori (2008DEBERT, Guita; GREGORI, Maria Filomena. Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 66, 2008.) propuseram, há alguns anos, que se distinguissem, para fins de análise, os processos por meio dos quais se constroem socialmente o sentido de “violência” e o sentido de “crime”. A categorização de “violência”, como já indicado por Daniel Simião (2006____. Representando corpo e violência: a invenção da “violência doméstica” em Timor-Leste. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 21, n. 61, p. 133-145, 2006. ) e Luís Cardoso de Oliveira (2008____. Existe violência sem agressão moral? Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23 n. 67, p. 135-146, 2008. ), dependeria de um enquadramento moral específico e cambiável no tempo e no espaço, ao passo que o “crime” estaria regulado por outras lógicas (práticas legais e jurídicas). Os dados que trazemos aqui indicam que essa distinção merece ser melhor explorada, em busca dos mecanismos por meio dos quais se constroem, no âmbito judicial, os sentidos do “crime” em casos de “violência doméstica”.

A análise dos processos e audiências a que aludimos nesse artigo evidencia que a criminação do ato não resulta simplesmente da aplicação de uma lei, mas é resultado de uma complexa dinâmica de interpretação realizada por diversos atores e igualmente sujeita às moralidades que operam na categorização da “violência”. O sentido do crime, portanto, está igualmente marcado por representações e valores morais presentes na visão de mundo de delegados, promotores e juízes. Ocorre que, para além disso, a construção do sentido do ato (o que está sendo “criminado”) no ambiente judicial se faz a partir de “fatos” retratados em linguagem jurídica, reduzidos a termos e bastante distantes dos sentidos originais dos “fatos” vividos pelas partes de um processo.

É nesse contexto que a maior parte dos casos analisados teve sua dimensão propriamente penal reduzida, dando origem à suspensão condicional em lugar de uma persecução criminal. Isso, contudo, não significa necessariamente impunidade e agravamento do conflito. As narrativas e posturas dos juízes e promotores parecem indicar que, mesmo não considerando um caso qualificado para uma sentença condenatória, o agressor deve ser punido e controlado. Nas audiências em que se monta a suspensão condicional do processo, vemos uma dinâmica que ganha ares de conciliação, mas que não deixa de ser, em momento algum, uma ação inquisitiva de uma autoridade estatal sobre um sujeito a ter sua conduta corrigida e constantemente observada pelo Estado.

A ideia de que, durante a suspensão, o sujeito está sob constante coerção do Estado (podendo ser preso a qualquer momento) é um elemento destacado por aqueles que apoiavam essa prática em lugar do simples arquivamento de um processo. O simples arquivamento, sem os rituais envolvidos na construção de um compromisso por parte do requerido, tendia a resultar em grande insatisfação por parte da requerente, sendo tomado por esta como uma recusa do Estado em intervir no conflito ou em reconhecer a legitimidade de seu sofrimento.

A pesquisa revelou que, embora compartilhem alguns princípios comuns, as práticas adotadas em cada juizado variam bastante. Nesse sentido, os dados sugerem que, mais do que a norma legal ou a natureza do juizado em que os casos são processados, importa a conduta do magistrado na condução da audiência para que se atinja efetividade na resolução do conflito. Aqui, a capacidade de comunicação do juiz é de fundamental importância no sentido de fazer as partes (em especial o requerido) compreenderem os termos da sentença e as consequências de seu descumprimento. Nesse contexto, o potencial limitado da capacidade comunicacional do juiz torna-se um sério problema, em especial em um quadro em que a estrutura das audiências dá pouco espaço para uma audição efetiva da perspectiva das partes sobre suas demandas, impondo um processo de exclusão discursiva que acaba inviabilizando a produção de um sentido palpável na relação entre as demandas e o respectivo desfecho, assim como a percepção de justiça do ponto de vista das partes.

Em um sistema judicial marcado pela lógica inquisitorial e pela figura de uma autoridade cuja leitura dos fatos é bastante distante dos sentidos a eles dados, seja pelas partes, seja por atores políticos do campo de defesa dos direitos das mulheres, a judicialização parece ser uma estratégia bastante arriscada para a efetiva transformação de representações de gênero. Efetivamente, a atuação dos juízes nas audiências de suspensão condicional do processo pode ter um efeito de coerção sobre os agressores, no sentido de funcionar como estratégia de controle gramatical para uma sociabilidade hierárquica e acostumada à ação vertical de uma autoridade judicial. Contudo, tal estratégia está totalmente nas mãos da autoridade judicial e parece-nos pouco alinhada a um projeto de questionamento de representações hierárquicas de gênero.

O conjunto de sucessivas mediações que resulta nas práticas judiciais aqui analisadas parece-nos, assim, trazer grandes desafios a quem pretenda tomar a judicialização como estratégia para o combate à violência doméstica. Mais do que uma simples oposição entre uma perspectiva criminalizadora e outra negocial ou conciliatória, o que se vê nessas práticas é a submissão de um projeto de transformação de representações de gênero a um sistema judicial cuja lógica de funcionamento parece trazer mais embaraços do que soluções à efetiva incorporação, em modos de ser e estar no mundo, da ideia de um sujeito autônomo e cidadão.

Nesse sentido, parece-nos que seja nossa obrigação, como cientistas sociais, manter um acompanhamento constante de iniciativas de escuta e elaboração simbólica de conflitos marcados por gênero no Judiciário, em especial aquelas que permitam aproximar a garantia de direitos previstos em lei das expectativas de justiça dos sujeitos envolvidos em tais processos. Ao tempo em que se concluía a pesquisa aqui apresentada, iniciativas com este propósito eram ainda incipientes no Distrito Federal. Atualmente este quadro parece estar em transformação, e novas etnografias tem registrado experiências pré-processuais de atendimento das partes por equipes multidisciplinares (Matias, 2015MATIAS, Krislane de Andrade. Lei, justiça e judicialização de conflitos a partir de relatos de mulheres no Distrito Federal. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília, Brasília . 2015.; Simião, 2015 SIMIÃO, Daniel. Reparação, justiça e violência doméstica: perspectivas para reflexão e ação. Revista Vivências, 2015.). Resta-nos acompanhá-las, de modo a levar a discussão adiante.

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  • TEIXEIRA MENDES, Regina Lúcia. Do princípio do livre convencimento motivado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.
  • 1
    . Nesse sentido, os trabalhos de Luís Cardoso de Oliveira (1989; 2002: 31-46), sobre as pequenas causas nos Estados Unidos, e de Daniel Schroeter Simião (2013), sobre formas locais de justiça em Timor-Leste, já apontam, há algum tempo, para direitos que só podem ser reparados por meio de procedimentos não judiciais, como a mediação e a justiça restaurativa.
  • 2
    . A pesquisa se desenvolveu em três fases: (1) análise documental dos processos abertos em 2009 em três dos juizados pesquisados (Samambaia e 2º e 3º de Brasília); (2) observação de audiências em curso; (3) entrevistas com os atores envolvidos (atores jurídicos e partes). Na primeira etapa, a pesquisa analisou 469 autos de processos em tramitação e arquivados nos cartórios dos juizados selecionados. Destes, 383 casos eram de violência doméstica, submetidos, portanto, ao ordenamento da Lei n.o 11.340/2006.
  • 3
    . A Tabela 4 lista os tipos de medida mais requeridos pelas vítimas nas delegacias de polícia. A que tem maior possibilidade de ser concedida (41% dos casos analisados) é a proibição de aproximação da ofendida que, junto com a de proibição de contato com familiares ou testemunhas, perfazem 73% das medidas concedidas por juízes e juízas. As solicitações de afastamento do lar têm pouca probabilidade de concessão (28%), ainda assim são mais frequentemente concedidas do que várias outras medidas.
  • 4
    . É preciso observar que são poucos os casos em que há interferência de advogados particulares, predominando a atuação de advogados ad hoc (Defensoria Pública ou núcleos universitários). No geral, apenas 24% das requerentes e 23% dos requeridos têm advogado contratado, sendo este número maior nos juizados de Brasília, como se vê nas Tabelas 7 e 8. Nessas tabelas, “Não disponível” significa que não há menção, na ata de audiência, à representação. Normalmente, significa tratar-se de advogado dativo de núcleo de prática jurídica ou Defensoria Pública, mas não há como confirmar apenas pela leitura da ata. Embora haja obrigatoriedade de representação da vítima, conforme a Lei Maria da Penha, em muitos processos não há tal representação e, em algumas oportunidades, o mesmo advogado ad hoc que defende o acusado atua na representação da vítima.
  • 5
    . A referência à capacidade de “sentir” a verdade é apontada em outros trabalhos como forma comum dos juízes se referirem ao modo como chegam a uma sentença. Para isso, ver Teixeira Mendes, 2012.
  • 6
    . Essa prática é classificada por Alessandra de La Vega Miranda (2014), como processo de “triangulação” entre juiz, defensor e promotor; atua como um dos mecanismos possíveis para produção do que Luís Cardoso de Oliveira (2011) chama de “exclusão discursiva”.
  • 7
    . Em Ceilândia é veiculado o discurso do quão efetiva é a Lei Maria da Penha e do quanto ela pode ser severa com os homens, sendo que muitos deles já estão presos e pagando pela agressão. Já em Brasília, o discurso dos agentes converge para a resolução do conflito familiar com os menores danos possíveis para o desenvolvimento psicológico e emocional dos filhos do casal.
  • 8
    . A fórmula parece se assemelhar aos “termos de bem-viver” da legislação imperial, como lembrado por Wânia Pasinato em comunicação pessoal. De fato, em alguns casos nos quais é difícil o ordenamento de uma distância física entre as partes, o juiz procura extrair do requerido o compromisso em seguir certas regras de convívio (não beber, limpar o que sujar, dormir em quarto separado etc.) até que o mesmo encontre outra casa. Nesses casos, estipula-se um prazo para a mudança e, caso a situação persista após o vencimento do prazo, a requerente é solicitada a fazer queixa por telefone, para que seja ordenada a prisão do requerido.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2015
  • Aceito
    02 Maio 2016
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